Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ00032245 | ||
| Relator: | MIRANDA GUSMÃO | ||
| Descritores: | ACÇÃO POPULAR INTERESSES DIFUSOS LEGITIMIDADE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÉNEOS | ||
| Nº do Documento: | SJ199709230005032 | ||
| Data do Acordão: | 09/23/1997 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Referência de Publicação: | BMJ N469 ANO1997 PAG432 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO. | ||
| Decisão: | PROVIDO. | ||
| Indicações Eventuais: | G CANOTILHO E V MOREIRA IN CONST ANOTADA 3ED PÁG81 283 PÁG323. JOÃO CORREIA IN INTERESSES DIFUSOS E LEGITIMIDADE PROCESSUAL PÁG277. | ||
| Área Temática: | DIR CONST - GARANTIAS ADMI / DIR FUND. DIR CIV - TEORIA GERAL. DIR TRIB - DIR CUSTAS JUD. | ||
| Legislação Nacional: | |||
| Sumário : | I - O artigo 1 da Lei 83/95, de 31 de Agosto, abrange não só os "interesses difusos" (interesses de toda a comunidade) como ainda os "interesses individuais homogéneos" (os que se polarizam em aglomerados identificados de titulares paralelamente justapostos). II - O direito de reparação de danos dos assinantes do serviço telefónico por incumprimento de contrato inclui-se na categoria dos "interesses homogéneos individuais". III - A ACOP (Associação de Consumidores de Portugal) tem legitimidade para propor acção popular que tenha por objecto o pedido de indemnização dos assinantes de contrato de serviço telefónico público por violação contratual da prestadora do serviço. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I 1. No 5. Juízo Cível da Comarca de Lisboa, a Associação de Consumidores de Portugal (ACOP) intentou acção popular civil de tipo declarativo, segundo as regras do processo comum ordinário, contra "Portugal Telecom, S.A.", pedindo que esta seja condenada; a restituir a cada um (e a todos) dos ora representados pela Autora os montantes (em regra, 1850 escudos) que, indevidamente, embolsara; a restituir, quando for o caso, quaisquer montantes que hajam sido pagos por qualquer dos ora representantes a título de taxa de realização oriunda de prévio corte de telefone por não pagamento das facturas controvertidas; a suprimir todas as facturas emitidas que, face à argumentação precedente, desrespeitem o princípio da periodicidade; e o de cessar, imediatamente, eventual retaliação que haja sido inflingida aos ora representantes pela Autora que assumiram a recusa legítima de pagar as facturas controvertidas. Alega, em resumo, que entre os meses de Outubro e Dezembro de 1994 uma parte do universo dos representados pela Autora foi destinatária de duas facturas num só mês, sujeito à exigência do seu pagamento, sem que sequer meio mês separasse a anterior da subsequente: - tais facturas, além de denunciarem as unidades de conversação referidos aos períodos de contagem considerados, incorporavam ambas, em todos os casos, o débito correspondente a duas taxas de assinatura, ou então, dentro dos limites temporais, atrás referidos, a Ré impactava numa só factura um débito correspondente a duas taxas de assinatura, violando assim, o Regulamento do serviço Telefónico Público (anexo ao Decreto-Lei n. 199/87, de 30 de Abril) e o artigo 406, do Código Civil. 2. O Sr. Juiz indeferiu liminarmente a petição inicial por, por um lado, os pedidos genéricos formulados não se enquadrarem na previsão do artigo 471 do Código do Processo Civil e, por outro lado, considerar que toda a matéria de facto articulada não conter factos suficientes que, na hipótese da contestação, possam ser objecto de contestação. 3. A Autora agravou. A Relação de Lisboa, por acórdão de 6 de Março de 1997, negou provimento ao recurso. 4. A Autora agravou para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões: 1) os interesses dos consumidores do serviço telefónico público, prestado pela agravada, pela sua matéria, inscrevem-se no âmbito de aplicação da Lei n. 83/95, de 31 de Agosto; 2) No caso sub judice, depara-se-nos um congressamento de interesses individuais homogéneos; 3) São interesses individuais homogéneos aqueles que se objectivam em bens inteiramente divisíveis e aptos a suportar posições de domínio exclusivo, que, ademais, se polarizam em um aglomerado identificado de titulares paralelamente justapostos; 4) Em virtude da origem comum de que promanam e das comuns questões de direito e de facto que suscitam (corporizados, no caso, no ilícito contratual que à agravada vai imputado no petitório inicial) os interesses individuais homogéneos, de par com os difusos e os colectivos, acham-se incluídos no domínio de aplicabilidade da Lei n. 83/95, de 31 de Agosto - nisto morando, precipuamente em face do acórdão recorrido. 5) Desterrar os interesses individuais do âmbito de aplicabilidade da lei da acção popular deriva, só pode derivar, de uma interpretação do artigo 1 da Lei n. 83/95, de 31 de Agosto que dele retire um significado normativo contrário aos imperativos dos artigos 52 n. 3 e 60 n. 1 da Constituição da República Portuguesa. 4. A agravada Portugal Telecom, S.A., apresentou contra-alegações, onde salienta que: a) Na presente acção não estão em causa interesses difusos mas sim interesses subjectivos. b) O que está em causa é uma antecipação do pagamento de uma taxa mensal de assinatura telefónica de 1800 escudos (mil oitocentos escudos), em relação à data em que a mesma vinha sendo cobrada. c) Os interesses em causa decorrem somente de uma hipotética violação contratual. d) Os designados "interesses individuais homogéneos" não estão abrangidos pela Lei n. 83/95. e) A forma processual para a forma destes interesses não é a acção popular. f) Assim, o despacho recorrido não violou qualquer dispositivo legal ou princípio jurídico. Corridos os vistos, cumpre decidir. II Questões a apreciar no presente recurso. A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa pela análise da questão de saber se os interesses dos consumidores do serviço telefónico público, prestado pela Ré Portugal Telecom, S.A., pela sua matéria, inscrevem-se no âmbito de aplicabilidade da Lei n. 83/95, de 31 de Agosto. Abordemos tal questão. III Se os interesses dos consumidores do Serviço telefónico público, prestado pela Ré Portugal Telecom, S.A., pela sua matéria, inscrevem-se no âmbito de aplicabilidade da Lei n. 83/95, de 31 de Agosto. 1. Posição da Relação e das partes: 1a) A Relação de Lisboa decidiu que os interesses dos consumidores do serviço telefónico público, prestado pela Ré, não são abrangidos pela Lei n. 83/95, porquanto: - os direitos ou interesses daqueles que a Autora/recorrente diz representar não podem definir-se como direitos ou interesses difusos, isto é, direitos que não têm portador. - Tais interesses são simplesmente individuais, não se podendo sequer qualificá-los como colectivos, pois que, apesar de revestirem uma idêntica natureza homogénea, respeitam exclusivamente aos respectivos titulares. - A acção popular visa tão só a defesa dos interesses difusos, não cabendo à recorrente a defesa de eventuais violações de quaisquer outros. 1b) A Autora/recorrente sustenta que a acção popular civil portuguesa, tal como surge prevista e regulamentada tanto na matriz constitucional, como na Lei 83/95, comporta, no seu âmbito de aplicação, além dos interesses difusos e colectivos, o fenómeno dos interesses individuais homogéneos, a que corresponde o caso sub judice, porquanto: - Gomes Canotilho e Vital Moreira admitem o alargamento do âmbito da acção popular para além dos interesses difusos. - Nem a Constituição da República Portuguesa, nem a Lei 83/95, de 31 de Agosto incluem qualquer referência literal a nenhuma das espécies de interesses inseridos no amplo género dos interesses transindividuais; - A Lei 24/96, de 31 de Julho é no sentido de a acção popular acudir também aos interesses individuais homogéneos - artigos 3 alínea f) e 13. - A Lei n. 83/95, no seu artigo 15 n. 1 confere a prerrogativa de os membros do grupo a que a acção popular se reporta dela se auto-excluírem, o que só ocorre em relação aos interesses individuais homogéneos, a possibilitar uma futura acção singular. 1c) Por sua vez, a Ré/recorrida sustenta que da análise do artigo 1 da Lei n. 83/95 e no que concerne ao objecto da acção popular prevista no artigo 52 n. 3 da Constituição da República Portuguesa, resulta que nele apenas se integram os interesses difusos e não os interesses individuais ou colectivos que podem resultar da violação de um daqueles interesses, pelo que há que concluir que a presente acção não é uma acção popular. Que dizer? 2. Dentro dos Direitos, Liberdades e Garantias de Participação Política encontra-se o direito de acção popular nos termos e com a extensão prevista no n. 3 do artigo 52, que diz: "É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, nomeadamente o direito de promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, a degradação do ambiente e da qualidade de vida ou a degradação do património cultural, bem como de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização". GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, numa análise interpretativa do preceito escrevem: a) "O objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos" "A acção popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses". b) "Quando o n. 3 fala de "indemnização dos lesados" isso não significa que não haja outros danos, para além dos sofridos pelos particulares como consequência de infracções contra a saúde pública, o ambiente e o património cultural. Há que distinguir entre: (1) dano sofrido pelos particulares... (2) danos causados à colectividade - dano público ambiental... (3) dano difuso ambiental... (4) danos colectivos particulares...". "O texto da Constituição aponta para a possibilidade de os cidadãos ou as associações poderem tomar a iniciativa (legitimidade activa) ou intervir no processo através da acção popular, nos termos a definir pela lei, em qualquer das hipóteses acabadas de referir". E acrescentam: "A acção popular não tem de limitar-se aos casos individualizados no n. 3 (defesa de saúde pública, defesa do ambiente, defesa do património cultural)". "A norma tem CARÁCTER EXEMPLIFICATIVO, como decorre do seu próprio enunciado textual ("nomeadamente")". "Ela permite dar cobertura desde logo aos casos de acção popular no âmbito do poder local... "As mesmas razões podem reclamar a extensão da acção popular à defesa dos direitos dos consumidores (C.R.P., artigo 60) à defesa do domínio público (C.R.P., artigo 84)... e a outros casos" - CONSTITUIÇÃO da REPÚBLICA PORTUGUESA Anotada, 3. edição, páginas 281 a 283. 3. O artigo 60 da C.R.P. reporta-se aos direitos do consumidor. Trata-se de direitos que não têm natureza homogénea, conforme sublinham G. Canotilho e V. Moreira que dizem: "A maior parte deles reveste a natureza de direitos a prestações ou acções do Estado, compartilhando, portanto, das características típicas dos "direitos económicos, sociais e culturais..."" "Outros, todavia, revestem a natureza equiparada à dos "direitos, liberdades e garantias (cfr. artigo 17 e nota), beneficiando, portanto, do respectivo regime - é o caso do direito à reparação de danos (n. 1, in fine)". E ao referirem-se ao "direito à reparação de danos" dizem: "Traduz-se no direito de indemnização dos prejuízos causados pelo fornecimento de bens ou serviços defeituosos, por assistência deficiente ou por violação do contrato de fornecimento" - OBRA CITADA, páginas 323 e 324. 4. A lei ordinária veio regulamentar, conforme imposição da Constituição - artigo 52 n. 3 - o direito de acção popular - Lei n. 83/95, de 31 de Agosto. O artigo 1 deste diploma legal delimita os casos em que é aplicável a acção popular, prescrevendo-se: 1 - A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n. 3 do artigo 52 da constituição. 2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público". 5. Qual o âmbito destas transcritas normas? No âmbito das mesmas estão, necessariamente, os interesses difusos, já que incluídos no n. 3 do artigo 52 da Constituição, conforme se sublinhou na esteira dos ensinamentos de G. Canotilho e V. Moreira. Para além dos interesses difusos (que são os radicados na própria colectividade, deles sendo titular, afinal, uma pluralidade indefinida de sujeitos..., reportando-se a bens por natureza indivisíveis e insusceptíveis de apropriação individual - vide LOPES REGO, Revista do Ministério Público, 1990, caderno 5, página 203; JOÃO CORREIA, Interesses Difusos e Legitimidade Processual, página 277) caem no âmbito destas normas outros interesses? Nomeadamente, "os interesses individuais homogéneos" (que representa todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico - ADA PELLEGRINI GRINOVER, Revista Portuguesa de Direito de Consumo, n. 5, Janeiro, 1996, página 10)? 6. Para se desvendar o verdadeiro sentido e alcance da lei, o artigo 9 n. 1 do Código Civil acentua a distinção entre o texto" ou "a letra da lei" e os elementos não textuais da interpretação, nomeadamente o enquadramento sistemático resultante da consideração da "unidade do sistema jurídico", as "circunstâncias em que a lei elaborada e, ainda, "as condições específicas do tempo em que é aplicado"" - DIAS MARQUES, Introdução ao Estado de Direito, página 275). A reconstituição do pensamento legislativo em função da "unidade do sistema jurídico" leva a que se tome em conta diversos elementos, que a doutrina tradicional indica como sendo três: o racional, o sistemático e o histórico. Para interpretar as normas transcritas parece-nos bastante socorrermo-nos do elemento sistemático (que é constituído pelas disposições reguladoras do instituto em que se integra a norma a interpretar - o chamado contexto da lei - e pelas disposições reguladoras de institutos ou problemas afins - os chamados lugares paralelos - PIRES LIMA e A. VARELA, Noções Fundamentais de Direito Civil, volume I, 5. edição, página 157). E no contexto da lei destaca-se a norma insíta no artigo 15 n. 1, da Lei n. 83/95, que prescreve: "Recebida petição da acção popular, serão citados os titulares dos interesses em causa na acção de que se trata, e não intervenientes nela, para o efeito de, no prazo fixado pelo Juiz, passarem a intervir no processo a título principal... ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de não lhes serem aplicáveis as decisões proferidas...". 7. Tal norma confere a prerrogativa de os membros do grupo a que a acção popular se reporta dela se auto-excluírem, prerrogativa conferida com visto dos representados escaparem ao caso julgado da decisão. Só no âmbito de bens divisíveis (e não no de bens indivisíveis, insusceptíveis de apropriação individual, objectos dos interesses difusos) é que o direito de auto-exclusão permite o afastamento do caso julgado da decisão proferida na acção popular e a consequente oportunidade de o auto excluído propor, futuramente, uma acção singular. Os bens divisíveis são objecto dos chamados "interesses individuais homogéneos", tendo presente o referenciado alcance conceitual. Assim sendo, o alcance e sentido da norma insíta no n. 1 do artigo 15 da Lei n. 83/95, implica que as normas do artigo 1, do mesmo diploma legal, sejam interpretados no sentido de abarcarem não só "os interesses difusos", mas também "os interesses individuais homogéneos". 8. Nos "interesses individuais homogéneos" abrangidos no artigo 1 da Lei n. 83/95, destaca-se um dos direitos dos consumidores: "o caso do direito à reparação de danos", tendo presente o seu alcance, conforme se sublinhou na esteira dos ensinamentos de G. CANOTILHO e V. MOREIRA, obra citada, páginas 281 a 283 e 323 e 324. 9. O que se deixa exposto, permite-nos precisar que a presente acção popular foi proposta por quem tinha legitimidade para tal (artigo 18 n. 1 alínea l), da Lei n. 24/96 de 31 de Julho), tendo por objecto a indemnização dos prejuízos causados aos assinantes do serviço telefónico público por cobrança indevida de taxa nos contratos firmados ao abrigo do artigo 14 do Regulamento anexo ao Decreto-Lei n. 199/87, de 30 de Abril (Contrato de Telecomunicações), o que equivale a dizer, por outras palavras e em consonância com o exposto, que a presente acção popular tem por objecto "interesses homogéneos individuais", e, por tal, é permitida nos termos do artigo 1 da Lei n. 83/95. IV Do exposto, poderá extrair-se que: 1) O artigo 1 da Lei n. 83/95, de 31 de Agosto, abarca não só os "interesses difusos", mas também "os interesses individuais homogéneos". 2) O direito de reparação de danos do consumidor por incumprimento de contrato inclui-se na categoria dos "interesses homogéneos individuais". Face a tais conclusões, em conjugação com os pedidos formulados na petição inicial, poderá precisar-se que: 1) O Autor tem legitimidade para propor a presente acção popular dado a mesma ter por objecto o pedido de indemnização dos assinantes de contratos do serviço telefónico público por violação do mesmo por parte da contraparte - a Ré Portugal Telecom, S.A.. 2) O acórdão recorrido não poderá manter-se, dado ter inobservado o afirmado em 1). Termos em que se concede provimento ao recurso e, assim, revoga-se o acórdão recorrido e ordena-se que o Sr. Juiz da 1. instância profira despacho liminar de prosseguimento da acção. Custas pela Recorrida, fixando-se a taxa de Justiça nos termos do artigo 18 n. 2 do Código de Custas Judicias. Lisboa, 23 de Setembro de 1997. Miranda Gusmão, Sá Couto, Sousa Inês. |