Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
46/07.8TBSVC-0.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CULPA GRAVE
PRESUNÇÕES LEGAIS
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
PRESUNÇÕES JÚRIS TANTUM
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 10/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS
DIREITO COMERCIAL - REGISTO COMERCIAL
DIREITO DA INSOLVÊNCIA
Doutrina: - Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume II, págs. 13, 14, 15, 611.
– Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, p. 61.
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2ª ed., Almedina, p. 126.
- Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, págs. 201, 273.
- Raposo Subtil e outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pág. 265.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, N.º3, 350.º, NºS 2 E 3.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 18.º, N.º1, 20.º, N.º1, AL. G), 186.º.
CÓDIGO DO REGISTO COMERCIAL (CRC): - ARTIGOS 3.º, N.º1, AL. N) E 15.º, N.º1.
Legislação Comunitária:
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 22/1/2008, Pº 10141/2007-7
-DE 21/4/2009, Pº 369/07.6TBCDN-B.C1,
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 8/2/11, Pº 1543/06.8TBPMS.C1.
Sumário :

1. A insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.

2. O nº 2 do art. 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa.

3. O nº 3 do mesmo art. 186.º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.

4. Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento.

Decisão Texto Integral:

                ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

                Nos autos de qualificação da insolvência, por apenso ao processo de declaração de insolvência nº 46/07.8TBSVC, no qual foi declarada insolvente a sociedade AA, LDA, veio o senhor administrador da insolvência emitir parecer no sentido da mesma ser qualificada como culposa, devendo ser afectada por tal qualificação a herança jacente aberta por óbito do sócio gerente BB, representada por CC.

                Alegando, em suma:

                A contabilidade da empresa não se encontrava actualizada, não transmitindo a situação verdadeira da mesma;

                O sócio e gerente BB (falecido) procedeu à venda de vários equipamentos, bem como à celebração de contratos de dação de bens em cumprimento, beneficiando uns credores em detrimento de outros;

                Tal sócio e gerente procedeu à compra de duas viaturas num valor superior a € 170.000,00, esbanjando o dinheiro da sociedade, tendo o mesmo procedido à entrega das viaturas, por falta de pagamento das mesmas;

                Detinha uma quota na sociedade proprietária do Hotel ............, situado na Vila do Porto Moniz, tendo simulado a sua venda de forma a frustrar qualquer tentativa de responsabilização pessoal;

                O sócio e gerente usou e alienou parte do património da sociedade em seu benefício, frustrando as expectativas dos credores sociais;

                Auferia o mesmo o salário mínimo nacional, contudo, na prática, recebia da sociedade o valor de 1.500,00 € mensais;

                A sociedade apresentava há já algum tempo várias obrigações vencidas, não sendo actual a sua situação de insolvência, não tendo o sócio apresentado a mesma à insolvência.

                O Ministério Público pronunciou-se no sentido da insolvência ser qualificada como culposa conforme parecer do Sr. Administrador.

                Citada a representante da herança jacente, veio contestar, impugnando a factualidade constante dos pareceres do Sr. Administrador da Insolvência e do Ministério Público, por serem factos pessoais dos quais não tem nem devia ter conhecimento, porquanto o falecido sócio e gerente não comentava com a família o estado dos negócios, alegando contudo, que o mesmo, nos últimos meses de vida, nomeadamente desde o início do ano de 2007 apresentava perturbações psíquicas, deixando a actividade da empresa a cargo dos trabalhadores.

                O sócio-gerente falecido, único com conhecimento integral da situação da empresa, não a apresentou à insolvência devido ao seu estado de saúde.

                Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto pela forma que do despacho junto de fls 341 a 344 consta.

                Foi proferida a sentença que decidiu qualificar a insolvência da sociedade AA, LDA como fortuita e absolver a herança jacente aberta por óbito do gerente BB do pedido de afectação de insolvência como culposa.

                Inconformada, veio a MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE AA, LDA interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde, por acórdão aí proferido, na revogação da sentença recorrida, foi qualificada a insolvência como culposa.

                Agora inconformada, e encontrando-se preenchidos os pressupostas do recurso para este STJ (art. 14.º do DL 53/2004, de 18 de Março[1]), veio CC, representante da herança jacente por óbito do sócio-gerente BB, pedir revista, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

                1ª - Não foram dadas por provadas matérias que permitam imputar ao gerente da insolvente a prática de factos - índices previstos em qualquer das alíneas do n° 2 do art. 186 do ClRE, nomeadamente o da alínea d).

                Os dois contratos de dação em cumprimento foram celebrados antes da gerência ter sido citada para a acção onde era pedida a sua insolvência e, foram celebrados por preços justos, conforme reconheceu o próprio administrador da insolvência.

Recorde-se que, até aquela data, apenas existia aquela única acção judicial contra a insolvente por incumprimento de obrigações vencidas.

                Não ficou provado, também, que qualquer dos intervenientes nos referidos contratos tenha agido com dolo ou culpa grave, com o objectivo de beneficiar um credor em detrimento dos outros, ou o próprio gerente da insolvente.

                A aquisição das duas viaturas, uma em nome particular e outra para a empresa, cujos contratos foram anulados, não causaram a esta qualquer prejuízo, nem agravaram ou criaram a situação de insolvência da empresa. O único prejuízo provado foi o dos 10 mil euros da conta pessoal do gerente.

                Pelo que a decisão do Tribunal da Relação ora recorrido, violou o previsto na alínea d) do nº 3 do art°186 do ClRE.

                2ª - Não ficou provado que o gerente da insolvente não pretendesse apresentar-se à insolvência.

                Estava, ainda, a decorrer o prazo de 60 dias para o fazer, quando foi notificado para a acção de insolvência.

                E se é verdade que o ónus de tal prova caberia ao referido gerente, o facto é que tal prova se tornou impossível, uma vez que o mesmo faleceu em Agosto de 2007.

                3ª - Não ficou provado que o facto de não ter publicado as contas, ou não se ter apresentado à insolvência (ainda decorria o prazo), tenha criado ou agravado, ou sido causa da situação da empresa.

                4ª - Ficou provado que ainda decorria o prazo de 60 dias que o gerente da insolvente tinha pela lei, após o encerramento da actividade, para se apresentar à insolvência, quando foi citado para a acção onde se requeria a insolvência, e a única existente em Tribunal por obrigações incumpridas.

                5ª - A interpretação dada pela generalidade da jurisprudência impõe que, embora se possam verificar os dois itens previstos no art. 186-3 (o que não é líquido no caso sub- judice), tem de ser provado, também, que os mesmos foram causa, ou contribuíram, para criar ou agravar a situação da insolvente. E tal nexo de causalidade não foi provado.

                6ª - O acórdão recorrido, sem justificação, contraria a interpretação dada pela generalidade da jurisprudência, nomeadamente, a exposta nos acórdãos indicados.

                A recorrida MASSA INSOLVENTE DE AA, LDA, veio contra-alegar, pugnando pela manutenção do decidido.

                Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                Vem dado com PROVADO:

                1. "DD, Lda." veio requerer, no dia 2 de Março de 2007, no âmbito do processo 46/07.8TBSVC, a declaração de insolvência da "AA, Lda.", alegando que a requerida se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.

                                2. A sociedade "AA, Lda." foi citada para os termos da acção referida em 1) no dia 10 de Abril de 2007.

                3. No dia 27 de Abril de 2007 foi declarada a insolvência da "AA, Lda. ", sociedade com sede no Sítio da Santa, no Porto Moniz, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto Moniz sob o nº 000000000000, por sentença já transitada em julgado.

                4. Na sentença referida em 2. foram dados como provados, nomeadamente, os seguintes factos:

· No início do mês de Fevereiro (2007) a requerida cessou o pagamento das suas obrigações vencidas;

· E encerrou o estaleiro ( ... ) suspendendo a sua laboração;

· A requerida está impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.

5. Foi nomeado administrador da Insolvência EE.

                6. A sociedade "AA, Lda." tinha como sócio gerente BB.

                7. BB faleceu a 9 de Agosto de 2007.

                8. O sócio gerente da insolvente não apresentou a sociedade "AA, Lda." à insolvência.

                9. A devedora "AA, Lda." nunca procedeu ao depósito das suas contas na respectiva Conservatória do Registo Comercial.

                10. O sócio gerente da insolvente chegou a ser internado na Casa de Saúde de São João de Deus em 2007.

                11. BB auferia, como sócio gerente da insolvente, o salário mínimo nacional embora, na prática, recebesse da sociedade insolvente, o valor líquido de 1.500 euros mensais.

                12. BB adquiriu, em 28 de Dezembro de 2006, uma viatura de marca Porsche 911 Cabrio, matrícula 00-00-00, pelo valor de € 130.000,00, cujo preço foi pago da seguinte forma: 10.000,00 depositados na conta n.º 000000000 titulada pela FF, Lda e € 90.454,00 através de crédito concedido pela S........, SA, o qual não foi pago.

                13. O BB....... Com. Veíc. Automóveis, S.A encomendou, a pedido da AA, Lda.", ao concessionário Madeira Motores, no dia 6 de Dezembro de 2006, o veículo de marca BMW - Série 5, no montante global de € 80.776,01.

                                14. Por escrito particular datado de 31 de Março de 2007, denominado de "Contrato de dação em cumprimento" a sociedade AA, Lda.", representada pelo sócio e gerente BB, declarou:

                • reconhecer que deve à sociedade GG, Lda., NIPC 000000000 a quantia de € 8.541,41 resultante da compra de materiais de construção constantes das facturas n.º 0000000000000000 e nota de débito n.º 442.

                • Entregar à sociedade GG, Lda., NIPC 000000000, que declarou aceitar receber, para exoneração da dívida, a viatura marca Toyota, modelo Hilux com a matrícula 00-00-00, dando autorização expressa a esta sociedade para levantar de imediato o referido automóvel das suas instalações.

                15. Por escrito particular datado de 31 de Março de 2007, denominado de "Contrato de dação em função do cumprimento" a sociedade "AA, Lda.", representada pelo sócio e gerente BB, declarou:

                • reconhecer que deve à sociedade S.....do Oeste, Lda., NIPC 000000000 a quantia de € 67.823,53, resultante da sua actividade comercial, nomeadamente pela compra de materiais de construção, correspondendo a quantia de € 63.160,03 a letras de câmbio e € 4.663,50 à conta corrente, tituladas pela factura 0000 e notas de débito nºs 102, 103, 104, 108, 109, 110 e 111.

                • Entregar à sociedade S.....do Oeste, Lda., NIPC 00000000, que declarou aceitar receber, para exoneração parcial da dívida, os seguintes equipamentos no valor global de € 59.625,00:

                Grua da marca Potain, modelo HC 14 C, no valor de € 20.000,00;

                Empilhador Nissan no valor de € 10.000,00;

                Escavadora da marca caterpillar, modelo 312, no valor de € 15.000,00;

                Porta contentares de 20 pés, matrícula 00000 no valor de € 7.500,00;

                28 placas de cofragem Peri de 2.70 metros no valor de € 5.250,00;

                125 prumos metálicos de cofragem, no valor de € 1.875,00

                • Dar autorização expressa à sociedade S.....do Oeste, Lda., NIPC 000000000para levantar de imediato os referidos equipamentos das suas instalações.

                São as conclusões da alegação dos recorrentes, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.

Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pelo recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

                Sendo a questão fulcral a de saber – sustentando a recorrente não ter ficado provado o índice previsto na al. d) do nº 2 do art. 186.º do CIRE - se, mesmo que se tenham por provados os itens previstos no nº 3 do mesmo preceito legal, demonstrado não ficou, como deveria, que os mesmos foram causa ou contribuíram para criar ou agravar a situação da insolvente.

                De forma inovadora[2], estabeleceu o CIRE em apreço, o conceito de insolvência culposa, que é limitado à situações de dolo ou culpa grave.

                Compondo-se o respectivo regime de um conjunto de presunções que permite qualificar como culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular, sempre que os seus administradores tenham adoptado um dos comportamentos descritos nos nºs 1 a 3 do art. 186.º daquele diploma legal.

                Assim rezando, na parte que ora pode importar, este normativo:

                “1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

       2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

      a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

      b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

      c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

      d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

       e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

      f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

      g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

      h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido um contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

      i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188.°

      3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:

      a) 0 dever de requerer a declaração de insolvência;

      b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”

      Definindo, assim, este preceito legal em que consiste a insolvência culposa, começando por fixar, para o efeito, uma noção geral no seu nº 1.

                Implicando sempre, tal insolvência culposa, uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.

                Deixando, contudo, tal actuação de ser atendida – devendo considerar-se as noções de dolo e de culpa grave, na falta de outro critério específico, nos termos gerais de Direito – para o efeito da qualificação da insolvência em análise, se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

                Estabelecendo, de seguida, em complemento da noção antes fixada, o seu nº 2, presunções inilidíveis, ou seja, presunções absolutas ou jure et de jure, não admitindo prova em contrário (cfr., ainda, art. 350.º, nº 2 do CC).

                Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores aí referidos – sem prejuízo de se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor – à qualificação da insolvência como culposa.

                Finalmente, o nº 3 do mesmo preceito legal, estabelecendo, agora, presunções ilidíveis, ou seja, presunções relativas ou juris tantum, que assim podem ser ilididas por prova em contrário, dá por verificada a existência de culpa grave quando ocorram as situações aí previstas[3].

                Crendo-se que da diferenciação entre os referidos nºs 2 e 3, resulta que o legislador (cfr. art. 9.º, nº 3 do CC) não quis consagrar, neste último caso, também um complemento da noção de insolvência culposa, tal como é definida no anterior nº 1, não se dispensando a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência.

                Só se devendo considerar, no aludido nº 1, na noção aí dada, a insolvência como culposa quando, alem do mais, a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação com culpa grave do devedor ou dos seus administradores[4].

                Sendo, pois, necessário, nas situações previstas no nº 3 do citado art. 186.ºverificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, não bastando a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai.

                Não abrangendo esta presunção ilidível a do nexo de causalidade entre tais actuações omissivas e a situação da insolvência verificada ou do seu agravamento.

                Podendo ler-se, a respeito, no Manual de Direito da Insolvência:[5]

                “O art. 186.º, nº 3 contém um elenco de presunções cujo âmbito objectivo não reúne o consenso da doutrina e tão pouco da jurisprudência. Para a maioria da doutrina e da jurisprudência nacionais (onde se inclui, designadamente, Carvalho Fernandes e João Labareda[6], Raposo Subtil[7] e Menezes Leitão) “ o que resulta do art. 186.º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186.º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta[8]. Aliás, esta é igualmente a posição sustentada pela doutrina espanhola.”

                Entendeu a Relação, após a explanação de doutas considerações sobre a qualificação da insolvência, não obstante, quanto ao referido e necessário nexo causal, se não perfilhe idêntica posição, que o gerente da sociedade declarada insolvente, tendo falhado as obrigações expressas nas alíneas a) e b) do nº 3 do mencionado art. 186.º, não logrou demonstrar, como lhe competia, o carácter não culposo da insolvência, assim afastando o efeito de tais presunções, incluindo a do nexo causal entre a violação dos ditos deveres e a situação de falência ou o seu agravamento.

                Ora, e desde logo, cremos não se encontrar demonstrada a violação do dever de requerer a declaração de falência.

                Pois, tal como se diz na 1ª instância, verifica-se que o devedor não se apresentou voluntariamente à insolvência, tendo a mesma sido requerida, no dia 2 de Março de 2007, por um credor, por dívidas vencidas em 2007 e não pagas.

                Tendo a sociedade declarada insolvente sido citada para a acção em 10 de Abril de 2007.

                Tendo a mesma cessado o pagamento das suas obrigações vencidas é encerrado o estaleiro no início de Fevereiro de 2007.

                Ora, o devedor deve requerer a declaração de insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº 1 do art. 3.º[9], ou à data em que devesse conhecê-la – art. 18.º, nº 1 do CIRE.

                Presumindo-se, quando o devedor seja titular de uma empresa, de forma inilidível, o conhecimento da situação de insolvência, decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº 1 do art. 20.º seguinte.

                Desconhecendo-se, com precisão – desde logo por falta de alegação da autora, a quem a mesma e respectiva prova incumbia – qual a data em que a devedora ficou impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, sabendo-se apenas que cessou o seu pagamento no início de Fevereiro de 2007, quando a insolvência foi requerida, ainda não tinha decorrido o aludido prazo de sessentas dias que o devedor tinha, estipulado por lei, para o fazer.

                Pelo que não se pode concluir, sem mais, pela violação de tal dever.

                Mas o devedor – ou o seu representante – incumpriu (objectivamente) o dever de depositar as contas na conservatória do registo comercial (citada al. b) do nº 3 do art. 186.º e arts 3.º, nº 1, al. n) e 15.º, nº 1 do CRC[10].

                Presumir assim se deve, já que provado o contrário não resultou, ter agido o legal representante da sociedade com culpa grave.

                Mas, como atrás deixamos antever, na nossa perspectiva, tal não basta para a qualificação da insolvência como culposa.

                E, sendo certo não ter ficado provado – e a prova de tal facto à autora incumbia – o nexo causal entre o facto (a omissão verificada) e a criação da situação de insolvência ou o seu agravamento, concluir não se pode, sem mais, como fez a Relação, pela aludida qualificação.

                Pois, repete-se, mesmo que verificado o incumprimento da obrigação aludida na parte final da mencionada alínea b), assim se considerando ter o devedor ou o seu representante agido com culpa grave[11], para que a insolvência seja qualificada como culposa necessário é, ainda, que se demonstre que essa conduta criou ou agravou a situação de insolvência.

         Ora, não se provou qualquer facto que estabeleça um nexo causal entre o incumprimento da obrigação de depósito das contas da insolvente na respectiva conservatória do registo comercial e a criação ou agravamento da sua situação de insolvência.

                Mas, diz, ainda, a Relação:

                O BB, entretanto falecido, auferia como sócio gerente da insolvente o salário mínimo nacional, recebendo na prática, da sociedade, declarada insolvente, o valor líquido de € 1 500,00 mensais.

                Adquiriu o mesmo, em 28 de Dezembro de 2006, um veículo automóvel de marca Porsche 911 Cabrio, pelo valor de € 130 000,00, cujo preço foi pago pela seguinte forma: € 10 000, 00 depositados na conta titulada pela EE, Lda e € 90 454,00, através de crédito concedido pela S........, S.A.

                Tendo o B............. Com. Veículos Automóveis encomendado a pedido da sociedade AA, Lda, no dia 6 de Dezembro de 2006, o veículo de marca BMW Série 5, no montante de € 80 776,01.

                Não sendo aceitável que, enquanto a sociedade se “afunda patrimonialmente” o seu sócio gerente “se vá entretendo na aquisição de onerosas viaturas topos de gama, torrando dinheiro de forma antieconómica, como se vivesse na mais desafogada opulência.”

                Assim enquadrando tais actos de gestão, “de puro esbanjamento ou de mera e descabida ostentação” como incompatíveis com uma insolvência fortuita, não culposa.

                Contudo, como também se diz na sentença a seu tempo, de igual modo, recorrida, não resultou provado que a compra do Porsche tivesse ocorrido com dinheiros da sociedade, assim dissipados em proveito próprio do seu gerente.

                E, quanto ao BMW, provado também não resultou que tivesse saído da sociedade declarada insolvente qualquer quantia em dinheiro correspondente ao seu custo.

                Assim, não obstante o elevado grau de censura de tais condutas, sendo ocioso, face às circunstâncias tão desfavoráveis para tais actos que bem considerados podem ser como megalómanos, mais dizer a respeito, não se pode concluir, sem mais, poder enquadrar-se tais comportamentos em qualquer uma das presunções de culpa grave estabelecidas no citado art. 186.º, maxime em qualquer uma das alíneas do seu nº 2.

                O mesmo se podendo dizer quanto ao facto do dito gerente declarar auferir o salário mínimo nacional, quando, na realidade, recebia da sociedade ora insolvente o valor líquido de € 1 500,00 mensais.

                Não podendo tal situação, por mais censurável que seja, desde logo pela inerente fuga ao fisco, enquadrar-se em qualquer uma das aludidas no nº 2 do art. 186.º, não sendo sequer de admirar – embora o contrário o fosse – que o gerente de uma empresa aufira tal quantitativo real. 

                Quanto aos contratos de dação em cumprimento, celebrados em relação a sociedades credoras da sociedade insolvente, em data anterior à citação da sociedade para a acção de insolvência, também deles não pode resultar, sem mais, terem sido outorgados em proveito de terceiros[12], assim representando um verdadeiro desvio aos poderes de administração. Tendo a devedora, por via deles, ficado desonerada das correspondentes dívidas. Desconhecendo-se, aqui, se os bens entregues pela sociedade, para amortização das respectivas dívidas, que resultaram de compras de materiais de construção por parte da insolvente, eram os únicos ou até os predominantes que a esta pertenciam.

                Sendo, assim, a matéria de facto a este propósito apurada, no fundo, a mera celebração dos contratos, sem mais, insuficiente para se poder concluir que a devedora, ora insolvente, representada pelo BB, dispôs de bens em proveito de terceiros.

                Sendo certo, de todo o modo, que o ónus de alegação e prova de tal proveito de terceiros à autora também incumbir.

                Para, uma vez demonstrado, integrar, sem necessidade de mais, a culpa grave necessária à qualificação da insolvência como culposa.

                Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça, na concessão da revista, em se revogar o acórdão do tribunal recorrido, ficando antes a subsistir a sentença de 1ª instância.

                Custas pela recorrida massa insolvente.

Lisboa, 06 de Outubro de 2011

Serra Baptista (Relator)

Álvaro Rodrigues

Fernando Bento

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[1] Diploma que doravante será designado por CIRE.
[2] O incidente de qualificação da insolvência é uma novidade introduzida no CIRE por influência do direito espanhol consagrado na Ley Concursal de 9 de Julho de 2003 – Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, p. 61. Cfr, também, Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, p. 201 e Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, p. 13.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. e vol. citados, p. 14 e 15.
[4] Acs da RL de 22/1/2008 (Graça Amaral), Pº 10141/2007-7 e de 21/4/2009 (Sílvia Pires), Pº 369/07.6TBCDN-B.C1, com menção de doutrina e de jurisprudência das Relações a este propósito e da RC de 8/2/11 (Beça Pereira), Pº 1543/06.8TBPMS.C1. Cfr, ainda no mesmo sentido, A. Raposo Subtil e outros, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, p 265
[5] Maria do Rosário Epifânio, 2ª ed., Almedina, p. 126.
[6] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, p. 611.
[7] E outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, p. 265.
[8] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, p. 273.
[9] Assim rezando este prefeito legal: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
[10] Código do Registo Comercial.
[11] Já que tal presunção não foi ilidida.
[12] Não obstante poder ser pedida a sua resolução incondicional (art. 121.º do CIRE).