Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B049
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: ACÇÃO PAULIANA
ÓNUS DA PROVA
MÁ FÉ
SIMULAÇÃO
PEDIDO SUBSIDIÁRIO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200410190000492
Data do Acordão: 10/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3504/03
Data: 07/03/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I - A anterioridade do crédito para efeitos de acção pauliana [artigo 610.º, alínea a), primeira parte, do Código Civil] deve reportar-se ao momento da constituição da relação obrigacional respectiva e não, v. g., à data da respectiva forma de tutela jurisdicional;
II - A repartição do ónus da prova na acção pauliana é regulada especificamente pelo artigo 611.º, que se afasta em alguma medida do regime definido nos artigos 342.º e segs., segundo o qual devia caber inteiramente ao credor a prova dos requisitos necessários à procedência do pedido, inclusive a prova da diminuição da garantia patrimonial nos termos da alínea b) do artigo 610.º;
III - Todavia, por razões compreensíveis, relacionadas com a dificuldade ou mesmo impossibilidade da prova de que o devedor não tem bens, o artigo 611.º atribui a este o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas, fazendo impender sobre o autor o ónus da prova do montante destas;
IV - A motivação aduzida conduz à conclusão de que a alínea b) do artigo 610.º não tipifica propriamente factos no plano considerado implicando que um semelhante ónus probatório impenda sobre o credor, antes configurando um tipo legal que deve relacionar-se em termos hábeis com o artigo 611.º, numa síntese normativa susceptível de reflectir os resultados do funcionamento dos ónus da prova de ambas as partes entretecidos neste último preceito;
V - A exigência postulada na alínea b) do artigo 610.º reduz-se à «simples impossibilidade prática», «de facto», «real, efectiva», de satisfação integral do crédito, pelo que, sendo o dinheiro um bem facilmente mobilizável e sonegável à acção dos credores, não é o mero facto do ingresso, no património do devedor, do preço da coisa por este alienada mercê da compra e venda objecto da pauliana que pode excluir a verificação do requisito;
VI - Incumbindo, aliás, ao devedor nos termos do artigo 611.º a prova da existência desse valor penhorável, não se considera cumprido o respectivo ónus pela mera circunstância de haver sido declarado na escritura o recebimento do preço da alienação, posto que a força probatória plena do documento se limita ao facto da emissão da declaração, qualquer que seja a sua veracidade (artigo 371.º);
VII - Provando-se que as compras e vendas impugnadas resultaram de acordo entre a ré alienante e as rés adquirentes, com o intuito de enganar os credores da primeira, vai necessariamente pressuposta nesses factos a consciência do prejuízo causado ao credor demandante em que se traduz o requisito da má fé segundo o n.º 2 do artigo 612.º;
VIII - A cumulação de pedidos incompatíveis deduzidos em relação de subsidiariedade, nos termos do artigo 469.º do Código de Processo Civil, não integra o fundamento de ineptidão previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 193.º do mesmo Código;
IX - A dedução de pedido principal de impugnação pauliana de compra e venda, e de nulidade por simulação absoluta do mesmo negócio a título subsidiário (cfr. o artigo 615.º, n.º 1, do Código Civil), configura-se como cumulação de pedidos conforme aos requisitos do citado artigo 469.º e suas conexões normativas, justificando-se por razões lógicas e revestindo real conteúdo jurídico--económico, por isso que a pauliana aproveita apenas ao credor requerente (artigo 616.º, n.os 1 e 4, do Código Civil), podendo representar um prius relativamente à declaração de nulidade em benefício de todos os credores (artigos 289.º, n.º 1, e 605.º, n.º 2);
X - Os tipos legais são normalmente constituídos por segmentos, quer normativos, quer de natureza factual-descritiva, recortando-se, entre estes, elementos da realidade material e concreta - seres vivos ou inanimados, coisas, objectos da mais variada espécie -, mas também do mundo ideal ou imaterial, tais como acções, qualidades, estados, sentimentos, ideias e criações intelectuais ou artísticas, factores anímicos e volitivos, etc., que não deixam de reconduzir-se ao domínio dos factos pela mera circunstância da sua abstracta natureza;
XI - As locuções e expressões quis vender, quiseram comprar, e acordo (entre as rés no) intuito de enganar (os credores), constantes do questionário em conexão com elementos típicos do artigo 240.º do Código Civil, por um lado incluem os conceitos jurídicos vender e comprar, habitualmente usados na vida comum em acepção correspondente ao seu significado jurídico, podendo por isso figurar acessoriamente no questionário e ser objecto de prova; por outro lado, integram conteúdos de vontade - acordo, intuito de enganar, querer comprar ou vender -, de natureza factual, conquanto abstracta, que lhes confere idêntica aptidão para serem inscritos no tema da prova.
A circunstância de tais conteúdos se oferecerem como elementos constitutivos do tipo legal não veda por si só a inclusão no questionário.
Tão-pouco contêm semelhantes elementos matéria de direito ou matéria imbuída de um grau tal de abstracção conclusiva que torne inadmissível submetê-los a prova directa, tratando-se, em suma, de matéria de facto susceptível de ser provada directamente através de qualquer meio de prova;
XII - Nos termos do artigo 371.º do Código Civil, a escritura pública de compra e venda prova plenamente que foram emitidas as respectivas declarações negociais de compra e venda de dois prédios, mas não já que a essas declarações tenha presidido uma vontade congruente, podendo o tribunal concluir através de outros meios de prova que as mesmas declarações não correspondiam à vontade real dos contraentes, situação consequentemente não subsumível às hipóteses delineadas no n.º 2 do artigo 722.º do Código de Processo Civil;
XIII - A competência de sindicabilidade do Supremo Tribunal de Justiça no tocante ao uso que a Relação tenha feito ou não dos poderes conferidos pelo artigo 712.º do mesmo compêndio legislativo restringe-se à verificação do respeito pelos pressupostos de exercício desses poderes definidos no mesmo normativo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"A", Lda., com sede em Viana do Castelo, instaurou no Tribunal de Amarante, em 14 de Agosto de 1989 (1), contra 1.ª "B", Lda., 2.ª Sociedade C, Lda. e 3.ª D, Sociedade Técnica de Madeiras, S.A., todas sediadas em Amarante, acção ordinária tendente a título principal à impugnação pauliana das vendas de três imóveis pela 1.ª ré, um à 2.ª ré, dois à 3.ª e, subsidiariamente, à declaração de nulidade das vendas por simulação.

Contestada a acção por cada uma das três rés, a 1.ª deduziu reconvenção no sentido de ser declarado que as vendas foram legítimas e legalmente celebradas, reconvindo igualmente a 2.ª ré no sentido da condenação da autora, se a acção proceder, a ver reconhecido o seu direito de ser paga das benfeitorias, no valor de 15 500 contos, realizadas no imóvel que lhe foi vendido.

Merece outrossim registo que a 1.ª e 2.ª rés excepcionaram a ineptidão da petição por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, arguições julgadas improcedentes no saneador com fundamento na relação de subsidiariedade entre os mesmos (fls. 305 e seg.; artigo 469.º do Código de Processo Civil;).

Da decisão agravou a 1.ª ré (fls. 310), recurso admitido com subida diferida (fls. 314), todavia julgado deserto por falta de alegação (fls. 321, verso).

O processo teve a instância suspensa mais de seis anos: num primeiro momento para registo da presente acção (despacho a fls. 235) e seguidamente a aguardar o desfecho de causa dita prejudicial (despacho a fls. 247/248), instaurada pela autora no Tribunal de Viana do Castelo com vista à condenação da 1.ª ré no pagamento do crédito que ora serve de base à pauliana.

Prosseguindo a tramitação, veio a ser proferida sentença final, em 15 de Julho de 2002, que julgou procedente a impugnação pauliana com prejuízo do conhecimento do pedido subsidiário, e improcedentes as reconvenções.

Interpuseram apelações a 1.ª e 2.ª rés, por um lado, e a 3.ª ré, por outro, a que ambas também negou provimento a Relação do Porto, confirmando a sentença.

Do acórdão neste sentido proferido, em 3 de Julho de 2003, recorrem de revista a 3.ª ré e, por sua parte, a 1.ª e 2.ª rés.

O objecto destes recursos, em larga medida coincidente, pode dizer-se grosso modo definido, à parte certas particularidades, pelas seguintes questões, muito em sintonia com as esboçadas na alegação da 3.ª ré: a) os quesitos 33.º e 34.º contêm matéria conclusiva de direito, e não de facto, devendo as respectivas respostas considerar-se não escritas (artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil); b) contradição entre as alíneas E) e G) da especificação, e as respostas aos quesitos 4.º, 5.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º,12.º, 33.º e 34.º, que devem ser alteradas no sentido do conteúdo dos documentos autênticos, com força probatória plena, vertido nas referidas alíneas; c) improcedência da acção por não verificação de requisitos legais da impugnação pauliana.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto dada como provada na 1.ª instância, para que se remete, nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil.

A benefício em todo o caso da inteligência do relato, desde já se enuncia a factualidade essencial, sem prejuízo de outras alusões pertinentes:

1.1. A autora «no exercício da sua actividade comercial de fabrico e venda de tijolo, forneceu à 1.a ré, a pedido desta e para esta utilizar na sua indústria de construção civil, diversas remessas de tijolo, entre 19/1/87 e 2/1/88» [alínea A) da especificação], apresentando a conta corrente respectiva «um saldo favorável à autora no montante de 1 151 508$50» [alínea B)];

1.2. «Tal quantia deveria ter sido paga até 30/7/87» [alínea C)], vindo a 1.ª ré a ser condenada a solvê-la à autora, acrescida de juros de mora à taxa legal, «por sentença de 7 de Agosto de 1997, do Tribunal Judicial de Viana do Castelo» [alínea D)];

1.3. «Por escritura lavrada no dia 8 de Fevereiro de 1988, no Cartório Notarial de Marco de Canaveses», «a 1.ª ré vendeu à 2.a ré um prédio rústico de pinhal e pastagem denominado ‘Cerrado da Firma’», com os sinais dos autos [alínea E)], e à 3.ª ré, mediante «escritura lavrada no dia 9 de Junho de 1988, no Cartório Notarial de Penafiel», «pelo preço global de 73.000.000$00, os seguintes imóveis», melhor identificados no processo: - «prédio urbano composto por um pavilhão (...) e logradouro (...)»; - «prédio rústico, denominado ‘Sorte de Agro Chão’ (...)» [alínea G)];

1.4. «A autora teve agora conhecimento de que, há já algum tempo atrás, 1ª ré vinha vivendo em enormes dificuldades económicas e financeiras, assoberbada com múltiplas e vultuosas dívidas» - «nomeadamente, a vários dos seus fornecedores e ainda, inclusivamente, ao próprio Estado» -, «que não podia satisfazer, e ainda dos seus respectivos prazos» (respostas aos quesitos 1.º e 2.º);

1.5. «A l.ª e 2.a rés forjaram a venda referida em E) com o único objectivo de retirarem esse prédio do património da l.ª ré» (quesito 3.º), «de forma a obstarem a uma futura penhora promovida por qualquer dos seus credores» (quesito 4.º);

1.6. «Também 2ª ré e os seus sócios-gerentes tinham conhecimento da existência de créditos sobre 1ª ré não satisfeitos» (quesito 5.º), «e tinham consciência que causavam prejuízo aos credores» (quesito 6.º);

1.7. 3.ª ré tinha conhecimento da situação económica e financeira da 1.a ré» (quesito 10.º);

1.8. 1ª ré não possui quaisquer bens imóveis e móveis no seu património» (quesito 11.º);

1.9. «Os negócios aludidos nas alíneas E) e G) da especificação, resultaram de acordo entre a 2ª e 3ª rés, com intuito de enganar os credores da 1.a ré» (quesito 33.º);

1.10. «A 1.a ré não quis vender tais prédios, nem a 2.ª e 3.ª rés os quiseram comprar» (quesito 34.º).

2. Com base nos factos descritos, a sentença julgou verificados os requisitos da simulação absoluta dos negócios aludidos supra, 1.3. (artigo 240.º do Código Civil; cfr. os pontos de facto 1.5., 1.9. e 1.10), considerando, porém, que a autora apenas tinha formulado o pedido de declaração de nulidade das vendas a título subsidiário.

E no tocante, por conseguinte, ao pedido principal, que prioritariamente lhe cumpria apreciar, o Tribunal de Amarante deu como provados os factos integradores dos pressupostos da impugnação pauliana indicados nos artigos 610.º a 612.º, a saber: a existência de actos de natureza não pessoal, mas patrimonial, envolvendo a diminuição da garantia patrimonial do crédito, tal como refere o corpo do artigo 610.º (as compras e vendas impugnadas); resultar desses actos, justamente, a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade [alínea b) do mesmo artigo], posto que a autora provou o seu crédito sobre a 1.ª ré (artigo 611.º, primeira parte), não tendo em contraponto sido lograda por banda das rés a prova de que a 1.ª ré possuía bens penhoráveis de igual ou maior valor (artigo 611.º, segunda parte); a anterioridade do crédito da autora relativamente às vendas [alínea b) do artigo 610.º]; a existência de má fé, tratando-se de actos onerosos (artigo 612.º), uma vez que, observa a sentença, as compras e vendas foram inclusive «realizadas dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do credor».

Na verificação desses requisitos, e ponderando que a impugnação pauliana «tem como efeitos nas relações entre o credor e o adquirente o direito à restituição dos bens, na medida do seu interesse» (artigo 616.º), a sentença julgou a acção procedente quanto à pauliana, ordenando, em suma, «a restituição dos prédios, identificados nos artigos 16.º e 30.º da petição inicial, ao património da 1.ª ré, para aí serem executados na medida do interesse da autora e até onde for necessário para satisfação do seu crédito».

Ficou por consequência prejudicado o pedido subsidiário, improcedendo em lógico corolário a reconvenção da 1.ª ré, e, por falta de prova, também a da 2.ª

3. Tal exactamente a decisão impugnada pelas rés perante o tribunal de apelação.

3.1., Depararam-se, todavia, aí à Relação do Porto desde logo impugnações da factualidade dada por assente na 1.ª instância - as quais, profusas e repetitivas, salvo o devido respeito, não primavam ademais pela disciplina lógico-argumentativa, agravando sobremaneira a apreciação das apelações, e das revistas, que substancialmente as reproduzem -, impugnações que se reflectem, em resumo, nos seguintes planos da decisão de facto, aliás nem sequer reclamada no próprio acto (fls. 737 e segs.)

Primeiro, no tocante à fundamentação (conclusões 20.ª e 28.ª/32.ª da alegação de apelação da 3.ª ré; cfr. também as conclusões XIV e XVI bis da alegação da 1.ª e 2.ª rés), pretendendo-se, ao abrigo do n.º 5 do artigo 712.º do Código de Processo Civil que a 1.ª instância fundamentasse as respostas aos quesitos 33.º e 34.º

Os Ex.mos Desembargadores rejeitaram, porém, a pretensão, considerando que a prova documental e testemunhal adrede referenciada pelo colectivo satisfazia com suficiência as exigências do n.º 2 do artigo 653.º do Código de Processo Civil.

Em segundo lugar, visavam as apelantes a alteração ou neutralização das respostas a determinados quesitos.

Neste conspecto, a 1.ª e a 2.ª rés, atendendo à força probatória de documentos juntos aos autos, aliás não individualizados, visavam que fossem considerados não provados os quesitos 4.º, 5.º, 7.º a 10.º, 33.º e 34.º, suscitando em termos dificilmente inteligíveis a contraposição entre o tempo (presente) dos quesitos e das respostas e a «data dos factos», ou a «data dos negócios», com influência, parece, na anterioridade ou posterioridade do crédito da autora relativamente às vendas, e no momento em que existiam bens no património da 1.ª ré [cfr., v. g., as conclusões III, V, VI, X, XI, XIII, XV («Está inequivocamente provado que, à data dos factos, a 1.ª ré tinha muito património mobiliário e inúmeros créditos sobre terceiros»), XVI bis, XX].

O acórdão recorrido recusou, porém, a satisfação do desiderato, observando resultar provado das alíneas A), B) e C) da especificação o crédito da autora sobre a 1.ª ré no montante de 1 151 508$00, que devia ter sido pago até 30 de Julho de 1987, e das alíneas E) e G) que as escrituras das vendas foram celebradas em 8 de Fevereiro e 9 de Junho de 1988, concluindo, pois, pela anterioridade do crédito relativamente aos actos impugnados.

E precisando ainda que o sentido das respostas a quesitos baseados em factos articulados na petição só pode reportar-se a essas datas e não ao momento em que o colectivo respondeu ao questionário.

Acrescia, porém, nos termos das impugnações da 3.ª ré, que os quesitos 33.º e 34.º conteriam matéria conclusiva de direito, devendo por isso considerar-se não escritas as respectivas respostas, de harmonia com o disposto no artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (conclusões 1.ª/7.ª da sua alegação).

Enquanto a 1.ª e 2.ª rés, referindo-se, por seu turno, aos artigos 16.º e 30.º da petição (fls. 804 e 812 da sua apelação), onde a autora articulara os elementos das escrituras das vendas que viriam a constar das alíneas E) e G) da especificação, reconduziam à figura da ineptidão a singularidade da articulação de conceitos de direito em lugar de factos, - tal, por consequência, o sentido, se bem se entende, da conclusão I da respectiva alegação.

O acórdão sub iudicio contrapôs, no entanto, a essas críticas que os quesitos 33.º e 34.º não são conclusivos na acepção da 3.ª ré, neles se aludindo ao acordo de vontades dos declarantes nas escrituras com o intuito de enganar terceiros, de passo que nas alíneas E) e G) se regista o acto de venda, significando o que consta das declarações negociais expressas nessas escrituras postas em causa pela autora.

Daí que, acrescenta o mesmo aresto, os quesitos 33.º e 34.º não estejam também em contradição nomeadamente com as alíneas E) e G), como querem as recorrentes ao argumentarem, em suma, que estas alíneas consubstanciam escrituras, logo documentos autênticos provando plenamente contratos de compra e venda que os aludidos quesitos consideram, ao invés, não corresponderem à vontade das partes (cfr. as conclusões VII e IX da 1.ª e 2.ª rés e as conclusões 8.ª/17.ª da 3.ª ré;).

E no tocante à eventual incorrecção de respostas exprobrada pela 3.ª ré à decisão de facto por errada apreciação de documentação e depoimentos (conclusões 18.ª/24.ª), considerou a Relação não estar ao seu alcance sindicar o juízo emitido pelo colectivo mediante a ponderação conjugada desses elementos probatórios, quando não constam do processo todos os dados tomados em conta na audiência de julgamento [cfr. v. g., o artigo 712.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil].

Sendo certo ademais não se verificar, segundo o acórdão em revista, a contraditoriedade, deficiência ou obscuridade das respostas aos referidos quesitos, em articulação com a alínea G) da especificação, e as respostas aos quesitos 7.º, 8.º, 9.º, 10.º e 11.º, provados, e ao quesito 12.º, não provado (conclusões 8.ª e 25.ª/27.ª da 3.ª ré), que permitiria anular a decisão nos termos do n.º 4 do citado artigo 712.º

3.2. Improcedendo em sintonia com o exposto as impugnações dirigidas pelas recorrentes à decisão da matéria de facto, o acórdão em recurso confirmou de plano o julgado, perfilhando - transcrevemos - o «enquadramento jurídico seguido na sentença uma vez que perante os princípios jurídicos consignados no artigo 610.º do Código Civil e factos provados, estão verificados nesta acção todos os requisitos de que depende a acção de impugnação».

Mas as recorrentes haviam também questionado a sentença neste nível de mérito do enquadramento jurídico dos factos provados, com fundamentos que a Relação igualmente rejeitou.

Por um lado, quanto à verificação dos requisitos da acção pauliana, contestados pela 3.ª ré nos termos das suas conclusões 33.ª/48.ª, que se deixam momentaneamente em suspenso visto terem sido integralmente reproduzidas nas conclusões 18.ª/35.ª da alegação da revista da mesma ré, como se constatará.

Por outro lado, no tocante a determinados aspectos técnico-processuais que convém desde já abordar.

3.3. O primeiro concernente à alegação da 1.ª e 2.ª rés (cfr. as conclusões XVIII e XIX ) de que a sentença constitui «ofensa de caso julgado já que julgou procedente o pedido principal mas com efeitos ao pedido secundário», observa o acórdão, contrapondo desde logo que, embora se tenha provado o preenchimento dos requisitos da simulação, esta era objecto do pedido subsidiário, e a acção procedeu apenas quanto ao pedido principal da impugnação pauliana, o que não configura qualquer ofensa de caso julgado. De resto, verificando-se simultaneamente os pressupostos da acção pauliana e da simulação, o tribunal não pode com este fundamento declarar oficiosamente a nulidade (2) .

O segundo respeita à omissão de pronúncia, reclamada pela 3.ª ré (conclusões 49.º/50.º) relativamente à «questão/pressuposto vertido na alínea c) do pedido principal» - isto é, que as rés agiram de má fé na celebração das compras e vendas, ambas posteriores ao crédito da autora, delas tendo resultado a impossibilidade de satisfação integral deste ou o seu agravamento.

E o terceiro à nulidade prevista na alínea e), segunda parte, do n.º 1 do artigo 668.º, igualmente arguida pela mesma ré (conclusões 51.ª/54.º), pelo facto de, peticionando a autora na alínea d) do pedido principal se declarasse que os imóveis ficavam no património da 2.ª e da 3.ª rés vinculados ao pagamento do crédito, podendo aí ser executados, ter a sentença ordenado ao invés que regressavam para o mesmo efeito ao património da 1.ª ré, assim condenando em objecto diverso do pedido, ou incorrendo em erro de julgamento por violação do artigo 616.º, n.º 1, do Código Civil.

Todavia, a Relação concluiu não se verificar também qualquer destes dois vícios.

A omissão de pronúncia, porque a decisão de procedência do pedido principal abrangeu implicitamente as suas alíneas a) a d) - as quais, observamos, autonomizavam os respectivos fundamentos. A condenação em objecto diverso do pedido ou o erro de julgamento, porquanto o pedido foi formulado de forma muito profusa, mas a sentença decidiu com o alcance permitido pelo artigo 610.º: a acção pauliana não visa extinguir os direitos de propriedade dos adquirentes, mas a possibilidade de o credor executar os bens do obrigado à restituição até satisfação do seu crédito, sentido em que sentença deve ser interpretada - tanto mais, consigne-se em aparte, que se trata de um efeito decorrente directamente da lei uma vez preenchidos os pressupostos da impugnação.

4. Da decisão dissentem as rés mediante as presentes revistas, sintetizando as respectivas alegações como segue, por ordem da sua apresentação.

4.1. A 3.ª ré reduz o conteúdo da alegação e suas 35/36 conclusões às três questões referenciadas no início, que assim enuncia:

«A) Os quesitos 33.° e 34.° da base instrutória contêm matéria de facto ou de direito?» - (conclusões 1.ª/5.ª, correspondentes às conclusões 1.ª/7.ª da apelação da mesma ré);

«B) Existe ou não contradição insanável entre o especificado em G) da especificação e as respostas aos quesitos 33.° e 34.° da base instrutória, conjugados com as respostas aos quesitos 7.°, 8.°, 9.°, 10.° e 11.° (provados) e quesito 12.° (não provado) e qual o critério de prevalência face a tal manifesta contradição?» - (conclusões 6.ª/17.ª, grosso modo paralelas às conclusões 8.ª/27.ª da sua apelação);

«C) No douto acórdão em crise, que manteve a decisão de 1.a instância, mostra-se adequada, quanto à recorrente, a subsunção dos factos provados ao direito aplicável?» - (conclusões 18.ª /35.ª, que reproduzem integralmente, como se notou, as conclusões 33.ª/48.ª da apelação (3).

4.2. A alegação da revista da 1.ª e 2.ª rés resume-se, por seu turno, em 21 conclusões que reproduzem na sua maior parte as da apelação, versando os seguintes temas, em larga medida afins da revista da 3.ª ré:

- deficiências de fundamentação das respostas aos quesitos (conclusões XI e XV );

- alteração da matéria de facto (conclusões II, III, VIII, IX, X, XII, XV, XIX );

- contrariedade e incompatibilidade entre as alíneas E) e G) da especificação e as respostas aos quesitos 33.º e 34.º (conclusões II, V, VII );

- formulação e apreciação dos pedidos principal e secundário, ofensa de caso julgado, nulidade do acórdão recorrido (conclusões I, VI, XVII, XVIII, XX, XXI ).

5. A autora recorrida contra-alega, pronunciando-se pela confirmação do acórdão sub iudicio.
III
Coligidos em conformidade com o exposto os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.

1. Pela ordem anteriormente seguida, considere-se antes de mais a revista da 3.ª ré, e as três questões aí colocadas.

1.1. A primeira é a de saber se os quesitos 33.º e 34.º contêm matéria de facto ou matéria de direito (4) (conclusões 1.ª/5.ª), dificuldade já suscitada em sede de apelação, como sabemos, que a Relação resolveu no primeiro sentido.

A recorrente persiste em sustentar a segunda alternativa, argumentando que os aludidos quesitos se limitam a reproduzir pressupostos de direito aludidos no artigo 240.º do Código Civil, em lugar dos factos que, «em silogismo lógico-dedutivo conduzissem a tal conclusão (simulação)». As respectivas respostas devem, pois, considerar-se não escritas (artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), sendo consequentemente insusceptíveis de fundamentar a decisão do pleito.

Observando a literalidade dos mencionados pontos do questionário, a arguição da recorrente não pode senão visar as expressões acordo (entre as rés no) intuito de enganar (os credores da 1.ª ré), utilizadas no quesito 33.º e do mesmo passo elementos constitutivos do citado preceito legal, bem como, porventura, as locuções (não) quis vender (nem) quiseram comprar vertidas no quesito 34.º em conexão com o elemento divergência entre a vontade e a declaração estruturante do mesmo normativo.

É, porém, sabido que os tipos legais são normalmente constituídos por segmentos, quer normativos, quer de natureza factual-descritiva. E entre estes últimos recortam-se elementos da realidade material e concreta - seres vivos ou inanimados, coisas, objectos da mais variada espécie -, mas também do mundo ideal ou imaterial, tais como acções, qualidades, estados, sentimentos, ideias e criações intelectuais ou artísticas, factores anímicos e volitivos, etc., que não deixam de reconduzir-se ao domínio dos factos pela mera circunstância da sua abstracta natureza.

Ora, as locuções sub iudicio, por um lado incluem os conceitos jurídicos vender e comprar, habitualmente usados na vida comum em acepção correspondente ao seu significado jurídico, podendo por isso, consoante é entendimento uniforme, figurar acessoriamente no questionário e ser objecto de prova.

Por outro lado, integram conteúdos de vontade - acordo, intuito de enganar, querer comprar ou vender - de natureza factual, conquanto abstracta, que lhes confere idêntica aptidão para serem incluídos no tema da prova.

A circunstância de tais conteúdos se oferecerem como elementos constitutivos do tipo legal cremos que não veda por si só a inclusão no questionário. Decerto, na delicada elaboração desta peça processual vai necessariamente implicado um maior ou menor apuramento técnico, todavia condicionado por sua vez ao esmero das alegações de facto que lhe servem de suporte.

Coisa diversa é que semelhantes elementos contenham matéria de direito. Ou matéria imbuída de um tal grau de abstracção conclusiva que possa tornar inadmissível submetê--los a prova directa.

Não é este o caso, a nosso ver, pesem os condicionalismos aludidos. Trata-se, pois, de matéria de facto, susceptível de ser provada directamente através de qualquer meio probatório.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões 1.ª/5.ª da alegação em apreço.

1.2. A segunda questão equacionada pela 3.ª ré reconduz-se à contradição entre a alínea G) da especificação e as respostas aos quesitos 33.º e 34.º, conjugadas com as respostas aos quesitos 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º (provados) e 12.º (não provado).

Aduz, por um lado, nesse sentido que através da alínea G) se encontra provada mediante escritura pública, documento autêntico com força probatória plena (artigo 371.º do Código Civil), a compra e venda dos dois prédios aludidos na referida alínea. E isto, pelos preços aludidos nas respostas aos quesitos 8.º e 9.º - tanto mais que resultou não provado o quesito 12.º, no qual se perguntava se os mesmos nunca tinham sido pagos -, passando inclusive a recorrente a exercer a sua actividade industrial no prédio/pavilhão em que a 1.ª ré exercia a sua (resposta ao quesito 7.º).

É, pois deficiente, obscura e contraditória com a alínea G) a resposta ao quesito 34.º, no sentido de que «nem a 1.ª ré quis vender o que havia vendido, nem a 3.ª ré quis comprar aquilo que havia comprado».

Considera, por outro lado, a recorrente não se ter feito prova alguma do acordo, entre ela e a 1.ª ré com o intuito de enganar os credores desta, dado como provado na resposta ao quesito 33.º Nenhum dos documentos juntos ao processo se refere a tal acordo, e as testemunhas ouvidas, aliás empregados da autora, não poderiam ter conhecimento do mesmo posto que apenas souberam das vendas posteriormente a estas.

De resto, a decisão sobre a aludida factualidade não se mostra devidamente fundamentada (artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), embora a Relação tenha concluído em contrário, assim «considerando implicitamente que a prova produzida (testemunhal) era eficaz para destruir a força probatória plena da escritura de compra e venda especificada em G) da especificação», abstendo-se ademais de anular a decisão de facto da 1.ª instância, por deficiência, obscuridade ou contraditoriedade nos termos do artigo 712.º, n.º 4.

Compete, todavia, ao Supremo, acrescenta em remate a recorrente, «exercer censura sobre o uso que a Relação tenha feito, ou não feito, dos poderes conferidos pelo artigo 712.º».

Tudo ponderado, propendemos a pensar que não assiste razão a 3.ª ré recorrente nos aspectos em que analisa a sua segunda questão.

Em primeiro lugar, nos termos do artigo 371.º do Código Civil, os documentos autênticos só fazem prova plena «dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora»; sendo certo que «os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do tribunal».

Nestas condições, a escritura de 9 de Junho de 1988 prova decerto plenamente que foram emitidas as respectivas declarações negociais de compra e venda dos dois prédios, mas não já que a essas declarações tenha presidido uma vontade congruente.

O tribunal não estava, por conseguinte, impedido de concluir, sem contradição, deficiência ou obscuridade, através de outros meios de prova, como foi o caso, que as aludidas declarações não correspondiam à vontade real dos contraentes - aspecto este, de resto, que nada tem a ver, salvo o devido respeito, com a interpretação das declarações negociais segundo os critérios normativos esmaltados nos artigos 236.º e segs. do Código Civil, ao invés do que sustenta reiteradamente a alegação da revista.

Trata-se, portanto, de situação não subsumível às hipóteses legais, delineadas no n.º 2 do artigo 722.º do Código de Processo Civil, em que ao Supremo é possível alterar a decisão das instâncias sobre a matéria de facto

Não é, aliás, exacta, em segundo lugar, a afirmação na generalidade de que o Supremo Tribunal de Justiça possa censurar o uso ou não uso que a Relação tenha feito dos poderes conferidos pelo artigo 712.º do aludido Código.

Constitui na verdade jurisprudência corrente que a competência de sindicabilidade do Supremo em tal domínio se restringe à verificação do respeito pelos pressupostos definidos neste artigo, não se tornando extensiva, em princípio (cfr. exactamente o citado n.º 2 do artigo 722.º), ao modo como esses poderes foram em concreto positivamente exercidos.

O mesmo se diga no tocante ao não uso, sendo a orientação pacífica deste Supremo Tribunal no sentido de estar subtraído à sua competência de apreciação o não exercício pela Relação dos poderes conferidos pelo artigo 712.º, salvo simetricamente quando segundo o mesmo normativo se imponha o uso dos mesmos (5) .

Significativamente, trata-se de entendimento hoje consagrado no n.º 6 do artigo 712.º, na medida em que veda o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação previstas no referido artigo (6) .

Improcedem também, consequentemente, as conclusões 6.ª a 17.ª da alegação da revista da 3.ª ré.

1.3. Resta a questão concernente aos pressupostos substantivos da impugnação, objectivada nas demais conclusões 18.ª a 35.ª

As instâncias julgaram verificados todos os requisitos da acção pauliana, mas a recorrente insurge-se contra a verificação de qualquer deles pelo que respeita ao acto em que interveio - a compra e venda, rememore-se, de 9 de Junho de 1988 [alínea G) da especificação; supra, II, 1.3.]

1.3.1. Em primeiro lugar, contestando que o crédito da autora «seja anterior ao acto», uma vez que, como «crédito litigioso», «só se consolidou», tornando-se «efectivo» e «exigível», mediante a sentença do Tribunal de Viana do Castelo, de 7 de Agosto de 1997, que condenou a 1.ª ré a solvê-lo à autora [alínea D) da especificação; supra, II, 1.2.].

Ora, sendo assim o crédito posterior ao acto impugnado, não se mostra, todavia, que este tenha sido «realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor» [artigo 610.º, alínea a), do Código Civil].

Não propendemos decididamente a perfilhar esta tese.

A anterioridade do crédito para efeitos da acção pauliana deve reportar-se ao tempo da constituição da relação obrigacional respectiva e não à data da tutela jurisdicional preconizada pela recorrente.

Consoante se advertia há pouco neste Supremo Tribunal (7) , trata-se de critério doutrinariamente sufragado nos nossos dias (8), e, aliás, correspondente à concepção tradicional em face do pretérito Código de Seabra, cujo artigo 1033, (9) consagrava a admissibilidade da acção pauliana a favor de credor anterior ao acto lesivo - e só nesse caso, não se admitindo então, segundo a tradição romanística, a impugnação a favor do credor posterior, inovatoriamente introduzida em 1967.

Por isso se escrevia, em comentário ao vetusto normativo, que a acção pauliana «não compete a qualquer credor, mas somente aos credores que o forem por virtude de acto ou contrato anterior ao acto fraudulento» (itálicos no original). Precisando-se, ademais, que a «anterioridade do crédito é regulada somente pela data em que foi contraída a respectiva obrigação» (itálicos nossos), sem necessidade de que, «ao tempo do acto fraudulento, já estivesse instaurada a acção ou execução para a cobrança do crédito» (10) ..

E na mesma linha se ponderava mais tarde em justificação da solução legal (frisado também agora): «não se compreenderia que garantissem o cumprimento de uma obrigação bens que, ao tempo da sua constituição, não figuravam já no património do devedor» (11) .

Pois bem. O crédito da autora, emergente de diversos fornecimentos de tijolo à 1.ª ré, entre 19 de Janeiro de 1987 e 2 de Janeiro de 1988 [alínea A) da especificação; supra, II, 1.1.], correspondia a um saldo da respectiva conta corrente no valor de 1 151 508$50 [alínea B); ibidem] que devia ter sido pago até 30 de Julho de 1987 [alínea C); supra II, 1.2.].

Por isso foi a 1.ª ré condenada dez anos volvidos, muito embora, em Viana do Castelo a liquidá-lo à autora com juros de mora. Mas a constituição do crédito ocorrera, portanto, em data anterior a Julho de 1987 e, consequentemente, antes da compra e venda impugnada, de 9 de Junho de 1988.

Verifica-se, pois, o requisito da anterioridade do crédito, nos termos da primeira parte da alínea a) do artigo 610.º, improcedendo, por consequência, as conclusões 18.ª a 22.ª adrede formuladas.

1.3.2. Assevera contudo a recorrente, em segundo lugar, não se encontrar também demonstrado o pressuposto da acção pauliana desenhado na alínea b) do mesmo artigo, ou seja, que a venda impugnada «tenha sido causa da impossibilidade do pagamento da totalidade da dívida ou pelo menos de parte da dívida, por carência de bens».

E isto porque, devendo atender-se à data do acto impugnado para determinar se dele resulta a impossibilidade de satisfação do crédito (12) , flui em contraponto de documentos juntos aos autos que à data da venda em apreço a 1.ª ré «possuía vários prédios rústicos e urbanos, situados em Amarante, Freixo de Baixo e Travanca, que até constavam do seu activo imobilizado que globalmente ascendia a 349 958 892$00».

Daí que na resposta ao quesito 11.º apenas se tenha dado como provado que a 1.ª ré «não possui [não se dizendo possuía] quaisquer bens imóveis e móveis no seu património».

Acresce, por outro lado, segundo a recorrente, que do acto resultou a entrada no património da 1.ª ré, «de um equivalente económico do valor que dele saiu, ou seja o preço da venda».

Tais as razões pelas quais deveria neste plano improceder a impugnação.

A questão posta relaciona-se estreitamente com a problemática do ónus da prova na acção pauliana, envolvendo o específico normativo do artigo 611.º que a recorrente olvidou por completo na sua alegação:
«Artigo 611.º
(Prova)
Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.»
Observam a este respeito os autores (13) que o artigo 611.º se afasta de algum modo do regime geral consagrado nos artigos 342.º e segs., conforme o qual em princípio «numa acção de impugnação devia caber inteiramente ao autor fazer a prova dos requisitos necessários à procedência do pedido (cfr. art. 342.º) e, portanto, devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida e da anterioridade do crédito, como da diminuição da garantia patrimonial nos termos da alínea b) do artigo anterior», ou seja, do artigo 610.º

Só que, «por razões compreensíveis - dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens - o artigo atribui a este o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas.» (14)

Quer dizer. Nesta ratio do artigo 611.º o legislador mostrou-se sensível à dificuldade em que nos termos gerais do artigo 342.º, n.º 1, o credor ficaria colocado pela prova do facto negativo da inexistência de bens do devedor, optando por incumbir a este, de resto melhor posicionado, o ónus de provar o correspondente facto positivo.

Um desvio ao regime geral do ónus da prova, aliás, aí mesmo ressalvado, como observa a 1.ª instância (artigo 344.º), e, permita-se o comentário, no legítimo uso de faculdade vocacional do plano político-legislativo, vedada em princípio à actividade do intérprete e aplicador do direito (15) ..

À luz dessa motivação, a conjugação dos dois preceitos legais conduz à conclusão de que a alínea b) do artigo 610.º não tipifica propriamente factos no plano considerado implicando que um semelhante ónus probatório impenda sobre o credor, antes configurando um tipo legal que deve relacionar-se em termos hábeis com o artigo 611.º, numa síntese normativa susceptível de reflectir os resultados do funcionamento dos ónus da prova de ambas as partes entrelaçados neste último preceito (16).

Assim, provando por hipótese o credor o montante da dívida, ou dívidas, e não logrando o legítimo contraditor provar, por seu turno, a titularidade de bens penhoráveis de igual ou maior valor na esfera do obrigado, segue-se que o cotejo entre os dois factores traduzirá normalmente a verificação do requisito da alínea b) do artigo 610.º - sendo a inversa também verdadeira (17) ..

E no conspecto esboçado, a tese que flui da alegação da recorrente, segundo a qual incumbiria irrestritamente à autora o ónus da prova desse requisito, não traduz, salvo o devido respeito, uma adequada articulação interpretativa dos normativos em apreço, posto que, dependendo a impossibilidade de satisfação integral do crédito, num dos seus vectores, da inexistência de bens do devedor, a solução redundaria afinal em inverter sobre o credor a prova do facto negativo de que o artigo 611.º pretendera libertá-lo.

Posto isto, encontrando-se assente o crédito da autora sobre a 1.ª ré, no capital de 1 151 508$50 e juros fixados na sentença do Tribunal de Viana do Castelo [alíneas B) e D) da especificação], competia à 1.ª e 3.ª rés, nos termos incontornáveis do artigo 611.º, a prova da existência de bens penhoráveis de igual ou maior valor, que permitiria concluir pela possibilidade de a autora obter a satisfação integral do seu crédito, com a consequente improcedência da acção por falta do requisito da alínea b) do artigo 610.º

Não lograram, todavia, a 1.ª e 3.ª rés provar a existência de bens nessas condições.

Embora com tal intuito tenham articulado que «à data da realização dos actos em questão a 1.ª ré era titular de muito equipamento e de diversos outros imóveis de valor de muitos milhares de contos, sem quaisquer ónus» (cfr. o artigo 177.º da contestação da 1.ª ré, a fls. 96 verso), o respectivo quesito 19.º, assim exactamente formulado, foi considerado não provado. E a mesma resposta negativa recebeu o quesito 20.º, extraído também do artigo 178.º da contestação da 1.ª ré, assim concebido: «Ainda hoje a ré é proprietária de imóveis de valor muito superior ao hipotético crédito da autora?»

Resultou ademais positivamente provado através do quesito 11.º que a «1.ª ré não possui quaisquer bens imóveis e móveis no seu património».

Contrapõe a recorrente que deste quesito resultou apenas provado que a 1.ª ré não possui, em lugar de possuía, bens de qualquer sorte, quando a data relevante para a verificação do requisito da alínea b) do artigo 610.º é a da compra e venda impugnada.

Seja. Na ponderação, efectivamente, do activo patrimonial do devedor, perspectivando a verificação desse requisito, assume a data do acto impugnado valor referencial no sentido de que a impossibilidade ou o agravamento referidos naquela alínea devem, como aí se diz, resultar do acto e não de quaisquer outras circunstâncias.

No entanto, o desiderato mostra-se nesta medida preenchido (18)., uma vez que, além dos dois imóveis alienados, as rés não conseguiram provar a existência de outros bens penhoráveis - inclusive com referência à data da compra e venda, assim o vimos - sendo certo, por outro lado, que a não terem sido aqueles objecto da alienação a que concerne a presente revista o seu valor era mais que suficiente para a satisfação do crédito da autora.

Debalde se argumentará, como a recorrente, com o ingresso do preço da venda no património da 1.ª ré.

Pondera efectivamente a doutrina em torno da alínea b) do artigo 610.º:

«Em regra, a fórmula legal reconduzir-se-á ao critério de o acto produzir ou agravar a situação patrimonial deficitária do devedor. Concebem-se, todavia, hipóteses em que essa coincidência não se verifique. Assim, quando o devedor continue solvente (-), mas o credor não possa de facto obter a satisfação do seu crédito, maxime, dada a impossibilidade ou dificuldade prática de executar os restantes bens do devedor (ex.: o devedor vende um bem pelo justo preço e oculta a importância recebida)» (19).

Numa palavra, a exigência postulada na citada alínea b) reduz-se à «simples impossibilidade prática», «de facto», «real, efectiva», de satisfação integral do crédito (20) ..

O que se compreende, como no exemplo apontado, porque o dinheiro é um bem facilmente mobilizável e sonegável à acção dos credores.

Daí que, na perspectiva do recebimento do preço da alienação impugnada, não é só por isso que pode excluir-se a verificação do requisito em causa.

Tanto mais que se está ainda no domínio do ónus da prova impendente sobre a recorrente nos termos do artigo 611.º, o qual resultou incumprido outrossim quanto à existência desse valor penhorável. Inclusive na medida em que, havendo a vendedora declarado nas escrituras ter recebido o preço das alienações (cfr. fls. 14 verso e 19, respectivamente), a força probatória plena desses documentos não se estende ao próprio recebimento efectivo do preço, limitando-se ao mero facto da emissão das declarações, qualquer que seja a sua veracidade.

Improperem igualmente por todo o exposto as conclusões 23.ª a 26.ª da alegação da presente revista.

1.3.3. Por fim, pretende ainda a recorrente que falece o elemento subjectivo da má fé indispensável ao sucesso de uma acção pauliana de impugnação de acto oneroso, conforme o artigo 612.º

E isto, em suma, por não se ter provado quanto a ela «qualquer intuito de prejudicar a autora ou os credores da 1.ª ré» - a resposta ao quesito 33.º, aduz, apenas «fala em enganar» -, ou sequer «a consciência de lhes causar prejuízos».

A sentença considerou neste plano que «as compras e vendas foram realizadas dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do credor» (supra, II, 2.), num «enquadramento jurídico» perfilhado, como se viu, pelo acórdão sub iudicio (supra, II, 3.2.).

E nesse sentido se provou, desde logo, em quanto à presente revista concerne (supra, II, 1.), que «a 3.ª ré tinha conhecimento da situação económica e financeira da 1.ª ré» (resposta ao quesito 10.º), aliás deficitária, como se referiu (quesitos 1.º e 2.º).

Mas, sobretudo, que «os negócios aludidos nas alíneas E) e G) da especificação resultaram de acordo entre a primeira, segunda e terceira rés, com o intuito de enganar os credores da 1.ª ré».

E o colectivo deixou a propósito registada, na motivação da decisão de facto (fls. 739), a convicção probatória de que «o pretendido com a venda dos prédios, foi retirar do património da primeira ré estes bens para impedir que fossem utilizados para a satisfação dos credores da primeira ré».

Tais os elementos factuais que conduziram as instâncias a concluir pelo dolo das rés.

Em todo o caso, a denominada «fraude pré-ordenada» na acepção da alínea a) do artigo 610.º só constitui requisito da acção pauliana sendo o crédito posterior ao acto impugnado. Tratando-se de crédito anterior, como se mostrou ser o nosso caso, basta à procedência da impugnação a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor (artigo 612.º, n.os 1, primeira parte, e 2).

Ora, se não o dolo, ao menos um tal elemento de cognoscibilidade, pela 1.ª e 3.ª rés, vai se bem se pensa necessariamente pressuposto na aludida matéria de facto.

A recorrente considera insuficiente que através do quesito 33.º se tenha provado tão-somente o intuito de enganar.

Deve, porém, notar-se que não se tratou de mero intuito não sério, com propósitos lúdicos ou jocosos, tendo quiçá como destinatários quaisquer terceiros, como quer que fossem os interesses destes.

As rés conluiaram-se, bem ao invés, foi para enganarem os credores da 1.ª ré, ou seja, aqueles sujeitos jurídicos, precisamente, tal como a autora, aos quais a ré devia dinheiro, e que assim ficavam, por conseguinte, impedidos de se pagarem, como frisou o colectivo, pelas forças dos bens aparentemente alheados, com o prejuízo inerente.

Carecem nos termos expostos de fundamento plausível, por seu turno, as conclusões 27.ª a 32.ª da alegação da recorrente, respeitando as conclusões 33.ª a 36.ª a aspectos já anteriormente apreciados.

2. Improcedendo a presente revista, nenhuma dúvida se suscitará neste momento quanto aos efeitos da procedência da acção sobre a esfera da recorrente, aspecto como sabemos focado na sentença em termos controversos, que a Relação teve já o ensejo de clarificar.

Com efeito, o êxito da impugnação pauliana no tocante especificamente à compra e venda titulada pela escritura de 9 de Junho de 1988 [alínea G) da especificação] não implica a restituição dos dois prédios à titularidade da alienante, continuando os mesmos no património da 3.ª ré, onde respondem pelo crédito da autora (artigo 616.º, n.º 1, do Código Civil)

3. É, pois, oportuno volver a atenção para a revista da 1.ª e 2.ª rés.

3.1. Já, todavia, se observou que as 21 conclusões em que as recorrentes resumem a alegação decalcam na sua maior parte as da respectiva apelação, substancialmente apreciadas pela Relação, versando temas em larga medida afins também da apelação e da revista da 3.ª ré sobre os quais nos pronunciámos extensivamente há instantes, em termos mutatis mutandis aplicáveis a este outro recurso.

É o caso das questões de fundamentação (cfr., as conclusões XI e XV ), alteração de respostas a quesitos (conclusões II, III, VIII, IX, X, XII, XV, XIX ) e incompatibilidades no seio da matéria de facto provada (conclusões II, V, VI, VII ), onde relevam nomeadamente os problemas da sindicabilidade do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil e da força probatória das escrituras aludidas nas alíneas E) e G) da especificação na perspectiva da resposta ao quesito 34.º, acima objecto de apreciação para que se remete (cfr. designadamente supra, III, 1.2.).

Num único dos pontos neste quadro aduzidos, aliás decisivo da sorte da revista, se deve reconhecer razão às recorrentes.

Antes de o abordar, vamos contudo aludir ainda a determinados aspectos específicos da sua alegação, que de algum modo a singularizam face à argumentação da 3.ª ré.

3.2. Primo, insurgem-se as 1.ª e 2ª rés recorrentes contra a forma como foi equacionada a subsidiariedade entre os pedidos, formulando-se a título principal o de impugnação, e a título subsidiário o de nulidade por simulação, quando a relação correcta e adequada seria a inversa (conclusão I ).

Desde logo, porém, a formulação adoptada mostra-se conforme aos requisitos do artigo 469.º do Código de Processo Civil e suas conexões normativas.

E a relação de subsidiariedade concretamente concebida não deixa de se justificar por razões lógicas. A impugnação pauliana aproveita apenas ao credor requerente, com exclusão dos demais credores daquele devedor (artigo 616.º, n.os 1 e 4, do Código Civil), podendo consequentemente representar um prius em relação à declaração de nulidade, que redunda, como se sabe, em benefício de todos os credores (artigos 289.º, n.º 1, e 605.º, n.º 2).

Eis assim que a subsidiariedade entre os pedidos, tal como foi equacionada pela autora, não se reduz a uma conexão meramente artificiosa - doutrinariamente reputada insuficiente para justificar esta forma de cumulação (21)-, antes revestindo real conteúdo jurídico--económico.

Em segundo lugar, retomam as recorrentes a questão da inclusão de matéria de direito nas respostas aos quesitos 33.º e 34.º em conexão com as alíneas E) e G) da especificação (supra, II, 3.1.), na seguinte variante.

Os artigos 16.º e 30.º da petição articulam que a 1.ª ré vendeu os imóveis às restantes rés, matéria de direito não obstante incluída nessas alíneas que por si só impede o conhecimento do pedido subsidiário. Com efeito, «se se dá como provado que a 1.ª ré vendeu os prédios em questão, como efectivamente vendeu», «não se pode, nem poderá, apreciar um pedido que vise a declaração pelo tribunal de que a 1.ª ré afinal não vendeu».

Salvo o devido respeito, esta argumentação carece de todo e qualquer sentido plausível.

Como se disse noutro passo do presente acórdão (supra III, 1.1 e 1.2.), as escrituras aludidas nas alíneas E) e G) da especificação não provam matéria de direito, mas as declarações negociais de vender e comprar, enquanto a resposta ao quesito 34.º, nomeadamente, é no sentido de não ter sido essa a vontade real das partes.

Não se vê, por conseguinte, que tais factos possam impedir a apreciação do pedido subsidiário.

Uma terceira especialidade da revista das recorrentes é a de que a sentença julgou a acção procedente quanto ao pedido principal, mas com os efeitos do pedido subsidiário (conclusão XVIII ), na medida em que determinou a restituição dos prédios ao património da 1.ª ré, para aí serem executados na medida do interesse da autora.

Sendo este, todavia, um efeito próprio da declaração de nulidade, mas não da acção pauliana, daí que o acórdão recorrido, confirmando a sentença, tenha incorrido em nulidade, ao que parece por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (conclusão XX ).

Facilmente se reconhecerá nesta arguição das 1.ª e 2.ª rés a questão colocada pela 3.ª ré na sua apelação sob a veste da alínea e) do citado normativo, proporcionando à Relação o ensejo de corrigir interpretativamente o julgado da 1.ª instância no aspecto em apreço (cfr. supra, II, 3.3., in fine).

Ficou nesse sentido claro, se bem entendemos, não haver lugar à restituição dos imóveis ao património da 1.ª ré devedora, como parecia fluir da sentença, mas às consequências configuradas no n.º 1 do artigo 616.º

O aresto da Relação do Porto em revista não enferma, por conseguinte, do vício apontado.

Consideram ademais as recorrentes que a sentença, ao declarar que a autora é titular de um crédito sobre a 1.ª ré, de pelo menos 726 111$00, e juros, «equivale a uma sentença de condenação», declarando de novo o crédito nestes autos, em ofensa do caso julgado formado pela sentença do Tribunal de Viana do Castelo onde foi reconhecido, violação que a Relação deixou de sancionar (conclusão XVIII ).

Sem esquecer que o acórdão recorrido apreciou, indeferindo-a, a ofensa do caso julgado numa outra óptica, como vimos (supra, II, 3.3.), as recorrentes têm razão no tocante ao circunstancialismo que descrevem, mas não quanto a sua racionalização.

Com efeito, deu-se como provado na presente acção, mercê da decisão condenatória do Tribunal de Viana do Castelo, de 7 de Agosto de 1997, o crédito da autora sobre a 1.ª ré, no valor de 1 151 508$50 acrescido dos juros legais [alíneas B), C) e D) da especificação].

A própria sentença é a primeira a acolher estes factos, embora refira perturbadoramente que o crédito «ascende, pelo menos ao montante de 726 111$00» e juros, quiçá pela circunstância de ter sido esse o quantitativo aceite pelas 1ª ré na contestação da acção de Viana do Castelo, como se articula no artigo 8.º da petição e na alínea a) do pedido, em momento ainda anterior à condenação proferida nesse pleito (supra, fls. 51 e verso). O que de modo algum, portanto, constitui justificação quando o valor relevante é o primeiro.

Em todo o caso isso não significa, evidentemente, que o crédito tenha sido de novo apreciado, mas que apenas se contabilizou a sua verificação como requisito da acção pauliana, sem qualquer afronta ao caso julgado da sentença do Tribunal de Viana do Castelo.

Rematando a alegação, questionam por fim as recorrentes que o crédito da autora compreenda também os respectivos juros, argumentando, por um lado, não existir qualquer obrigação contratual entre a 2.ª ré e a autora, e, por outro, que à data dos negócios o crédito era de capital.

A dúvida não se afigura legítima.

Quanto ao primeiro aspecto, a verdade é que, procedente a acção pauliana - um dos meios de conservação da garantia patrimonial postos à disposição do credor no Capítulo V do Livro das Obrigações do Código -, o bem alienado não responde, no património da 2.ª ré, por qualquer obrigação desta para com a autora, mas tão-somente pelo crédito da autora sobre a 1.ª ré.

Em relação ao segundo argumento, a observação não traduz toda a realidade relevante.

Provou-se que o crédito de 1 151 508$50 é anterior à data de qualquer dos negócios impugnados, tanto mais que devia ter sido pago até 30 de Julho de 1987. Por falta de pagamento foi o mesmo objecto de condenação, com o acréscimo dos juros de mora legais, mediante sentença do Tribunal de Viana do Castelo, de 7 de Julho de 1997.

E foi esse o crédito alegado e provado na presente acção, compreendendo o capital e a obrigação acessória dos juros de mora devidos [artigos 4.º a 8.º do petitório; alíneas B), C) e D) da especificação].

Improcedem também, nos termos expostos, todas as específicas questões desta revista que vêm de se enunciar.

3.3. Considere-se então o aspecto das questões comuns, por assim dizer, à revista da 3.ª ré, que há pouco se deixou pendente.

Alegam as recorrentes (cfr., v. g., as conclusões III, X, XIV ) que os negócios impugnados não foram realizados na mesma data, sendo a venda à 2.ª ré de 8 de Fevereiro de 1988, e a venda à 3.ª ré de 9 de Junho seguinte. Em tais condições, quando da primeira compra e venda existiam ainda na titularidade da 1.ª ré os dois imóveis objecto da segunda - de resto tão valiosos que foram alienados através desta por muitos milhares de contos -, facto contraditório com a resposta ao quesito 11.º pelo tocante ao primeiro negócio impugnado na presente acção.

Crê-se, tudo ponderado, que assiste no aspecto em causa razão às recorrentes.
Resulta, com efeito, plenamente provado da conjugação das duas escrituras que esses dois imóveis só vieram a ser alienados mediante a segunda venda, encontrando-se ainda no património da 1.ª ré anteriormente a esta, o que, em relação à primeira venda, contradiz de algum modo a resposta ao quesito 11.º - «a 1.ª ré não possui quaisquer bens imóveis e móveis no seu património» - e sobretudo a resposta negativa à interrogação, recorde-se, do quesito 19.º - «à data da realização dos actos em questão a 1ª ré era titular de muito equipamento e de diversos outros imóveis de valor de muitos milhares de contos, sem quaisquer ónus?»

Ora, a contradição apontada inviabiliza a decisão jurídica do pleito relativamente à compra e venda celebrada com a 2.ª ré em 8 de Fevereiro de 1988.

Desde logo, na medida em que se reflecte sobre a existência ou inexistência, nessa data, de bens penhoráveis da 1.ª ré de igual ou maior valor que o crédito (artigo 611.º do Código Civil) e, portanto, sobre a verificação ou não do requisito previsto na alínea b) do artigo 610.º do mesmo corpo de leis, exclusivamente no tocante, repete-se, ao aludido negócio jurídico.

De outro lado porque, estando-se aí no domínio ainda do pedido principal, de modo nenhum se poderia passar ao conhecimento do pedido subsidiário de declaração de nulidade do mesmo negócio por simulação absoluta, antes de a contradição apontada ser removida, no sentido eventualmente da não verificação do aludido requisito, e da consequente improcedência da pauliana quanto à compra e venda sub iudicio a que se refere a alínea E) da especificação.
Em conformidade, por conseguinte, com o disposto nos artigos 729.º, n.º 3, e 730.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ordena-se a baixa dos autos à Relação do Porto a fim de, pelos mesmos Ex.mos Desembargadores, se possível, ser a causa novamente julgada no aspecto apontado, segundo o regime jurídico que vem de ser definido.

Escusado seria frisar, no conspecto esboçado, que a repetição do julgamento nos limitados termos referidos deixa estritamente intocada a decisão de procedência da acção pauliana, acima proferida em confirmação do acórdão recorrido na revista da 3.ª ré, quanto à venda em que esta interveio, a 9 de Junho de 1988.

4. Por todo o exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista da 3.ª ré, D, Sociedade Técnica de Madeiras, S.A., confirmando o acórdão recorrido, e conceder parcial provimento à revista da 1.ª e 2.ª rés, "B", Lda., e Sociedade C, Lda., com a baixa do processo nesta parte por força dos artigos 729.º, n.º 3, e 730.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Custas da primeira revista pela recorrente D, e da segunda pelo vencido a final (artigo 446.º do mesmo Código).

Lisboa, 19 de Outubro de 2004
Lucas Coelho (Relator)
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
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(1) A petição nessa data apresentada foi, todavia, indeferida in limine [artigo 474.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na versão anterior á reforma de 1995/96], por ineptidão emergente de contradição entre o pedido e a causa de pedir [artigo 193.º, n.os 1 e 2, alínea a)]. Na verdade, consoante se lê no despacho liminar (fls. 46/48) - interessa desde já registá-lo na perspectiva das alegações das revistas, como adiante se constatará -, a causa de pedir é constituída pelos factos integradores da acção pauliana, consistindo o pedido na declaração de nulidade dos negócios de alienação celebrados pelo devedor de modo que os imóveis vendidos regressem ao património deste. É certo que a nulidade dos actos não obsta à acção pauliana (artigo 615.º, n.º 1, do Código Civil), à qual estão, por conseguinte, sujeitos, quer os actos válidos, que os actos nulos; mas os efeitos da acção de nulidade, aproveitando a todos os credores (artigo 605.º, n.º 1), e os da pauliana, que redundam em benefício exclusivo do credor demandante (artigo 616.º, n.º 4), são muito diferentes. Sendo o acto nulo, o credor pode em todo o caso usar, seja de uma, seja de outra acção. E não lhe está vedado, inclusive, cumular as duas pretensões na mesma acção, prossegue o despacho, desde que compatibilize os pedidos em forma subsidiária (artigo 469.º do Código de Processo Civil) - não tendo na realidade a petição inepta sido assim estruturada. Aliás, o pedido da acção pauliana tem que se enquadrar no artigo 616.º do Código Civil, permanecendo o bem na titularidade do adquirente, onde o credor pode executá-lo na medida do seu interesse, sem regressar ao património do alienante. Por fim, a pretensão da autora alicerçava-se também na simulação, com a qual o pedido era compatível. Mas em lado algum «se afirmou - pondera ainda o despacho - que a 1.ª ré não tenha querido vender e que as 2.ª e 3.ª rés não tenham querido comprar», sendo certo que a simples simulação do preço não torna nulo o negócio. Resta anotar que a autora apresentou nova petição ao abrigo do artigo 476.º, n.º 1, do Código de Processo Civil em 12 de Outubro de 1989 (fls. 50/61), observando as injunções do despacho de indeferimento: formulação do pedido adequado à pauliana; equação subsidiária da nulidade por simulação e alegação dos factos integradores da causa de pedir concernente a esta (artigos 48.º/53.º do petitório).
(2) Cita-se neste sentido o acórdão do Supremo, de 14 de Janeiro de 1997, «Colectânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça», Ano IV (1997), Tomo 1, pág. 52
(3) As conclusões 28.º/32.ª da apelação, concernentes à fundamentação dos quesitos 33.º e 34.º, tal como as conclusões 49.º/54.º, relativas às nulidades há pouco referidas, não foram retomadas na revista..
(4) Os quesitos, a que o colectivo respondeu provado, são do seguinte teor: 33.º «Os negócios aludidos nas alíneas E) e G) da especificação, resultaram de acordo entre a primeira, segunda e terceira rés, com o intuito de enganar os credores da 1.ª ré?»; 34.º «A primeira ré não quis vender tais prédios, nem a segunda e terceira rés os quiseram comprar?»
(5) Uma hipótese desta espécie foi recentemente abordada no acórdão, de 26 de Junho de 2003, proferido na revista n.º 1898/03, da 2.ª Secção
(6) Aditado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro, em vigor 30 dias após a data de publicação (artigo 9.º), cujo artigo 8.º, n.º 2, estipulou a sua inaplicabilidade aos processos pendentes, como é o caso do presente. Acerca de todo o exposto, cfr. por último, com mais elucidativa recensão doutrinária e jurisprudencial, o acórdão, de 13 de Novembro de 2003, na revista n.º 557/03, 2.ª Secção, para que se remete.
(7) Acórdão, de 9 de Outubro de 2003, na revista n. 327/03, 2.ª Secção
(8) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, (Reimpressão da 7.ª edição - 1997), Almedina, Coimbra, Julho de 2001, pág. 450, notas 1 e 2, citando também Vaz Serra; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição, revista e aumentada, Almedina, Coimbra, Outubro de 2001, págs. 800 e 801 e nota 3; Rodrigues Bastos, Das Obrigações em Geral, III, 1972, págs. 224/225
(9) º Do seguinte teor:«O acto ou contrato verdadeiro, mas celebrado pelo devedor em prejuízo do seu credor, pode ser rescindido a requerimento do mesmo credor, se o crédito for anterior ao dito acto ou contrato, e deste resultar insolvência do devedor.»
(10) Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil Português, vol. V, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1932, págs. 787/788
(11) Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, segundo as lições do Prof. Doutor Fernando Andrade Pires de Lima, Coimbra Editora, Limitada, 1954, pág. 306.
(12) Cita a recorrente neste sentido o acórdão do Supremo, de 19 de Dezembro de 1972, «Boletim do Ministério da Justiça», n.º 222 (Janeiro de 1973), págs. 386/291.
(13) Pires de lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição revista e actualizada com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Lda., Coimbra, 1982, anotação ao artigo 611.º, pág. 596, que por instantes se seguem; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, Outubro de 2001,págs. 802/803 e nota 1 - subsídios doutrinários colhidos no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de Fevereiro de 2004, agravo n.º 1373/03, 2.ª Secção, na base de dados, www.stj.pt.
(14) Advertem, aliás, os anotadores que estamos a acompanhar «que o artigo 611.º impõe ao credor o ónus de provar o montante das dívidas - e não apenas da dívida de que ele é titular activo - o que está em consonância com o requisito fixado na alínea b) do artigo anterior». No sentido, todavia, de que ao credor apenas compete provar o montante da sua própria dívida se pronunciou este Supremo no acórdão, de 25 de Novembro de 1998, «Colectânea de Jurisprudência», Ano VI (1998), Tomo 3, págs. 134 e seguintes. O ponto afigura-se em todo o caso relativamente despiciendo quanto ao objecto do presente processo, na medida em que nem sequer se provou, como se verá, a titularidade pela 1.ª ré de bens penhoráveis de valor igual ou superior à dívida para com a autora, quanto mais de qualquer outro passivo.
(15) Artur Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, (4.º Volume), coligidas e publicadas por J. Simões Patrício/J. Formosinho Sanches/Jorge Ponce de Leão e revistas pelo Professor, Atlântida, Coimbra, s/d, pág. 122, e acórdãos deste Supremo, de 22 de Janeiro de 2004, na revista n.º 1815/03, da 2.ª Secção, e de 12 de Fevereiro de 2004, no agravo n.º 1373/03, citado supra, nota 13
(16) Neste sentido, o acórdão, de 12 de Fevereiro de 2004, referenciado na nota anterior, e também ao que se afigura o aludido acórdão, de 25 de Novembro de 1998, naquele citado (ponto III, 2.1. e sua nota 10); em sintonia, cfr. ainda, precedentemente, o acórdão, de 29 de Setembro de 1993, «Colectânea» citada, Ano I (1993), Tomo 3, págs. 35 e seguintes.
(17) Cfr. nomeadamente os dois últimos arestos citados na nota antecedente
(18) E preenchido pelo menos na óptica do mero agravamento na satisfação integral do crédito, quando se considere o elemento de convicção do colectivo, constante da fundamentação da decisão de facto, segundo o qual (fls. 739) «também nos documentos juntos se vê que à data [da venda dos prédios] os bens que a primeira ré ainda possuía tinham sido penhorados pelas execuções fiscais»
(19) Almeida Costa, op. cit., pág. 802
(20) Pires de lima/Antunes Varela, op. cit., pág. 595; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, pág. 448
(21) Cfr. sobre o tema Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, I, coligidas por Abílio Neto e revistas pelo Professor, Livraria Almedina, Coimbra, 1967, págs. 271/273