Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B1205
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DOS JUÍZES
PROVA
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Nº do Documento: SJ200805150012057
Data do Acordão: 05/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO
Decisão: DEFERIMENTO
Sumário :
1. A divergência relativa às implicações do princípio da plenitude de assistência dos juízes, constante do artigo 654º do Código de Processo Civil, entre o juiz do processo que, entretanto, foi nomeado para a Relação, e o que o substituiu na 1ª Instância, não é, tecnicamente, um conflito de competência, desde logo por não envolver qualquer conflito entre tribunais;
2. Na falta de regime legal aplicável, pode o Supremo Tribunal de Justiça intervir para a resolver, sob pena de se criar um impasse difícil de ultrapassar;
3. O princípio da plenitude da assistência dos juízes exige que seja o mesmo o juiz que, num incidente de incumprimento de regulação do exercício do poder paternal, presidiu à realização das diligências probatórias e deferiu um requerimento de realização de outras diligências, cuja utilidade se revelou pelos depoimentos já prestados, a presidir a essas outras diligências e a julgar a matéria de facto.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 7ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



1. A fls. 120, foi liminarmente indeferido, com base no disposto no nº 1 do artigo 118º do Código de Processo Civil (na redacção anterior à que resulta do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto), um requerimento apresentado pelo Ministério Público, com o objectivo de ser solucionado um conflito negativo de competência, nos seguintes termos:


«1.O Ministério Público, invocando o disposto nos artigos 117º do Código de Processo Civil e 36º, e), da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção aplicável (anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto), veio requerer “a resolução do conflito negativo, suscitado entre os Exmºs Juízes do 3º Juízo-3ª Secção do Tribunal de Família e Menores de Lisboa e o anterior titular, actualmente Juiz-Dezembargador na Relação de Lisboa”, que descreve da seguinte forma:
Num incidente de incumprimento do poder paternal deduzido, em 5 de Fevereiro de 2007, no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, por AA contra BB, foi proferido o despacho, com cópia a fls. 103, determinando que os autos fossem conclusos “ao Mmo Juiz que iniciou a diligência de inquirição de testemunhas, a fim de proceder ao agendamento da continuação da audiência”, uma vez que tinham sido elementos solicitados “e identificadas as testemunhas cuja inquirição foi requerida”.
Todavia, por despacho com cópia junta a fls. 106, esse mesmo Juiz, entretanto nomeado para o Tribunal da Relação de Lisboa, declarou não poder mais intervir no processo, que deveria continuar com o juiz que se encontre em funções naquele tribunal e que lhe tenha sucedido na titularidade do processo.
Fazendo o relato da tramitação seguida antes da cessação das suas funções, referiu que, após a apresentação do requerimento inicial, da resposta e da vista ao Ministério Público, e depois de algumas vicissitudes quanto à marcação da data, realizou-se, em 16 de Maio de 2007, a inquirição das testemunhas indicadas e das quais se não prescindiu, sendo proferido despacho que declarou “encerrada a presente diligência”.
A 23 do mesmo mês, foi deferida a realização de outras diligências probatórias, entretanto requeridas, e que se traduziam, em síntese, em solicitar determinadas informações à Vodafone, por um lado, e em ouvir duas novas testemunhas, por outro. A marcação da data dessa audição ficou dependente de serem apuradas as suas “completas identificações”, para o que foi fixado um determinado prazo.
A sua última intervenção no processo, antes de cessar funções no Tribunal de 1ª Instância, traduziu-se num despacho a deferir um pedido de prorrogação deste último prazo.
Considerando que está agora em causa uma “nova e autónoma diligência que, embora deferida a sua realização pelo signatário, deverá agora ser agendada e realizada pela sua Mma. sucessora, sob pena de violação do princípio do juiz natural”, porque não se iniciou, consigo, nenhuma “audiência de discussão e julgamento, mas [apenas uma diligência] de inquirição de testemunhas”; que a prova então produzida sido reduzida a escrito; que tinha sido por ele declarada encerrada a diligência; e que “apenas nos casos de continuação do julgamento é que se justifica e aceita” a intervenção do juiz que entretanto cessou funções no tribunal, para salvaguardar o princípio da plenitude de assistência dos juízes, o juiz declarou-se incompetente para prosseguir o incidente.
Todavia, por despacho com cópia junta a fls. 112, a Juíza acima referida, invocando o disposto no artigo 654, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável ao caso, declinou “a competência para presidir à continuação dos actos de produção de prova testemunhal e proferir decisão sobre a matéria de facto, atribuindo-a ao Mmo Juiz que presidiu à diligência de produção de prova testemunhal, que não se encontra concluída”.
2. Não está, pois, em causa um conflito de competência, pois não se verifica uma situação em que “dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram (…) incompetentes para conhecer da mesma questão”; trata-se, tão somente, de uma divergência de interpretação entre dois juízes (e não dois tribunais) sobre a aplicação da regra da plenitude de assistência dos juízes, consagrada no artigo 654º do Código de Processo Civil, destinada a salvaguardar a imediação na prova e na discussão da matéria de facto, cuja resolução não é atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça por nenhuma disposição legal (cfr. nº 1 do artigo 121º do Código de Processo Civil). E, note-se, de uma divergência para a qual não releva a diferença de grau hierárquico dos dois tribunais em que se encontram, agora, colocados os mesmos dois juízes.
Na verdade, o Ministério Público colocou esta questão ao Supremo Tribunal de Justiça, repare-se, em aplicação do disposto na 2ª parte do nº 1 do artigo 116º do Código de Processo Civil, ou seja, tratou-a como se ocorresse um conflito entre um tribunal de 1ª Instância (por sinal integrado no distrito judicial de Lisboa) e o Tribunal da Relação de Lisboa, considerando assim o Supremo Tribunal de Justiça como o “tribunal de menor categoria que exerça jurisdição sobre as autoridades em conflito”.
3. Assim, nos termos previstos no nº 1 do artigo 118º do Código de Processo Civil, indefiro o requerimento apresentado pelo Ministério Público.»


2. A fls. 126, o Ministério Público veio requerer, nos termos previstos no nº 3 do artigo 700º do Código de Processo Civil, que sobre o despacho acabado de transcrever recaísse acórdão.
Observando que “ambos os juízes implicados – divergindo na interpretação e aplicação ao caso do princípio da plenitude de assistência dos juízes, estabelecido no art. 654º do CPC – se consideraram incompetentes, por despachos transitados, para determinar os ulteriores termos do processo e proferir decisão sobre matéria de facto”, ocorrendo assim “um impasse processual, uma situação de conflito (…) que, sob pena de denegação de justiça, urge resolver”, o Ministério Público veio defender que fosse aplicado analogicamente o regime definido pela segunda parte do nº 1 do artigo 116º e pelo corpo do artigo 121º, ambos do Código de Processo Civil, conjugados com o disposto nos artigos 4º, nº 2, parte final e 36º, f) da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, e que o Supremo Tribunal de Justiça o resolvesse. Invocou, para o efeito, jurisprudência deste Supremo Tribunal nesse sentido.

3. Reconhece-se que está em causa uma situação de “impasse” que cumpre resolver sem demora, para a qual a lei, pelas razões apontadas na decisão reclamada e pelo Ministério Público – que concorda não se tratar de um “conflito de competência, em sentido técnico”, e que acrescenta não se tratar igualmente de um conflito circunscrito a um determinado tribunal, “ou equiparável, a resolver pelo presidente da relação, nos termos previstos no art. 210º, nº 2 do CPC" – não prevê solução.
Assim sendo, e porque formalmente envolve juízes de diferentes instâncias (embora, para a questão de saber qual a solução imposta pelo princípio da plenitude de assistência dos juízes, não releve essa diferença), passa-se a decidir o “conflito” submetido à apreciação deste Supremo Tribunal.

4. É desnecessário proceder a uma explicação aprofundada do princípio da plenitude da assistência dos juízes, expresso no artigo 654º do Código de Processo Civil em termos adequados à sua concretização numa acção ordinária, mas aplicável, como se sabe, às demais formas de processo declarativo (artigos 463º e 464º do mesmo Código), com as adaptações que a diferença de tramitação implicar.
Nomeadamente, aplica-se aos processos tutelares cíveis regulados na OTM (aprovada pelo Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro), entre os quais se encontra o processo de regulação do poder paternal (cfr. artigos 150º, 161º e 174º). Trata-se, no caso, de uma questão suscitada no âmbito de um incidente de incumprimento, previsto no respectivo artigo 181º.
A desnecessidade referida advém de todos sabermos que o objectivo de tal princípio é o de garantir o correcto julgamento da matéria de facto.
Cabe ter presente que os “actos de instrução” que o artigo 654º do Código de Processo Civil tem em vista correspondem a produção de provas sem valor tabelado na lei, ou seja, sujeitas às regras da imediação, por um lado, e da livre apreciação pelo tribunal, por outro (artigo 655º do mesmo Código).
Sendo na audiência final que, numa acção ordinária, em princípio, decorre a produção dessas provas, não é de estranhar que a lei refira a esse momento processual o princípio da plenitude da assistência dos juízes.
Mas o que claramente se pretende, em qualquer caso, é garantir que, quando estão em causa provas sujeitas às referidas regras da livre apreciação e da imediação, não seja diverso o julgador que assiste à respectiva produção e aquele que, com base nessas mesmas provas, vai julgar a matéria de facto ainda por apurar.

5. Por leitura da acta da diligência de 16 de Maio de 2007, cuja certidão se encontra junta a fls. 11 e segs., bem como dos despachos cuja cópia consta de fls. 66 e 66, vº., verifica-se, no caso presente:
– que a prova testemunhal oferecida (e não prescindida) foi produzida perante o juiz que presidiu a essa diligência;
– que os depoimentos prestados se encontram reduzidos a escrito, na referida acta;
– que, no decorrer da mesma diligência, foi requerido por uma das partes que fosse determinado a uma operadora de telemóvel o fornecimento de certos dados, cujo conhecimento se teria tornado relevante em virtude de um depoimento prestado;
– que, também durante a mesma diligência, e igualmente na sequência de um outro depoimento, foi requerida a inquirição, como testemunhas, de pessoas que se admitia terem conhecimentos que poderiam contribuir para o apuramento dos factos em discussão;
– que o juiz, quando declarou encerrada a diligência, determinou que lhe fosse concluso o processo para poder decidir tais requerimentos;
– e que, por despachos de 23 de Maio de 2007, com cópia a fls. 16 e 16 vº., o mesmo juiz deferiu os requerimentos, esclarecendo, quanto ao segundo, que a audição dessas pessoas se lhe afigurava “relevante para o apuramento dos factos e descoberta da verdade material (…).

6. Assim sendo, não restam dúvidas de que a correcta decisão da matéria de facto relevante no incidente em julgamento impõe que seja o juiz que presidiu à diligência de 16 de Maio de 2007, por um lado, a apreciar os elementos entregues pela operadora telefónica e, por outro, a presidir à inquirição das testemunhas ainda por ouvir, cujo depoimento ele próprio considerou útil.
Do ponto de vista do objectivo do princípio da plenitude da assistência dos juízes, é irrelevante que a diligência a que se refere a acta citada não se possa considerar uma audiência de discussão e julgamento, tal como é irrelevante a circunstância de, nos termos já referidos, o juiz que a ela presidiu a ter dado como encerrada. Assim como não é suficiente para concluir diferentemente o argumento de que os depoimentos já prestados foram reduzidos a escrito, deste modo pretendendo significar que podem ser apreciados pelo juiz a quem o processo foi posteriormente distribuído.
Basta pensar que, apesar de reduzidos a escrito, os depoimentos foram efectivamente prestados perante o juiz, tal como vai suceder com os que ainda se vão realizar; e que a observância do princípio da plenitude evita que se crie uma desigualdade quanto às condições em que os depoimentos serão avaliados.

7. Não se dispondo de elementos que demonstrem ser preferível a repetição dos depoimentos já prestados – o que haveria de resultar com especial evidência dos autos, já que se trata de um incidente de (alegado) incumprimento da obrigação de prestação de alimentos, definida no âmbito do poder paternal, em que a celeridade assume particular relevância, resta concluir que dos nºs 1 e 3 do artigo 654º do Código de Processo Civil resulta que cabe ao juiz perante o qual se realizou a diligência instrutória de 16 de Maio de 2007 presidir à produção da restante prova e julgar a matéria de facto.

Nestes termos, defere-se a reclamação e determina-se que seja o juiz que presidiu à diligência de 16 de Maio de 2007 a concluir as diligências probatórias ainda por realizar e a proceder ao subsequente julgamento da matéria de facto.

Lisboa, 15 de Maio de 2008
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Lázaro Faria
Eduardo Silva