Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3370/05.0TBPVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDAMENTO URBANO
USUFRUTO
PRESSUPOSTOS
PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Doutrina: JOSÉ GUALBERTO DE SÁ CARNEIRO, "Revista dos Tribunais", Ano 92º, 1974, pág. 378
AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, “O Exercício do Direito de Preferência”, 2006, pags. 640, 649.
Legislação Nacional: LEI Nº. 63/77, DE 25 DE AGOSTO, ARTIGO 1º; REGIME DE ARRENDAMENTO URBANO: ARTIGO 47º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 9/10/03, Pº 98B57; AC. STJ, DE 8.1.74, BMJ, Nº. 233, PÁG. 190, AC. STJ DE 28.7.81, AC. STJ, DE 27.5.75, BMJ, Nº. 247, PÁG. 142, DE 15.2.81, AC. DO STJ, DE 20.12.84, BMJ, Nº. 341, PÁG. 432; E DE 25.2.81, BMJ, Nº. 304, PÁG. 375; DE 27.11.2001, REVISTA Nº. 3238/2001, 6ª SECÇÃO, ACS. STJ, 28.6.81, BMJ, Nº. 309, PÁG. 342; E DE 22.6.93, REVISTA Nº. 82 125
Sumário :
1. Sendo o contrato de arrendamento celebrado pelo usufrutuário, o arrendatário só goza do direito de preferir na venda ou dação em cumprimento do direito de usufruto, - e não da raiz ou nua propriedade - já que o titular desta é inteiramente alheio à relação de arrendamento em que se fundamenta o direito de preferência, nada tendo a ver com a relação locativa, que se extingue, de resto, logo que o usufruto termine.

2. A titularidade do direito de preferência legalmente outorgado ao arrendatário de prédio onde se situa o local arrendado pressupõe que o preferente tenha a posição jurídica de arrendatário, quer na data em que se consumou o acto de alienação lesivo da preferência, quer no momento temporal em que , por se tornarem cognoscíveis os elementos essenciais do negócio, fica colocado em condições de exercer o direito real de aquisição de que é titular.

3. Praticado à revelia do preferente o acto de alienação, passa este a ter um ónus de acompanhamento diligente da situação do prédio que é objecto mediato do seu direito de preferência, de modo a evitar que venha a ser exercitado com uma dilação indevida, frustrando as legítimas expectativas do adquirente na consolidação do negócio e a própria confiança e segurança do comércio jurídico – sendo violadora do princípio da boa fé e envolvendo exercício abusivo do direito de preferência, nos termos do art. 334º do CC, a proposição da respectiva acção apenas cerca de 30 anos após consumação do acto de alienação, num caso em que o preferente dispunha de elementos que seguramente indiciavam ter sido infringido o seu direito.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.AA, BB e CC intentaram acção de preferência, na forma ordinária, contra os RR. DD e mulher, EE, e FF – Ourivesaria e Joalharia, SA., alegando que a sociedade, 3ª R., teria vendido ao 1º R. a raiz ou nua propriedade do prédio urbano em que se situava a sala locada ao primitivo arrendatário, GG, entretanto falecido, e a quem sucederam os AA., sem que lhe fosse facultado o exercício do direito de preferência em tal alienação.
Os RR. defenderam-se por excepção, arguindo a simulação do negócio, a inexistência do direito de preferência exercitado pelos AA., a caducidade da acção de preferência, o abuso de direito e a falta de depósito do preço, impugnando ainda a matéria de facto articulada e deduzindo pedido reconvencional. Seguram-se os demais articulados e – após saneamento e condensação – procedeu-se a julgamento, sendo proferida sentença a julgar a acção totalmente procedente, reconhecendo-se o invocado direito de preferência e operando o respectivo e típico efeito constitutivo, substituindo-se os AA. ao 1º R. no referido negócio, translativo da nua propriedade sobre o imóvel onde se situava o locado; por sua vez, a reconvenção foi julgada improcedente.
Inconformados, os AA. apelaram para a Relação que confirmou, mediante mera remissão para os termos da sentença recorrida, a solução dada ao litígio – limitando-se a considerar procedente o fundamento subsidiário invocado pelos apelantes, de modo a ser aplicado ao preço declarado o coeficiente de desvalorização da moeda, fixando em €47.555,86 a quantia a pagar pelos apelados.

2. É esta decisão que vem interposto o presente recurso, que os recorrentes encerram com as seguintes conclusões – que, como é sabido, delimitam o objecto da presente revista:



1.ª- O presente recurso vai interposto da douta acórdão dado em 01/06/2009. Os recorrentes têm legitimidade para o presente recurso, o douto acórdão de 01/06/2009 é recorrível e o recurso foi interposto em tempo.


2.ª - No caso de os fundamentos constantes do presente recurso serem julgados procedentes e, dessa forma, concedida a revista, ficará necessariamente prejudicado o acórdão recorrido na parte em que apreciou e julgou procedente o pedido subsidiário formulado pelos recorrentes.

3.ª - O direito de preferência, enquanto direito real de aquisição, implica uma séria restrição ao direito de propriedade e entrave ao comércio jurídico, assumindo, por essa razão, natureza excepcional não devendo, em consequência, ser admitido para a satisfação de simples interesses individuais, mas apenas naqueles casos em que existe um interesse público em pôr fim a uma situação inconveniente sob o ponto de vista económico ou social.

4.ª - No caso subjudice, a 3.ª recorrente apenas vendeu ao 1.° recorrente, em 1976, a nua propriedade do prédio urbano identificado na alínea I) da Matéria Assente, pelo preço de PTE 459.918$20.

Á
5.ª - Importa, pois, apurar se a venda da nua propriedade feita pelos aqui recorrentes, atribui, ou não, ao arrendatário o direito de preferir naquela transmissão.

6.ª - Para fixar o sentido e alcance decisivos da Lei, não deve o intérprete limitar-se à análise do elemento gramatical. Torna-se necessário recorrer ao elemento lógico da interpretação, designadamente ao seu elemento racional (ratio legis), pois só assim será possível determinar o fim visado pela Lei e, em consequência, o seu verdadeiro sentido e alcance.

7.ª - A ratio do direito de preferência do arrendatário comercial é o reconhecimento da vantagem em eliminar quaisquer conflitos resultantes da contitularidade de direitos sobre o mesmo prédio - vide doutrina citada a pág. 11 supra.

8.ª - Sendo esse o fim visado pela atribuição do direito de preferência no arrendamento comercial, no caso sob análise, o usufruto continuaria sempre em vigor mantendo-se uma contitularidade de direitos sobre o mesmo prédio, ficando até o arrendatário numa situação insólita, pois seria, simultaneamente, proprietário e arrendatário da usufrutuária! O que implicaria que o preferente, que passava a ser proprietário do prédio, continuasse obrigado, por força de um contrato de arrendamento celebrado com a usufrutuária, a pagar a renda a esta.

9.ª - Vale dizer, não deve ser atribuído aos recorridos o direito de, com base num arrendamento comercial, preferirem na venda da nua propriedade do prédio, pois o fim visado pelas normas constantes dos art 1117.° do Cód. Civil (aplicável à data da transmissão da nua propriedade) e do art. 47.° do Regime do Arrendamento Urbano - a eliminação de «conflitos e dificuldades resultantes da existência de uma pluralidade de titulares de direitos sobre o prédio ou a este relativos» - não seria alcançado.

10.ª - No caso dos autos, a 3ª recorrente não celebrou qualquer contrato de arrendamento com o arrendatário GG, já que foi a usufrutuária HH, no âmbito dos seus poderes de uso e fruição - cfr. art. 1446.° do Cód. Civil -, que deu de arrendamento o rés-do-chão do referido prédio a GG. Vale dizer, este contrato de arrendamento é, em relação à 3.ª recorrente, res inter alios acta, do que resulta não estar a 3.a recorrente vinculada para com o arrendatário GG a cumprir uma obrigação (dar preferência) emergente de uma relação jurídica da qual aquela não foi parte e, por isso, se encontra distante - cfr. doutrina e jurisprudência citada a págs . 13 a 15 supra.

11.ª - Tendo o local arrendado sido dado de arrendamento pela usufrutuária HH, o arrendatário GG, só poderia preferir na venda ou dação em cumprimento do direito de usufruto, já que o proprietário radiciário nada tem que ver com o contrato de arrendamento - cfr. doutrina e jurisprudência citada a págs. 13 a 15 supra.

12.ª - É essa a doutrina já firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 21/10/2004 - anexo às presentes alegações.

13.ª - Do exposto resulta que arrendatário GG não podia preferir na venda da nua propriedade, pelo que não podem os sucessores daquele, aqui recorridos, pretender exercer um direito de que o falecido arrendatário não era titular.

14.ª - O objecto do direito de preferência é, de acordo com o preceituado no art. 47.° do R.A.U , o local arrendado, pelo que o exercício do direito de preferência só é possível nos casos em que existe autonomização jurídica do local arrendado. Tratando-se de um arrendatário de um prédio não constituído em propriedade horizontal, não é possível a autonomização jurídica do local arrendado pelo que o arrendatário não goza de direito de preferência na venda do prédio, pois, nesse caso, o objecto da venda não é o local arrendado - cfr. doutrina e jurisprudência citada a págs . 16 a 17 supra.

15.ª - No caso sob análise, o local arrendado foi a sala da frente do rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua da J…, n.° …, na Póvoa de Varzim, o qual não está constituído em regime de propriedade horizontal, o que significa que o local arrendado não está juridicamente autonomizado. Destarte, o exercício do direito de preferência revela-se, in casu, impossível - cfr. doutrina e jurisprudência citada a págs. 16 a 17 supra..

16.ª - Com a morte do arrendatário GG, ocorrida em 21/05/1998, o contrato de arrendamento comercial relativo ao rés-do-chão do supra citado prédio urbano transmitiu-se aos seus sucessores, aqui A.A.. Este contrato de arrendamento cessou os seus efeitos por revogação em 01/03/2002, data em que a usufrutuária senhoria deu de arrendamento à sociedade comercial "AA & Filhos. Lda." o mesmo local: o rés-do-chão do prédio sito na Rua da J…, n.° …, na Póvoa do Varzim. - cfr. art. 62.° do Regime do Arrendamento Urbano, aplicável à data dos factos.

17ª - Destarte, os recorridos deixaram de ser, desde 01/03/2002, arrendatários do rés-do-chão do prédio sito na Rua da J…, n.° …, na Póvoa do Varzim, para passar a ser arrendatária a sociedade "AA & Filhos, Lda". E, mesmo que assim se não entendesse, sempre se dirá que o contrato arrendamento celebrado com GG caducou com a morte da usufrutuária senhoria, ocorrida em Maio de 2005.

18.ª - Para que o direito de preferência seja transmitido aos sucessores do arrendatário, torna-se necessário que os mesmos continuem a ser arrendatários, pois não basta que os recorridos sejam herdeiros do arrendatário falecido, tornando-se necessário, para que ocorra aquela sucessão, que estes alegassem e provassem, que, segundo o direito substantivo, lhe sucederam na relação jurídica controvertida – cfr jurisprudência citada a páa . 21 supra.

19.ª - Não tendo os herdeiros do arrendatário GG mantido a posição de arrendatários, deixa de existir suporte legal para o exercício do direito de preferência por parte daqueles, pois estes deixaram de ser arrendatários daquele local, o que significa que, no plano substantivo, deixaram de suceder na relação jurídica entre existente entre os contraentes iniciais.

20.ª - A não se aceitar este entendimento, então os descendentes de 4.ª e 5.ª geração (e assim sucessivamente) do arrendatário GG, mesmo que residissem no estrangeiro, poderiam preferir, passados 30, 40 ou 50 anos a contar da venda da nua propriedade, sob o pretexto de serem herdeiros do primeiro arrendatário a quem não foi dada preferência e de só agora haverem tomado conhecimento da venda da nua propriedade. Isto, apesar de nunca terem sequer visto o local arrendado. E tudo ao arrepio da finalidade do direito de preferência, concretamente a consolidação da propriedade plena na esfera jurídica de quem vem gozando o local arrendado, objecto do direito de preferência. Este resultado é, obviamente, juridicamente inadmissível.

21.ª - De nada valendo argumentar com o princípio da eficácia "ex tunc" do direito de preferência, pois é pressuposto essencial dessa eficácia a prolação duma sentença, com trânsito em julgado, reconhecendo ao preferente o seu direito e que ordene a substituição do adquirente por este. No caso em apreço, o contrato de arrendamento celebrado com GG já havia cessado os seus efeitos em 01/03/2002, pelo que os A.A., aqui recorridos, quando propuseram a presente acção de preferência, já não eram arrendatários desde 01/03/2002, nem mantinham qualquer vinculo de pertinência com o local arrendado pelo que já não eram titulares de qualquer direito de preferência.

22.ª - Apesar da sentença recorrida tecer inúmeras considerações a respeito do instituto do abuso de direito, concretamente da tipologia abusiva denominada "venire contra factum proprium", a verdade é que os recorrentes nunca invocaram aquela tipologia abusiva.

23.ª - No caso sob análise os recorrentes invocaram e reiteram que a conduta dos recorridos se materializa num acto abusivo. Porém, os recorrentes qualificam de abusivo o comportamento dos recorridos por o mesmo representar um desequilíbrio no exercício das posições jurídicas (o que nada tem a ver com a tipologia abusiva "venire contra factum proprium') - vide doutrina citada a pág. 24 supra.

24.ª - O valor do prédio, em 1976, ascendia a quase quatro vezes mais o valor pago pelo 1.° recorrente à 3.a recorrente aquando da compra e venda da nua propriedade. O facto de o preço acordado se cifrar em PTE 459.918$20 compreende-se, porém, se atendermos a que apenas foi transmitida ao 1.° recorrente a nua propriedade do prédio, bem como à idade da usufrutuária, a qual viveu mais 29 anos. Em 2005, ano da propositura da presente acção, o valor de mercado do supra citado prédio urbano ascendia a € 100.000,00.

25.ª - Com a presente acção de preferência os recorridos, estribando-se num arrendamento celebrado pelo seu cônjuge e pai, o qual incidia apenas sobre o rés-do-chão do prédio, pretendem servir-se na venda da nua propriedade deste para, passados 29 anos sobre essa venda, adquirirem a propriedade plena de todo o prédio. Ao julgar procedente o pedido formulado na presente acção, o acórdão recorrido ordenou que os recorridos pagassem aos 1.° e 2.° recorrentes a importância de € 47.555,86 correspondente ao valor actualizado atribuído à nua propriedade do prédio em 1976. Ou seja, a manter-se o decidido pelo Tribunal "a quo" os 1.° e 2.° recorrentes receberão pelo prédio em causa uma importância inferior a metade do valor actual do mesmo.

26.ª - Dito por outras palavras: a manter-se o decido no Tribunal "a quo", os recorridos realizam um fabuloso negócio, pois compram pelo preço actualizado da sua propriedade calculado em 1976 a propriedade plena do prédio, o que vale hoje mais do dobro - € 100.000,00. Simplesmente, os recorrentes perderão a diferença entre esses valores.

27.ª - Como vai supra alegado, o abuso do direito desdobra-se em várias tipologias destinadas a concretizar a indeterminação dos conceitos que o enformam, sendo que o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas comporta três sub-hipóteses, a saber: o exercício danoso inútil; o dolo agit; a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem - vide doutrina citada a págs. 28 e 29 supra.

28.ª - Em todas estas hipóteses, o titular do direito, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vectores fundamentais do sistema jurídico, com relevo para a materialidade subjacente. Com efeito, no caso concreto pretendem os recorridos substituir-se aos 1.° e 2.° recorrentes, adquirindo um imóvel por um valor muito inferior ao real do prédio - € 100.000,00 -, pelo que torna-se, assim, de tal forma
excessivo e injusto o proveito dos recorridos, que estamos perante uma enorme, violenta e grave desproporção entre a prestação dos recorridos e a respectiva contra-prestação. Esta actuação dos recorridos gera, obviamente, uma acentuada lesão aos recorrentes, sendo que ofende, indubitavelmente e de um modo substancial, a boa fé e os bons costumes e o sentimento jurídico socialmente dominante (na medida em que, reitera-se, se caracteriza como um desequilíbrio no exercício de posições jurídicas) - cfr. art. 334° do Cód. Civil..

29.ª - Vale dizer, no caso trazido aos autos, estão os recorrentes a actuar com evidente abuso de direito - cfr. art. 334.° do Cód. Civil - já que, ainda que se admita serem aqueles titulares da estrutura formal do poder que a lei lhes confere, o seu exercício excede manifestamente os limites que lhes cumpre observar (em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder) - vide doutrina e jurisprudência citada a págs. 30 a 33 supra.

30.ª - O acórdão recorrido não apreciou o abuso de direito invocado, tendo por base a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelos recorridos e o sacrifício imposto pelo exercício aos recorrentes, não atendeu à doutrina citada e, desconsiderou a jurisprudência citada.

31.ª - Ao decidir como decidiu, não fez o Tribunal "a quo" correcta interpretação e aplicação das normas constantes dos arts. 47.° do R.A.U. e 334.° do Código Civil, pelo que deve, por esse motivo, o acórdão recorrido ser revogado.

32.ª - Como é, por todos, sabido a suppressio consiste numa forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito formal, que deverá ser integrada no princípio da tutela da confiança e da boa fé, na medida em que não tendo, em certas circunstâncias, sido exercido o direito durante um certo lapso de tempo, não poderá ser exercido mais tarde, se esse exercício contrariar a boa fé.


33.ª - No caso sob análise, não foi exercido pelos recorridos o direito de preferência na aquisição do prédio, durante cerca de 10 anos; comportaram-se os recorridos como não querendo exercer o direito; confiaram os recorrentes em que o mesmo não seria exercido; e, acarretou tal exercício superveniente para os recorrentes um desvantagem injusta.

34.ª - Vale dizer, in casu a conduta dos recorridos subsume-se na suppressio - enquanto tipologia abusiva -, na medida em que o direito que o recorridos pretendem exercer contraria a boa fé e implica séria lesão aos recorrentes, ofendendo os bons costumes e o sentimento jurídico socialmente dominante - cfr. art. 334.° do Cód. Civil..- vide doutrina e jurisprudência citadas a págs. 41.
TERMOS EM QUE deve ser dado provimento ao presente recurso de revista, e, em consequência, deve revogar-se o douto acórdão objecto do presente recurso, negando-se aos recorridos o direito de preferência que pretendem exercer ou, quando assim se não entenda, impedindo o exercício daquele direito por o mesmo representar um claro abuso de direito, assim se cumprindo a LEI e se fazendo JUSTIÇA


Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido pelas instâncias.


3. As instâncias consideraram provada a seguinte matéria de facto:

A. Consta da escritura pública, outorgada em 15/06A926», que a «II», posteriormente transformada em sociedade anónima, em 19/10/1999, e aqui 3a Ré, FF - Ourivesaria E Joalheira, S.A., fls. 37, ser proprietária de quatro prédios urbanos sitos na Rua da J… e na Rua de S… M…, na cidade da Póvoa de Varzim, fls. 24 a 31.
B. Pela Ap-3 de 21/12/65, encontra-se onerado por usufruto a favor de HH, o prédio sito na rua da J…, n. …, na Póvoa do Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial de Póvoa de Varzim, sob o n.º 01766/930407, (dez mil trezentos e oitenta e nove, no livro E-vinte e sete, e inscrito na matriz urbana sob o artigo nove mil oitocentos e sessenta e sete, fls. 99 a 101.
C. Por escritura pública de trespasse e arrendamento, de 22 de Março de 1974, HH, na qualidade de usufrutuária, declarou dar de arrendamento a GG, que este declarou tomar, «... a sala da frente do rés-do-chão do prédio urbano ... situado na Rua da J… desta cidade, com o número … de polícia, identificado em E), fls. 13 a 18.
D. Tal contrato tinha a duração de um ano, com início em 1 de Abril de 1974, mediante o pagamento da retribuição anual de PTE 9.600$00, moeda então vigor.
E. E destinava-se ao exercício do comércio de venda de artigos de óptica.
F. O referido contrato foi objecto de uma alteração em 05/06/76, que elevou a retribuição anual para PTE 30.000$00, a pagar em prestações mensais de PTE 2.500$00, cada, no 1.° dia útil de cada Mês, como consta de fls. 19 a 23.
G. Tal contrato de arrendamento encontrava-se em vigor em 31 de Dezembro de 1976Apor efeito das renovações tácitas.
H. Consta da acta da assembleia-geral n.° 29, que em 1 de Junho de 1976 foi deliberado pelos sócios da 3.a R., M… M… A… G…, J… M… S…, J… M… A… G…, DD, J… E… G… S…, A… A… G… F… e J… M… C… A…, transmitir por venda a propriedade dos imóveis da sociedade a alguns dos sócios da mesma, fls. 24 a 31 e 97 a 98.
I. Por escritura pública, de 15 de Junho de 1976, a 3.ª R., então «II», declarou vender ao 1. ° R., DD, que este declarou aceitar, a raiz ou simples propriedade do prédio urbano composto por três pavimentos e quintal, sito na Rua da Junqueira, n.° 60, na Póvoa de Varzim, pelo preço de PTE 459.918$20, moeda então em vigor, no qual incluía a sala locada, ambos identificados em B) e C), fls. 24 a 31.
J. A 3ª R. não deu ao arrendatário GG preferência na transmissão mencionada em I).

K. Pela Ap-32, de 07/04/93, encontra-se inscrita a favor do 1.° R., na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim, a aquisição da nua propriedade do prédio identificado em B), fls. 101.
L. Em data que os R.R. desconhecem, o arrendatário GG e os A.A. passaram a residir, respectivamente, nos 1.° e 2.° andares do prédio acima identificado, tendo aquele residido até à sua morte, em 21/05/98, e aí continuando a residir, nesta data, a l.ª A..
M. Ao referido GG, falecido em 21 de Maio de 1998, sucederam os aqui A., nos termos da escritura pública de habilitação, fls. 32 a 35:
N. Entre 1994 e 1998, os A. contactaram com o 1.° R. por questões relacionadas com a falta de autorização para a realização das obras que estavam a decorrer no imóvel arrendado, identificado em C).
O. Consta de escrito particular, de 01/03/2002, que a então usufrutuária HH, declarou dar de arrendamento o rés-do-chão do prédio sito na Rua da J…, número …, identificado em C), à sociedade comercial denominada "AA & Filhos, Lda." representada pela sua gerente, CC, que esta declarou aceitar, aqui 3.ª A, nos termos e clausulas que aqui se dão por reproduzidas, fls. 104.
P. Pela Ap-13 de 19/02/99, encontram-se inscritos como sócios da sociedade "AA & Filhos, Lda." os aqui A.A., fls. 107. v.
Q. Consta do escrito datado de 27/05/2005, remetida pela Ia A. ao 1.° R. o seguinte teor:
«A Srª Dª HH, usufrutuária da fracção habitacional de que sou arrendatária, situada na Rua da J…, número …, 1.° andar, faleceu no dia 8/05/2005, como é do seu conhecimento, pelo que ocorreu a caducidade do arrendamento para habitação.
Assim, nos termos legais, (art°s 66° e 90° do Regime do Arrendamento Urbano) venho declarar que pretendo exercer o direito ao novo arrendamento.», fls. 109.


R. No escrito datado de 31/05/2005, remeti do pela arrendatária do rés-do-chão, "AA & Filhos, Lda." ao 1.° R., consta: «Como é do vosso conhecimento a senhoria D. HH faleceu. Nós pretendemos continuar com o estabelecimento, como não consigo encontrar e precisamos de conversar agradeço que marque um dia e uma hora que lhe dê mais jeito para podermos conversar», fls. 119 e 120.
S. No escrito, registado com aviso de recepção, de 17/06/2005, remetida pelo l.° R. à l.ª A., consta: «Tendo V.ª Excia. comunicado, por carta de 27 de Maio p.p., fls. 111, a sua vontade em exercer, nos termos previstos nos arts. 66.° n.° 2 e 90.° do regime do Arrendamento Urbano, o direito a novo arrendamento relativo ao 1.° andar do prédio urbano sito na Rua da J…, n.° …, na Póvoa de Varzim, junto envio, para S/apreciação, minuta do contrato de arrendamento a celebrarmos, aguardando que me comunique, com a brevidade possível, a S/posição» , fls. 111, com o seguinte teor: "contrato de arrendamento para habitação", que o 1.° R. remeteu à 1.ª A.:
«Considerando:
A) que, a Segunda Contraente celebrou (na qualidade de arrendatária) com D. HH (na qualidade de senhoria) um contrato de arrendamento para a habitação referente ao 1.° e 2.° andares do prédio urbano sito na Rua da J…, n.° …, 4490-519 Póvoa de Varzim; B) que, a Senhora D. HH celebrou o acima referido contrato de arrendamento com base no direito de usufruto de que era titular sobre o prédio urbano identificado no Considerando A), sendo proprietário radiciário do mesmo o aqui Primeiro Contraente DD; C) que, a Senhora D. HH faleceu no dia 08 de Maio de 2005, o que, de acordo com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 1051.° do Código Civil, originou a caducidade do contrato de arrendamento referido no Considerando A);
D) que, por carta de 27 de Maio de 2005, a Segunda Contraente declarou ao Primeiro Contraente, nos termos do art. 66.° n.° 2 do Regime do Arrendamento Urbano, a sua vontade em celebrar um novo contrato de arrendamento nos termos do art. 90.° do Regime do Arrendamento Urbano;
E) que, aos contratos de arrendamento celebrados por força do exercício do direito previsto no art. 90.° do Regime do Arrendamento Urbano, aplica-se o regime de
duração limitada previsto e regulado nos artigos 98.° e seguintes do Regime do Arrendamento Urbano; é celebrado, livremente e de boa fé, o presente contrato de arrendamento nos termos das seguintes cláusulas: ... », fls. 114 a 117.
T. No escrito, datado de 06/07/2005,enviada pela l.a A. ao 1.° R., consta que aquela lhe devolveu o contrato de arrendamento já assinado, tendo junto um cheque no valor de € 192,84, destinado ao pagamento da renda de Junho e Julho de 2005, fls. 118.
U. No dia 13/06/2005, o 1.° R. e a 3.a A. reuniram-se na sede da 3.ª R., na Rua da Junqueira, tendo o 1.° R. informado a 3.a A. que o contrato de arrendamento comercial celebrado pela usufrutuária com a sociedade comercial "AA & Filhos, Lda." havia caducado com a morte da senhoria.
V. No escrito, registado com aviso de recepção de 11/07/2005,remetida pelo 1.° R. à sociedade comercial "AA & Filhos, Lda.", consta: «1. Como é do conhecimento do V/conhecimento, a Senhora D. HH, usufrutuária do prédio urbano sito na Rua da J…, n.° …, na Póvoa de Varzim, faleceu no dia 8 de Maio de 2005.
2. Como já tivemos oportunidade de informar V.ª Excias., a morte da usufrutuária, supra identificada, o preceituado na alínea c) do n.° 1 do art. 1051.° do Código Civil, a caducidade do contrato de arrendamento comercial celebrado, em 1 de Março de 2002, entre a sociedade V/representada (na qualidade arrendatária) e a Senhora D. HH (na qualidade de senhoria).
3. Assim, e nos termos do disposto no art. 114.° do Regime do Arrendamento Urbano, deverão Vs.a Excias. entregar-me o local arrendado, livre de pessoas e bens, até ao dia 08 de Maio de 2006., fls. 121 a 123.
W. O estabelecimento comercial e a residência daquele arrendatário GG situavam-se a escassos metros da sede da 3ª ré.
X. O valor de mercado do prédio identificado em B), em 1976, ascendia a 8.966,49 Euros (PTE 1.797.619$80).
Y. O seu valor em 2005 era de 100.000,00 Euros.
Z. Os AA. conhecem bem o prédio referido, já que nele vivem e nele têm instalado o seu estabelecimento comercial.



4. Importa acentuar liminarmente que o presente litígio apresenta duas especificidades relevantes, que carecem obviamente de ser ponderadas para se alcançar uma justa composição do mesmo:

a) a primeira delas decorre de estarmos confrontados com uma situação de fraccionamento ou desmembramento da propriedade; na verdade, o arrendamento em que se alicerça a preferência foi constituído com base no direito de usufruto sobre o imóvel onde se situa o local arrendado – tendo sido alienada a nua propriedade (e não o direito real menor em que se fundamentava a relação locatícia): abrangerá o direito de preferência do inquilino a alienação, por parte de pessoa diversa do seu senhorio, de uma relação jurídica real diferente daquela em que se alicerçava o direito ao arrendamento que origina o invocado direito de preferência?


b)a segunda questão prende-se com a anormal demora no exercício por parte do arrendatário do direito de preferência: este verifica-se apenas em momento em que a relação locatícia que lhe está na base já se mostra extinta, em consequência de revogação do contrato de arrendamento que legitimava a invocada preferência, e cerca de 30 anos após a celebração do contrato de alienação da nua propriedade que, na óptica dos AA., legitimava o seu direito de preferência.
Na realidade – e face à matéria de facto apurada – verifica-se que:
- tal negócio de alienação , não comunicado ao arrendatário, consumou-se em 15/6/76;
- o contrato de arrendamento em que assentaria a invocada preferência iniciou-se em 22/3/74, tendo sido celebrado entre o primitivo arrendatário e a usufrutuária do prédio;
- o primitivo arrendatário faleceu em 21/5/98, sucedendo-lhe os ora AA na presente acção,
- em 1/3/02 a primitiva relação locatícia terá sido revogada e substituída por um novo contrato, celebrado entre a referida usufrutuária e uma sociedade de que eram sócios os AA da presente acção;
- finalmente, tal arrendamento comercial terá caducado com a morte da usufrutuária/senhoria, ocorrida em 8/5/05- sendo na sequência da comunicação de que tal caducidade teria efectivamente operado – feita por carta de 11/7/05 – que veio a ser proposta, em 4/11/05, a presente acção de preferência.



5.A primeira questão – de que depende a própria existência do direito e preferência, cuja titularidade é invocada pelos AA. - não é nova na jurisprudência do STJ, podendo, nomeadamente invocar-se o ac. de 21/9/04 (junto, aliás, aos autos, a fls.648 e segs.) em que – com base no sustentado por Aragão Seia e Henrique Mesquita – se entendeu que , se o local arrendado foi dado de arrendamento pelo usufrutuário, o arrendatário só poderá preferir na venda ou dação em cumprimento do direito de usufruto, já que o titular da raiz ou nua propriedade é alheio ao arrendamento, nada tendo a ver com a relação locativa, que se extingue, de resto, logo que o usufruto termine.
Pelo contrário, se, durante a vigência do contrato, celebrado pelo proprietário, a propriedade do imóvel for desmembrada, fraccionando-se em nua propriedade e usufruto, tal circunstância superveniente em nada afecta a originária preferência do arrendatário, que poderá exercitar-se no caso de venda ou dação em cumprimento de qualquer destes direitos.

Na concreta situação dos autos, verifica-se que o contrato de arrendamento foi celebrado pela usufrutuária, numa situação em que o desmembramento da propriedade precedia em muito temporalmente a constituição da relação locatícia.

Adere-se inteiramente à referida orientação, restritiva do âmbito da preferência, já que a relação-base em que assenta a situação jurídica do locatário é exclusivamente o referido direito real menor, dependendo a subsistência do arrendamento da sobrevivência do usufruto, e sendo o titular da nua propriedade totalmente estranho à relação locatícia, constituída exclusivamente com base no direito e nos poderes da usufrutuária. Ora, o direito de preferência conferido pelo art.47º do RAU tem na sua génese a vinculação do proprietário/senhorio a, em igualdade de condições, dar prioridade na alienação do direito real com base no qual se constituiu o arrendamento ao respectivo arrendatário, não se vendo razão bastante para onerar um terceiro, totalmente estranho â relação locativa, com a obrigação legal de preferência - a qual, como é evidente, implica restrição à plena autonomia privada, ao envolver um limite à liberdade de escolha do outro contraente. Deste modo, estando na génese de determinada preferência legal uma concreta relação de arrendamento, só se podem considerar vinculados pela obrigação de dar preferência os titulares dessa relação jurídica – que simultaneamente sejam titulares do direito real com base no qual o arrendamento se constituiu e subsiste - e não quaisquer outros titulares de direitos reais sobre a coisa arrendada, estranhos à relação jurídica de arrendamento e por ela não minimamente vinculados ou afectados.

Tal entendimento acerca da inexistência dos pressupostos do direito de preferência torna inútil a abordagem da outra questão suscitada pelos recorrentes – e consubstanciada em saber se tal direito, fundado na locação de uma sala, pode estender-se e abranger o acto de alienação de um direito real sobre todo o prédio.

6. No caso dos autos, porém, mesmo que não fosse este o entendimento adoptado quanto ao âmbito da preferência, nem por isso subsistiria o direito invocado pelos recorridos, já que a demora anormal na proposição da acção de preferência há muito que implicou como adiante se demonstrará, a extinção do direito através dela exercido.
Como atrás se referiu, a primeira questão a resolver prende-se com o facto de, no momento em que foi exercitado pelos AA. o direito de preferência, a relação locativa que estava na sua génese já se mostrar extinta, por revogação, acordada entre usufrutuária/senhoria e os sucessores do primitivo arrendatário, todos eles sócios da sociedade que passou a assumir a posição de arrendatária – obrigando, deste modo, a enfrentar a questão da determinação do momento relevante para a aferição dos pressupostos do direito de preferência exercitado: deverão estes verificar-se apenas no momento em que se consumou a alienação violadora o direito de preferência invocado? Ou, pelo contrário, deverão tais pressupostos verificar-se também na altura em que o titular da preferência efectiva o seu direito?
Note-se que na base de uma e outra destas soluções estão concepções diferenciadas acerca da própria natureza e funcionalidade das preferências legais. Assim, quem entenda que basta a verificação dos seus pressupostos na data em que se consumou o negócio jurídico violador do direito do preferente, adopta uma concepção do direito real de aquisição que está na base da preferência legal que o desvincula totalmente da relação locatícia que, no caso ora em apreciação, lhe serve de fundamento – apenas devendo existir uma originária ligação «genética» entre a posição de arrendatário e a titularidade do direito de preferência que, todavia, depois de adquirido, se desprende ou destaca totalmente da relação locatícia, tornando-se imune às vicissitudes por esta sofridas (e sendo este fenómeno que permitiria compreender o exercício tardio do direito de preferência, feito eventualmente pelos herdeiros do originário titular de tal direito real de aquisição, num momento em que a relação de arrendamento que lhe serviu de originário fundamento há muito se mostra extinta).
A esta concepção opõe-se a que considera indispensável existir uma ligação ou conexão actual entre a preferência e a situação de arrendamento que a justifica e ilumina – sendo indispensável, não apenas a detenção pelo preferente da qualidade de arrendatário na data em que ocorreu o negócio de alienação através do qual se violou o seu direito, mas também no momento em que este o irá exercer: para este entendimento, não basta invocar a qualidade «histórica» de arrendatário, à data em que se verificou a violação do direito de preferência, sendo também indispensável a qualidade «actual» de arrendatário, na altura em que o preferente se dispõe a exercer o seu direito potestativo e real de aquisição – não podendo subsistir direitos de preferência, destinados a facultar ao arrendatário a permanência no local onde habita, agora na veste de proprietário, quando a relação locatícia que fundamenta o direito de preferência há muito está extinta, não subsistindo qualquer ligação actual entre o titular da preferência e o local originariamente arrendado. Esta questão vem sendo essencialmente abordada e debatida a propósito da articulação entre a eficácia retroactiva da acção de preferência, envolvendo a substituição com eficácia «ex tunc» do adquirente pelo preferente, e o efeito da ulterior procedência de uma acção de despejo, ocasionando que quem detinha a qualidade de arrendatário à data da celebração do acto de alienação já a tenha perdido, face à resolução do arrendamento, no momento em que exerceu judicialmente o direito de preferência. Veja-se, nomeadamente a acórdão do STJ de 9/10/03 (p.98B57), onde se afirma:


Problemática é a questão de saber se, no caso de procedência da acção de despejo, o arrendatário que o deixou de ser em momento posterior, manterá o direito de preferência que lhe foi conferido por lei.
Sobre esta questão duas correntes se desenham neste Supremo Tribunal: - uma, no sentido de a resolução do contrato de arrendamento não extinguir o direito de preferência do arrendatário, porque a decisão que decrete o despejo só produz efeito ex nunc, enquanto o direito de preferência nasce com a alienação, pelo que a sentença que o reconheça tem eficácia retroactiva; - outra no sentido das concessões previstas e na Lei nº. 63/77, de 25 de Agosto, eram ou são dirigidas aos locatários enquanto efectivos habitantes do arrendado.
3. a) No sentido da primeira tese, está Mota Pinto, com o argumento de que a sentença de despejo não tem efeito retroactivo, só produz efeitos ex nunc, enquanto que a sentença que eventualmente reconhece o direito de preferência tem efeitos ex tunc, efeitos que se protraem ao momento da venda.
3. b) no sentido da segunda teste está a Revista dos Tribunais, ao observar que "o arrendatário que intenta acção de preferência não fica desonerado de cumprir as obrigações que o contrato e a lei lhe impõem; se der motivo à resolução do arrendamento incorre no despejo e à execução da sentença que o decrete não obsta o facto de ter pendente acção de preferência; decretado o despejo por sentença transitada extingue-se a instância na acção de preferência por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide".
3. c) ANTUNES VARELA defendeu a segunda tese ao anotar o acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Julho de 1981, escrevendo: "a interpretação restritiva do artigo 1º da Lei nº. 63/77, de 25 de Agosto, aceite no presente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, corresponde, sem nenhuma espécie de dúvida, à correcta determinação do sentido decisivo deste preceito legal. Mais, porém, do que a letra pesa na interpretação da lei o seu espírito, o pensamento legislativo, contanto esse não exceda o limite estabelecido para o efeito, em termos genéricos, no artigo 9º, nº. 2, do Código Civil. E o espírito da lei que instituiu o direito de preferência a favor do locatário residencial, conforme se depreende do sucinto preâmbulo do diploma, é o de facilitar a aquisição do prédio, não a quem apenas o arrendou, mas a quem nele efectivamente habita, mediante o vínculo locatício, criado pela locação do imóvel".
3. d) Temos por correcta a tese do acórdão deste Supremo Tribunal de 28.7.81, reforçada, consolidada, pelas pertinentes e decisivas considerações explanadas por ANTUNES VARELA. Como se anota no acórdão referido, a Lei nº. 63/77, de 25 de Agosto, teve em vista, como resulta do seu preâmbulo, dar execução ao disposto no artigo 65º, nº. 2, da Constituição da República, segundo o qual, compete ao Estado, além do mais, adoptar uma política de acesso à habitação própria.
Por isso, não é a simples posição de inquilino habitacional que faz nascer, para esse inquilino, o direito de preferência na venda ou dação em pagamento do respectivo prédio; é necessário que o inquilino tenha necessidade do prédio ou da fracção para sua habitação própria e dos seus familiares.
O direito de preferência criado pela Lei nº. 63/77, de 25 de Agosto, visa tão só os inquilinos necessitados de habitação própria. A razão de ser do direito de preferência criado pela Lei nº. 63/77 impõe que ao seu artigo 1º se dê a interpretação restritiva dada pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Julho de 1981, por ser, conforme ANTUNES VARELA, a correcta determinação do sentido decisivo desse preceito legal.
Assim, o artigo 1º da Lei nº. 63/77 deve ser interpretado no sentido de o direito de preferência dever ser reconhecido ao arrendatário se e na medida em que lhe proporcione continuar a habitar o arrendado, mas agora a título de habitação própria. Perante a interpretação restritiva do artigo 1º da Lei nº. 63/77, de 25 de Agosto, temos de precisar que os autores/recorridos não manterão o direito de preferência que lhes foi concedido por aquele dispositivo legal no caso da procedência da acção de despejo intentada pelo réu/recorrente contra os mesmos, com fundamento resolutivo posterior à venda da coisa locada.

E mais adiante afirma-se:

Relativamente ao momento de aferição dos pressupostos do direito de preferência, tem sido entendido situar-se na altura do respectivo contrato de compra e venda, ou que também devem ocorrer aquando da decisão judicial definitiva de reconhecimento da preferência.
Paralelamente, tem sido entendido pela doutrina pela jurisprudência que a sentença que reconheça o direito de preferência tem efeitos ex tunc reportados ao momento da celebração do contrato de compra e venda a terceiro do prédio ou da fracção predial objecto mediato do contrato de arrendamento.
No que concerne à sentença resolutiva do contrato de arrendamento, apesar de o artigo 434º, nº. 2, do Código Civil só excluir a retroactividade, em regra, quanto às prestações efectuadas, tem não raro sido entendido que ela só produz efeitos ex nunc, ou seja, em relação ao futuro (CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Estudo citado, págs. 115 e 116; e Acs. do STJ, de 8.1.74, BMJ, nº. 233, pág. 190, e de 27.11.2001, Revista nº. 3238/2001, 6ª Secção).
A jurisprudência, porém, tem vindo a considerar que a sentença que decreta a resolução do contrato de arrendamento tem eficácia retroactiva (Acs. do STJ, de 27.5.75, BMJ, nº. 247, pág. 142, de 15.2.81, BMJ, nº. 304, pág. 375, e de 27.11.2001, Revista nº. 3 238, 6ª Secção).
Acresce que, mesmo sob o entendimento da eficácia ex nunc da sentença resolutiva do contrato de arrendamento, foi decidido que, decretada depois da alienação do prédio arrendado para habitação, mas fundada em facto anterior à venda do prédio, extingue ex tunc a situação locatícia e o correlativo direito de o arrendatário preferir na compra (Ac. do STJ, de 20.12.84, BMJ, nº. 341, pág. 432).
No confronto entre os efeitos retroactivos da sentença que reconheça o direito de preferência do arrendatário e da sentença resolutiva do contrato de arrendamento, a solução geralmente adoptada pela jurisprudência tem sido no sentido da exclusão do direito de preferência do arrendatário se os factos resolutivos ocorreram anteriormente ao contrato de compra e venda (Acs. do STJ de 27.5.75, BMJ, nº. 247. pág. 142; e de 25.2.81, BMJ, nº. 304, pág. 375; de 27.11.2001, Revista nº. 3238/2001, 6ª Secção).
Este entendimento é contrariado por alguma doutrina, segundo a qual, não ficar o arrendatário que intenta a acção de preferência desonerado do cumprimento das obrigações que o contrato e a lei lhe impõem e que se der causa à resolução do contrato de arrendamento à mesma ficar sujeito, não obstante ter pendente acção de preferência.
A referida posição assenta em que o princípio de que o direito de preferência surge no momento da celebração do contrato de compra e venda da coisa locada apenas significa que os actos de modificação ou distrate da alienação, a que se reporta o nº. 2 do artigo 1410º do Código Civil, irrelevam em termos de afectação do direito do preferente, e que, enquanto não transitar em julgado a sentença que ao arrendatário reconheça o direito de preferência este lhe não está assegurado (JOSÉ GUALBERTO DE SÁ CARNEIRO, "Revista dos Tribunais", Ano 92º, 1974, pág. 378).
A igual resultado conduz a doutrina no sentido de que o êxito da acção de preferência depende de o preferente assumir a qualidade jurídica de arrendatário não só no momento da celebração do contrato de compra e venda como também no momento da sentença definitiva que lhe reconheça o direito de preferência na respectiva aquisição, sob a argumentação de que perdida a referida qualidade perdido fica o direito de preferência, reforçada, no que concerne ao locatário habitacional, por o direito de preferência só fazer sentido quando o locatário habite efectivamente no prédio ou na fracção predial respectiva, por a lei lho atribuir com vista a facilitar-lhe o acesso à propriedade do local onde mora permanentemente, e não proporcionar-lhe lucrativas operações imobiliárias (MENEZES CORDEIRO, Parecer no Processo).
Em sentido inverso, entende outra doutrina, por um lado, que a sentença que julgue procedente a acção de preferência retroage os seus efeitos à data da venda, como se o contrato tivesse inicialmente celebrado entre o alienante e o preferente, e que a resolução do contrato de arrendamento não tem efeitos retroactivos ou, se os tiver não vão além da data em que ocorreu o facto resolutivo ou o arrendatário foi citado para a acção, pelo que é insusceptível de atingir o direito de preferência, por ter surgido em momento anterior.
E, por outro, que a interpretação restritiva do artigo 1º da Lei nº. 63/77, de 25 de Agosto, conduz ao não reconhecimento do direito de preferência ao arrendatário habitacional que efectivamente não habite o local arrendado, mas que não acarreta a perda do direito de preferência pelo locatário quando este, após a venda, deixe de ter no local arrendado a sua residência permanente (HENRIQUE MESQUITA, Parecer no Processo).
Com alguma proximidade com o que este Tribunal já decidiu no âmbito deste recurso, no que concerne à especificidade do direito de preferência do arrendatário habitacional, há decisões anteriores no sentido, por um lado, de que o direito de preferência deve ser reconhecido ao arrendatário se e na medida em que, sem lesão do direito do proprietário, lhe proporcione continuar a habitar o locado a título de habitação própria (Acs. do STJ, 28.6.81, BMJ, nº. 309, pág. 342; e de 22.6.93, Revista nº. 82 125).
E, por outro, que o locatário habitacional para efeito do nº. 1 do artigo 1º da Lei nº. 63/77, de 25 de Agosto, não era o que, relativamente à data da venda do prédio, nele não habitava há vários anos, sendo irrelevante que a ele regressasse depois de proposta a acção de resolução do contrato de arrendamento (Ac. do STJ, de 20.12.84, BMJ, nº. 341, pág. 432).


Aderindo, no essencial, à orientação que, numa interpretação funcionalmente adequada, exige a subsistência da relação locatícia com base na qual se constituiu originariamente o direito de preferência no momento em que este vai ser actuado, apenas se introduz uma precisão na doutrina que afere os pressupostos do direito de preferência à data em que é proferida a decisão judicial definitiva que o reconhece: no nosso entendimento a qualidade de arrendatário que substancialmente legitima a titularidade do direito real de aquisição deverá subsistir, não no momento «processual» do encerramento da discussão e julgamento da causa ( até ao qual seria possível trazer à colação os factos supervenientes que tivessem posto termo a uma relação de arrendamento, originariamente existente), mas no momento «substantivo»em que se subjectiva o direito a exercer a referida preferência – e que é, por força do estipulado no art.1410º do CC, aquele em que o titular do direito real de aquisição teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, ficando, consequentemente, colocado em condições de exercitar o seu direito. Deste modo, apreendidos pelo interessado os elementos essenciais da alienação ainda em vida da relação locatícia que fundamenta a outorga do direito potestativo em causa, poderia ele intentar ainda, nos 6 meses subsequentes, a respectiva acção, sendo identicamente possível, v. g., a habilitação de herdeiros nesta causa, desde que tempestivamente proposta,. no caso de decesso do inquilino, mesmo que o óbito deste extinguisse a relação de arrendamento. O que, neste nosso entendimento, estará excluído será a possibilidade de exercício da preferência quando o seu originário titular alega ter tido conhecimento dos elementos essenciais da alienação apenas numa data em que já não detinha a qualidade jurídica de arrendatário, nenhuma conexão tendo, nesse momento, com o imóvel que funciona como objecto mediato do seu direito.

Ora, transpondo estas considerações para o caso dos autos, é manifesto que – tendo a relação de arrendamento cessado por revogação (obviamente desprovida de eficácia retroactiva), ocorrida há muito mais de 6 meses antes da data de proposição da acção de preferência pelos AA, estes seguramente já não detinham a qualidade de arrendatários no momento em que se iniciou o prazo para o exercício de tal direito, pelo que terá o mesmo de se considerar precludido.


7.Note-se, todavia, que – no caso particular dos autos – mesmo que se adoptasse o entendimento segundo o qual os pressupostos da preferência se aferem exclusivamente no momento temporal originário, em que se consuma a alienação violadora do direito do preferente, irrelevando uma superveniente extinção da relação locatícia, desprovida de efeitos retroactivos, nem por isso a presente acção deixaria de se considerar precludida – não podendo obviamente olvidar-se - e deixar de valorar-se devidamente - a abissal demora entre a realização do acto de venda, lesivo da preferência legal., e o exercício judicial do direito pelo preferente: cerca de 30 anos!
Tal demora anormal não pode de deixar de suscitar logo fundada perplexidade ao intérprete, não sendo fácil compreender como se pode legitimamente transmutar um prazo curto - de 6 meses – para o exercício do direito num prazo que subsistiria incólume ao longo dos anos e das décadas, excedendo mesmo em muito os limites que a lei institui para a irremediável consolidação das situações jurídicas, quer em sede de prescrição extintiva, quer no campo da usucapião…



É certo que o prazo para o exercício em juízo do direito real de aquisição em que se consubstancia a posição do preferente se conta da ocorrência de um facto subjectivo: o conhecimento pelo preferente dos elementos essenciais do acto de alienação; tal não significa, porém, que seja possível diferir ilimitadamente no tempo o exercício de tal direito, de modo a considerá-lo possível após se consumarem anos ou décadas sobre a verificação do referido facto objectivo, pondo-se obviamente em causa – não apenas os direitos e expectativas do obrigado à preferência – mas direitos de terceiros, totalmente estranhos a tal obrigação (e a quem se não pode naturalmente imputar a respectiva violação) e, em última análise, a própria segurança e confiança do tráfico jurídico.
Na verdade, a tese subjacente às decisões das instâncias, segundo a qual, uma vez adquirido o direito de preferência, o mesmo subsistirá indefinidamente, até ao momento em que sejam subjectivamente conhecidos pelo titular do direito real de aquisição os elementos essenciais do negócio de alienação, acaba por criar sobre o imóvel alienado um verdadeiro ónus real, oculto (na medida em que obviamente não figura no registo) e tendencialmente perpétuo, já que - à imagem do caso dos autos – poderia ser exercitado com uma dilação de décadas - com o mero argumento de que só nesse momento o seu titular teria finalmente apreendido os elementos essenciais do negócio de alienação , violador da preferência.
Como é notório, tal solução normativa revelar-se-ia dificilmente compatível com os princípios da confiança e da segurança jurídica no campo da alienação de bens imobiliários, - que constitui emanação do próprio princípio constitucional da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, proclamado pelo art. 2º da Lei Fundamental - ao possibilitar que quem os adquiriu – e registou em seu nome - desconhecendo, porventura, sem culpa que o transmitente violou um direito de preferência – ficaria indefinidamente sujeito a ver a eficácia da aquisição destruída, ao longo de períodos temporais longuíssimos - podendo, em muitos casos, o exercício tardio do direito de preferência, afectar os múltiplos e sucessivos actos de transmissão, eventualmente verificados ao longo dos anos ( veja-se, por ex. , a tutela conferida pelo art.291º do CC aos subadquirentes de boa fé, perante os efeitos tendencialmente retroactivos da nulidade ou anulação do negócio jurídico).

Este problema não tem, aliás, escapado à doutrina: veja-se Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, 2006, onde se afirma, a pags. 640:

«Aqui chegados impõe-se a seguinte pergunta: esta possibilidade de exercer o direito de preferência a todo o tempo manter-se-à até o sujeito passivo proceder à notificação, independentemente de, entretanto, celebrar com terceiro o contrato projectado?
A resposta não pode ser senão negativa.
É justamente o art. 1410º, nº1, do CC que impede o exercício do direito de preferir a todo o tempo, pois fixa um prazo de 6 meses, a contar da data em que o sujeito passivo teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, para a propositura da acção de preferência; no limite, o direito de preferência terá de ser exercido dentro daquele prazo. Esta solução é, de resto, plenamente justificada por razões substantivas.
Em primeiro lugar, a alienação do bem sujeito à preferência a favor de um terceiro torna impossível a realização de uma denuntiatio regular, pois esta reporta-se obrigatoriamente a um projecto de venda e a um projecto de contrato. Uma vez consumada a venda a terceiro, já não há projecto de contrato a comunicar; quando muito, o sujeito passivo poderá comunicar ao preferente a venda a terceiro, indicando o respectivo conteúdo, para fixar o momento a partir do qual se iniciará a contagem do prazo de 6 meses acima aludido, mas esta comunicação não cumpre o dever previsto no art. 416º, nº1, do CC, obviamente.
Esta impossibilidade de realizar a denuntiatio, porque o sujeito passivo celebrou o contrato projectado com terceiro, frustra o exercício regular do direito de preferência; o desenvolvimento da relação de preferência, de acordo com o programa previsto pelo legislador, sofreu uma vicissitude que inviabilizou definitivamente o exercício regular do direito, e, por isso, não faz sentido continuar a submetê-lo às regras que pressupõem a possibilidade de realização desse programa.
Em segundo lugar, e esta será uma razão ainda mais determinante para a limitação temporal do exercício do direito de preferir, a alienação a terceiro faz com que a discussão à volta do exercício ou não exercício do direito de preferir extravase da relação entre preferente e sujeito passivo e passe a afectar também a situação de terceiro e, eventualmente, a própria segurança do tráfico jurídico, pois não está só em causa a aquisição de terceiro como todos os actos que por este sejam praticados relativamente ao objecto sujeito à preferência, designadamente a sua alienação ou oneração.
Ora, na medida em que esta situação de incerteza passa a afectar direitos de terceiro, e a própria segurança do tráfico jurídico, torna-se necessária uma rápida clarificação da mesma, e daí que seja exigida ao preferente uma decisão célere sobre se quer ou não para si o bem alienado.»


As cláusulas gerais do abuso de direito e da boa fé revelam-se o instrumento adequado para, operando um correcto balanceamento ou ponderação dos interesses contrapostos, alcançar a justa composição do litígio.
Na verdade, consumada a alienação do imóvel com violação do direito do preferente – e passando a estar co-envolvidos no litígio, como se viu, não apenas os interessados originários, mas também direitos e expectativas de terceiros e, em última análise, a própria segurança do comércio jurídico, deixa de ser lícito ao preferente aguardar passivamente que lhe seja trazido o conteúdo e as cláusulas da venda realizada, incidindo sobre ele um ónus de acompanhamento e indagação acerca da situação do bem que é objecto mediato do seu direito real de aquisição, devendo valorar adequadamente os indícios que possam revelar a celebração de um acto de venda, de modo a desencadear, sem dilações desproporcionadas, o exercício do seu direito, se nisso tiver interesse. Se o não fizer, ao longo de períodos temporais desproporcionadamente amplos, é evidente que estará a contribuir para consolidar nos restantes interessados a expectativa de que não irá actuar o direito potestativo de que originariamente era titular, rompendo injustificadamente tais expectativas um exercício anormalmente tardio do direito – traduzindo um injustificado «venire contra factum proprium» e uma inadmissível lesão do princípio da confiança.
No caso dos autos – e perante a matéria de facto apurada - é evidente que há muitos anos dispunham os AA de elementos que claramente indiciavam ter sido realizada alienação - registada em 1993 - em violação do seu direito de preferência: na verdade, os interessados residiam nos 1º e 2º andares do prédio – que bem conhecem - onde se situava a fracção cuja locação constituía fundamento da preferência, tendo, por várias vezes, contactado o 1º R, adquirente em 1976 da nua propriedade, a propósito de obras em curso no imóvel. Ora, perante tais indícios, sedimentados ao longo dos anos, cumpria-lhes averiguar a situação jurídica do imóvel a que se reportava a preferência- não se vendo que lhe fosse inviável ter acesso aos elementos que permitiriam determinar o «sacrifício económico global suportado pelo terceiro na aquisição» (cfr. Agostinho Cardoso Guedes, ob. cit., pag.649), de modo a acautelarem o respectivo exercício sem dilações indevidas, lesivas da confiança razoavelmente depositada na prolongada inércia e aparente desinteresse dos interessados: tal averiguação e confirmação dos indícios de que teria ocorrido acto de alienação, eventualmente lesivo da preferência, revestia, aliás, manifesta simplicidade, bastando-se com uma consulta ao registo predial – que, desde 1993, revelava cabalmente ser o 1º R o titular da nua propriedade sobre o imóvel em causa…
E, como é evidente o arrastamento temporalmente desproporcionado desta situação de pendência e de dúvida acerca da interesse no exercício da preferência acabou, por via reflexa, por determinar – face às flutuações do valor da moeda e do próprio valor objectivo e de mercado dos bens imóveis – uma manifesta desproporção entre as prestações em causa, ao facultar a aquisição de um bem vendido quase 30 anos antes, sem que haja garantia adequada que a realização de mera operação de correcção monetária assegure plenamente o equilíbrio e a justiça nas prestações e contra - prestações, em que assentava a sinalagmaticidade do negócio.


8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados concede-se provimento à revista, revogando a decisão recorrida e, em consequência, julgando improcedente a acção proposta pelos recorridos.
Custas da acção e do recurso pelos recorridos.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2010
Lopes do Rego (Relator)
Ferreira de Sousa
Pires da Rosa