Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A642
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: DIVÓRCIO LITIGIOSO
SEPARAÇÃO DE FACTO
CULPA
Nº do Documento: SJ2008041706426
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Nos termos do art. 1787º, nº 1 do Cód. Civil, o tribunal tem de averiguar da culpa de um ou dos dois cônjuges, mesmo num divórcio decretado com base na ruptura da vida em comum.
II. Tendo-se provado apenas que em dada altura, o autor saiu definitivamente do lar conjugal, passando a residir noutra casa e sem manter quaisquer contactos com a ré, para além dos contactos inerentes ao filho comum – ré essa que se manteve a viver com o citado filho no referido lar -, não se pode concluir pela culpa de qualquer um dos cônjuges na dissolução do casamento.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou a presente acção com processo especial de divórcio litigioso, no 1º Juízo do Tribunal Judicial de S. João da Madeira, contra BB, pedindo se decrete o divórcio entre os cônjuges, com fundamento na separação de facto por mais de três anos, alegando, para tanto, em síntese, que saiu do lar conjugal, de modo definitivo, em 25 de Dezembro de 2002, momento a partir do qual deixou de haver comunhão de vida entre o casal, não havendo da sua parte o propósito de a restabelecer.
Teve lugar a tentativa de conciliação, não tendo sido possível reconciliar os cônjuges nem converter o divórcio em mútuo consentimento.
A Ré não contestou.
O processo foi saneado e condensado, procedendo-se ao julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção procedente e:
a) Decretou o divórcio entre o autor AA e a réBB, declarando dissolvido o casamento entre ambos celebrado e a que corresponde o assento n.º 123 do ano de 2001 da Conservatória do Registo Civil de Oliveira de Azeméis.
b) Não declarou qualquer dos cônjuges culpado.
Recorreu a Ré, tendo a apelação sido julgada improcedente na Relação do Porto.
Mais uma vez insatisfeita, veio a ré interpor a presente revista tendo nas suas alegações concluindo como segue:
1) Nos termos do disposto no art. 1672.º do Código Civil, " os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência".
2) O dever de coabitação, é, assim, um dos deveres aos quais os cônjuges, por força do matrimónio, se encontram compelidos.
3) A violação culposa, grave ou reiterada e qualquer daqueles deveres conjugais, desde que comprometa a possibilidade de vida em comum, é fundamento de divórcio litigioso, devendo o mesmo ser decretado com culpa exclusiva do cônjuge violador de tal dever ( ou tais deveres) - cfr. arts. 1779°, n.º 1 e 2 e 1787°, n.º 1, ambos do Código Civil.
4) Provado nos autos o abandono, livre, voluntário e unilateral, por parte do Apelado, do lar conjugal; provada a gravidade deste seu comportamento (que perdura desde o dia 25 de Dezembro de 2002 ), bem como a manifesta impossibilidade de manutenção de uma vida em comum ( que, aliás, o Apelado, comprovadamente, não deseja),
5) Deveria a sentença recorrida, que decretou o divórcio entre os cônjuges, ter declarado igualmente a culpa exclusiva do Apelado no mesmo.
6) Não o fazendo, violou assim o disposto nas normas conjugadas dos arts. 1672°, 1677°, n.º 1 e 2 e 1787°, n.º 1, todas do Código Civil.
7) De igual modo o fez o douto acórdão ora recorrido.
Com efeito ,
8) "Impende sobre o cônjuge que abandona o lar o ónus de alegar e provar que o fez por qualquer causa justificativa, dado tratar-se de um facto impeditivo do direito ao divórcio que o outro cônjuge exerce na acção " (cfr. Ac. RP, 28/04/1992: BMJ, 4160 - 703 ).
Termos em que deverá a decisão ser reformada, declarando-se a culpa exclusiva do A. no divórcio ali decretado em primeira instância , assim se fazendo Justiça.
O A. contra-alegou, pedindo a confirmação da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões formuladas pela aqui recorrente se deduz que esta, para conhecer neste recurso, levanta apenas a seguinte questão:
Da matéria de facto apurada, decorre necessariamente que caiba ao autor a culpa no decretamento do divórcio ?

Mas antes há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por provada e que é a seguinte:
1. O autor e a ré casaram em 14 de Junho de 2001, sob o regime da comunhão de adquiridos .
2. A. e Ré tiveram um filho em 03 de Maio de 2000, ao qual foi posto o nome de AS.
3. Em Outubro de 2002, o autor deixou de viver no lar conjugal durante alguns dias.
4. Fê-lo novamente e de modo definitivo em 25 de Dezembro de 2002 .
5. A ré ficou, a partir dessa última data, a viver continuadamente no lar conjugal com o filho do casal, aí dormindo, tomando as suas refeições, passando tempos de lazer, guardando as suas roupas e outros haveres pessoais e aí recebendo amigos e familiares.
6. O autor, desde a mesma data e de modo ininterrupto, vive noutra casa, onde dorme, toma as suas refeições, passa os tempos de lazer, guarda as suas roupas e outros haveres pessoais e aí recebe amigos e familiares .
7. A partir da referida data, o autor e a ré não mantêm quaisquer contactos de natureza sexual ou outros, para além dos necessários para efeito da relação do autor com o seu filho AS.
8. Não há da parte do autor o propósito de restabelecer a vida em comum com a ré.

Passando para o conhecimento da concreta questão acima mencionada como objecto deste recurso, começaremos por dizer que a mesma questão foi colocada com os mesmos argumentos no recurso de apelação – sendo as conclusões aqui formuladas a transcrição perfeita das conclusões apresentadas naquele recurso – e foi aí fundamentada e acertadamente rejeitada, pelo que nos bastaria a remissão para aquele acórdão para rejeitar o presente recurso.
No entanto, sem a pretensão de dizer nada de novo, sempre iremos de forma muito sintética apreciar a questão.
Esta questão consiste em definir se o facto de se ter provado que o autor deixou de viver de forma definitiva no lar conjugal, onde se manteve a ré e o filho do casal, passando aquele a viver noutra casa e deixando de haver qualquer contacto entre os cônjuges, para além dos necessários à relação do autor com o filho, implica, por si só, a atribuição da culpa do autor na ruptura conjugal.
Decretado o divórcio com fundamento na separação de facto por três anos consecutivos, e independentemente de qual dos cônjuges foi o requerente, deve o juiz declarar as culpa dos cônjuges, quando a haja, nos termos do art. 1787 do Cód. Civil, a que pertencerão todas a disposições a citar sem indicação de origem.
O fundamento do divórcio em causa inscreve-se nos fundamentos do divórcio-remédio, ou seja, nos casos em que o legislador previu a possibilidade de divórcio sem exigir a verificação da violação de um dever conjugal pelo cônjuge não requerente do divórcio.
Mas apesar disso, sempre o juiz tem de procurar averiguar a culpa na ruptura conjugal, e deve, sempre que possível, declarar esta culpa.
Esta declaração de cônjuge culpado pressupõe um juízo de censura sobre a crise matrimonial na sua globalidade, de modo a poder concluir-se qual ou quais as condutas reprováveis que deram causa ao divórcio. E desta forma, a determinação da culpa de que trata o art. 1787º é mais um conceito relativo, assente no comportamento recíproco dos cônjuges, do que um juízo de referência individual ou isolado. O que fundamentalmente se pretende saber, por outras palavras, não é se o marido é culpado ou a mulher é culpada, mas sim se um ou outro é o único ou é o principal culpado. Razão pela qual os factos têm de ser enquadrados num todo de vivência conjugal e não serem analisados separadamente – cfr. acs. deste Supremo Tribunal de 4-03-97, no proc. 801/96 e de 8-06-99, no proc. 280/99.
Desta forma temos de analisar a factualidade provada para dela poder retirar a conclusão de que houve conduta censurável de um, do outro ou dos dois cônjuges que levaram à ruptura conjugal.
Ora dos factos provados apenas resulta que foi o autor quem saiu do lar conjugal passando a viver noutra casa, enquanto a ré se manteve com o filho do casal no lar conjugal.
Daqui resulta objectivamente que o autor violou o dever conjugal de coabitação previsto nos arts. 1672º e 1673º.
Mas nada se provou sobre a causa ou a ausência de causa desta atitude, nomeadamente sobre se a mesma se deveu a uma atitude unilateral e injustificada do autor ou a causa atendível ou justificável decorrente de conduta censurável da ré que levou o autor a sair de casa.
Por isso, a referida saída, sem outro qualquer facto de onde resultasse a ausência de razão justificante da mesma, é insuficiente para concluir pela a censurabilidade da mesma conduta.
Parece pretender a recorrente ressuscitar a controvérsia que girou à volta da interpretação do disposto no art. 1779º, nº 1 no sentido de saber se à violação de um dever conjugal se aplicava a presunção de culpa prevista no art. 799º, nº 1.
Porém tal controvérsia foi afastada com a prolação do assento nº 5/94 de 26-01-1994 – DR 70/94 Série –A de 1994-03-24, no sentido de que a referida presunção se não aplica à matéria do “contrato” de casamento dada a redacção do art. 1779º, nº 1 exigir como facto integrador do direito do cônjuge requerente do divórcio a prova da violação do dever conjugal e da culpa do cônjuge réu, e dada ainda a natureza especial do “contrato” de casamento que se não adequa com a aplicação da norma do citado nº 1 do art. 799º, passando a ser tal doutrina aceite de forma pacífica.
Estranha-se que a ré que tanto tem lutado pela declaração de cônjuge culpado nos recursos interpostos, não tenha curado de contestar a acção onde poderia ter alegado factos de onde resultasse a pretendida censurabilidade daquela saída do autor do lar conjugal, nomeadamente, alegando a ausência de qualquer razão válida ou justificante para aquele tomar a mesma conduta.
Soçobra, assim, este fundamento do recurso e com ele toda a revista.

Pelo exposto, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Abril de 2008.

João Camilo ( Relator )
Fonseca Ramos
Cardoso de Albuquerque