Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
681/14.8TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FALTA DE LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
DIREITO DE RESOLUÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
CONDENAÇÃO GENÉRICA
Data do Acordão: 09/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / LIMITES DA CONDENAÇÃO.
Doutrina:
- Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil “ Anotado, vol. II, 648.
- Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, 315.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 566.º, N.º2, 1070.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 609.º, N.º2.
DEC. LEI N.º 160/06, DE 8-8, ALTERADO PELO DEC. LEI N.º 266-C/12, DE 31-12: - ARTIGO 5.º, N.ºS 7, 8.
LEI N.º 60/07, DE 4-9, E ALTERADO PELO DEC. LEI N.º 26/10, DE 30-3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 11-10-1994, BMJ 440º/448, DE 27-01-93, CJSTJ, TOMO I, PÁG. 89, E DE 29-01-98, BMJ 473º/445. E, MAIS RECENTEMENTE, DE 28-10-2010, 08-11-2012, 20-11-2012 OU DE 30-04-2015, ACESSÍVEIS ATRAVÉS DE WWW.DGSI.PT.
-DE 05-02-2015, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. Incidindo o contrato de arrendamento comercial para o exercício da actividade de restauração e bebidas sobre prédio urbano destituído de licença de utilização, é reconhecido ao arrendatário o direito de resolução desse contrato, sendo indiferente para o efeito se a actividade a que o arrendado se destinava é de qualificar como “comercial”, em sentido amplo, ou como “industrial”.

II. A par da declaração da resolução do contrato de arrendamento, a lei reconhece ao arrendatário o direito de exigir do locador indemnização pelos prejuízos causados, designadamente em função das despesas realizadas com as obras e aquisição de equipamentos para o estabelecimento.

III. O facto de o autor ter formulado na acção declarativa de condenação um pedido de indemnização líquido não impede o Tribunal de proferir sentença de condenação em quantia a liquidar posteriormente desde que os elementos de facto, embora revelando a existência de um dano patrimonial, se mostrem insuficientes para a sua quantificação.

IV. Não tendo sido alegado por qualquer das partes o destino alternativo que seria dado aos materiais e equipamentos que foram adquiridos pelo arrendatário na sequência e por causa do contrato de arrendamento, elemento que seria relevante para apuramento do dano patrimonial efectivo, justifica-se a prolação de sentença de condenação em quantia ilíquida e não de absolvição pedido de indemnização.

Decisão Texto Integral:
I - AA, Unipessoal, Ldª, intentou acção declarativa de condenação contra BB e marido CC, pedindo que fossem condenados a pagar-lhe a quantia de € 73.737,96, “referente aos investimentos efectuados com obras e maquinaria utilizada, no espaço objecto do arrendamento” e outra quantia a título de lucros cessantes, a ser apurada em liquidação de sentença.

A A. alegou que tomou de arrendamento um prédio urbano dos RR. para nele instalar e explorar um restaurante. Apesar de estes lhe terem assegurado que o locado tinha licença de utilização, tal não era verdade, não podendo concretizar o seu objectivo, malgrado as despesas que a A. suportou com a realização de obras e aquisição de equipamentos.

Impossibilitada de exercer a sua actividade no locado, a A. declarou aos RR. a resolução do contrato, reclamando destes a indemnização legal pelos prejuízos que sofreu.

Os RR. contestaram alegando que informaram a A. que o locado não tinha licença de utilização, assumindo a A. o encargo de obter junto das entidades competentes, incluindo a CML, a suas expensas, as licenças inerentes à actividade que pretendia exercer. Negaram qualquer responsabilidade relativamente aos prejuízos invocados pela A.

Em reconvenção, alegaram que a A. continuava na posse do locado, pelo que estava em dívida, em relação à renda estipulada (€ 600,00 por mês), o equivalente a 14 rendas, a que acresceria as que se vencessem até entrega do locado.

Concluíram pela absolvição do pedido e pediram em reconvenção que a A. fosse condenada a pagar-lhes a quantia de € 8.400,00, correspondente às rendas vencidas, bem como nas rendas vincendas até efectiva entrega do locado aos RR., e juros de mora desde a data de vencimento das prestações decorrentes da locação em dívida.

A A. respondeu à reconvenção.

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, ao abrigo do art. 227º do CC, condenou a R. BB a pagar à A. uma indemnização no montante de € 59.529,39, com juros de mora, desde a data da citação, absolvendo o R. CC do pedido. A sentença julgou ainda parcialmente procedente a reconvenção e condenou a A. a pagar à R. BB a quantia de € 600,00 mensais, desde 13-9-13 inclusive até à entrega efectiva do locado.

A R. BB apelou da sentença e a Relação condenou a R. a pagar à A., a título de indemnização por danos emergentes, a quantia a liquidar, até ao valor máximo de € 58.639,80, com juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

A mesma R. interpôs recurso de revista em que suscitou duas questões de direito:

a) Tendo a actividade de restauração natureza industrial, não seria a falta de licença de utilização do prédio para o exercício da actividade comercial que inviabilizaria aquela actividade; o contrato está ferido de nulidade com fundamento na impossibilidade originária, gerando a obrigação de restituição por cada uma das partes de tudo o que foi prestado;

b) A ausência de alegação por parte da A. de todos os factos pertinentes para a fixação da indemnização (no caso, o destino alternativo que seria dado ao material que foi adquirido para apetrechar o estabelecimento comercial) determina a improcedência da acção em lugar da condenação em liquidação de sentença.

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. Entre a A. e a R. foi outorgado o contrato anexo à petição inicial como doc. nº 1, contrato esse datado de 17-1-13, o qual foi denominado de «Contrato de Arrendamento para Fins Comerciais» (art. 1º da PI);

2. Tal contrato teve por objecto o prédio urbano sito na Av. …, P.C.G, freguesia de São Mamede, em Lisboa, inscrito na matriz sob o art. 2.757 (art. 4º da PI;

3. Pelo referido contrato, a R. declarou dar de arrendamento à A. o prédio supra descrito, para o exercício da “actividade de restauração e outras análogas dentro do ramo de alimentação», pelo prazo de 7 anos, com início em 1-3-13 e termo em 29-2-20, mediante uma renda mensal no valor de € 600,00 (arts. 3º, 5º, 7º e 13º da PI);

4. A A. negociou e celebrou o contrato supra referido para instalar no prédio um restaurante DD, à semelhança de outros já instalados em Lisboa (art. 3º da PI);

5. No prédio em questão funcionou um salão de jogos durante 20 anos, uma firma de materiais de construção durante 10 anos e um stand auto durante 3 anos (art. 17º da PI);

6. À data da outorga do contrato, em 17-1-13, a A. desconhecia que não poderia vir a exercer no locado uma actividade comercial, por falta de licença de utilização do mesmo (art. 18º da PI);

7. A A. assinou o contrato no pressuposto de que o locado estaria legalizado para o exercício da actividade comercial (art. 9º da PI);

8. Os RR. sabiam que o locado não tinha licença de utilização;

9. A A. assumiu o encargo de, junto das entidades competentes, nomeadamente da Câmara Municipal, obter e a suas expensas, a licença para o exercício da actividade de restauração (art. 7º da contestação);

10. As assinaturas dos outorgantes foram reconhecidas presencialmente pelo Dr. EE (art. 2º da PI);

11. O prédio encontra-se registado na CRP de Lisboa em nome da R., ali constando como título de aquisição a usucapião (art. 4º da PI);

12. Após a celebração do contrato, a A. iniciou as obras de reparação e de instalação do estabelecimento de restauração (art. 37º da PI);

13. Após a celebração do contrato, a A. adquiriu materiais para a realização de obras no locado, que realizou, e adquiriu serviços tendo em vista a instalação do restaurante DD no locado (art. 12º da PI);

14. Entre os materiais referidos em 9 e 10, incluem-se os seguintes bens:

1 aparador;

6 candeeiros Oriente;

2 móveis de parede para copos;

1 armário refrigerado vertical;

1 bancada de frio Inoxtel de 2 ms;

1 bancada Inoxtel de 1,5 m;

1 bancada Nuetra inox Apolo de 1,20m;

1 bancada inox com cuba de lavagem;

2 louceiros de parede inox 1,20m;

1 fogão Bertos com 4 bicos trifásico;

1 fritadeira dupla Junex;

1 hotte de extracção de fumos inox de 2 metros;

1 caldeira termal 50 litros;

1 motor de extracção de fumos;

1a máquina de lavar loiça Krupps;

1 frigorífico vertical Phillips 800 lts;

2 lava mãos inox com pedal;

1 banho maria alimentar;

1 forno Krupps com grill;

1 micro-ondas Belonda;

1 mata-moscas inox 100 m2;

1 máquina de gelo Artifrio 40 kgs;

1 POS Front Office Glaudius;

1 máquina café Rancilio 2 grupos;

2 impressoras térmicas;

1 gaveta monetária metal preta;

1 sistema operativo Winrest Pro 2009;

1 LCD 42” Samsung preto LED;

6 mesas de madeira preta 120 x 600;

12 cadeiras Oriente pretas

 … tudo no total de € 39.802,80, incluindo IVA.

15. O valor dos materiais e serviços supra referidos ascendeu a € 58.639,80; (art. 14º da p.i.) (alterado pela Relação);

16. O valor supra referido foi despendido na preparação do locado para o início da laboração do restaurante da A. DD (art. 16º da p.i.);

17. Em 18-2-13, a A. deu entrada nos serviços camarários de Lisboa de uma «declaração prévia» com vista à abertura do restaurante no locado (art. 16º da p.i.);

18. A CML enviou à A. um ofício datado de 19-2-13 com o seguinte teor:

«No dia 18/02/2013 deu entrada nestes serviços uma Instalação de Declaração Prévia para o local supra mencionado.

Após apreciação liminar, verificou-se que faltava a cópia da licença de utilização ou alvará de restauração e bebidas, tendo sido a requerente avisada na mesma altura para a entrega desse mesmo documento (quis entregar o pedido sem esse documento).

Após pesquisa no sistema Gesturbe, verificou-se que para o local não existe nenhum pedido de autorização de utilização para Restauração e Bebidas e, segundo a requerente, nunca foi emitido nenhum alvará para esse fim, afirmando inclusive que não existe antecedentes em arquivo (construção ilegal?).

Ora, de acordo com o art. 10.º do Dec. Lei nº 234/2007, para que possa ser aceite uma declaração prévia de instalação, tem que existir sempre um processo de autorização de utilização a correr na CML, caso contrário, não pode ser entregue uma declaração de instalação.

Posto isto, propõe-se a extinção do procedimento com base nesta informação.» (arts. 20º e 21º da p.i.);

19. A A. recebeu o ofício enviado pela CML, datado de 21-6-13, anexo à p.i. como doc. nº 51 (onde se refere, além do mais, para justificar o indeferimento do licenciamento, que “… a construção existente é ilegal ” e que “… no presente caso a construção pretendida não se conforma co o Regulamento do Plano de Pormenor da Artilharia Um …”, assim como “… verificamos que a construção existente é ilegal e que não terá hipóteses de ser legalizável …” (art. 32º da p.i.)

20. A A. enviou aos RR. uma carta a solicitar a licença de utilização do locado (art. 22º da p.i.);

21. Mediante carta datada de 3-7-13, os RR. responderam à supra referida missiva, anexa à p.i. como doc. nº 44 (art. 23º da p.i.);

22. A CML enviou à A. uma carta registada com aviso de recepção, datada de 4-7-13, com o seguinte teor (doc. nº 45 anexo à p.i.):

«(…)

O pavilhão pré-fabricado que V. Exª. ocupa e sobre o qual fez um pedido de licenciamento encontra-se abusivamente instalado numa parcela de terreno municipal integrada na via pública, estando em curso um procedimento de despejo para o local.

Mais informamos que, sendo o Município o proprietário do terreno em causa, pretende reavê-lo livre e desocupado, o que é condição de prossecução de interesse público.

Em face do exposto, fica V. Exª notificado de que é intenção deste Município ordenar a desocupação total do local, de forma a remover o pavilhão abusivamente instalado na parcela de terreno municipal, sendo-lhe dado o prazo máximo de 30 dias para o fazer, fundo o qual promoveremos a desocupação coerciva. (…)» (art. 24º da PI);

23. O mandatário da A. enviou à R. a carta anexa à p.i. como doc. n.º 46, datada de 15-7-13 (onde refere, além do mais, que “o meu cliente jamais pensou que o imóvel em si mesmo não possuía licença de utilização, e essa matéria nunca poderia ser da responsabilidade do inquilino, apenas do proprietário, senhorio …”(art. 25º da p.i.);

24. O mandatário da A. enviou à CML a carta datada de 18-7-13, anexa à Petição Inicial como doc. nº 48 (arts. 26º e 27º da p.i.);

25. A A. enviou à R. uma carta datada de 9-9-13, e com aviso de recepção, a qual foi pela segunda recebida em 12-9-13, carta essa anexa à p.i. como doc. nº 49 (art. 29º da p.i.);

Consta da referida missiva o seguinte:

«Tendo em conta os prazos já decorridos sem que se vislumbre uma solução para o exercício no local arrendado por V. Exª da actividade exercida por nós, por causa determinante e que lhe é directamente imputável, vimos proceder à resolução do contrato de arrendamento do imóvel sito na Av. …, P.C. G 1070- em Lisboa.

Esta resolução tem como fundamento justa causa, tendo em conta que V. Exª procedeu ao arrendamento daquele imóvel para a actividade de restauração, sem que o mesmo tivesse Alvará de Licença de Utilização do Imóvel, contrariamente ao que nos declarou na data do arrendamento. (…)» (art. 29º da p.i.);

26. Em resposta à carta supra referida, a R. enviou à A. uma carta datada de 18-10-13, anexa à p.i. como doc. nº 50 (art. 30º da p.i.);

27. A A. mantém a posse do locado até à presente data (data da sentença);

28. A A. apenas pagou a quantia de € 1.200,00 correspondente à 1ª renda e caução.


III – Decidindo:

1. Por expressa manifestação de vontade da R. o presente recurso de revista encontra-se circunscrito às questões que foram referenciadas no voto de vencido (cfr. a conclusão A)), sendo mais lógico iniciar pelo tratamento do alegado vício do contrato de arrendamento, deixando para segundo lugar a questão da admissibilidade da condenação genérica.


2. Quanto à alegada nulidade do contrato por impossibilidade originária:

2.1. No acórdão recorrido considerou-se que a falta de licença de utilização genérica relativamente ao prédio locado (susceptível de permitir à A. o licenciamento da actividade de restauração) constituía uma falha imputável à R., legitimando a resolução do contrato e a pretensão indemnizatória.

A R. recorrente pretende que se considere a existência de uma divergência qualificativa entre o fim “comercial” a que o prédio (pavilhão pré-fabricado) se destinava e a natureza “industrial” da actividade de restauração bebidas que a A. pretendia exercer no locado, reconduzindo-a a uma situação de impossibilidade originária prevista no art. 401º do CC, sancionada com a nulidade do contrato.

Se bem compreendemos a argumentação da R. recorrente, a actividade de restauração seria uma actividade industrial e não comercial, de modo que não foi a falta de licença de utilização para o exercício de actividade comercial que inviabilizou o exercício da actividade de restauração no prédio arrendado.

Considera que a matéria de facto revela a existência de um contrato ferido de nulidade (por alegada impossibilidade originária da obrigação), o que determinaria a restituição de tudo quanto foi prestado e do pagamento pela ocupação do prédio, “à luz dos arts. 227º, nº 1, e 289º, nº 1, do CC”, ficando prejudicado o direito de resolução que foi exercitado pela A.


2.2. Independentemente da sustentação material da sua argumentação, a questão suscitada pela R. apenas surgiu depois de ter sido confrontada com a sentença de 1ª instância que lhe foi desfavorável na parte respeitante às pretensões deduzidas pela A..

Ora, a fase de recurso não é adequada a suscitar questões novas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. E posto que a verificação da nulidade do contrato (in casu por alegada impossibilidade originária da prestação) seja de conhecimento oficioso, tal depende, na perspectiva da própria R., da verificação de uma distinção entre a natureza comercial ou industrial da actividade que a A. pretendia exercer, em conexão com a finalidade a que o locado estaria adstrito. Nesta medida, não se trata de uma mera questão de direito, dependendo da alegação de factos cuja discussão deve (deveria) ser assegurada na fase dos articulados, não sendo curial transferir essa discussão e a correspondente apreciação para a fase de recurso.

Ou seja, uma alegada situação de impossibilidade originária da prestação que, na tese da R., seria susceptível de gerar a nulidade material do negócio jurídico, não dispensaria a oportuna alegação dos factos reveladores de tal vício contratual. Não se trata, pois, de uma questão cuja apreciação decorra do mero confronto entre o negócio jurídico em causa e as normas aplicáveis, como ocorre quando estão em causa aspectos de natureza puramente formal.

Ora, como se disse, esta questão, sendo simultaneamente de facto de direito, não foi suscitada na fase dos articulados. E sendo extemporânea a sua invocação nas alegações do anterior recurso de apelação, essa extemporaneidade e inoportunidade igualmente se revelam em face do presente recurso de revista.


2.3. Todavia, ainda que porventura fosse oportuna a discussão em sede desta revista dos efeitos de uma eventual divergência entre uma finalidade puramente “comercial” do prédio que foi objecto da locação e a actividade “industrial” pretendida pela A., nem assim o resultado pretendido pela R. (declaração de nulidade do contrato) poderia ser considerado.

Pretende a R. que se considere a nulidade do contrato por via da impossibilidade originária da prestação, nos termos do art. 401º do CC.

Insiste a R. na argumentação que já usara no anterior recurso de apelação, pretendendo furtar-se aos efeitos que decorrem da resolução contratual que foi accionada pela A., a qual pode surgir cumulada com pedido de indemnização, nos termos do art. 1070º, nº 2, do CC, em conjugação com o art. 5º, nº 7, do Dec. Lei nº 160/06, de 8-8, alterado pelo Dec. Lei nº 266-C/12, de 31-12.

Invocando em seu apoio um acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça que transcreveu longamente, a situação que em tal aresto foi apreciada não se identifica com a que está subjacente ao presente litígio. Ademais, no caso concreto, não se revela sequer a existência de uma discrepância entre a utilização permitida para o prédio e o uso pretendido pela R., pelo singelo motivo de que o prédio não detinha qualquer licença de utilização.

Reconduzir esta realidade à impossibilidade originária da prestação, para obter a nulidade do contrato, não encontra, sob qualquer perspectiva, fundamento legal, além de um tal invocação não superar a figura do venire contra factum proprium.

Na verdade, nesta eventualidade, sendo a R. a responsável pela situação que se traduziu na cedência à A. de um espaço que aparentemente estaria licenciado em termos urbanísticos, de modo a que a A. pudesse obter o licenciamento comercial para a actividade económica que pretendia exercer, não seria de admitir que a R. viesse agora invocar a existência de uma alegada situação de impossibilidade da prestação com o único fito de se eximir ao pagamento da indemnização decorrente da responsabilidade civil pré-contratual que a lei confere ao arrendatário.

Acresce ainda que está provado que no prédio em questão funcionou um salão de jogos durante 20 anos, uma firma de materiais de construção durante 10 anos e um stand auto durante 3 anos, o que tornaria ainda mais incompreensível a invocação daquele vício com as consequências que do mesmo a R. pretende retirar, tanto mais que apenas releva para o efeito a impossibilidade absoluta e não a relativa (Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 103).


2.4. A solução adequada é aquela que foi configurada no acórdão recorrido cuja fundamentação se subscreve integralmente.

Tendo as partes outorgado um contrato de arrendamento urbano para o exercício da actividade de restauração e análogas que apelidaram de “contrato para o exercício de actividade comercial”, o prédio locado – um pavilhão pré-fabricado implantado numa parcela de terreno urbano – não dispunha nem dispõe de qualquer licença de utilização.

Independentemente da natureza jurídica da actividade de restauração como “industrial” ou “comercial”, o prédio que para o efeito foi cedido pela R. não estava isento da licença de utilização que era imprescindível à posterior legalização da actividade que a A. nele pretendia exercer.

Não é discutida a afirmação constante do acórdão recorrido de que “o «pavilhão» referido pela recorrente constitui uma construção incorporada no solo com carácter de permanência, pelo que é um edifício para os efeitos do RJUE” (Lei nº 60/07, de 4-9, e alterado pelo Dec. Lei nº 26/10, de 30-3) ou de que “a colocação em uso do aludido imóvel carecia de autorização municipal”, “cabendo à senhoria, por ser a sua proprietária, a obtenção da autorização ou licença de utilização”.

Embora a A. se tivesse comprometido a obter o licenciamento da actividade de restauração pretendida para o local, era sobre a R. que recaía a obrigação de lhe ceder um prédio que estivesse genericamente licenciado para o efeito, permitindo a sua ocupação, o que, como a matéria de facto o demonstra, não ocorreu.

Nestas circunstâncias, não existe qualquer motivo para questionar o exercício do direito de resolução do contrato que foi declarado pela A., nos termos do art. 5º, nº 7, do Dec. Lei nº 160/06, de 8-8, alterado pelo Dec. Lei nº 266-C/12, de 31-12, que deu seguimento ao previsto no art. 1070º, nº 2, do CC.

Para situações como a dos autos em que pura e simplesmente inexiste qualquer licença de utilização, tratando-se de arrendamento que não respeitou as normas instituídas para a edificação de edifícios como o dos autos, o legislador atribuiu ao arrendatário os direitos de resolução do contrato e de indemnização que à A. foram reconhecidos (art. 5º, nº 7, do Dec. Lei nº 160/06).

Aliás, a nulidade do contrato está especificamente prevista para os casos em que exista uma divergência entre a finalidade do contrato e aquela que se encontre definida pelo licenciamento, ainda assim, sem prejudicar o direito de indemnização reconhecido ao arrendatário (art. 5º, nº 8, do citado diploma.).


3. Sentença de condenação genérica:

3.1. Ultrapassada a questão da legitimidade do direito de resolução, a R. não questiona o direito de indemnização que é reconhecido ao arrendatário (art. 5º, nº 7, do Dec. Lei nº 160/06 já citado); limita-se a discutir a possibilidade de operar uma condenação genérica, uma vez que, em seu entender, a A. não alegou os factos relacionados com o destino alternativo do investimento que fez para apetrechar o estabelecimento.

No acórdão recorrido foi alterada a sentença e, em lugar da condenação da R. no montante líquido das despesas realizadas com o apetrechamento do locado para o exercício da actividade de restauração e bebidas, foi a R. condenada a pagar à A., a título de indemnização por danos emergentes, a quantia que vier a ser liquidada, até ao valor máximo de € 58.639,80 (englobando os custos com as obras e com os equipamentos adquiridos).

Para o efeito ponderou-se que não ficara “claro em que termos os materiais adquiridos puderam ou poderão ou não ser aproveitados noutro local (cfr. nº 4 da matéria de facto) e foram ou poderão ou não ser transaccionados, com maior ou menor prejuízo em relação ao valor da aquisição”. Refere-se ainda no acórdão recorrido que “quanto aos danos emergentes, afigura-se-nos que, no caso destes autos, a quantificação e concretização dos danos efectivamente sofridos carece de ulterior prova, na medida em que, conforme decorre das facturas juntas aos autos, pelo menos parte das despesas sofridas respeitam a bens aparentemente recuperáveis e utilizáveis e transaccionáveis”.

Sobre esta argumentação e a correspondente decisão incidiu o voto de vencido considerando que, em face da falta de apuramento de todos os factos relevantes para a liquidação do dano, seria mais apropriada a improcedência da pretensão, não sendo de permitir à A. uma segunda oportunidade para o efeito.

Foi nesse voto de vencido que a recorrente procurou acolher-se, mas sem qualquer razão, fazendo todo o sentido a tese que fez vencimento, por ser aquela que melhor enquadra não apenas a intervenção da teoria da diferença da quantificação dos danos patrimoniais, como a razão de ser da condenação ilíquida, nos termos do art. 609º, nº 2, do CPC.


3.2. Ainda que relativamente a uma situação diversa em que estava em causa a revogação de um contrato de prestação de serviços por parte de quem os solicitada e a indemnização dos prejuízos causados, já no Ac. do STJ, de 5-2-15 (www.dgsi.pt), relatado pelo ora relator e com intervenção do primeiro adjunto, houve ensejo de desmontar um argumento formal de teor semelhante ao usado no voto de vencido, no sentido de negar a atribuição da indemnização ilíquida pelo facto de o credor não ter invocado as despesas que deixou de efectuar depois da revogação do contrato.

Nesse acórdão foi elaborado sumário em que, além do mais, se sintetizou que:

“…

2. Tratando-se de prestação de serviços por tempo determinado, a quantificação da indemnização por lucros cessantes deve equivaler à diferença entre a situação patrimonial que existiria se o contrato tivesse sido integralmente executado e aquela que resultou da revogação antecipada.


4. A falta de prova de factos necessários à quantificação da diferença patrimonial, mesmo com recurso à equidade, determina a prolação de uma sentença de condenação genérica (art. 609º, nº 2, do CPC).

5. Não tendo as partes deduzido na acção declarativa qualquer alegação em torno de eventuais despesas que a prestadora de serviços deixou de efectuar por causa da revogação antecipada do contrato, nem sendo possível afirmar a existência de uma relação causal entre a revogação antecipada e uma eventual redução dessas despesas, a indemnização por lucros cessantes corresponde ao valor das receitas projectadas para o período contratual em falta”.

Também relativamente à presente situação se pode asseverar que, não tendo as partes alegado o destino dado ao equipamento que foi adquirido pela A. para apetrechamento do estabelecimento comercial a que respeitava o contrato de arrendamento que foi resolvido pelo arrendatário, nada obsta a que o apuramento do dano patrimonial correspondente à teoria da diferença seja diferido para momento posterior, atento o disposto no art. 566º, nº 2, do CC.


3.3. O facto de não ter sido provado – porque nem sequer foi alegado por qualquer das partes – o destino final dos equipamentos adquiridos não pode levar à improcedência da pretensão indemnizatória.

Para situações semelhantes tem sido insistentemente decidido neste Supremo que o facto de o A. ter optado pela dedução de um pedido específico não impede o Tribunal de proferir uma sentença de condenação genérica. Ponto é que a matéria de facto apurada permita afirmar a existência de um dano (ou de um crédito) ainda não quantificado.

Por isso, não se compreende a insistência que foi feita no voto de vencido no sentido da defesa de uma solução absolutória, com emprego de uma argumentação que se revela anacrónica em face da jurisprudência estabilizada deste Supremo.

Mais do que decorrente de uma visão formalista, tal argumentação ignora os avanços a que o processo civil foi sujeito nas últimas décadas e defronta-se com a interpretação que deve ser assumida para o que se dispõe no art. 609º, nº 2, do CPC.

Assim, desde que se apure a existência de danos (ou, de modo mais amplo, a existência de um direito de crédito e da correspondente obrigação de prestação), sem que os autos permitam a sua imediata quantificação, com ou sem recurso à equidade (quando esta seja admissível), a acção declarativa deve terminar com uma sentença de condenação ilíquida.

Foi o que se decidiu nos Acs. do STJ, de 11-10-94, BMJ 440º/448, de 27-1-93, CJSTJ, tomo I, pág. 89, e de 29-1-98, BMJ 473º/445. E mais recentemente, entre outros, nos Acs. do STJ, de 28-10-10, 8-11-12, 20-11-12 ou de 30-4-15 (neste último, o ora relator e primeiro adjunto intervieram como adjuntos), acessíveis através de  www.dgsi.pt.

Verifica-se, aliás, uma plena consonância com a solução doutrinal, sendo de destacar Lebre de Freitas quando refere que a opção por uma condenação genérica ou ilíquida, em casos em que a matéria de facto não permita concretizar a prestação devida pode acontecer “tanto nos casos em que é deduzido pedido genérico não subsequentemente liquidado como naquele sem que o pedido se apresenta determinado, mas os factos constitutivos da liquidação da obrigação não são provados (CPC anot., vol. II, pág. 648, citando outros autores: Alberto dos Reis, Lopes Cardoso, Rodrigues Bastos e Gonçalves Salvador). Solução que em face do NCPC também defendida por Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, pág. 315.

É esta a resposta que frequentemente tem sido dada no campo da responsabilidade extracontratual, designadamente quando estão em causa perdas patrimoniais já verificadas mas ainda não comprovadas na acção declarativa. Resposta extensiva à responsabilidade contratual, quando, como ocorre no caso concreto, estão apurados factos que revelam a existência de um prejuízo, mas faltam ainda elementos relevantes para a sua quantificação.


3.4. Devendo a indemnização servir para restabelecer a situação patrimonial (art. 566º, nº 2, do CC), bem fez a Relação em limitar a indemnização ao valor que posteriormente se vier a apurar, tendo como limite máximo o que foi despendido pela A.

Com efeito, recaindo sobre a A. o ónus da prova dos factos relevantes para a fixação do montante da indemnização devida pela resolução do contrato, a matéria de facto apurada reflecte, ainda que de forma ilíquida ou genérica, a existência de uma repercussão patrimonial negativa da actuação da R. na esfera da A.

A atribuição de uma indemnização deve pautar-se pelo critério da diferença entre a situação existente e aquela que existiria se não houvesse responsabilidade civil (art. 566º, nº 2, do CC). Nessa medida não seria destituída de relevo a alegação e demonstração - que essencialmente seria do interesse da R. contra quem era deduzida a pretensão indemnizatória - de que da resolução do contrato não resultou o desaproveitamento de todas as despesas realizadas, facto tanto mais natural quanto é certo que se trata de despesas feitas com a aquisição de equipamentos de restauração reutilizáveis ou transaccionáveis.

Todavia, no caso concreto, nenhuma das partes alegou qualquer facto com relevo para a quantificação do valor por que foram ou seriam transaccionados ou reaproveitados os equipamentos adquiridos pela A., assim se justificando a opção por uma condenação genérica ou ilíquida.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo da R.

Notifique.

Lisboa, 22-9-16


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo