Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1987
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: MATÉRIA DE DIREITO
RESPOSTAS AOS QUESITOS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FACTOS INSTRUMENTAIS
FACTOS ESSENCIAIS
Nº do Documento: SJ200309030019872
Data do Acordão: 09/23/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1468/01
Data: 02/04/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - Constitui matéria de direito, situada dentro dos poderes de cognição do Supremo, a questão do excesso ou exorbitância da resposta a um quesito, no julgamento da matéria de facto.

II - O juiz tem, no modelo processual vigente, a possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, e de considerar na decisão, os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.

III - E, ao contrário do que sucede quanto aos factos essenciais - em relação aos quais funciona o princípio da auto-responsabilidade das partes - relativamente aos factos instrumentais o tribunal não está sujeito à alegação das partes, podendo oficiosamente carreá-los para o processo e sujeitá-los a prova.

IV - Factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

"A" intentou, no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, a presente acção com processo ordinário contra B, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 4.180.000$00, acrescida de juros vencidos, no montante de 2.245.000$00, e dos vincendos, calculados à taxa legal, como indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu na sequência de actuação ilícita e culposa do demandado ou, subsidiariamente, com fundamento em enriquecimento sem causa.
Alegou, em síntese, que em Março de 1989 comprou o veículo automóvel de matrícula QQ, por 3.600.000$00, mantendo-o na sua posse e fruição exclusivas até 16.04.92, data em que o veículo foi apreendido no âmbito de um processo judicial do 2º Juízo Cível do Tribunal de Almada. Em Novembro de 1991, no decurso do divórcio do autor, o réu sugeriu-lhe que passasse o veículo para seu nome, a fim de o subtrair à partilha subsequente ao divórcio. E assim, em 22.11.91, o veículo, que em 13.06.89 havia sido posto em nome de C, irmão do autor, foi registado em nome do réu. Apesar disso, nunca o veículo esteve nas mãos do irmão do autor ou do réu, por sempre ter ficado assente ser ele da exclusiva propriedade do autor. Tanto assim que o réu, tal como já fizera o irmão do autor, preencheu, assinou e reconheceu notarialmente a assinatura em declaração de venda do veículo ao autor, para ulterior registo da propriedade a favor deste - documento que, mais tarde, o réu veio a furtar ao autor, nas instalações da fábrica de ambos, em Viana do Castelo. Um ano após a apreensão do veículo, nos autos de arrolamento requeridos pela mulher do autor, foi homologada transacção entre esta e o réu - que havia deduzido embargos de terceiro ao arrolamento, na parte respeitante ao veículo - desistindo aquela do arrolamento do veículo e este dos embargos. E, na sequência da transacção, foi levantada a apreensão do veículo, entrando o réu, em 15.04.93, na posse deste, não o devolvendo, como devia, ao autor, e recusando-se a fazê-lo, apesar de para tal instado. Tal atitude causou ao autor vários prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, que enumera, e pelos quais pede a correspondente indemnização. Subsidiariamente, e porque os factos integram uma vantagem patrimonial para o réu à custa do autor, estando aquele obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou, reclama a condenação do réu com base no enriquecimento sem causa.

O réu contestou, alegando essencialmente ter comprado o veículo ao autor, pelo preço de 2.100.000$00, que pagou integralmente.

Elaborado o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa, seguiu o processo a sua normal tramitação, vindo a efectuar-se a audiência de discussão e julgamento e a ser proferida sentença, na qual o Ex.mo Juiz condenou o réu a pagar ao autor a quantia de 1.900.000$00, acrescida de juros vencidos no montante de 453.345$00 e de juros vincendos, calculados à taxa legal, até efectivo pagamento, absolvendo-o do mais pedido, mas sancionando-o ainda, como litigante de má fé, com a multa de 500.000$00.

Da sentença apelaram ambas as partes.
A Relação do Porto, conhecendo dos recursos, decidiu:
a) declarar que a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia quanto à litigância de má fé por parte do autor; e
b) conhecendo de tal questão, julgar improcedente o pedido do réu, de condenação do autor como litigante de má fé;
c julgar improcedente a apelação do autor; e
d) julgar parcialmente procedente a apelação do réu, fixando em 20 UC a multa por litigância de má fé;
e) no mais, confirmar a sentença recorrida, embora com fundamentação jurídica diversa.

De novo inconformado, o réu traz do acórdão da Relação recurso de revista para este Supremo Tribunal.
E, no remate da sua alegação de recurso - na qual afirma que a sua discordância se prende, tão só, "com a circunstância de ter sido entendido que se respondeu demais ao quesito 28º, com violação do disposto no art. 264º/2 do CPC, dando-se por não escrita a resposta a tal quesito" - formula as seguintes conclusões:
1ª - A resposta ao quesito 28º traduz-se na verificação de um facto instrumental que, apesar de não alegado, pode - deve - ser considerado por ter resultado da discussão da causa;
2ª - Da resposta a tal quesito resulta ter o réu pago já, à então mulher do autor, parte do preço do carro dos autos, o que traduziria um patente enriquecimento sem causa, para o autor (visto que receberia não só a sua quota parte no valor do veículo, mas também a quota parte de sua então mulher), com o consequente empobrecimento do réu (que pagaria todo o veículo ao autor e mais metade do valor dele à ex-mulher);
3ª - Deliberando que a resposta ao quesito 28º deve ter-se por não escrita e condenando o réu no pagamento ao autor do valor integral do veículo dos autos, violou o acórdão recorrido o disposto nos arts. 264º/2 e 646º/4 do CPC e 473º do CC, pelo que é ilegal e, como tal, deve ser revogado e substituído por outro que condene o réu no pagamento ao autor de não mais de metade do valor do veículo.

Contra-alegou o autor/recorrido, pugnando pela improcedência do recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.
2.

A Relação considerou provada a factualidade seguinte:
I - O autor e o réu mantiveram uma relação de amizade, estima e confiança;
II - Em 13.06.89 o veículo automóvel de marca BMW 316 I, de matrícula QQ, foi registado em nome de C, e em 22.11.91 foi registado em nome do réu;
III - Em 16.04.92 aquele veículo foi apreendido no âmbito dos autos de arrolamento apensos ao processo de divórcio n.º 3364/91, da 2ª Secção do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Almada em que era réu o ora autor;
IV - Em 02.04.93 foi homologada transacção nos autos de embargos de terceiro deduzidos pelo ora réu àquele arrolamento e foi ordenado o levantamento da apreensão do veículo;
V - Em Março de 1989, o autor comprou o aludido veículo automóvel, pelo preço de 3.600.000$00;
VI - Nessa data, o autor segurou o veículo na Companhia de Seguros D, pela apólice 2524627, na modalidade de responsabilidade civil ilimitada e danos próprios, até ao valor de 3.400 contos;
VII - Desde a data referida em V e até 16.04.92, era o autor quem, em exclusivo, conduzia e se deslocava no referido veículo, no seu quotidiano;
VIII - Era o autor quem suportava as inerentes despesas de consumo, manutenção e seguro,
IX - e quem contratou a recolha do veículo na garagem "Beira Rio";
X - Em Novembro de 1991 autor e réu acordaram que o veículo passasse para o nome do réu,
XI - apenas, e tão só, para obviar a que o mesmo entrasse nas partilhas decorrentes do divórcio que o autor tinha em curso;
XII - Sempre ficou assente entre o autor e o réu que o veículo era da exclusiva propriedade do autor;
XIII - Em 05.07.91 C preencheu, assinou e reconheceu notarialmente a assinatura na declaração de venda para registo da propriedade do veículo a favor do autor;
XIV - Em 15.04.93 o réu procedeu ao levantamento do veículo no Tribunal Judicial de Almada;
XV - Logo que teve conhecimento desse facto, o autor tentou contactar o réu para lho entregar;
XVI - O autor solicitou por diversas vezes ao réu a entrega do veículo,
XVII - e este sempre recusou entregar-lho;
XVIII - Em 15.04.93 o valor do veículo era de 1.900 contos.
3.

O quesito 28º integrou o essencial da matéria da contestação do réu, e tinha a seguinte formulação:
O réu pagou integralmente ao autor o preço da venda?
E a resposta que, a tal quesito, foi dada pelo magistrado que efectuou o julgamento, foi a seguinte:
Provado apenas que, aquando da transacção referida em C), o réu pagou à então mulher do autor a quantia de 1.030 contos.
A transacção aludida na resposta é a que vem indicada no n.º anterior, sub IV.
No recurso que interpôs para a Relação, o autor sustentou que o quesito 28º deveria ser dado como não provado, sendo excessiva a resposta que obteve; e reiterou essa afirmação ao contra-alegar o recurso do réu.
A Relação, apreciando essa questão, entendeu que o facto dado como provado na resposta ao quesito exorbita manifestamente do conteúdo daquele que havia sido submetido à averiguação do tribunal, sendo que, além de se não integrar no thema decidendum, não foi alegado por qualquer das partes, nem tão pouco é instrumental de qualquer outro, objecto de controvérsia. E, por isso, reputando aplicável ao excesso cometido a sanção prevista no n.º 4 do art. 646º do CPC, teve por não escrita a resposta dada ao quesito.
O Supremo vem entendendo que constitui matéria de direito, situada dentro dos seus poderes, a questão do excesso ou exorbitância da resposta a um quesito (cf. os acórdãos de 21.03.00, 28.03.00 e 28.11.00, todos da 1ª Secção, proferidos nos agravo 65/00, revista 78/00 e revista 2667/00, in Sumários, ano 2000, págs. 107, 111 e 332, respectivamente).
Daí que cumpra apreciar, hic et nunc, se era admissível à Relação considerar não escrita a resposta em questão, com o fundamento de que excedia o âmbito do quesito.
Um dos parâmetros em que assenta o modelo processual introduzido pela reforma de 1995/96 é o da prevalência do fundo sobre a forma, de acordo com uma nova filosofia que vê no processo um instrumento, um meio de alcançar a justa composição do litígio, de chegar à verdade material pela aplicação do direito substantivo.
Esta finalidade precípua do processo postula, inter alia, a atribuição ao juiz de um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório. Na verdade, continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa (art. 264º/1), de tal modo que, em princípio, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes (art. 664º).
Certo é, porém, que - para além da atendibilidade dos factos notórios e daqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (art. 514º), e ainda de outros que não importa agora referir (1) - o juiz tem agora a possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, e de considerar na decisão, os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
Esta simples afirmação logo aponta para uma evidente conclusão: a de que, relativamente aos factos instrumentais - ao contrário do que sucede quanto aos factos essenciais (à procedência da pretensão do autor e à procedência da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu), relativamente aos quais funciona o princípio da auto- responsabilidade das partes - o tribunal não está sujeito à alegação das partes, podendo oficiosamente carreá-los para o processo e sujeitá-los a prova.
Mas, o que são factos instrumentais?
A elaboração doutrinal à volta do conceito ajuda a defini-lo.
Para Castro Mendes, factos instrumentais são "os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes" (2).
Anselmo de Castro define-os como "factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção (constitutivos). Por outras palavras: têm apenas a função possível de factos-base de presunção, e, como tais, dada a sua função instrumental e auxiliar da prova, estão subtraídos ao princípio dispositivo" (3) .
Teixeira de Sousa refere-se-lhes como sendo "os que indiciam aqueles factos essenciais" (4) .
Um exemplo esclarecedor é o apontado por Antunes Varela: numa acção de cobrança de dívida o réu alega na contestação ter já entregue ao autor a quantia devida e, no decurso da instrução, uma das testemunhas afirma ter o autor declarado, em tempos, a determinada pessoa, que recebera, efectivamente, essa quantia (5).

Será que o facto constante da resposta ao quesito 28º - facto não alegado por qualquer das partes - poderá considerar-se instrumental, relativamente ao facto fundamental (o pagamento integral, pelo réu ao autor, do preço da venda do veículo) invocado pelo réu?
A resposta não pode deixar de ser negativa, pois que tal facto nada tem a ver com o pagamento do preço do veículo. O réu alegou ter comprado ao autor o BMW, por 2.100 contos, e ter-lhe pago integralmente o preço acordado (arts. 4, 5 e 6 da contestação) - o que teria acontecido em 1991, pois o veículo foi registado em seu nome em 22.11.91. Mais tarde, o veículo foi apreendido em processo de arrolamento que, por dependência do respectivo processo de divórcio litigioso, a mulher do autor instaurou. O réu deduziu embargos de terceiro ao arrolamento, na parte respeitante à apreensão da viatura; e, nestes autos, foi homologada transacção, nos termos da qual a requerente do arrolamento desistiu deste, relativamente ao dito veículo, e o aqui réu desistiu dos embargos de terceiro que havia deduzido. E, segundo apurou o tribunal, o réu pagou ainda, à mulher do autor, a quantia de 1.030 contos.
Não se vê qualquer conexão entre este pagamento à mulher do autor e o pagamento do preço do BMW, alegadamente feito, por inteiro, pelo réu ao autor, vários meses antes. E que nenhuma relação instrumental existe entre aquele facto e o facto essencial alegado pelo réu resulta ainda de outros factos essenciais que resultaram provados, designadamente os referidos nos n.os X, XI e XII da matéria de facto assente.
Não se tratando, pois, de facto instrumental, e não tendo sido alegado pelas partes, o facto em questão não podia ter sido considerado pelo tribunal na decisão da matéria de facto, por a tal se opor o disposto no n.º 2 do art. 264º, acima citado.
E, por outro lado, considerando a matéria integradora do quesito em causa, não se suscitam dúvidas de que o Ex.mo Juiz, ao exarar a resposta acima indicada, excedeu manifestamente o âmbito daquele: a resposta não traduz, relativamente à pergunta, um minus (resposta restritiva), mas sim um aliud - o tribunal respondeu ao que lhe não foi perguntado.
Ora, vem sendo jurisprudencialmente entendido - na esteira, aliás, do ensinamento de Alberto dos Reis (6) - que devem ter-se por não escritas (por aplicação analógica do disposto no n.º 4 do art. 646º do CPC) as respostas do tribunal colectivo que excedam o âmbito dos respectivos quesitos. Daí que não mereça censura a decisão, nesse sentido, da Relação.
4.

Com a decisão, pela forma expressa no número anterior, da questão nele equacionada, perde sentido útil o que vem consignado na conclusão 2ª da alegação do recorrente, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento da questão aí suscitada; e improcede o referido na conclusão 3ª, não se mostrando violados os preceitos legais aí indicados.
Nestes termos, nega-se a revista e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 23 de Setembro de 2003
Santos Bernardino
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida
----------------------------------
(1) Cf. sobre este ponto A. Pais de Sousa e Cardona Ferreira, Processo Civil, 1997, pág. 31.
(2) Direito Proc. Civil, 1968, 2º, pág. 208.
(3) Direito Proc. Civil Declaratório, 3º, pág. 275/276.
(4) Introdução ao Proc. Civil,1993, pág. 52.
(5) Manual de Proc. Civil, 1984, pág. 400.
(6) CPC Anotado, vol. IV, págs. 557/559.