Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | VASQUES DINIS | ||
| Descritores: | ACÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO FASE CONCILIATÓRIA FASE CONTENCIOSA FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO TRABALHO DE CURTA DURAÇÃO TRABALHO OCASIONAL AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO | ||
| Nº do Documento: | SJ20061214007894 | ||
| Data do Acordão: | 12/14/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA | ||
| Sumário : | I - O acordo ou desacordo dos interessados que deve constar do auto na tentativa de conciliação realizada perante o Ministério Público na fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho é o que incide sobre factos, e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas (arts. 111.º e 112.º do CPT). II - A mera aceitação, na tentativa de conciliação, da qualificação de um sinistro como acidente de trabalho, não obsta a que se discuta a caracterização do acidente na fase contenciosa do processo. III - Deve conhecer-se contenciosamente da matéria de facto alegada na contestação da acção, não obstante a declaração efectuada na fase conciliatória de que se aceitava a existência e caracterização do acidente como de trabalho, desde que na fase conciliatória as partes se não tenham pronunciado sobre os factos que na fase contenciosa vêm alegar "ex novo", susceptíveis de determinar a exclusão do âmbito reparador da lei de acidentes por se enquadrarem na hipótese do art. 8.º da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro (LAT). IV - A lei não fornece um critério para a determinação do elemento da curta duração do trabalho pressuposto nas duas alíneas do n.º 1 do art. 8.º da LAT, omitindo qualquer referência a uma unidade de tempo, para possibilitar ao julgador uma intervenção de equidade. V - Há prestação de serviços ocasionais quando estes sejam fortuitos, de verificação imprevisível; há prestação de serviços eventuais quando estes se apresentam como contingentes, de inserção temporal indeterminável, ainda que previsíveis. VI - A faculdade de ordenar a ampliação da matéria de facto, prevista no n.º 3, do art. 729.º, do CPC, pressupõe que se esteja perante matéria de facto relevante e atempadamente invocada nos autos. | ||
| Decisão Texto Integral: | 18 Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I 1. AA instaurou, no Tribunal do Funchal, acção especial emergente de acidente de trabalho contra BBe “Companhia de Seguros ..., S.A.” – primitivamente a "Companhia de Seguros Mundial Confiança, S. A.", que veio a ser objecto de fusão por incorporação na "Companhia de Seguros..., S.A.", mudando a firma social para "Companhia de Seguros ..., S.A." –, pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe uma pensão anual e vitalícia, metade do subsídio por morte, as despesas de funeral e de deslocações, bem como uma pensão provisória. Para tanto alegou, em síntese, que o seu marido CC, foi vítima de um acidente em 7 de Outubro de 2002, quando trabalhava para o Réu Filipe na construção de um muro, sendo surpreendido por um deslizamento de terras que o soterrou e lhe provocou a morte e que a responsabilidade infortunística laboral se encontrava apenas parcialmente transferida para a Ré seguradora. O Réu apresentou contestação na qual alegou, em resumo, que o acidente se deu em virtude da ruína de um muro que era de outro proprietário e ameaçava ruir, que de acordo com o combinado com a seguradora, tinha a sua responsabilidade transferida pela totalidade do salário auferido pelo sinistrado, que o acidente tinha ocorrido na prestação de serviços eventuais de curta duração a pessoas singulares, sem fins lucrativos e executados com a ajuda de familiares, e que não resultou de falta de observação de regras de segurança, higiene e saúde no trabalho. A Ré, por sua vez, alegou, em síntese, na sua contestação, que a Autora era parte ilegítima, por litigar desacompanhada dos dois filhos menores da vítima e, ainda, que a sua responsabilidade só pode ser subsidiária, porque o sinistrado abria uma vala sem entivação do solo, sem assistência de qualquer técnico, após ter chovido, sendo de prever o desmoronamento da parede de pedra sobranceira ao local, o que revela inobservância de regras de segurança pela entidade patronal e pelo encarregado da obra, sendo causa do desmoronamento que vitimou o sinistrado, por cujas consequências responde em primeira linha a entidade patronal. Invocou, também, que o valor da retribuição constante da apólice foi o declarado pelo segurado e que este não pode reeditar esta questão pois na tentativa de conciliação aceitou aquela retribuição. Requerida e admitida a intervenção dos filhos menores do sinistrado, DD e EE, representados por sua mãe FF, vieram estes a formular o pedido que consta de fls. 193 que foi, igualmente, contestado. Entretanto, a Ré seguradora havia apresentado resposta à contestação do Réu, em que, além do mais, impugnou, por desconhecimento, o alegado quanto à curta duração, ocasionalidade e eventualidade dos serviços prestados pelo sinistrado e à sua execução sem fins lucrativo, com a ajuda de familiares. Foi fixada uma pensão provisória a favor da Autora, AA (fls. 151 e segs.). Saneado o processo e elaborada a condensação, mediante a selecção dos factos assentes e a organização da base instrutória, contra ela reclamou o Réu, no início da audiência, vindo a reclamação a ser, de imediato decidida, com o indeferimento da pretensão do Autor no sentido de ser quesitada a matéria constante dos artigos 48.º e segs. da sua contestação. 2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que, julgando a acção parcialmente procedente, se decidiu condenar: A sentença declarou, ainda, que a parcela restante de responsabilidade, de 46,82%, das pensões e demais prestações que forem devidas por lei, na eventualidade de ser accionada a responsabilidade subsidiária da Seguradora, será suportada pelo Fundo de Acidentes de Trabalho. 3. Inconformado, o Réu apelou da sentença, sem sucesso, pois o Tribunal da Relação de Lisboa veio a proferir acórdão confirmando-a integralmente. Ainda irresignado, interpôs o presente recurso de revista, cuja alegação termina com as conclusões assim redigidas: 1ª - Contraditoriamente, por um lado, o douto Acórdão recorrido (como aliás o tinha feito a 1.ª Instância) não deixa nem permite que se leve à Base Instrutória a matéria factual dos artigos 48° e seguintes da Contestação, enquanto por outro julgou a apelação improcedente e consequentemente a acção procedente, porque o réu não logrou provar essa mesma factualidade 2ª - Tanto mais que este alegou esses factos que a provarem-se, em conjugação com os demais dados como provados, poderão levar a uma eventual improcedência da acção mas que nem sequer foram levados à base instrutória apesar de terem sido objecto de oportuna reclamação na 1.ª Instância como nas alegações da apelação impugnado foi o despacho de fls. 316/317 que a indeferiu. 3ª - Desta feita porque o conteúdo da alínea H) dos factos assentes no seu todo ou na parte correspondente consubstancia meras conclusões, e não factos concretos em colisão com os daqueles artigos 48.º e seguintes nunca aquele conteúdo podia determinar a preterição desta outra factualidade da Base Instrutória, devendo antes ser tido por não escrito. 4ª - E a importância disso ou da sua prova é o próprio douto Acórdão recorrido a reconhecê-la nos termos da 1.ª Conclusão importando pois que essa factualidade figure na base instrutória tanto mais que sobre a mesma não incidiu qualquer prova nem foi objecto de impugnação. 5ª - Consequentemente tudo ou a factualidade já provada, aquela outra a provar e o direito aplicável demonstram ou pelo menos indiciam que o acidente apesar de ser de trabalho está excluído do âmbito da citada Lei 100/97 e seu regulamento ou DL 143/99 pelo que respeita à sua reparação. 6ª - E sendo assim, os factos dos aludidos 48.º artigos e seguintes da Contestação devem ser levados à base instrutória para juntamente com os demais já provados serem objecto de novo julgamento e para o que deve anular-se previamente o douto Acórdão recorrido e ordenar a baixa do processo. 7ª - Ao decidir nos termos em que o fez, a douto Acórdão recorrido terá violado entre outros os artigos 8.º, 18.º n.º 1 alínea a), 20.º, 22.º e 37.º n.º 2 da Lei 100/97, de 13 de Setembro, o 40.º do seu Regulamento ou DL 143/99 de 30 de Novembro, 490.º, 505.º, 508.º-B, 511.°, 646.° n.º 4, 659.º n.os 2 e 3 , 712.º, n.º 4 do C.P.C. e 129.º n.º 3 e 131.º, alíneas c) e d) do C. P. Trabalho e os artigos 8.º e 40.º dos Diplomas legais citados na 5ª conclusão. Não houve contra-alegações. Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público propugnou a negação da revista, em parecer que, notificado às partes, não mereceu qualquer resposta. Corridos os vistos, cumpre decidir. II 1. Tendo em atenção o teor das conclusões da revista, que delimitam o objecto do recurso(1)., são duas as questões que importa resolver: – A primeira é a de saber qual o âmbito da vinculação factual decorrente do auto de tentativa de conciliação realizada perante o Ministério Público, nomeadamente qual o alcance processual do relato da aceitação pelo Réu empregador da “existência e caracterização do acidente como sendo de trabalho”; – A segunda reconduz-se a averiguar da necessidade de se proceder à ampliação da matéria de facto, com vista à demonstração de que o acidente se mostra excluído do âmbito da reparação da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais) – doravante, abreviadamente, LAT – e seu Regulamento, constante do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril – doravante, RLAT. 2. As instâncias declararam provados, nos termos que se transcrevem, os seguintes factos (2) : 1. No dia 7 de Outubro de 2002, cerca das 9 horas, no Sítio do ..., freguesia de ...s, concelho de ..., o falecido CC trabalhava sob as ordens do encarregado da obra, ... (A); 2. Sendo o dono da obra o ora réu ... (B). 3. O falecido foi surpreendido por um deslizamento de terras, o que provocou o seu soterramento no interior de uma vala (C). 4. Chegados ao local, os Bombeiros Voluntários da Ribeira Brava tentaram a sua reanimação, mas o CC já tinha falecido (D). 5. Em consequência do acidente, o CC sofreu asfixia por aspiração de material sólido e as lesões descritas no relatório de autópsia, o que determinou a sua morte (E). 6. A vítima tinha 40 anos de idade e era casado com a Autora AA (F). 7. Por contrato de seguro, titulado pela Apólice n.º 2-249-442, .... havia transferido para a Ré Seguradora o risco da responsabilidade civil, pelo menos até ao montante de € 15,96 por dia (G). 8. Realizada a tentativa de conciliação nestes autos, aceitaram os Réus a existência e caracterização do acidente como sendo de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente e a morte do sinistrado, bem como a qualidade de legais beneficiários da viúva e dos filhos do sinistrado (H). 9. A Seguradora aceitou o salário de € 15,96 x 313 dias + € 15,96 x 52 dias a título de subsídios de férias e de Natal; o dono da obra aceitou apenas o salário de € 15,96 x 365 dias transferidos para o seguro; o encarregado da obra aceitou o salário de € 35,00 x 365 dias (I). 10. O falecido encontrava-se a trabalhar na obra de construção de um muro em betão com 1,20 m de altura (1.º). 11. O falecido procedia à abertura de um cabouco para continuação da construção do referido muro (2.º). 12. Que se destinava a suportar um barranco que ladeava uma vereda pedonal de acesso a terrenos confinantes (3.º). 13. À data do acidente a vítima auferia a remuneração de € 35,00 diários, incluindo todos os subsídios, descansando ao domingo (4.º). 14. O terreno onde faleceu o CC fica metro e meio abaixo de uma vereda de terra batida (6.º). 15. A vereda tem a largura de cerca de 60 cm (7.º); 16. Sendo ladeada a Norte por uma levada que passa na base de um muro de suporte (8.º); 17. Que até à superfície das terras que aguenta, tem uma altura de três metros (9.º); 18. E cuja base fica encostada àquela levada (10.º). 19. Esse muro e respectivo prédio são pertença de .... (11.º). 20. O sinistrado, o .... e o ...., procediam com enxadas e pás à abertura do cabouco na base do barranco que aguentava a vereda e a levada (12.º). 21. Esse barranco partia do terreno do Réu ...., chegando até àquela vereda (13.º). 22. Não existia um técnico responsável pela organização dos trabalhos e pelo estudo e exame das entivações (28.º). 23. Tanto o terreno onde se procedia à escavação, como o terreno sobranceiro, não era rochoso (29.º). 24. Havia chovido cerca de oito dias antes (30.º) e não existiam elementos verticais, nem horizontais, de pranchões destinados a suportar o impulso do terreno (31.º). 25. Tão pouco existiam escoras ou outros elementos que ligassem os pranchões entre si por cruzamento (32.º). 26. Não foram utilizadas cortinas de estacas-pranchas, de modo a assegurar a continuidade do suporte (33.º). 3. Do âmbito da vinculação temática do teor auto de tentativa de conciliação: O artigo 111.º do Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de Dezembro (CPT/99), referindo-se ao conteúdo do auto de tentativa de conciliação realizada perante o Ministério Público, em caso de acordo, prescreve que ele deverá conter, além da indicação precisa dos direitos e obrigações atribuídos aos intervenientes, “a descrição pormenorizada do acidente e dos factos (3) que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações”. No que respeita ao auto de tentativa de conciliação, em que não se tenha conseguido o acordo dos intervenientes, o artigo 112.º, n.º 1, do CPT/99, obriga a que nele sejam “consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo- -se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”; e o n.º 2 do mesmo artigo dispõe que “[o] interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um destes factos, estando já habilitado a fazê-lo, é, a final, condenado como litigante de má fé”. Estas normas correspondem, sem alterações significativas, aos artigos 113.º e 114.º, n.os 1 e 2 do CPT/81 (4), notando-se que o legislador do CPT/99 substituiu, no preceito relativo aos autos de acordo, a expressão fundamentos de facto pelo vocábulo factos e eliminou, por desnecessária, a expressão “por forma a habilitar o juiz com os elementos necessários à apreciação do acordo”. No CPT/63 (5), o artigo 108.º, que regulava o conteúdo dos “autos de acordo” exigia, além da indicação precisa dos direitos e obrigações atribuídos às partes, “a descrição pormenorizada do acidente e dos fundamentos de facto que servem de pressuposto aos mesmos direitos e obrigações, por forma a habilitar o juiz com os elementos necessários à apreciação do acordo”, texto que veio a ser reproduzido no CPT/81. E o artigo 109.º do mesmo CPT/63, reportando-se ao conteúdo dos “autos na falta de acordo”, impunha, no seu n.º 1, que fossem “consignados os pontos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente (...), da relação de causalidade entre a lesão ou doença e o acidente, do ordenado ou salário do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”; e, no seu n.º 2, prescrevia que “[a] parte que se recuse a tomar posição sobre cada um destes pontos, estando já habilitada a fazê-lo, será, a final, condenada como litigante de má fé”. Nota-se, assim, que, relativamente ao conteúdo do auto de tentativa de conciliação frustrada, onde o CPT/63 se referia a pontos, os diplomas que lhe sucederam passaram a referir-se a factos, sendo lícito concluir que tal aconteceu para desfazer dúvidas de interpretação, uma vez que aquele primeiro vocábulo tem um sentido mais abrangente do que o segundo. Daí que se possa afirmar, como no Acórdão deste Supremo de 30 de Outubro de 1996 (6), que, “[n]a tentativa de conciliação as partes devem pronunciar-se sobre os vários pormenores factuais que podem interessar à decisão da causa, obrigando o agente do Ministério Público a quem compete a direcção da fase conciliatória, a deixar consignado em auto os factos sobre que houve acordo das partes, consignando também aqueles em que não acordaram”. O acordo ou desacordo dos interessados que deve constar do auto é, portanto, o que incide sobre factos (7), e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas. Afirmar ou negar a caracterização de um desastre como acidente de trabalho supõe a elaboração de um juízo de valor que envolve o enquadramento de realidades factuais num conceito jurídico – o conceito legal de acidente de trabalho. “(8) O acordo ou desacordo, como manifestação de vontade e declaração de ciência sobre factos, que deve constar do auto por imposição das normas que regulam a tentativa de conciliação, não contempla, portanto, a aceitação ou recusa da caracterização do acidente – que é uma questão de qualificação jurídica “(9). –, mas tão só o reconhecimento, ou não, de um evento e suas circunstâncias, cabendo ao julgador, segundo o brocardo da mihi factum, dabo tibi jus, proceder à qualificação adequada. Assim, a mera aceitação, na tentativa de conciliação, da caracterização do acidente como de trabalho, não obsta a que se discuta a questão da caracterização do acidente na fase contenciosa do processo. Ao elaborar o despacho de condensação processual – fixando os factos assentes e quesitando os que considere deverem integrar a base instrutória – o juiz quer no processo civil, quer no processo laboral, deve seleccionar os factos da vida real com relevo para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (11), abstendo-se de nele inserir conceitos de direito ou outra matéria conclusiva. De harmonia com o disposto no artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT/99, o juiz deve, no momento da prolação daquele despacho, considerar “assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação”. Já o n.º 1 do artigo 134.º do CPT/81 dizia que “[f]indos os articulados, o processo é concluso ao juiz para proferir despacho saneador em que considerará assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”. Diversamente, o artigo 129.º, n.º 1, do CPT/63, dispunha que “será o processo concluso ao juiz, que proferirá despacho saneador em que considerará assentes as questões sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação”. Também aqui o legislador evoluiu no sentido de clarificar que o que deve ser especificado, com base no teor do auto de tentativa de conciliação são apenas os factos aceites pelas partes naquele acto, e não, pontos ou questões. Se dos factos pode concluir-se pela existência de um acidente que deva caracterizar-se como de trabalho, ou que o não deva, assim o tribunal o deve considerar, extraindo as correspondentes consequências desta conclusão jurídica na decisão do caso concreto (12). Assim, desde que na fase conciliatória as partes se não tenham pronunciado sobre os factos e circunstâncias que na fase contenciosa da acção especial emergente de acidente de trabalho vêm alegar "ex novo", deve conhecer-se contenciosamente da matéria de facto alegada na contestação apresentada na fase contenciosa, não obstante a declaração efectuada na fase conciliatória de que se aceitava a existência e caracterização do acidente como de trabalho, já que esta caracterização é uma conclusão ou juízo de valor, desprovida do indispensável fundamento factual. No caso que nos ocupa, vê-se do teor do Auto de Tentativa de Conciliação (fls. 72 a 75), que o ora recorrente, através de declaração do seu representante legal, aceitou “a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente e a morte”. Além de tal declaração conclusiva, não consta do Auto qualquer referência a pormenores factuais que interessam à caracterização do acidente. Será que, como pretende o recorrente, deve ter-se por não escrito o que foi especificado na alínea H) – “Realizada a tentativa de conciliação nestes autos, aceitaram os Réus a existência e caracterização do acidente como sendo de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente e a morte do sinistrado, bem como a qualidade de legais beneficiários da viúva e dos filhos do sinistrado” – e reproduzido no n.º 8 dos factos provados? A resposta é negativa, posto que se compreenda o respectivo teor, apenas, como o relato do que ocorreu no acto processual da tentativa de conciliação, sem que daí possa advir qualquer vinculação do tribunal no sentido de que se verificam todos os factos que integram os requisitos previstos na lei para que o acidente sofrido pelo sinistrado deva caracterizar-se como “acidente de trabalho”. Considera-se, assim, sem necessidade de eliminar o teor da referida alínea, que era permitido ao Réu empregador alegar factos susceptíveis de excluir o acidente sofrido pelo sinistrado CC do âmbito reparador da LAT, sem que tal implique qualquer contradição, uma vez que, na tentativa de conciliação, o seu representante não se pronunciou, expressamente, quanto a tais factos. Na fase contenciosa, o Réu empregador, além do mais, alegou factos para concluir, no artigo 55.º da contestação, que o acidente tinha ocorrido na prestação de serviços eventuais de curta duração a pessoas singulares sem fins lucrativos e a entidade que trabalha habitualmente só ou com membros da sua família e que chamou para a auxiliar, acidentalmente, um ou mais trabalhadores, o que se apresenta com virtualidade para determinar a exclusão do acidente do âmbito reparador da LAT, em face do disposto no seu artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b). Ainda por uma outra razão se deverá entender no caso “sub judice” que sempre seria lícito ao Réu alegar na fase contenciosa factos integradores da hipótese do artigo 8.º da LAT, ainda que na fase conciliatória tivesse expressamente aceite os factos consubstanciadores dos elementos temporal, espacial e causal, necessários à caracterização do acidente como de trabalho. É que, ao alegar aqueles factos na sua contestação, o Réu não está sequer a contrariar a própria conclusão jurídica de que o acidente que vitimou o sinistrado constitui um acidente de trabalho. Está apenas a alegar factos que excluem do âmbito reparador da lei acidentes originariamente qualificáveis como acidentes de trabalho. Na verdade, na hipótese legal da norma do citado artigo 8.º – ao contrário do anterior artigo 7.º, em que se alinham certas circunstâncias ou factores que determinam a descaracterização do acidente –, prevêem-se situações em que, embora o acidente preencha os requisitos integradores do conceito legal de acidente de trabalho, o legislador entendeu afastá-lo do direito à reparação por razões de conveniência económico-social (13). Nada obstava, pois, a que o Réu empregador alegasse na contestação apresentada na fase contenciosa factos susceptíveis de levar o tribunal a considerar que o acidente ocorreu na prestação de serviços eventuais ou ocasionais, de curta duração, a pessoas singulares em actividades que não tinham por objecto exploração lucrativa, ou que ocorreu na execução de trabalhos de curta duração, trabalhando habitualmente a entidade a quem foi prestado o serviço com membros da sua família, chamando para a auxiliar, acidentalmente, um ou mais trabalhadores. Neste quadro, incorrecta se nos afigura a afirmação da sentença da 1.ª instância de que “de nada vale à entidade empregadora alegar na contestação ter o acidente ocorrido na prestação de serviços eventuais de curta duração a pessoas singulares, sem intenção lucrativa, no intuito de o excluir do âmbito da Lei n.º 100/97”, só porque na tentativa de conciliação o mesmo Réu aceitou a existência e caracterização do acidente como sendo de trabalho e esta matéria foi especificada como assente. Quanto ao acórdão recorrido, depois de concluir, bem, que o acidente constitui um acidente de trabalho (em virtude de se ter apurado que ocorreu quando o sinistrado trabalhava sob as ordens e orientações do encarregado da obra, cujo dono era o Réu, e provocou-lhe lesões que lhe determinaram a sua morte – factos 1 a 5) referiu, menos bem, que o Réu não logrou provar as circunstâncias previstas no artigo 8.º da LAT que faziam excluir o acidente da reparação prevista na lei. Ou seja, o acórdão parte do entendimento, correcto, de que a alínea H) da especificação transcreve apenas o que foi dito pelo representante do Réu recorrente, de que a qualificação do acidente pelo tribunal depende da prova dos factos que o fundamentam e de que o Réu teria a possibilidade de provar na fase contenciosa os factos integradores das hipóteses previstas no citado artigo 8.º. Mas conclui, depois, que não se verificam as circunstâncias excludentes do direito à reparação, porque o Réu não as logrou provar, o que, salvo o devido respeito, é incorrecto na medida em que ao Réu não foi, efectivamente, dada a oportunidade de provar aquelas circunstâncias por não terem sido incluídos na base instrutória, e submetidos a prova, os factos adrede alegados. Aliás, deve notar-se que o recorrente apresentou reclamação, no início da audiência, requerendo que a matéria dos artigos 48.º e segs. da sua contestação passasse para a base instrutória, requerimento este que foi indeferido (fls. 317), razão pela qual não se produziu efectivamente prova sobre a factualidade ali alegada. Justificar-se-á, neste caso, que se conceda ao recorrente empregador a oportunidade de provar os factos que alegou na sua contestação e que, na sua perspectiva, justificam a exclusão do direito à reparação prevista no artigo 8.º da LAT, através de uma ampliação da matéria de facto? Aqui chegados, é o momento de apreciar a segunda questão. 4. Da ampliação da matéria de facto: Traduz-se a questão ora em análise em saber se deve este Supremo Tribunal usar, no caso “sub judice”, da faculdade de mandar ampliar a decisão de facto pela 2.ª instância. É sabido que o Supremo, funcionando, estruturalmente, como um tribunal de revista e não como uma 3.ª instância, conhece, em princípio, unicamente de matéria de direito nos termos dos artigos 26.º Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), 87.º, n.º 2, do CPT/99, 721.º e 722.º do Código de Processo Civil (CPC), cabendo-lhe aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido e não podendo, em regra, alterá-los. Sendo um tribunal de revista, compete-lhe, fundamentalmente, apreciar a justeza da aplicação do direito substantivo, incidindo os seus poderes cognitivos sobre a matéria de direito da decisão recorrida. Nos termos do artigo 722.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do n.º 2 do art. 729.º do mesmo diploma, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, nem o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objecto da revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, ou seja, salvo havendo erros sobre regras de direito probatório material que ocorram no Acórdão da Relação, na sentença ou, até, nas respostas à base instrutória. O n.º 3 do artigo 729.º do CPC, permite ao Supremo, quando ocorram omissões de julgamento ou contradições insanáveis na decisão da matéria de facto, impeditivas da aplicação do regime jurídico adequado, determinar que o processo volte ao tribunal recorrido para que a decisão de facto seja ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito. Uma vez que a faculdade de ordenar a ampliação da matéria de facto, prevista no n.º 3, do art. 729.º, do CPC, pressupõe que se esteja perante matéria de facto relevante e atempadamente invocada nos autos, há que a averiguar se a factualidade alegada pelo Réu empregador, na sua contestação, a provar-se, é susceptível de alicerçar a conclusão jurídica de que o acidente se mostra excluído do âmbito da LAT por se inscrever na previsão do respectivo art. 8.º. Dispõe o art. 8.º da LAT que são excluídos do “âmbito da presente lei” (proémio do n.º 1) os acidentes ocorridos “na prestação de serviços eventuais ou ocasionais, de curta duração, a pessoas singulares em actividades que não tenham por objecto exploração lucrativa” [alínea a) do n.º 1], e os acidentes ocorridos “na execução de trabalhos de curta duração se a entidade a quem for prestado o serviço trabalhar habitualmente só com membros da sua família e chamar para o auxiliar, acidentalmente, um ou mais trabalhadores” [alínea b) do n.º 1]. No nº 2 acrescenta-se que as exclusões previstas no n.º 1 não abrangem os acidentes que resultem da utilização de máquinas e de outros equipamentos de especial perigosidade. Quanto ao conceito de "exploração lucrativa" estabelece o artigo 4.º do RLAT que não se consideram lucrativas as actividades cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização do agregado familiar da entidade empregadora. Quer na primeira quer na segunda daquelas alíneas há em comum o elemento fundamental da curta duração do trabalho, elemento para cuja determinação a lei não fornece qualquer critério e que a jurisprudência considerou inicialmente ser aquele serviço que dura “algumas horas ou alguns dias” (14), sem ultrapassar uma semana de trabalho (15). Mais recentemente, este Supremo teve ensejo de observar que com a omissão da referência a uma unidade de tempo – que se verifica na LAT ora em vigor e que se verificava na Lei n.º 2.127 de 3 de Agosto de 1965, ao invés do que sucedia com o art. 6.º da Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936) –, “teve por razão o afastamento daquela jurisprudência, por demasiado ampla”, com vista a “ditar um entendimento restritivo, mas sem ousar uma quantificação para consentir uma intervenção da equidade pretoriana” (16). No presente caso, afigura-se-nos que o serviço levado a cabo pelo Autor, quando sofreu o acidente, é susceptível de qualificar-se como serviço de curta duração, caso se prove a alegação do Réu empregador de que o muro se iniciou e terminou dias após a morte do sinistrado e de que os trabalhos estariam prontos dentro de 8 a 10 dias – artigos 12.º, 34.º e 35.º da contestação. Para que se verifique a exclusão pretendida e contemplada na alínea a) referida, exige a lei, ainda, que, o serviço seja eventual ou ocasional. Quanto à qualificação da prestação do serviço como eventual ou ocasional, tem-se considerado que há uma convergência de conteúdo destas duas expressões. Há prestação de serviços ocasionais quando estes sejam fortuitos, de verificação imprevisível. Há prestação de serviços eventuais quando estes se apresentam como contingentes, de inserção temporal indeterminável, ainda que previsíveis. A justificação desta exclusão na "mens legis" relaciona-se, como se lê no Acórdão de 27 de Fevereiro de 1991, supra citado, com a dificuldade da transferência da responsabilidade por contrato de seguro nos casos em que a prestação é imprevisível ou não é possível fazer uma referência temporal prévia da mesma. O legislador limitou a exclusão precisamente a serviços de curta duração porquanto o prolongamento temporal daqueles serviços fortuitos ou contingentes permite que entretanto se faça o seguro. No caso vertente, o serviço efectuado pelo sinistrado de construção de um muro para suporte de um barranco (pontos 10 a 12 da matéria de facto provada) não se integra por natureza nos conceitos de ocasionalidade ou eventualidade referidos. Com efeito, tal serviço: – constitui um trabalho necessariamente previsto pelo seu dono e não imprevisível; – exigia prévia determinação temporal. Aliás, o Réu terá feito o contrato de seguro documentado nos autos, certamente, porque decidiu construir o referido muro e pretendeu transferir a sua responsabilidade emergente de acidente de trabalho que ocorresse com os trabalhadores que realizassem tais serviços. Esta circunstância afasta que se possa considerar integrada a hipótese prevista na alínea a) do artigo 8.º da LAT. Mas já quanto à hipótese prevista na alínea b) do mesmo preceito, o mesmo se não poderá dizer. Na verdade, já o referimos, a alegação do Réu empregador, caso venha a provar-se, é susceptível de permitir a conclusão pela curta duração do trabalho (primeiro requisito da hipótese legal, o qual é comum à primeira alínea do preceito). Além disso, de acordo com a versão apresentada na contestação de que na obra trabalhavam o sogro do empregador e outra pessoa, tendo aquele chamado e contratado o sinistrado para os ajudar naqueles dias e de que o Réu é emigrante em Gans onde trabalha como pintor, só indo de férias à Madeira, bem como que o pouco que tem para fazer é ele e o sogro que o executam – artigos 6.º, 36.º, 48.º e 49.º da contestação –, afigura-se-nos que no caso vertente pode vir a considerar-se que a entidade a quem foi prestado o serviço trabalha habitualmente só com membros da sua família e chamou para o auxiliar, acidentalmente, um ou mais trabalhadores. Com efeito, a entidade a quem foi prestado o serviço – o Réu BB– é uma pessoa física (só esta pode ter família) e o seu sogro deve ser considerado membro da família para efeitos da alínea b) do art. 8.º da LAT tendo em consideração que, como afirma Carlos Alegre, esta expressão “está aqui utilizada em termos muito mais próximos da ideia patriarcal de família que, porventura, ainda subsista, do que da ideia jurídica de agregado familiar. Assim, o membro da família não tem que conviver necessariamente com a entidade, no mesmo lar ou em comunhão, mas deve ser alguém, parentalmente, suficientemente próximo para se dispor a auxiliar, gratuitamente ou não, a entidade, como pode ser o parente afastado”(17) . É, pois, de considerar que a alegação do Réu vertida na contestação possibilita a subsunção do desastre à hipótese da alínea b) do art. 8.º da LAT. Como a alegação dos artigos 34.º a 42.º e 48.º a 55.º da contestação do ora recorrente foi objecto de impugnação na resposta à contestação apresentada pela Ré seguradora (a fls. 136), o apuramento dos factos respectivos, a incluir na base instrutória, escapa, obviamente, aos poderes cognitivos deste Supremo, deverá ordenar-se que o tribunal recorrido proceda à ampliação da matéria de facto, completando o despacho de condensação processual com os factos supra referenciados e fazendo, eventualmente, uso, em julgamento, dos poderes em matéria de facto que lhe são conferidos pelo artigo 72.º, n.os 1 e 4 do CPT. Impõe-se, por conseguinte, usar da faculdade prevista no artigo 729.º, n.º 3 do CPC, determinando a volta do processo ao tribunal recorrido para efeitos de ampliação da decisão da matéria de facto nos termos assinalados, a fim de averiguar se se verificam os factos integradores da hipótese de exclusão do direito à reparação prevista na alínea b) do artigo 8.º da LAT. Face à eventualidade de utilização dos poderes de ampliação conferidos pelos n.os 1 e 4, do artigo 72.º do CPT, de que pode resultar a aquisição de novos elementos de facto, não se afigura, desde já, possível fixar o direito aplicável – artigo 730.º, n.º 1, do CPC. III Em face do exposto, decide-se, concedendo a revista, ordenar a baixa do processo ao tribunal recorrido, a fim de ser, nos termos sobreditos, ampliada a decisão da matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito. Custas do presente recurso por quem forem devidas a final.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2006 Adelino César Vasques Dinis Carlos Alberto Fernandes Cadillha Mário Manuel Pereira
___________________________ (1) Artigos 690.º, n.º 1 e 684.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, aplicáveis “ex vi” do artigo 1.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Trabalho. |