Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
107/15.0GAMTL.E1.S2
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
PROCESSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
CONDENAÇÃO
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática:
DIREITO CIVIL –LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO LEGÍTIMA.
Doutrina:
- Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2017, p. 648, 649-650;
- Bruno Bom Ferreira, Dano da Morte: Compensação dos Danos Não Patrimoniais à Luz da Evolução da Concepção de Família, Almedina, 2019, p. 130-131;
- Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Ed. João Sá da Costa, Lisboa, 2000, p. 576;
- Mafalda Miranda Barbosa, (Im)pertinência da autonomização dos danos puramente morais? Considerações a propósito dos danos morais reflexos, CDP, n.º 45, Janeiro-Março de 2014, p. 16-17;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. VIII, Almedina, 2014, p. 516 e ss.;
- Pires de Lima e Antunes Varela, colaboração de Manuel Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 500;
- Vaz Serra, Reparação do Dano Não Patrimonial, BMJ n.º 83, Fevereiro de 1959, p. 96 a 101.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, 483.º, N.º 1, 496.º, N.ºS 1, 2 E 4 E 2135.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 18-09-2014, PROCESSO N.º 35/13.3PASNT.S1;
- DE 30-03-2017, PROCESSO N.º 225/14.1T8BRG.G1;
- DE 01-03-2018, PROCESSO N.º 1608/15.5T8LRA.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-03-2018, PROCESSO N.º 1608/15.5T8LRA.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Tendo ocorrido a morte dos dois progenitores em acidente de viação de que resultou a condenação do arguido pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, por direito próprio, aos filhos ou outros descendentes, nos termos do n.º 2 e da parte final do n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil.

II. A «letra da lei», de que deve partir-se na interpretação da norma (artigo 9.º do Código Civil), obriga, desde logo, a considerar os elementos gramaticais constituídos pelas duas conjunções coordenativas que, na estrutura da frase do n.º 2 do artigo 496.º, ligam os nomes – a coordenativa copulativa (ou aditiva) «e», que liga os termos «cônjuge» e «filhos ou outros descendentes», com idêntica função na frase, e a coordenativa disjuntiva (ou alternativa) «ou» que, ao ligar «filhos» e «outros descendentes», estabelece uma relação de exclusão.

III. Assim, como se tem afirmado em jurisprudência reiterada a propósito da primeira categoria dos beneficiários do direito a indemnização prevista neste preceito, o universo dos titulares do direito a indemnização serão, em conjunto, segundo a ordem lógica da frase, o cônjuge e os filhos; havendo filhos, excluir-se-ão os netos (outros descendentes).

IV. Porém, não havendo filhos, mas havendo netos, serão estes chamados em representação daqueles, como requerem o elemento lógico e sistemático, na consideração, mutatis mutandis, do disposto no artigo 2135.º do CC, sob pena da sua não inclusão ou de inclusão desigual.

V. Não podendo os netos ser «chamados» por direito de representação, nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 496.º do CC, nem ocorrendo motivo que excepcionalmente deva ser considerado numa perspectiva de interpretação actualista sem colidir com o sentido, o âmbito e a finalidade de protecção da norma, não lhes pode ser reconhecido o direito a indemnização.

VI. Não é aplicável ao caso o acórdão n.º 6/2014 (DR, 1.ª série, de 22.05.2014) que, numa interpretação actualista dos artigos 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1, do Código Civil, uniformizou jurisprudência no sentido de que os «devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave», nem dele se extraem elementos que, de modo a evitar contradições ou incoerências, possam, na mesma perspectiva, ser considerados para efeitos de interpretação do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório


1. No Juízo Local Criminal de …, da Comarca de …, foi a arguida AA, identificada nos autos, condenada por sentença de 10 de Outubro de 2017, pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de dois crimes de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, nas penas de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses de prisão por cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo e na inibição temporária da faculdade de conduzir pelo período de 1 (um) ano.

2. Pelos assistentes BB, por si e em representação dos seus filhos menores CC e DD, e EE, filhos da vítima, e por FF, em representação dos seus filhos menores CC e DD, foi deduzido de pedido de indemnização civil contra “GG Seguros”, pedindo a condenação desta no pagamento dos montantes de:

- €10.000,00, a título de danos patrimoniais, pela perda total do veículo automóvel conduzido pelo falecido HH no momento do acidente, a atribuir em partes iguais aos demandantes filhos;

- €150.000,00 pelos danos morais do demandante BB;

- €150.000,00 pelos danos morais do demandante EE;

- €100.000,00 pelos danos morais do demandante CC;

- €50.000,00 pelos danos morais da demandante DD, no total de € 470.000,00, acrescido dos respectivos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação desde a data de citação até integral pagamento.

Pela sentença proferida em 1.ª instância, foi, quanto a estes pedidos, decidido (transcrição):

«f)   julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por BB por si e em representação dos seus filhos menores CC e DD, FF em representação dos seus filhos menores CC e DD e EE, e condenar a demandada GG Seguros, a pagar a cada um dos demandantes BB e EE a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da presente sentença até pagamento integral e efectivo;

g)    absolver a demandada do mais peticionado».

3. Inconformados com o decidido no acórdão do tribunal de 1.ª instância quanto à matéria cível, recorreram os demandantes cíveis para o Tribunal da Relação de Évora, o qual, por acórdão proferido a 8 de Maio de 2018, decidiu alterar o ponto 4 da matéria de facto não provada, acrescentar o facto enumerado como ponto 28.ºB à descrição da matéria de facto provada e, quanto aos pedidos cíveis:

- Condenar a demandada “GG Seguros”, «a pagar a cada um dos demandantes BB e EE a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da sentença até pagamento integral e efectivo»;

- Condenar a demandada “GG Seguros”, «a pagar a CC e DD, filhos de BB e sua companheira, as quantias de € 30.000,00 (trinta mil euros) e € 15.000,00 (trinta mil euros), respectivamente, a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da sentença até pagamento integral e efectivo».

4. Inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, veio a demandada civil “GG Seguros, S.A”., interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quanto à condenação no pedido de indemnização, pedindo que fosse arbitrado a cada um dos Demandantes civis BB e EE, a quantia de €50.000, para compensação do dano de natureza não patrimonial por cada um deles sofrido em consequência da morte de seus pais; e pedir a absolvição da demandada quanto às quantias arbitradas aos menores CC e DD a título de compensação pelos danos de natureza não patrimonial por eles eventualmente sofridos em consequência da morte de seus avós.

5. Os demandantes civis responderam ao recurso, pedindo a manutenção do decidido no Acórdão do Tribunal da Relação.

6. O Supremo Tribunal de Justiça, mediante acórdão proferido a 20 de Março de 2019, decidiu:

a) Julgar improcedente o recurso interposto pela demandada civil “GG Seguros, S.A.” quanto à indemnização civil fixada a favor dos demandantes BB e EE, e, em consequência, manter a condenação da demandada civil no pagamento do montante indemnizatório fixado, de 60.000€ (sessenta mil euros), por danos não patrimoniais, a cada um deles.

b) Declarar a nulidade por falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto à condenação da demandada civil “GG Seguros, S.A.” na indemnização civil aos demandantes CC e DD, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, correspondentemente aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, e no art. 403.º, n.º 3 do mesmo diploma, devendo, em consequência, ser proferido, quanto a este segmento, novo acórdão pelo Tribunal da Relação para suprimento dessa nulidade.

7. Na sequência do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da Relação de Évora, mediante acórdão proferido em 11 de Julho de 2019, decidiu: «conceder parcial provimento ao recurso interposto e, em consequência condena-se a demandada GG Seguros, a pagar a CC e DD, filhos de BB e sua companheira, as quantias de € 30.000,00 (trinta mil euros) e € 15.000,00 (quinze mil euros), respectivamente, título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da sentença até pagamento integral e efectivo.»

8. Inconformada com o agora decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, veio a demandada civil “GG Seguros, S.A.”, novamente interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quanto à condenação no pedido de indemnização civil a pagar aos demandantes civis CC e DD, apresentando motivação em que conclui nos seguintes termos (transcrição):

«Ao ter condenado a ora Demandante a pagar aos menores CC e DD as quantias de €30.000 e €15.000 respetivamente, para compensação pelos danos de natureza não patrimonial por eles eventualmente sofridos em consequência da morte de seus avós, sobrevivendo a estes os Demandantes BB e EE, seus filhos, o douto acórdão recorrido violou o disposto no nº 2 do artº 496, do código Civil, pelo que deverá ser substituído por outro que, a tal título não condene a Demandada ora Recorrente a pagar aos referidos menores qualquer montante, e antes a absolva quanto a tal.»

9. Os demandantes civis responderam ao recurso, nos seguintes termos (transcrição):

«(…) Entendem os demandantes que o recurso interposto pela demandada deve ser julgado improcedente.

A indemnização por danos não patrimoniais cabe naturalmente às pessoas que o legislador entendeu mais ligadas aos falecidos por laços afetivos. Isto é, ao elenco enunciado no n.º 2 do artigo 496º, do Código Civil, aí se incluindo, no caso, os menores CC e DD.

Com efeito, o legislador estabeleceu que a indemnização daquela natureza, reportada à lesão de bens ou interesses de ordem eminentemente pessoal, deve necessariamente reverter, em bloco, para quem, como resultou provado, está numa relação familiar ou afetiva de particular intensidade com os defuntos, como é o caso dos menores CC e DD.

A interpretação que a demandada faz do disposto no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil vai ao arrepio do entendimento (cfr., o acórdão do STJ de 30/4/2015, proc.º 1380/13.3T2AVR.C1.S1) de que, no caso da morte da vítima, a titularidade do direito à indemnização por danos não patrimoniais pela perda da vida é atribuída ex lege aos familiares ali referidos, afastando a lei a aplicabilidade do regime sucessório, como a demandada pretende.

3. Em conclusão:

Perante a matéria de facto fixada, o acórdão recorrido, na determinação dos montantes indemnizatórios fixados aos menores pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte de seus avós, fez correta aplicação do comando normativo inscrito no artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que o recurso da demandada deve ser julgado improcedente, confirmando-se o ali decidido.»

10. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação apresentou resposta, dizendo:

«O objecto do Recurso versa exclusivamente sobre matéria cível enxertada na acção penal e apenas afecta os interesses particulares dos assistentes e demandante civil, os quais se encontram devidamente representados por Mandatários Forenses.

Deste modo, o Ministério Público não se encontra especialmente legitimado para ponderar questões que não afectam os interesses cuja defesa e tutela lhe estão legalmente consagrados.

Todavia, sempre dirá, que o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora deverá ser mantido in totum, improcedendo o recurso interposto, já que, perante a matéria de facto fixada, o Acórdão ora posto em crise na fixação dos montantes indemnizatórios fixados aos demandantes e aos menores pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte dos respectivos pais e avós, fez uma correcta e equitativa aplicação dos arts. 494.º e 496.º, n.ºs 1, 2 e 4, ambos do Código Civil.

Assim, se conclui:

1º - Não ter sido violada qualquer disposição legal.

2º - O Tribunal da Relação de Évora bem como o Tribunal a quo terem efectuado uma correcta apreciação da prova e demais elementos disponíveis, decidindo fundamentadamente em conformidade.

3º - Terem, ainda, feito uma correcta e criteriosa aplicação dos preceitos legais que disciplinam a aplicação e fixação dos quantum indemnizatórios e a respectiva titularidade.

4º - Não existir qualquer motivo para ser concedida razão à recorrente pelo que deve a douta decisão recorrida ser mantida in tottum, negando-se provimento ao recurso.»

11. Neste Tribunal, o Senhor Procurador-Geral-Adjunto, na oportunidade conferida pelo n.º 1 do artigo 416.º do CPP, consignou que, não representando qualquer das partes, o Ministério Público carece de legitimidade para emitir parecer relativamente ao recurso, que se encontra limitado ao pedido de indemnização civil.

12. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo é julgado em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, al. c), do CPP.

Cumprindo apreciar e decidir.


II. Fundamentação

13. É a seguinte a matéria de facto considerada provada pelas instâncias (transcrição):

1. No dia 19 de Julho de 2015, pelas 08 horas e 30 minutos, ao Km. … da Estrada Nacional …, em …, a arguida AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …-…SZ (doravante designado por SZ), no sentido M…/… .

2. Nas mesmas circunstâncias, HH conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …-…-PS (doravante designado por veículo PS) no sentido M…/V…, onde seguia como ocupante II.

3. No local provável do embate a via apresenta 6,50 metros de largura, configurando duas faixas de circulação, uma em cada sentido, separados ambos os sentidos de trânsito por uma linha longitudinal descontínua.

4. O pavimento da via apresenta bom estado de conservação e manutenção.

5. Naquele local a via configura uma recta e no sentido M…./V… apresenta inclinação ascendente.

6. Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, o tempo estava seco.

7. HH ao aproximar-se dos veículos que circulavam à sua frente e constatando que a via à esquerda estava livre de trânsito, efectuou o sinal luminoso de mudança de direcção para a esquerda a fim de ultrapassá-los.

8. Porém, durante a realização de tal manobra e quando se encontrava a ultrapassar o veículo SZ, a arguida AA conduzindo o aludido veículo SZ iniciou a manobra de ultrapassagem da outra viatura que seguia à sua frente, invadindo para o efeito a faixa da esquerda onde circulava HH conduzindo o veículo PS.

9. Fê-lo alheando-se do trânsito que circulava nessa faixa de rodagem, não cuidando de saber e de se assegurar previamente que HH circulava naquela via realizando manobra de ultrapassagem, embatendo o veículo PS por aquele conduzido na sua parte lateral.

10. Perante a conduta inesperada da arguida e com o embate lateral na sua viatura, HH perdeu o controlo da mesma, saindo da via para o lado esquerdo, ficando imobilizado fora da faixa de rodagem após embate num eucalipto a cerca de 62 metros do local de embate.

11. Após o embate, a arguida AA concluiu a ultrapassagem ao veículo que seguia à sua frente, tendo imobilizado o seu veículo mais à frente no sentido M…/V… .

12. Em consequência directa do embate acima descrito, o condutor do veículo PS HH sofreu lesões traumáticas meningoencefálicas e raquimedulares, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 77 a 80, cujo teor se dá por reproduzido.

13. Tais lesões traumáticas foram causa directa e necessária da sua morte, ocorrida no dia … de Julho de 2015 pelas 8 horas e 30 minutos.

14. Acresce que a passageira do veículo PS, II sofreu lesões traumáticas da cabeça e tórax, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 43 a 46, cujo teor se dá por reproduzido.

15. Tais lesões traumáticas foram causa directa e necessária da sua morte, ocorrida no dia … de Julho de 2015 pelas 8 horas e 30 minutos.

16. Ao efectuar a referida manobra de ultrapassagem, a arguida AA actuou sem observar as cautelas e regras de cuidado que lhe eram impostas, designadamente certificar-se que podia iniciar a referida manobra sem perigo de colidir com veículos que circulassem no mesmo sentido ou em sentido contrário, nomeadamente o veículo PS conduzido por HH, que efectuava a mesma manobra, tornando inevitável o embate.

17. Com efeito, a arguida podia e devia ter tomado tais cautelas, nomeadamente verificar se a faixa de rodagem da esquerda estava livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança e que nenhum outro veículo que seguisse na mesma via tivesse iniciado a manobra para a ultrapassar, cedendo, assim, passagem ao veículo que efectuava manobra de ultrapassagem aos veículos, inclusive o conduzido por si, de modo a evitar o mencionado embate.

18. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se apurou que:

19. À data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela circulação da viatura com a matrícula …-…-SZ, encontrava-se transferida para a demandada GG Seguros, através da Apólice n.º 01…9.

20. O malogrado casal HH e II deixou como únicos herdeiros os seus dois filhos, os ora demandantes BB e EE.

21. Ambos os filhos do malogrado casal têm oficinas de …, ofício que lhes foi transmitido e ensinado pelo pai, sendo certo que era este quem geria as oficinas dos filhos, ocupando-se de todo o serviço de escritório, nomeadamente, das compras, contabilidade, facturação, controlo e pagamento de impostos, fichas de clientes, etc.

22. O falecido HH tinha 59 anos de idade.

23. A esposa do HH, a falecida II, criava e cuidava dos seus dois netos, filhos do BB, CC, nascido a … .4.2007, e DD, nascida a … .8.2013, uma vez que a mãe dos menores, companheira do BB, exercia atividade profissional num …, trabalhando por turnos e, muitas vezes, durante a noite.

24. Era com os avós que os menores pernoitavam com muita frequência e era a avó quem os levava ao infantário, ou aos tempos livres, onde ela também exercia funções laborais.

25. A falecida II tinha 54 anos de idade.

26. Com o desgosto e a perda prematura dos seus entes queridos (pessoas saudáveis, no pleno gozo das suas faculdades e da vida), em face da idade que ambos tinham à data da ocorrência do acidente, os demandantes viram-se privados do convívio com eles pelo menos por mais duas décadas, vista a esperança média de vida em Portugal, e os filhos do casal entraram ambos em desnorte completo quanto à organização do seu trabalho, pois era o pai quem disso se ocupava.

27. E a companheira do BB, mãe dos menores, teve mesmo que abandonar o emprego, por não ter quem cuidasse das crianças e para ajudar o companheiro e o irmão deste nas tarefas relacionadas com o escritório das oficinas.

28. No dia em que ocorreu o acidente toda a família (os falecidos, seus filhos e netos e companheira do filho BB) se deslocava junta, dirigindo-se todos para …., em férias, como era habitual.

28.º-B.       No dia dos factos toda a família, designadamente os filhos e netos das vítimas (filhos de BB e sua companheira) foram confrontados no percurso com os pais e avós mortos na estrada, não tendo sido possível evitar que as crianças observassem horrorizadas o veículo que era conduzido pelo avô, acidentado, e os próprios avós mortos no seu interior.

29. A arguida é vista pelos seus familiares, amigos e conhecidos como uma pessoa responsável, trabalhadora e uma condutora cumpridora das regras estradais.

30. A arguida apresenta sintomas de stress pós traumático derivadas do acidente em causa nestes autos, nomeadamente imagens intrusivas da situação, forte ansiedade em situação de condução e tristeza profunda por ter presenciado a morte de duas pessoas, inquietação recorrente por toda a mudança que esta situação introduziu na sua via pessoal e social, sendo acompanhada em consulta de psicologia desde … .08.2015.

31. A arguida exerce a actividade profissional de …, ao serviço do JJ de …, auferindo o ordenado mínimo nacional.

32. A arguida habita em casa própria dos pais, exercendo o pai as funções de chefe … do JJ de … e exercendo a mãe as funções de auxiliar.

33. A arguida não tem filhos.

34. A arguida paga a quantia mensal de € 250,00 relativa a empréstimo automóvel.

35. A arguida tem como habilitações literárias a licenciatura … .

36. A arguida não tem antecedentes criminais.

14. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação dos recorrentes (artigo 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal superior quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I de 28.12.1995), os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

15. Coloca a recorrente à apreciação deste Tribunal a questão de saber se deve ser absolvida do quantum indemnizatório arbitrado, a título de danos não patrimoniais, a CC e DD, netos dos falecidos, por alegada inexistência do direito a indemnização.

A sentença da 1.ª instância absolveu a demandada civil do pedido de indemnização civil deduzido por estes, netos do falecido casal HH e II, vítimas do acidente de viação, e filhos do demandante BB. Porém, ao invés da 1.ª instância, o Tribunal da Relação decidiu condenar a demandada em tal pedido, arbitrando uma indemnização, a título de danos não patrimoniais sofridos por estes na sequência da morte dos avós, no valor de 30.000€ para o demandante CC e no valor de 15.000€ para a demandante DD.

Encontra-se estabelecido na matéria de facto provada que BB e EE são filhos (descendentes) maiores das vítimas mortais do acidente de viação, HH, à data do acidente com 59 anos de idade, e II, à data do acidente com 54 anos de idade, e que os demandantes CC (nascido em …-04-2007) e DD (…-08-2013), filhos de BB, são netos dos falecidos HH e II.

Há, pois, que decidir se os netos (menores) CC e DD têm direito a receber uma indemnização a título de danos não patrimoniais sofridos pelos próprios pelo falecimento dos avós, sendo que também a BB, pai destes, na qualidade de filho do falecido casal, foi arbitrada uma indemnização por danos não patrimoniais (pela morte dos pais). 

16. Defende a recorrente, em síntese, (a) que o artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil (CC) foi violado no acórdão recorrido, na medida em que considera, «como a generalidade da jurisprudência, que, se o legislador quisesse assegurar a defesa dos interesses dos netos em pé de igualdade com os dos filhos da vítima, aí onde escreveu “ou”, deveria ter escrito “e”», e (b) que «os netos só têm direito a serem compensados pelo dano não patrimonial para si decorrente da morte que vitime um seu avô, e por direito próprio desse mesmo neto, se tal direito não puder ter sido reconhecido e exercido em primeira linha aos filhos da vítima, seja por terem pré-falecido, a esta, seja por serem havidos por indignos».

Conclui assim que os menores CC e DD, sendo netos dos falecidos (outros descendentes) e filhos do demandante civil BB, que a seus pais sobreviveu, «não são titulares do direito a qualquer indemnização/compensação por danos de natureza não patrimonial (ainda que, e não se nega, eventualmente os tivessem sofrido)», nos termos do artigo 496.º, n.º 2, do CC, conforme decidiu a sentença da 1.ª instância.

17. Dispõe o artigo 496.º do Código Civil (CC), sob a epígrafe “Danos não patrimoniais”, que:

«1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.

4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”

Como se evidencia da expressão «danos sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores» do texto da segunda parte do n.º 4, está-se perante a atribuição de um direito a terceiros por danos que sofreram em razão da morte da vítima (assim, Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, Almedina, anotação ao art. 496.º, p. 648), sendo que «inequivocamente, o legislador atribuiu aos filhos (dos falecidos) o direito a uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela morte dos seus pais, conforme resulta do art. 496.º, n.ºs 2 e 4, in fine, do CC» (como se afirmou no anterior acórdão de 20.03.2019).

Tanto o tribunal de 1.ª instância como o Tribunal da Relação, convocando os ensinamentos de Antunes Varela e o respectivo argumento histórico, assumem que o direito à indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima cabe às pessoas indicadas no artigo 496.º, n.ºs 2 a 4 do CC, por direito próprio e não por via sucessória. «Dos nºs. 2 e 3 deste artigo e da sua história (vide Antunes Varela, Das obrigações em geral, 4ª ed., voI. I, n. 151) resulta, por um lado, que, no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio (iure proprio), nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2 (em sentido diferente, Vaz Serra, RLJ, anos 107.°, pág. 140 e segs., e 109º, págs. 44-45)» [Pires de Lima e Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao artigo 496.º, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, pág. 500].

Dada a convergência entre as duas instâncias, que merece a concordância deste Supremo Tribunal de Justiça, não se justificam considerações suplementares sobre a questão, assumindo-se, assim, como a recorrente, que os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496.º do CC, designadamente o desgosto que sentiram pela morte de um familiar próximo (496.º, n.º 4),lhes confere direito a indemnização por direito próprio. Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os acórdãos de 01.03.2018, revista n.º 1608/15.5T8LRA.C1.S1, 7.ª Secção (em www.dgsi.pt: «Foi intuito do legislador, no art. 496.º do CC, subtrair a indemnização por "danos não patrimoniais" às regras do direito sucessório a que aludem os arts. 2133.º e ss. do CC»), de 18.09.2012, revista n.º 973/09.8TBVIS.C1.S1, 6.ª Secção (em www.dgsi.pt: «O problema da reparação, em caso de morte, é tratado como um caso especial de indemnização, nos arts. 495.º e 496.º, n.º 2, do CC, respectivamente, para os danos patrimoniais e não patrimoniais, atribuindo-se a determinadas pessoas um direito próprio de serem indemnizadas e abstraindo-se de quaisquer regras sucessórias», acrescentando: «Têm natureza excepcional as normas dos arts. 495.º e 496.º, n.º 2, do CC, respeitantes à indemnização, havendo morte do lesado»), de 27-10-2011, revista n.º 3301/07.3TBBCL.G1.S1, 7.ª Secção (sumário em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/Cível: «Os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas referidas no n.º 2 do art. 496.º do CC, designadamente o desgosto que sentiram pela morte de um familiar próximo (496.º, n.º 3) confere-lhes direito a indemnização jure proprio a fixar equitativamente levando em consideração as circunstâncias referidas no art. 494.º do CC»).

18. Divergem, porém, as instâncias quanto ao estabelecimento do conjuntoe das relações de preferência dos beneficiários indicados na primeira categoria no n.º 2 (e n.º 4 in fine) do artigo 496.º do CC.

Enquanto o tribunal da 1.ª instância entendeu que este preceito só atribui direito a indemnização por danos não patrimoniais ao cônjuge e aos filhos – só o atribuindo a outros descendentes que eventualmente hajam sucedido a algum desses filhos pré-falecidos por direito de representação –, não reconhecendo aos demandantes CC e DD (netos do falecido casal) o direito a serem indemnizados, o tribunal da Relação, considera que o artigo 496.º, n.ºs 2 a 4, do CC atribui o direito a indemnização por danos não patrimoniais a todos os beneficiários indicados na primeira categoria – ou seja, ao cônjuge, aos filhos e a outros descendentes –, atribuindo-lhes, em consequência, indemnização pelos danos sofridos pela morte dos avós.

19. Esta divergência não deixa de reflectir dúvidas actuais de interpretação do n.º 4 do artigo 496.º do CC ao estabelecer que “no caso de morte, podem ser atendidos […] os danos não patrimoniais […] sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”, quanto à questão de saber se as pessoas referidas nos n.ºs 2 e 3 (número este aditado pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto) do artigo 496.º têm direito a indemnização, sem que entre elas haja uma qualquer ordem de exclusão, ou se as pessoas referidas nos n.ºs 2 e 3 têm direito a indemnização pela ordem de exclusão prevista no n.º 2. Vêm, assim, vários autores, na linha do preconizado por Vaz Serra [nos trabalhos preparatórios do Código Civil – vd. Reparação do Dano Não Patrimonial, BMJ n.º 83 (Fevereiro de 1959), págs. 96 a 101], não acolhida no texto da lei, defendendo uma interpretação actualista ou soluções de jure condendo no sentido da ponderação do direito a indemnização a sujeitos não abrangidos na enumeração dos n.ºs 2 e 3 do artigo 496.º ou de alteração da ordem de precedências aí fixada, desde que, em qualquer dos casos, se demonstre um laço afectivo com a vítima que o justifique, como em casos de desgosto por morte de um neto criado pelos avós e abandonado pelos pais (cfr.Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. VIII, Almedina, 2014, pp.. 516ss.; Ana Prata, anotação ao art. 496.º, in Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2017, pp.649-650; Mafalda Miranda Barbosa, “(Im)pertinência da autonomização dos danos puramente morais? Considerações a propósito dos danos morais reflexos”, Cadernos de Direito Privado, n.º 45 - Janeiro-Março de 2014, pp. 16-17; Bruno Bom Ferreira, Dano da Morte: Compensação dos Danos Não Patrimoniais à Luz da Evolução da Concepção de Família, Almedina, 2019, pp. 130-131).

Note-se, todavia, a este propósito, que a situação em análise, em que ocorreu a morte das vítimas, é distinta da examinada no acórdão n.º 6/2014 (DR, 1.ª série, de 22.05.2014) que, numa interpretação actualista dos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil, uniformizou jurisprudência no sentido de que estes preceitos «devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave». Como se esclarece na respectiva fundamentação, «para o nosso caso não interessa discorrer sobre os danos nos casos em que o sinistrado falece em consequência das lesões. É, pois, na figura dos danos não patrimoniais sofridos por outrem nos casos em que a vítima sobrevive, que temos de nos situar».

20. Conforme claramente se assume no citado acórdão de 28.02.2019 (embora com declaração de voto quanto a situações constituídas após a entrada em vigor da Lei n.º 8/2017, de 3 de Março, que aditou ao Código Civil o artigo 493.º-A sobre indemnização em caso de lesão ou morte de animal, a fim de evitar «contradições sistemáticas e teleológicas» resultantes da imposição do dever de indemnizar por morte de um animal de companhia e da sua exclusão relativamente a situações de morte de um filho ou de um irmão), a decisão do legislador foi no sentido do estabelecimento de uma ordem de preferências (vinculativa) na compensação dos danos não patrimoniais próprios.

Defendendo a solução consagrada no artigo 496.º, escreve Antunes Varela (loc. cit.): «Pode naturalmente suceder que a morte da vítima cause ainda danos não patrimoniais a outras pessoas, não contempladas na graduação que faz o n.º 2, tal como pode acontecer que esses danos afectem as pessoas abrangidas na disposição legal por uma forma diferente da ordem de precedências que o legislador estabeleceu. Mas este é um dos aspectos em que as excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito” (…) O facto de a lei afirmar (no n.º 2) que a indemnização cabe, em conjunto, ao cônjuge e aos descendentes da vítima não significa que o tribunal não deva discriminar a parte que concretamente cabe a cada um dos beneficiários, de acordo com os danos por ele sofridos. Terem direito à indemnização em conjunto significa apenas que os descendentes não são chamados só na falta do cônjuge, como sucede com os beneficiários dos 2.º e 3.º grupos indicados no mesmo n.º 2, para os quais vigora o princípio do chamamento sucessivo».

21. Neste sentido, da fixação de uma ordem de precedência, se vem decidindo uniformemente na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, de que são exemplos os acórdãos de 21.10.2010, Proc. n.º 3057/04.1TBBCL.G1.S1 (2.ª secção, cível) e de 18.09.2014, proferido no Proc. n.º 35/13.3PASNT.S1 (5.ª secção, criminal).

Lê-se no sumário do primeiro acórdão: «Mas a própria lei, ao tutelar os direitos dos familiares – e agora dos companheiros – referidos no art. 496.º do CC, ignorando eventuais relações afectivas com estranhos e hierarquizando os próprios familiares, encaminhou-se, como se impunha, por uma situação de segurança, a qual permite, então, o raciocínio assente em dados de normalidade, traduzidos na diferença, quanto a sofrimento, que sente pela morte de alguém, um cônjuge ou companheiro, um filho ou um progenitor e a que sente um irmão ou sobrinho.»

E do segundo: «Os danos não patrimoniais compreendem tanto os que a vítima sofreu como os suportados directamente pelas próprias pessoas a quem caiba a indemnização, mas, relativamente a estas, vigora o princípio do chamamento sucessivo, isto é, os beneficiários do segundo grupo só são chamados na falta de beneficiários do primeiro grupo, os beneficiários do terceiro grupo só são chamados na falta de beneficiários do primeiro e do segundo grupos. (…) O art. 496.º do CC consagra três linhas mestras de pensamento: no n.º 1, quais os danos não patrimoniais indemnizáveis; no n.º 2 (e, actualmente, também no n.º 3), quem são os beneficiários de tal indemnização, não se esclarecendo se por danos próprios se por danos alheios; o n.º 4 (anterior n.º 3) resolve a lacuna – pelos próprios – quando diz “os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”. (…) Deste modo, a existência de beneficiário do primeiro grupo (o filho da vítima) exclui, segundo o princípio do chamamento sucessivo (n.º 2 do art. 496.º do CC), que a mãe da vítima seja indemnizada pelos danos morais próprios que sofreu com a morte de seu filho.»

Em idêntico sentido podem ainda ver-se os acórdãos de 30.03.2017, Proc. 225/14.1T8BRG.G1 (7.ª Secção) e de 01.03.2018, Proc. 1608/15.5T8LRA.C1.S1 (7.ª Secção), todos em www.dgsi.pt.

22. A questão a resolver situa-se, especificamente, perante a «letra da lei», no âmbito da estrutura das relações textuais entre as pessoas indicadas na primeira categoria do n.º 2 do artigo 496.º – cônjuge «e» filhos «ou» outros descendentes.

A «letra da lei», de que deve partir-se na interpretação da norma (artigo 9.º do Código Civil), obriga, desde logo, a considerar os elementos gramaticais constituídos pelas duas conjunções coordenativas que, na estrutura da frase, ligam os nomes – a coordenativa copulativa (ou aditiva) «e», que liga o termos «cônjuge» e «filhos ou outros descendentes», com idêntica função, e a coordenativa disjuntiva (ou alternativa) «ou» que, ao ligar «filhos» e «outros descendentes», indica uma relação de exclusão («ao cumprir um facto o outro não se cumpre», como dizem Celso Cunha / Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Ed. João Sá da Costa, Lisboa, 2000, p. 576).

Assim sendo, na consideração deste incontornável elemento de interpretação, o universo dos titulares do direito a indemnização serão, em conjunto, segundo a ordem lógica da frase, o cônjuge e os filhos; havendo filhos, excluir-se-ão os netos (outros descendentes). Porém, como se tem reiteradamente afirmado, não havendo filhos, mas havendo netos, serão estes chamados em representação daqueles, como requerem o elemento lógico e sistemático, na consideração, mutatis mutandis, do disposto no artigo 2135.º do CC, sob pena da sua não inclusão ou de inclusão desigual.

Disse-se a este propósito no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16-03-1999, proferido no Proc n.º 22/99, 2.º Secção [publicado no BMJ n.º 485 (1999), págs. 386-396, que se pronunciou sobre o direito a indemnização por danos não patrimoniais de um neto em relação ao avô falecido, que havia deixado sobrevivo cônjuge e filhos], seguido na sentença de 1.ª instância:

«É verdade que o aludido inciso normativo – n.º 2 do art.º 496.º – junta no primeiro grupo de beneficiários, a título conjunto e simultâneo, “o cônjuge” e “os filhos ou outros descendentes”. Mas, quanto aos “outros descendentes” que não os filhos, isto é quanto aos descendentes de 2º grau (netos) ou de 3º grau (bisnetos), a precedência da respectiva enunciação pela disjuntiva “ou” mais não pode deixar de significar que o «chamamento» desses parentes de graus subsequentes dentro da mesma estirpe só pode operar-se a título sucessivo ou subsidiário, isto é por direito de representação de seus falecidos progenitores.

O direito à indemnização caberá pois em conjunto, não ao cônjuge, aos filhos «e» outros descendentes, mas sim ao cônjuge e aos filhos e também (ou) a outros descendentes que eventualmente hajam sucedido a algum desses filhos pré-falecidos por direito de representação.

Interpretação esta que, não só é claramente sugerida pelo texto da norma ao apor a sobredita disjuntiva «ou» em vez da copulativa «e», como vai de encontro à regra estabelecida para a sucessão legal no artigo 2135º do Código Civil segundo a qual, dentro de cada classe de sucessíveis os parentes de grau mais próximo, preferem aos de grau mais afastado. (…)

Abona ainda a favor desta tese "restritiva" o elemento racional da interpretação: o alargamento do direito de indemnização, em simultâneo, aos diversos graus de descendentes seria potencialmente subversor do princípio da proximidade comunitária e afectiva ínsito na indemnização por danos não patrimoniais e pulverizador dos cômputos indemnizatórios, mormente nos casos de limitação legal em função da ocorrência de simples risco.”

(…) no que tange ao primeiro grupo de pessoas descritas no art. 496.º, n.º 2 do CC, é realmente atribuído em simultaneidade, que não a título sucessivo, o direito à indemnização ao cônjuge e aos filhos, mas, a quaisquer outros descendentes só na falta de descendentes em 1.º grau, pois que a lei não quis por em pé de igualdade originária todas as classes de descendentes.»

No mesmo sentido se decidiu também no acórdão de 24.05.2007, revista n.º 1359/07 (7.ª Secção), onde se lê: «Do teor literal do n.º 2 do art. 496.º do CC, decorre que esse direito de indemnização cabe, em simultaneidade, ao cônjuge e aos filhos e, representativamente, a outros descendentes que hajam sucedido a algum filho pré-falecido; só na falta desta primeira classe de familiares é que os referidos no segundo grupo terão direito a essa indemnização, ou seja, só se não houver cônjuge nem descendentes da vítima é que os ascendentes passarão a ter direito à indemnização; sendo a vítima casada, o cônjuge integra o primeiro desses grupos e, como não havia filhos, será o único titular do direito a indemnização devida pela sua morte, não tendo os pais da vítima direito a compensação por danos não patrimoniais (quer dos sofridos pela vítima, quer por eles próprios) com a morte do filho».

23. Não está, obviamente, em causa a dor e o sofrimento sentidos, em virtude da morte dos avós, pelos demandantes CC e DD, os quais foram «confrontados com os avós mortos na estrada» e observaram «horrorizadas o veículo que era conduzido pelo avô, acidentado, e os próprios avós mortos no seu interior», como consta da matéria de facto provada. O que sucede é que, não podendo estes ser «chamados» por direito de representação, nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 496.º do CC, nem ocorrendo motivo que excepcionalmente deva ser considerado numa perspectiva de interpretação actualista sem colidir com o sentido, o âmbito e a finalidade de protecção da norma, não lhes pode ser reconhecido o direito a indemnização de acordo com o disposto neste preceito.

Por tudo o que vem de se expor, dado que foi atribuída indemnização por danos não patrimoniais a BB, filho dos falecidos, impõe-se concluir que não há lugar a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais aos filhos deste, CC e DD, netos dos falecidos.


III. Decisão

31. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso interposto pela demandada civil “GG Seguros, S.A.” quanto à indemnização civil fixada aos demandantes civis CC e DD, e, em consequência, revoga-se, neste segmento, o acórdão do Tribunal da Relação, absolvendo-se a demandada do pedido contra si formulado por estes.

Porque o recurso obteve total provimento, são devidas custas a cargo dos demandantes civis, de harmonia com o disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 523.º do CPP.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de Dezembro de 2019.


José Luís Lopes da Mota (Relator)

Maria da Conceição Simão Gomes