Processo 34/13.5TELSB.L1.S1. 5ª Secção (STJ).
Revista Excepcional (art. 672º/1-a) e b) do Código de Processo Civil).
Juiz Conselheiro Relator- Agostinho Torres
Juízes adjuntos- António Latas e José Eduardo Sapateiro.
Tribunal Reclamado- STJ-5ª Secção- Acórdão de 9 de Março de 2023
Reclamantes: “J..., Lda.”; AA; BB.
*
ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NA 5ª SECÇÃO CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I-Relatório
1.1. Por Acórdão de 9 de Março desta 5ª Secção criminal do STJ foi decidido rejeitar o recurso conjunto de revista excepcional cível, interposto pelos arguidos AA, CC e J..., FILHOS, LDª do Ac do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de setembro de 2022 .
1.2. Inconformados com esta última decisão, vieram agora reclamar para a conferência, pedindo:
a) Ser reconhecida e declarada a nulidade do acórdão reclamado, por omissão de pronúncia e, em consequência, conhecer-se da nulidade insanável arguida pelos Recorrentes;
b) Declarar a verificação de nulidade insanável por violação do juiz natural e determinar a anulação do ato de distribuição visado e do acórdão proferido, em conferência, a 09.03.2023, pelo coletivo de Juízes decorrente da distribuição errónea, ordenando nova distribuição;
Subsidiariamente,
Ser reconhecida e declarada a nulidade do acórdão
reclamado, por omissão de pronúncia e, em consequência,
conhecer e declarar a verificação da inconstitucionalidade
invocada pelos Recorrentes no seu recurso de revista;
Cumulativamente com o pedido formulado em c),
d) Reformar o acórdão reclamado, eliminando as referências a
qualquer renúncia tácita ao direito de recorrer operada pelos
Recorrentes;
Cumulativamente com qualquer um dos pedidos,
e) Reconhecer e declarar a inconstitucionalidade do artigo 672.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 4.º do CPP, na interpretação de que a interposição de recurso de revista excecional com fundamento num alegado erro de julgamento
decorrente de uma questão de direito invocada pelos
recorrentes apenas em sede desse mesmo recurso, não é admissível, sob o argumento de que tal questão de direito representa uma questão sobre a qual o Tribunal a quo não se pronunciou e, em face disso, não há uma “decisão” objeto de recurso, uma vez que tal entendimento representa uma desproporcional e excessiva restrição do direito ao recurso dos Recorrentes, resultando na concomitante violação do direito ao recurso enquanto garantia do processo criminal, ínsito no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e, em consequência, revogar o acórdão reclamado, proferindo-se nova decisão que admita o recurso de revista interposto pelos Recorrentes.”
1.3. Em parecer sobre a dita reclamação, Ministério Público teve a seguinte posição:
“Em síntese: Rejeitado o recurso, o Tribunal “a quo” não tem de proferir pronúncia sobre nada que não respeite ao fundamento da rejeição do recurso, salvo sobre vício insanável de que padeça a própria instância recursiva ” (cfr o art. 379º/1-c) do Código de Processo Penal);
A entrada em vigor da alteração operada à disposição do art. 213º do Código de Processo Civil pela L-55/2021, de 13/08, ocorrerá, apenas, com a vigência da Portª 86/2023, de 27/03, que a regulamentou;
O Acórdão “sub judice” não carece de reforma, pois que não padece de lapso manifesto (cfr, o art. 616º/2 do Código de Processo Civil);
A decisão de rejeição do recurso implica a extinção do poder jurisdicional do Tribunal “ad quem” nessa matéria. ” (cfr, o art. 613º do Código de Processo Civil).
O Acórdão “sub judice”, de rejeição do recurso, não padece de
“omissão de pronúncia” ou de “manifesto lapso”, nem é susceptível de revogação pelo Tribunal “ad quem”, motivo por que se p. que seja indeferido o requerido”
1.4. Designou-se conferência para apreciação da reclamação, com prévia aposição de vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação
2.1- Pretendem os reclamantes, agora por ordem de precedência:
A) Verem declarada a verificação de nulidade insanável por violação do juiz natural e a anulação do ato de distribuição visado e do acórdão proferido, em conferência, a 09.03.2023, pelo coletivo de Juízes decorrente da distribuição alegadamente errónea, ordenando nova distribuição;
B) Ser reconhecida e declarada a nulidade do acórdão reclamado, por omissão de pronúncia e, em consequência, conhecer e declarar-se a verificação da inconstitucionalidade invocada pelos Recorrentes no seu recurso de revista;
C) Reformar o acórdão reclamado, eliminando as referências a qualquer renúncia tácita ao direito de recorrer operada pelos Recorrentes;
D) Reconhecer e declarar a inconstitucionalidade do artigo 672.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 4.º do CPP, na interpretação de que a interposição de recurso de revista excecional com fundamento num alegado erro de julgamento decorrente de uma questão de direito invocada pelos
recorrentes apenas em sede desse mesmo recurso, não é admissível, sob o argumento de que tal questão de direito representa uma questão sobre a qual o Tribunal a quo não se pronunciou e, em face disso, não há uma “decisão” objeto de recurso, uma vez que tal entendimento representa uma desproporcional e excessiva restrição do direito ao recurso dos Recorrentes, resultando na concomitante violação do direito ao recurso enquanto garantia do processo criminal, ínsito no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e, em consequência, revogar o acórdão reclamado, proferindo-se nova decisão que admita o recurso de revista interposto pelos Recorrentes.”
2.2 – Conhecendo e decidindo das 4 questões enunciadas
1ª questão- [Nulidade insanável por violação do juiz natural -anulação do ato de distribuição visado e do acórdão proferido, em conferência, a 09.03.2023, pelo coletivo de Juízes decorrente da distribuição errónea, ordenando-se nova distribuição]
1ª1.- Invocando o artigo 119.º, alínea a), do CPP, o artigo 213.º do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, com a redação dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, que introduziu mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais e o artigo 204.º, n.º 4, alínea c), do CPC vieram arguir nulidade por força da distribuição operada dizendo:
“ (…)apuraram os Recorrentes junto da Secretaria do Tribunal que, não só inexiste qualquer ata que documente as operações de distribuição, em cumprimento do disposto no artigo 204.º, n.º 4, alínea c), como a própria distribuição não terá sido efetuada eletronicamente e nos termos plenos do disposto no artigo 213.º, n.º 3, alínea a), do CPC, com vista a apurar aleatoriamente os juízes-adjuntos de entre todos os juízes da secção competente, sem aplicação do critério da antiguidade ou qualquer outro.
17. Por sua vez, as modificações decorrentes de tal Lei não estão condicionadas à emissão de qualquer regulamentação da Lei pelo que, sendo de aplicação imediata ao processo penal, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 1, do CPP, a sua inaplicação configura uma violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal.
Na verdade, dispõe o artigo 112.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
Ora, admitir que a eficácia de uma Lei da Assembleia da República esteja por qualquer forma condicionada pela sua regulamentação, daria ao Governo, na prática, o poder de obstar à vigência de uma lei pela sua não regulamentação.
Com efeito, o legislador definiu expressamente, por via do artigo 3.º da referida Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, que
“O Governo procede à regulamentação da presente lei no prazo de 30 dias a contar da data da sua publicação, devendo aquela entrar em vigor ao mesmo tempo que esta”.
De outro modo, a norma ínsita no artigo 3.º da Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, quando e se interpretada no sentido de que o regime normativo em causa apenas entra em vigor e produz os seus efeitos após a respetiva regulamentação pelo Governo é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da hierarquia dos atos normativos que subjaz ao artigo 112.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Deste modo, na vigência dos artigos 204.º e 213.º do CPC, com a redação dada pela Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, é manifesto que ocorreu uma violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal, porquanto, e de acordo com a informação recolhida junto da Secretaria do Tribunal, não só não foi exarada a ata que permita aos Recorrentes confirmar as operações de distribuição alegadamente realizadas, como o coletivo de Juízes, no que se reporta aos Juízes-Adjuntos, não terá sido objeto de distribuição eletrónica, pública e verificável pelos sujeitos processuais, em violação do disposto nos artigos 204.º, n.º 4, alínea c) e 213.º, n.º 3, alínea a), do CPC.
A referida violação de normas legais referentes ao modo de determinação da composição do Tribunal importa a verificação de uma nulidade insanável aquando do ato de distribuição irregular, o que determina a sua invalidade, bem como os demais atos que dele dependerem e que puderem afetar: aqui, o acórdão proferido em conferência, a 09.03.2023.
Em suma, deveria o acórdão proferido ter-se pronunciado sobre a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea a), do CPP, declarando a sua verificação e a invalidade do ato de distribuição que determinou a composição do coletivo julgador de Juízes in casu, abstendo-se de apreciar da admissibilidade e do mérito do recurso interposto.
Não o tendo feito, padece o acórdão proferido do vício de omissão de pronúncia, por ter deixado de se pronunciar sobre questão de que deveria ter tomado conhecimento, o que determina a sua nulidade.
Em face do exposto, deverá ser proferido novo acórdão que, expurgado da omissão de pronúncia referida, se pronuncie pela verificação da nulidade insanável elencada, declarando a verificação da mesma e determinando a anulação do ato de distribuição em apreço e do acórdão proferido, em conferência, a 09.03.2023, pelo coletivo de Juízes decorrente da distribuição errónea, em virtude de se tratar de ato processual dependente do ato nulo e de por aquele ter sido afetado, ordenando-se, em consequência, nova distribuição nos termos e pressupostos do disposto no artigo 213.º do CPC, aplicável a estes autos por remissão do artigo 4.º do CPP.”
1ª. 2- Por sua vez o MPº considerou que “ (…)parece resultar à evidência que ainda não entrara em vigor a alteração operada à disposição do art.º 213º do Código de Processo Civil pela L-55/2021, de 13/08, cujo nº 3, alínea a), passa a prever que a designação dos juízes-adjuntos seja também operada por actos específicos de distribuição. Que a disposição do art. 3º da referida L-55/2021 estabelece que haveria que proceder à sua regulamentação no prazo de 30 dias a contar da data da sua publicação, estando previsto que tal regulamentação entrasse em vigor ao mesmo tempo que o diploma-legal em causa. Que foi publicada, para o efeito, a Port. 86/2023, de 27/03, que entraria em vigor 45 dias após a sua publicação (vacatio legis ainda em curso à data do parecer), que veio cumprir o dever de operacionalizar aquela lei, procedendo à alteração das regras relativas à distribuição, por meios eletrónicos, dos processos nos tribunais judiciais e operando a sua regulamentação, nomeadamente, da exigência de cumprimento de requisitos de certificação e publicidade (pautas, actas e algoritmos) e da designação dos intervenientes na distribuição (cfr, os arts. 1º a 4º).
Donde, concluindo, não foram violadas as regras legais relativas ao modo de determinar a composição o Tribunal “ad quem”, motivo por que não foi cometida a nulidade invocada.”
1ª.3-Se bem compreendemos a argumentação dos reclamantes, estes partem do pressuposto de que a Lei 55/2021 entrou em vigor no tocante às novas regras de regulamentação da distribuição independentemente da sua regulamentação por Portaria (sendo esta previsão de regulamentação inconstitucional do seu ponto de vista) e que, não tendo sido aplicadas tais regras, a formação do colectivo que julgou o recurso foi eivada de nulidade originada na distribuição contra legem e que tal nulidade devia ter sido conhecida oficiosamente.
Pois bem.
Para que haja obrigação de conhecimento oficioso de nulidade é preciso que ela seja cognoscível e existente. Ora, a nulidade invocada não era de conhecimento oficioso pois nem sequer existiria como objecto de pronúncia deste tribunal.
A distribuição ao relator e a escolha dos juízes adjuntos operou de acordo com as regras legais em vigor antes da vigência da Portaria de regulamentação daquela Lei 55/2021. A distribuição foi efectuada ao relator sem qualquer intervenção deste no acto, por atribuição aleatória entre todos os juízes das secções criminais feita pelo algoritmo desenhado pelo Ministério da Justiça para o efeito e os adjuntos determinados pela regra da antiguidade e precedência a seguir à do relator.
Nenhum acto de distribuição do processo de recurso neste STJ foi accionado/praticado após a entrada em vigor da regulamentação pela Portaria 86/2023, de 27/03, pelo que, em consequência, eventual inconstitucionalidade da regulamentação daquela Lei por esta via (de Portaria) , nos termos alegados pelos reclamantes, estaria aqui afastada.
De todo o modo, a Lei 55/2021 prevê no seu Artigo 3.º que a regulamentação fosse efectuada nos seguintes termos, sem alusão alguma a que o fosse por via de Portaria:
“O Governo procede à regulamentação da presente lei no prazo de 30 dias a contar da data da sua publicação, devendo aquela entrar em vigor ao mesmo tempo que esta.”
Assim, foi intenção do legislador diferir a vigência da Lei 55/2021 em função da sobredita regulamentação, a qual nunca no diploma habilitante mencionou dever sê-lo por Portaria) e não obstante no artº 4º indicar que entraria em vigor 60 dias após a sua publicação (ocorrida a 13 de Agosto de 2021)
Só que, como é sabido, aquela regulamentação não existia ainda à data da distribuição do recurso e sequer da conferência realizada a 9 de Março de 2023.
A intenção do legislador foi, assim, embora de forma pouco coerente na cronologia dos diplomas, a de só determinar a efectividade operativa das alterações introduzidas às regras de distribuição introduzidas no CPC aos artigos 204.º, 208.º, 213.º, 216.º e 652.º quando aquela regulamentação fosse publicada, o que só veio a acontecer com a entrada em vigor da Portaria 86/2023 a 27 de Março 45 dias após a data da sua publicação(12 de Maio)
Por sua vez, o artº 112º da CRP estabelece:
“(…)
5. Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
6. Os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes.
7. Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão;
Ora, a Lei 55/2021 não fixou expressamente qual a forma para a sua regulamentação e na CRP em norma alguma se proíbe que as leis emanadas do Parlamento prevejam a sua regulamentação pelo Governo nem tão pouco com a dilação para futura regulamentação a Lei 55/2021 indica expressamente qualquer acto normativo que preencha uma diferente categoria de acto legislativo ou confira a acto de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
Se a Portaria 86/2023 de 27 de Março ultrapassou ou não limites de regulamentação proibidos nos termos do artº 112º nº 5 da CRP é questão espúria no caso dos autos pois nenhuma aplicação com influência na distribuição foi feita com base em quaisquer das suas disposições porquanto a mesma nem sequer estava ainda em vigor à data da distribuição do recurso e da conferência decisória de 9 de Março de 2023.
Por outro lado, considerar que a dita regulamentação (que acabou mais tarde por vir a ser efectuada por Portaria e não por , nomeadamente, decreto Regulamentar) seria inconstitucional nos termos gerais tal como definidos na Lei 55/2021 e por isso, que a Lei entraria em vigor desde logo sem essa regulamentação, seria extrapolar o pensamento do legislador para o oposto do pretendido até porque a operacionalização da Lei 55/2021 só poderia ser eficaz com a sua futura regulamentação e não com a ausência dela.
Assim:
A Lei 55/2201 encontra-se, pois, em vigor desde 12.10.2021.
Como não foi publicada a regulamentação exigida pelo artigo 3.º, regulamentação que diz respeito ao diploma na sua totalidade (o Governo procede à “regulamentação da presente lei”, diz o preceito) e não apenas a algumas das suas disposições, a questão que se coloca não diz respeito à vigência da lei mas à da sua exequibilidade.
Dispõe o artigo 5.º do Código Civil que a lei só se torna obrigatória depois de publicada no jornal oficial (n.º 1) e que entre a publicação e a vigência da lei decorrerá o tempo que a própria lei fixar (n.º 2), tempo que já decorreu (60 dias após a publicação).
A publicação da lei é requisito de eficácia –artigo 119.º, n.º1, al. c), e n.º 2, da Constituição.
Estabelece , ainda, o artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro:
“A eficácia jurídica dos atos a que se refere a presente lei [em que se incluem as leis –artigo 3.º, n.º 2, al. c)] depende da sua publicação no Diário da República”.
A Lei n.º 55/2021, embora já em vigor, era à data da distribuição do caso dos autos , tal como já referimos, uma lei carecida de regulamento de execução, de regulamento complementar (por se referir genericamente à lei), para se tornar exequível, no seu todo (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed., p. 487, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, 2006, p. 263-264).
Nos termos do artigo 199.º, al. al, c), da Constituição compete ao Governo, no exercício de funções administrativas, fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis (atos normativos a que se refere o artigo 112.º, n.º 7, da Constituição).
Foi o próprio legislador quem tornou expressa, no seu articulado, a vontade de que a Lei n.º 55/2021 não fosse executada sem que visse a ser complementada por um regulamento, intrinsecamente necessário à sua execução.
A omissão de regulamentação, com a finalidade de desenvolver, pormenorizar, precisar as previsões da lei, impedia pois a sua execução; a sua execução, nesse entretanto, não era viável. Ou seja, a lei não podia ser aplicada sem o regulamento nela previsto.
Abrangendo a lei no seu todo, não era da competência dos tribunais especificar ou delimitar as normas que careciam de regulamentação, sob pena de inaceitável interferência nas competências do Governo.
Consequentemente, é de concluir sem hesitação alguma que a falta de regulamentação da Lei n.º 55/2021 não era suscetível de produzir o efeito pretendido pelos requerentes, inexistindo falha alguma processual na distribuição.
Distribuído que foi o processo de acordo com a lei aplicável à data e em resposta à questão suscitada pelo motivo concretamente invocado pelos requerentes, nos estritos termos que ela comporta (sem outro tipo de considerações, por desnecessárias), conclui-se não haver qualquer vício na distribuição susceptível de afetar os subsequentes procedimentos processuais e, nomeadamente, a composição do tribunal nem a decisão que decorreu da conferência de 9 de Março, ora em escrutínio de reclamação.
Apenas ainda uma nota final sobre este segmento.
É por demais evidente que, in casu, não são invocadas quaisquer nulidades do acórdão, não sendo invocada qualquer uma das situações previstas no artº 379º do CPP, razão pela qual o requerimento em referência até em rigor não seria de apreciar em conferência.
Aquilo que se pode dizer, muito sumariamente, é que a aplicação das regras do processo civil relativas à distribuição dos processos não se limitaria às por si referidas.
Dito de outra forma:
Nos termos do disposto no artº 205º, nº 1 do CPC (ex vi do artº 4º do CPC), “a falta ou irregularidade da distribuição não produz nulidade de nenhum ato do processo, mas pode ser reclamada por qualquer interessado ou suprida oficiosamente até à decisão final”.
Ou seja:
- De um lado, a pretensa irregularidade da distribuição, invocada não produz a nulidade de nenhum acto do processo, nomeadamente do acórdão aqui proferido, contrariamente ao pretendido pelo requerente;
Daí que a nulidade arguida tenha necessariamente que ser indeferida porque a irregularidade apontada não tem por efeito a nulidade de qualquer acto do processo sendo até discutível que a reclamação dessa irregularidade, por banda do requerente, seja até tempestiva.
Esclarecemos anteriormente que o novo regime de distribuição não opera no caso, afastando-se qualquer ideia de nulidade, direta ou indiretamente, pois como já dito em outros despachos no STJ e parece consensual, as regras invocadas pelo requerente não entraram em vigor, o que resulta quer da Lei, quer da história legislativa do preceito.
É verdade que não são invocadas quaisquer nulidades do acórdão em si, pois não é invocada circunstância que encaixe em qualquer das situações previstas no art.º 379º do CPP. Mas não deixou de ser invocada uma nulidade que, em abstrato, poderia – hipoteticamente a proceder – repercutir-se no acórdão. Por isso e apenas por isso se conheceu dela.
De todo o modo, a conclusão a que se chegou seria sempre inevitável, improcedendo pois este primeiro argumento de reclamação.
2ª questão- [Nulidade do acórdão reclamado, por alegada omissão de pronúncia em conhecer e declarar a verificação da inconstitucionalidade
invocada pelos Recorrentes no seu recurso de revista]
Sobre esta questão, os reclamantes convocaram, em suma, a seguinte posição:
-“ Os Recorrentes, por via do recurso interposto, invocaram a inconstitucionalidade da norma ínsita ao artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, quando interpretada no sentido de que a presunção que a mesma comporta não é ilidível quando comprovadamente não tenha sido realizada qualquer operação tributável em sede de IVA, nomeadamente para efeitos do apuramento do prejuízo sofrido pelo Estado Português em sede de pedido de indemnização cível deduzido em processo penal, por violação do princípio da capacidade contributiva e do princípio da igualdade tributária, ínsitos e consagrados nos artigos 13.º, 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa.
A inconstitucionalidade de normas é uma questão de conhecimento oficioso de qualquer Tribunal, invocável por qualquer interessado, por qualquer uma das vias de reação processualmente admissíveis, antes de esgotado o poder jurisdicional do julgador – cf., apesar de ser incontrovertido, o acórdão n.º 310/94, proferido pelo Tribunal Constitucional a 24.03.94, no processo n.º 379/91 (Rel. Alves Correia).
O dever de conhecer oficiosamente da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de normas pelos Tribunais – sem prejuízo de a mesma ser suscitada pelas partes ou pelo Ministério Público – reflete-se no respetivo poder-dever de não as aplicar, caso conclua pela sua desconformidade com a Constituição, constituindo tal circunstância, inclusive, fundamento de recurso direto para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.
Ora, sendo de conhecimento oficioso, a referida inconstitucionalidade consubstancia uma questão que imporia ao Tribunal que sobre ela se pronunciasse, especialmente em virtude de a interpretação normativa em causa se reputar de essencial para o consequente apuramento da responsabilidade civil por factos ilícitos dos Recorrentes.
Tal conhecimento oficioso poder-se-á considerar efetivamente reforçado, porquanto a inconstitucionalidade visada foi invocada expressamente pelos Recorrentes.
Isto posto, não tendo o acórdão em referência aludido, ainda que sumariamente, à questão de constitucionalidade arguida pelos Recorrentes, deixou de se pronunciar sobre uma questão que deveria ter apreciado, o que faz padecer tal acórdão de nulidade, por omissão de pronúncia, nulidade que expressamente se argui.”
Ora bem.
No acórdão reclamado foi decidido que o recurso não era admissível, tendo-se explicado ali as razões dessa inadmissibilidade.
No ponto 2.7 escrevemos:
“2.7- O recurso de Revisão
Aqui chegados e dando desde já como assente que a prolixidade de conclusões é um não-problema, porquanto delas se percebe suficientemente o que os recorrentes pretendem, temos então por demais evidente e derradeiro poder concluir que os recorrentes vieram apenas, aproveitando a sobredita reclamação do acórdão, levantar um problema novo, que “descobriram”, só ali, dever ser, na sua perspectiva, de conhecimento oficioso, tentando “salvar” dessa forma a sua falta de alegação em via de recurso, problema esse atinente à quantificação do pedido cível e respectivo prejuízo para o Estado, não obstante, desde logo reconhecido como consequência de um negócio jurídico simulado na primeira instância, sendo certo que não se vislumbra em momento algum, face ao histórico dos autos, como bem assinalou o acórdão recorrido e reclamado, que tenha gerado da parte daqueles dissenso ou discussão relevante em sede de recurso para o Tribunal da Relação, como bem decorre da identificação feita quanto às questões elencadas nas ou a partir das conclusões do recurso interposto.
Por isso é que a questão, de direito, agora trazida pela via do recurso de revista excepcional, que os recorrentes formulam assim “– a (errada) quantificação do prejuízo do Estado Português nos casos de «fraude carrossel», em que o negócio real ou dissimulado comportou uma transação substantivamente isenta de IVA – configurando uma temática de elevadíssima importância e relevância jurídica e social, transversal à generalidade da parte cível dos processos-crime em referência, pelo que a sua apreciação é, desde logo, justificada no âmbito do regime excecional de admissibilidade recursiva previsto no artigo 672.º do Código de Processo Civil”-, é assumidamente ( como se viu da “inovação” invocada apenas em sede de reclamação ) uma questão manifestamente nova, senão extemporânea ao recurso para a Relação, não suscitada neste em concreto, e que este sequer entendeu dever ou ter de conhecer oficiosamente, como supra se viu.
Como muito bem e acertadamente se explicou no parecer do MP neste STJ “(…)Não impugnaram, ali, expressa e autonomamente, a questão-civil – esgrimindo sobre o seu objecto causas de erro de julgamento e pedidos específicos – sendo que o seu ganho nessa matéria apenas poderia advir, reflexa e indirectamente, da eventual procedência do recurso da questão-penal, que induzisse a eliminação dos pressupostos comuns (de facto ou de direito) à pretensão indemnizatória do Estado. (…)o Acórdão “sub judice” não se pronunciou e decidiu, relativamente aos arguidos ora recorrentes, sobre o acerto do decidido pela 1ª Instância acerca do objecto do Pedido de Indemnização Civil, sendo, no caso, de todo descabido falar de “dupla conforme” ou desconforme –, na falta de decisão, não há recurso.

(…) Tão-simplesmente: Falha o pressuposto material essencial da interposição de qualquer recurso, como seja, a decisão judicial (cfr, o art. 627º/1 do Código de Processo Civil) pretendendo discutir, necessariamente, no Supremo Tribunal de Justiça, matéria nova, que nunca aventaram nas Instâncias (…)”
Nestes termos é de concluir que não houve propriamente uma decisão (“Acórdão”) da Relação susceptível de revista excepcional nos termos do artº 672 nº1 do CPC, que possa sequer ser ou constituir objecto deste tipo de recurso de revista excepcional nos termos pretendidos, pressuposto negativo este que inquina derradeiramente o seguimento para apreciação sumária pela formação cível.
Não obstante, poderia contudo, assumir-se, mesmo controversamente embora sem conceder, que apesar de os ora únicos recorrentes de revista cível excepcional não o tenham, na verdade, feito autonomamente da sua condenação cível, a verdade é que parte do acórdão de 1ª instância foi alvo de recurso por parte do co-arguido e co-demandado B... e por motivos que, como se vê das conclusões da motivação transcritas a fls. 17 a 28 do Acórdão Recorrido, se não poderia considerar que respeitassem exclusivamente à sua pessoa, por isso defender-se que não só podendo, caso o recurso tivesse procedido, terem-se os respectivos efeitos estendido aos ora recorrentes – arts. 634º n.º 1 e 2 al.ª c) do CPC –, como, à luz do disposto no art.º 634º n.º 5 do CPC, ter-lhes permitido assumir em qualquer momento a posição de recorrente principal inclusivamente nos momentos deste recurso.
Esta solução teria naturalmente de se compatibilizar com outras consequências incontornáveis do princípio da adesão, mormente as de o trânsito da decisão na parte criminal implicar a fixação em definitivo da matéria de facto que, simultaneamente, corporizasse pressuposto(s) da responsabilidade civil, sendo manifestamente improcedente – e rejeitável – o recurso, ou a parte dele, que se propusesse rediscutir tal matéria.
Mas, ainda assim, mesmo que se entendesse porventura na base da consideração da possibilidade de co-aproveitamento de eventuais efeitos determinados pela interposição de recursos por parte doutros arguidos, sempre seria de não admitir a revista interposta tendo em atenção que haveria uma renúncia tácita ao recurso por parte dos recorrentes, dedutível do facto de, contra o que impõe o art.º 615º n.º 4 do CPC, se não o próprio art.º 379º n.º 2 do CPP – pois que ambos determinam a invocação de nulidades de sentença em recurso – terem optado por arguir o que consideraram ser uma nulidade por omissão de pronúncia em reclamação perante o próprio TRL. E, desse modo, com apoio em entendimento sustentado em acórdãos das secções cíveis, v. g. nos de 17.12.2020 e de 26.1.2021 - Proc. n.º 103/06.8TBMNC.G1.S1 – «Por outro lado, a apresentação de reclamação do acórdão da Relação de Guimarães de 10-07-2019, em lugar da interposição de recurso de revista, poderia também ser considerada como renúncia tácita ao direito de recorrer com fundamento na nulidade invocada e, por isso, espoletando a assim denominada preclusão lógica.» –, de 13.9.2011 – Proc. n.º 649/05.5TBLLE.E1.S1 – «Estipulando o n.º 3 do art. 668.º do CPC [de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.º 329-A/95], que devem, em caso de recurso, ser as nulidades arguidas nesse recurso, a sua dedução em requerimento dirigido ao tribunal que as tenha praticado implica a renúncia tácita ao direito de recorrer, nos termos do art. 681.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPC [de 1961]» – e de 16.10.2012 - Proc. n.º 1282/05.7TBOVR-M.C1.P1.S1 – «A simples arguição de nulidades perante o tribunal recorrido implica a renúncia ao direito de recorrer da decisão arguida de nula ou a aceitação da mesma, nos termos do art. 681.º, n.ºs 1 a 3, do CPC [de 1961].».
Posto isto, considera-se ter de naufragar derradeiramente a admissibilidade do recurso.”
Deste modo, nos termos expostos, face à fundamentação subjacente a essa inadmissibilidade do recurso, não se teria que conhecer da questão (da inconstitucionalidade tal como foi formulada) pois que, para que o pudesse ser, teria de pressupor a admissibilidade daquele.
A nulidade da decisão ocasionada por “omissão de pronúncia” só aconteceria se tivesse que vir a ser analisada e conhecida alguma questão valorável e relevante no pressuposto de que a sua resolução não fosse prejudicada pelo tratamento dado a outras. Contudo, como bem se viu, face à não admissão (ou à rejeição) do recurso, ficou vedado ao tribunal ad quem o conhecimento da aludida questão de inconstitucionalidade pela negação da pretensão dos reclamantes por declaração de inadmissibilidade do recurso, quer com respeito a erro de julgamento, a vício de procedimento do Tribunal “a quo” ou matéria hermenêutica de âmbito constitucional.
Improcede assim a reclamação também neste segmento.
3ª questão- [Reforma do acórdão reclamado, eliminando as referências a qualquer renúncia tácita ao direito de recorrer operada pelos Recorrentes]
A reclamação nesta matéria também improcede.
Pedem, para o efeito, os reclamantes:
“a reforma do acórdão, nos termos do disposto no artigo 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP.
Invocando:
(…) que a perplexidade dos Recorrentes se acentuou quando o acórdão proferido afirma ter ocorrido uma “renúncia tácita ao recurso”, em virtude de os Recorrentes terem deduzido “uma reclamação” perante o Tribunal da Relação de Lisboa. Tal afirmação patente no acórdão reclamado não é correta e só pode resultar de um equívoco.
Efetivamente, não se compreende como concluíu este Tribunal pela ocorrência de uma invocada renúncia tácita – vulgo implícita, subentendida, encoberta, secreta – quando os Recorrentes manifestaram a sua intenção expressa em recorrer, por via de um requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, sem que tenham apresentado qualquer invocação autónoma de qualquer nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Com efeito, os Recorrentes não apresentaram qualquer reclamação, na medida em que arguiram a referida nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa enquanto fundamento de recurso, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 2, do CPP e no artigo 615.º, n.º 4, in fine, do CPC – cf. capítulo II da motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentado pelos Recorrentes a 03.11.2022 (ref.ª ...35).
Por sua vez, o Tribunal da Relação de Lisboa, precisamente em cumprimento do disposto no artigo 379.º, n.º 2, do CPP e nos artigos 617.º, n.º 1 e 666.º, n.º 2 do CPC, apreciou, em conferência e antes de ordenar a subida dos autos, a nulidade invocada em relação ao acórdão por si proferido, concluindo pela sua improcedência.
Deste modo, em face de a nulidade por omissão de pronúncia ter sido validamente suscitada pelos Recorrentes em recurso, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 2, do CPP e no artigo 615.º, n.º 4, in fine, do CPC, competiria ao Tribunal da Relação apreciar tal nulidade antes de ordenar a subida dos autos, bem como competiria a este Supremo Tribunal a sua apreciação, em virtude de a mesma constituir fundamento de recurso.
Por outras palavras, não houve nem nunca ocorreu qualquer “reclamação” por parte dos Recorrentes para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Há, pois, e salvo o devido respeito, um manifesto lapso do Coletivo de Juízes, porquanto consta do processo uma peça processual que, tão-só por força do seu conteúdo, implica de forma necessária o proferimento de decisão diversa da proferida.
Deste modo, requer-se a V. Ex.ª a reforma do acórdão, por via da eliminação do corpo do seu texto, do trecho respeitante ao último parágrafo do ponto 2.7. do capítulo II, atinente ao “Recurso de Revisão” (1), por tal resultar de manifesto erro do Tribunal, conforme se demonstrou supra.
[1 Que, per si, consubstancia igual lapso, pois não foi interposto qualquer recurso de revisão por parte dos ora Recorrentes.]
Tal reforma é, por sua vez, essencial à garantia de um grau de recurso ou sindicância de decisão judicial que incide sobre os direitos dos Recorrentes, porquanto se reporta a uma decisão nova e aos Recorrentes não foi dada qualquer chance de se defenderem, enquanto exigência constitucional prevista no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Por sua vez, a eventual interpretação da norma constante do artigo 4.º do CPP – a qual se não admite e apenas por hipótese de raciocínio se concebe -, no sentido de que não é aplicável ao processo penal o regime da reforma, previsto no artigo 616.º do Código de Processo Civil, nos casos em que é suscitada uma questão nova pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a qual ao Arguido não foi dada possibilidade de defesa ou de recorrer de tal decisão, por inexistência de Tribunal ad quem e de um grau de recurso, é materialmente inconstitucional, por violação do direito ao recurso e do contraditório, enquanto garantias do processo criminal, ínsito e consagrado no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.”
Vejamos então.
Aquela afirmação no acórdão reclamado não resulta de qualquer lapso manifesto, erro ou equívoco e foi considerada intencionalmente na linha de pensamento da fundamentação do acórdão. Por isso não há que efectuar reforma alguma.
Depois, neste segmento os reclamantes mais parecem querer entrar num jogo de semântica. Dizem que não fizeram reclamação alguma do acórdão do TRL quando isso não é verdade. Reclamaram arguindo nulidade que entendiam dever ter sido até de conhecimento oficioso.
Veja-se o que dizemos no nosso acórdão agora reclamado:
“1.2. Desse acórdão do TRL de 27 de setembro de 2022 reclamaram os arguidos AA, CC e J..., LDª, (J...).
Estes, tendo visto confirmada a sua condenação em 1ª instância por aquele acórdão, que lhes foi notificado a 03.10.2022, vieram então por requerimento apresentado em 03.11.2022 (refª Citius ...35), entre o mais, arguir a «nulidade do acórdão», com fundamento em «omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, porquanto o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre uma questão de conhecimento oficioso, que deveria ter apreciado» - qual seja, a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal e por cautela, apresentar recurso de revista excepcional ao abrigo do artº 672º nº1 do CPC.
Desta reclamação houve decisão em Conferência de 22 de novembro de 2022, e foi julgada “ “(…)improcedente a arguição de nulidade do sobredito acórdão de 27.09.2022 por omissão de pronúncia(…)”
Esta é a narrativa que consta dos autos e de leitura clara e sem enredos ou entropias.
Daí que, depois, a pág. 78 do Acórdão ora reclamado, se tenha subsidiariamente referido:
“(…)Mas, ainda assim, mesmo que se entendesse porventura na base da consideração da possibilidade de co-aproveitamento de eventuais efeitos determinados pela interposição de recursos por parte doutros arguidos, sempre seria de não admitir a revista interposta tendo em atenção que haveria uma renúncia tácita ao recurso por parte dos recorrentes, dedutível do facto de, contra o que impõe o art.º 615º n.º 4 do CPC, se não o próprio art.º 379º n.º 2 do CPP – pois que ambos determinam a invocação de nulidades de sentença em recurso – terem optado por arguir o que consideraram ser uma nulidade por omissão de pronúncia em reclamação perante o próprio TRL. E, desse modo, com apoio em entendimento sustentado em acórdãos das secções cíveis, v. g. nos de 17.12.2020 e de 26.1.2021 - Proc. n.º 103/06.8TBMNC.G1.S1 – «Por outro lado, a apresentação de reclamação do acórdão da Relação de Guimarães de 10-07-2019, em lugar da interposição de recurso de revista, poderia também ser considerada como renúncia tácita ao direito de recorrer com fundamento na nulidade invocada e, por isso, espoletando a assim denominada preclusão lógica.» –, de 13.9.2011 – Proc. n.º 649/05.5TBLLE.E1.S1 – «Estipulando o n.º 3 do art. 668.º do CPC [de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.º 329-A/95], que devem, em caso de recurso, ser as nulidades arguidas nesse recurso, a sua dedução em requerimento dirigido ao tribunal que as tenha praticado implica a renúncia tácita ao direito de recorrer, nos termos do art. 681.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPC [de 1961]» – e de 16.10.2012 - Proc. n.º 1282/05.7TBOVR-M.C1.P1.S1 – «A simples arguição de nulidades perante o tribunal recorrido implica a renúncia ao direito de recorrer da decisão arguida de nula ou a aceitação da mesma, nos termos do art. 681.º, n.ºs 1 a 3, do CPC [de 1961].».
Posto isto, considera-se ter de naufragar derradeiramente a admissibilidade do recurso.”
Assim, é evidente que a sobredita menção à renúncia tácita ao recurso ocorreu, dentro da coerência e lógica seguidas na decisão, até a título meramente secundário senão mesmo, em rigor, dispensável, em jeito de espécie de argumento a latere, nem sequer decisivo para o sentido do juízo já formado, daí que seria de todo impossível integrar o âmbito de um “erro manifesto”. Consequentemente, qualquer discussão sobre zonas de inconstitucionalidade no juízo formulado seria de todo despiciendo.
Inexiste assim qualquer fundamento ou razão para a pretendida reforma da decisão .
4ª questão- [Reconhecimento e declaração de inconstitucionalidade do artigo 672.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 4.º do CPP, na interpretação de que a interposição de recurso de revista excecional com fundamento num alegado erro de julgamento
decorrente de uma questão de direito invocada pelos
recorrentes apenas em sede desse mesmo recurso, não é admissível, sob o argumento de que tal questão de direito representa uma questão sobre a qual o Tribunal a quo não se pronunciou e, em face disso, não há uma “decisão” objeto de recurso, porquanto tal entendimento representar uma desproporcional e excessiva restrição do direito ao recurso dos Recorrentes, resultando na concomitante violação do direito ao recurso enquanto garantia do processo criminal, ínsito no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e, em consequência, revogando-se o acórdão reclamado, proferindo-se nova decisão que admita o recurso de revista interposto pelos Recorrentes]
Vejamos se aqui têm razão ou não.
Neste último território argumentativo da reclamação é patente que os reclamantes o que pretendem é, antes, discordar da interpretação formulada e provocar uma nova decisão em sentido que lhes seja mais favorável.
Não invocam, aqui, nulidade nem vício da decisão reclamada mas uma diferente interpretação, (a sua), a desejarem que seja antes a acolhida, das normas aplicadas pelos juízes no acórdão deste STJ em análise.
O escopo da reclamação é ultrapassado totalmente nas suas fronteiras.
A discussão da inconstitucionalidade da interpretação seguida no acórdão seria matéria de âmbito impugnatório em sede de recurso para o Tribunal Constitucional e não como ensejo de reclamação.
Os reclamantes transportam a sua discordância para o erro de julgamento pretendendo, por via dessa estratégia discursiva, que o Tribunal revogue a decisão proferida e a substitua por outra oposta.
A vir tal pretensão a ser convalidada, violar-se-ia o princípio da extinção do poder jurisdicional (no âmbito da questão decidida) conforme se dispõe no art.º 613º/1 e 3 do Código de Processo Civil - aplicável, “mutatis mutandis”. ex vi art. 4º do Código de Processo Penal
Derradeiramente, em face de todo o exposto, julga-se improcedente a reclamação conjunta.
III - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar a reclamação conjunta improcedente.
Em fixar a cada um dos reclamantes a taxa de justiça de 3 Ucs
*
Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Julho de 2023
[Texto Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pelo Relator (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos].
Agostinho Soares Torres (Juiz Conselheiro Relator)
António Latas (1º adjunto)
José Eduardo Sapateiro (2º adjunto)