Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
304/07.1TTSNT.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR
RESPONSABILIDADE AGRAVADA
NEXO DE CAUSALIDADE
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :

I - A responsabilidade, principal e agravada, do empregador pode ter dois fundamentos autónomos: um comportamento culposo da sua parte; a violação, pelo mesmo empregador, de preceitos legais ou regulamentares ou de directrizes sobre higiene e segurança no trabalho.
II - A diferença existente entre ambos reside na prova da culpa, que é indispensável no primeiro caso e desnecessária no segundo.
III - A desnecessidade de prova da culpa quando esteja em causa a violação de preceitos legais ou regulamentares ou de directrizes sobre higiene e segurança no trabalho – não traduzindo qualquer desvio às regras gerais sobre responsabilidade civil – traduz, por um lado, a opção do legislador ao considerar que tal violação constitui fundamento autónomo bastante para o agravamento do direito à reparação e, por outro lado, a assumpção que a culpa (mera culpa) consiste na omissão dos deveres de cuidado exigidos ao agente, pelo que a falta de cumprimento das assinaladas regras mais não consubstancia, afinal, do que a omissão concreta de um especial dever de cuidado imposto por lei.
IV - Em contrapartida, ambos os fundamentos exigem, a par, respectivamente, do comportamento culposo ou da violação normativa, a necessária prova do nexo causal entre o acto ou a omissão – que os corporizam – e o acidente que veio a ocorrer.
V - O ónus da prova dos factos susceptíveis de agravar a responsabilidade do empregador recai sobre quem dela tirar proveito, sejam eles os beneficiários do direito reparatório, sejam as instituições seguradoras que pretendam ver desonerada a sua responsabilidade infortunística.
VI - A verificação do segundo fundamento da responsabilidade principal e agravada do empregador, enunciado em I, pressupõe a concorrência de dois requisitos: que sobre o empregador recaia o dever de observar determinadas regras de comportamento, cuja observância teria impedido, segura ou muito provavelmente, a consumação do evento, assim omitindo o cuidado exigível a um empregador normal; que entre essa conduta omissiva e o acidente intercorra um nexo de causalidade adequada.
VII - O nosso sistema positivo acolheu, por via do art. 563.º, do CC, a “teoria da causalidade adequada”, de acordo com a qual a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado não teria provavelmente sofrido se não fosse a lesão.
VIII - A afirmação de um nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes: a vertente naturalística, de conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano; a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstracto, como causa idónea do dano ocorrido.
IX - A adequação concreta entre o comportamento do agente e o efeito lesivo tanto pode ser obtida através da prova que tenha sido directamente alcançada sobre a matéria, como pode ser indirectamente afirmada por meio de presunções judiciais, sendo que, em qualquer dos casos, estamos sempre num domínio de soberania exclusiva das instâncias.
X - Porque as presunções judiciais se inserem no julgamento da matéria de facto e constituem um meio probatório de livre apreciação do julgador, está de todo vedado ao Supremo proceder à sua avocação, visto que a sua competência funcional, afora as situações de controlo da prova tabelada, se restringe à aplicação definitiva do regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelas instâncias – arts. 87.º, do CPT, e 721.º e 729.º, do CPC.
XI - E, pelos mesmos fundamentos, não pode o Supremo sindicar o uso, ou não uso, pela Relação do meio probatório em análise.
XII - Todavia, já poderá o Supremo – por ser uma questão de direito – aferir se as presunções extraídas pelas instâncias violam os arts. 349.º e 351.º, do CC, ou seja, se foram inferidas de factos desconhecidos – designadamente por não terem sido provados – ou irrelevantes para o efeito – designadamente porque o facto presumido exige um grau superior de segurança na prova – e, bem assim, se a ilação extraída conflitua com factualidade provada ou contrarie outra que, submetida expressamente ao crivo probatório, tenha sido dada como não provada.
XIII - Desconhecendo-se, em absoluto, a dinâmica do acidente, estava vedado à Relação extrair qualquer presunção sobre a verificação, em concreto, do nexo causal entre a violação cometida pela Ré empregadora e o acidente dos autos.
XIV - E não se provando o enunciado nexo causal, também é forçoso concluir que não concorrem os pressupostos determinantes da responsabilidade principal e agravada da Ré empregadora.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
1- RELATÓRIO

1-1
AA, BB e CC, patrocinadas oficiosamente pelo Ministério Público, intentaram, no Tribunal do Trabalho de Sintra, a presente acção especial, emergente de acidente de trabalho, contra “Companhia de Seguros DD S.A.” e “DD – Sociedade de Construções, S.A.”, de quem reclamam, “... na proporção das respectivas responsabilidades”, a reparação do acidente laboral que vitimou mortalmente EE, marido da primeira Autora e pai das duas restantes.
Ambas as Rés contestaram:
- excepcionando a Seguradora a inobservância das normas de segurança no trabalho que, na espécie, se impunham, e a atitude temerária assumida pelo próprio acidentado;
- rejeitando a empregadora que o sinistro tivesse sido provocado pela inobservância das apontadas regras de segurança.
1-2
Instruída e discutida a causa, foi proferida sentença que condenou a Ré Seguradora a reparar o acidente ajuizado, sendo que a Ré empregadora também o foi, mas apenas – e na medida – em que não transferira integralmente a sua responsabilidade infortunística.
Nesse sentido, considerou a 1.ª instância que a entidade patronal do sinistrado violara as regras de segurança a observar “in casu” mas que, não obstante, quedara improvado o imprescindível nexo causal entre esse incumprimento e o sobredito acidente, motivo por que não concorriam os pressupostos de que dependia a responsabilização principal daquela entidade.
Irresignada com o segmento decisório que afirmou aquela omissão probatória – e que consequenciou a sua condenação em 1.ª linha – a Ré Seguradora apelou da sentença, com o que obteve inteiro sucesso, visto que o Tribunal da Relação de Lisboa afirmou a verificação do questionado nexo causal, condenando a entidade patronal do sinistrado a reparar o acidente a título principal e de forma agravada, ficando a seguradora onerada apenas com uma responsabilidade meramente subsidiária.
1-3
Desta feita, a reacção recursória provém da Ré Empregadora, que pede a presente revista, onde convoca o seguinte núcleo conclusivo:
1 – o tribunal de 1.ª instância julgou o caso em conformidade com a matéria de facto apurada, possivelmente adoptando a maravilhosa sentença de Sócrates: “É preferível suportar a injustiça do que praticá-la”;
2 – a M.mª Juíza do Tribunal do Trabalho de Sintra, que decidiu a presente causa em 1.ª instância, tomou a decisão mais acertada e justa, atendendo que é dever do julgador procurar descobrir a verdade objectiva em toda a consciência e, no caso de uma dúvida razoável no apuramento da verdade, deverá pronunciar-se a favor do Réu;
3 – a fundamentação da decisão ora recorrida labora numa falácia, pois assenta no pressuposto “que a queda do sinistrado tivesse sido provocada, por hipótese, por um tropeção, uma tontura ou perda de equilíbrio do próprio...” (cit. Acórdão recorrido, p.8), quando, na verdade, não se sabe se a queda do sinistrado foi provocada “por um tropeção, uma tontura ou perda de equilíbrio do próprio ou qualquer outra circunstância que manifestamente nada tivesse a ver com o cumprimento ou incumprimento das regras de segurança no trabalho por parte do empregador...”(cit. Acórdão recorrido, p.8, sublinhado nosso);
4 – a queda do trabalhador sinistrado pode ter ocorrido em virtude deste se encontrar a descer ou a subir o andaime pelo seu exterior (não obstante a existência de escadas interiores), ou decorrido dum acto desesperado do mesmo, sendo certo que só o sinistrado ou O Omnisciente poderiam, de facto, esclarecer objectivamente as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente dos autos;
5 – considerando a estatura do trabalhador sinistrado, a sua volumetria corporal (vide relatório de autopsia), temos como temerário “ajuizar que, se o andaime em que o sinistrado desempenhava as suas funções obedecesse aos requisitos de segurança que a lei exige, designadamente se não tivesse, como tinha, um espaço aberto desde o nível de apoio dos pés até à altura de 90 cm, muito provavelmente a queda, ainda que ocorresse, não assumiria as características e consequências de uma queda em altura” (cit. Acórdão recorrido, p. 9), tanto mais que “não se apurou, sequer, porque razão o sinistrado caiu”, “não se sabe o que é que esteve na origem de tal ocorrência “(cit. Acórdão recorrido,p.8), tendo esta sido “desencadeada não se sabe porquê” (cit acórdão recorrido, p. 9/10);
6 – efectivamente, “não se sabe o que é que esteve na origem de tal ocorrência”, não se sabe, sequer, se aquando da ocorrência do trágico acidente em apreço, o trabalhador sinistrado se encontrava na plataforma do andaime, ao “nível de apoio dos pés”, ou no exterior do andaime, a subir ou a descer fora da escada existente para o efeito, como é perfeitamente possível, tratando-se dum trabalhador com mais de vinte anos de experiência no ramo, habituado a trabalhar nos antigos andaimes, que não tinham escadas de acesso interiores;
7 – por outro lado, “ainda que seja certo o incumprimento de regras de segurança por parte da R. empregadora” (cit. Acórdão recorrido, p. 8), parece-nos excessivo considerar esse incumprimento culposo ou mesmo negligente, pois, na verdade, conforme resulta dos documentos juntos a fls. ... dos presentes autos, a Ré adjudicou a montagem do andaime em causa a empresa especializada, sendo a sua responsabilidade, neste caso e salvo melhor entendimento, equiparada à do dono da obra, à administração do condomínio do edifício onde ocorreu o acidente, sendo certo que tanto a administração do referido edifício como a predita empresa especializada na montagem de andaimes também não cumpriram normas a que se encontram adstritas;
8 – de facto, consciente da constante alteração e enorme complexidade e multiplicidade da legislação relativa à execução de trabalhos em altura, a R. empregadora teve o cuidado ou diligência de encarregar a montagem do andaime a uma empresa especializada e, assim sendo, a Ré tem como suprema injustiça que lhe imputem responsabilidades por não cumprir normas que não consegue conhecer, pois são inúmeras e tão obscuras que quase ninguém as pode compreender com exactidão.
1-4
A Ré Seguradora – e apenas ela – contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso e a consequente confirmação do julgado.
1-5
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – FACTOS
As instâncias fixaram pacificamente a seguinte factualidade:
1 – a primeira Autora, AA, é viúva do sinistrado de morte EE;
2 – a segunda e terceira Autoras são filhas do mesmo sinistrado;
3 – no dia 16/4/2007, cerca das 10h40, encontrando-se no desempenho das suas tarefas profissionais por conta e sob as ordens e direcção da 2.ª Ré, na localidade de Reboleira-Amadora, o sinistrado foi vítima de um acidente;
4 – consistiu tal acidente em queda de um andaime quando se encontrava a pintar a parede exterior de um prédio, ao nível do 8.º andar;
5 – o sinistrado auferia, então, a retribuição mensal de € 500,00 x 14 meses, acrescida de um subsídio de alimentação por dia de trabalho de € 5,00 x 22 dias x 11 meses;
6 – a responsabilidade sinistral encontrava-se transferida para a primeira Ré, Companhia Europeia de Seguros DD S.A., mas apenas pela retribuição-base;
7 – de tal acidente resultaram para o sinistrado as lesões traumáticas descritas no relatório de autopsia a fls. 81, que lhe determinaram a morte, a qual ocorreu de imediato;
8 – o funeral foi pago pela segunda Ré;
9 – na tentativa de conciliação efectuada entre as AA. e as ora RR., estas últimas reconheceram a verificação do acidente e o nexo de causalidade entre o mesmo acidente e a morte do sinistrado, concordando igualmente com a retribuição acima referida;
10 – a conciliação frustrou-se, porém, porque a ré seguradora declinou a responsabilidade pela reparação do acidente, alegando que o mesmo se deveu “a falta grave e indesculpável da vítima, acrescendo estar a trabalhar sem o mínimo de condições de segurança legalmente impostas à entidade patronal”;
11 – a Ré entidade patronal aceitou a responsabilidade relativamente à parcela retributiva não transferida para a seguradora, ou seja, € 5,00 x 22 x 11;
12 – as Autoras filhas do sinistrado encontram-se a estudar;
13 – a BB frequenta actualmente o 12.º ano de escolaridade;
14 – no local onde o sinistrado se encontrava a trabalhar – quando ocorreu a queda – inexistiam no andaime os guarda corpos de 45 cm, também denominados guarda-costas intermédios;
15 – nem os rodapés;
16 – no andaime estava montada apenas a sua protecção de 90 cm;
17 – e, sem guarda cabeças;
18 – havia um espaço aberto desde o nível de apoio dos pés até à altura de 90 cm;
19 – o edifício onde ocorreu a queda tem 9 andares;
20 – e tem cerca de 25 metros de altura;
21 – inexistia plano de segurança para a obra em causa;
22 – o sinistrado não estava a usar arnês.
São estes os factos.
3 – DIREITO
Decorre da súmula levada à rubrica “Relatório” que a 1.ª instância condenou a Ré Seguradora a reparar o sinistro dos autos: ainda que a Ré Patronal tivesse sido igualmente onerada a fazê-lo, a sua condenação teve uma causa bem diversa, pois que se ancorou, tão-somente, na omissão da transferência integral do salário auferido pelo trabalhador.
Para alcançar aquela solução, considerou a 1.ª instância que não concorriam os pressupostos da responsabilização, a título principal e agravado, da empregadora: é que, muito embora fosse indiscutível o incumprimento das regras de segurança que àquela entidade competia, no caso, implementar, não se provara o necessário nexo causal entre esse incumprimento e o acidente produzido.
Da sentença apenas recorreu a Ré Seguradora que, restringindo, naturalmente, a sua censura à matéria que a desfavorecia, só questionou o segmento decisório que considerou improvada a existência do sobredito nexo.
Como, em contrapartida, a entidade patronal não reagiu contra a referida decisão – podendo fazê-lo nos termos do artigo 684.º-A do Cod. Proc. Civil – sendo que as Autoras também o não fizeram, torna-se evidente que transitou em julgado o segmento decisório que afirmara a apontada violação de normas de segurança por banda da empregadora.
Já sabemos que o Tribunal da Relação concedeu ganho de causa à Companhia de Seguros, afirmando a concreta verificação do questionado nexo causal e, por via disso, condenando a entidade empregadora a título principal e reservando à Seguradora uma responsabilidade meramente subsidiária.
Em consonância com o silêncio a que se remeteu durante a fase recursória da apelação, a Ré Patronal também só vem questionar, na vertente revista, a problemática do nexo causal, reclamando uma decisão de sentido idêntico à sentença da 1.ª instância.
Também a essa problemática se circunscreve, por isso, o objecto da falada revista.
3-2-1
Atenta a data do acidente – 16 de Abril de 2007 – é aplicável ao discutido sinistro o regime da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (“Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Das Doenças Profissionais”), que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do D.L. n.º 143/99, de 30 de Abril (“Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho”), na redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 382-A/99, de 22 de Setembro.
Com efeito, a Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho de 2003 – com início de vigência reportado a 31 de Dezembro de 2003 – veio postergar para o momento da respectiva regulamentação, que nunca se produziu, a entrada em vigor das normas vertidas naquele compêndio sobre “Acidentes de Trabalho” – artigos 281.º a 312.º – ressalvando, por isso, a subsistência da mencionada Lei n.º 100/97.
Prescreve o artigo 18.º desta Lei, sob a epígrafe” casos especiais de reparação”.
“N.º 1 – Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante ou resultar da falta de observação das regras sobre segurança higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão segundo as regras seguintes:
(...)”.
Essas regras elegem critérios, nelas descritos, que beneficiam o sinistrado e agravando a responsabilidade da entidade que responde pela reparação, identificada, como segue, no sequente artigo 37.º n.º 2:
“Verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º n.º 1, a responsabilidade nela prevista recai sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas subsidiariamente responsável pelas prestações normais previstas na presente lei”.
Como se vê, no contexto do regime atendível, a responsabilidade, principal e agravada, do empregador pode ter dois fundamentos autónomos:
- um comportamento culposo da sua parte;
- a violação, pelo mesmo empregador, de preceitos legais ou regulamentares ou de directrizes sobre higiene e segurança no trabalho.
A única diferença entre eles reside na prova da culpa, que é indispensável no primeiro caso e desnecessária no segundo.
Mas esta desnecessidade não constitui qualquer desvio às regras gerais sobre responsabilidade civil, onde a verificação da culpa – real ou presumida – do agente constitui, por regra, elemento essencial.
Na verdade:
- por um lado, o regime em vigor passou a considerar que a falta de observância das normas de segurança constitui fundamento autónomo bastante para o agravamento do direito à reparação;
- por outro, uma vez que a culpa (mera culpa) se traduz na omissão dos deveres de cuidado exigidos ao agente, a falta de cumprimento das assinaladas regras mais não consubstancia, afinal, do que a omissão concreta de um especial dever de cuidado imposto por lei (cf. Acórdão desta Secção de 11/6/05, na Revista nº 780/05).
Em contrapartida, ambos os fundamentos exigem, a par, respectivamente, do comportamento culposo ou da violação normativa, a necessária prova do nexo causal entre o acto ou a omissão – que os corporizam – e o acidente que veio a ocorrer.
É pacífico que o ónus da prova dos factos susceptíveis de agravar a responsabilidade do empregador recai sobre quem dela tirar proveito, sejam eles os beneficiários do direito reparatório, sejam as instituições seguradoras que pretendam ver desonerada a sua responsabilidade infortunística.
3.2-2
Cingindo-nos, como importa, ao fundamento questionado (2.ª parte do transcrito artigo 18.º n.º 1), logo se conclui que a sua verificação pressupõe a concorrência de dois requisitos:
- que sobre o empregador recaia o dever de observar determinadas regras de comportamento, cuja observância teria impedido, segura ou muito provavelmente, a consumação do evento, assim se omitindo o cuidado exigível a um empregador normal;
- que entre essa conduta omissiva e o acidente intercorra um nexo de causalidade adequada.
É sobre este segundo requisito que importa agora reflectir, começando por convocar a fundamentação que, em tal contexto, as instâncias aduziram.
A sentença da 1.ª instância exarou o seguinte:
“Ainda que seja certo o incumprimento de regras de segurança por parte da R. empregadora, também é certo que tal facto, por si só, não é suficiente para que esta seja responsabilizada pelo acidente nos termos do art. 18.º da LAT, na medida em que o referido preceito prevê expressamente a existência de um nexo de causalidade entre o acidente e a falta de observação das regras sobre a segurança, higiene e saúde no trabalho”, sendo que “... da matéria de facto apurada nada permite concluir que a falta de condições de segurança tenha sido causa directa e imediata do acidente. Aliás não se apurou, sequer, por que razão o sinistrado caiu. Tal facto é desconhecido” (FIM DE TRANSCRIÇÃO - sublinhado nosso).
Por sua vez, o Acórdão sob escrutínio discorreu como segue:
“É indesmentível que, para que funcione a responsabilidade agravada da entidade patronal pelo acidente por incumprimento das regras de higiene, saúde e segurança no trabalho (art. 18.º n.º 1 al. a) da LAT), é indispensável que haja nexo de causalidade entre esse incumprimento e o acidente. Por outro lado, é também verdade que da matéria de facto assente não resulta que tivesse sido apurado o que é que deu causa directa e imediata à queda do sinistrado quando exercia por conta, e sob a autoridade da 2.ª R., a actividade de pintar uma parede exterior de um prédio, num andaime, ao nível do 8.º andar. Ou seja, não se sabe o que é que esteve na origem de tal ocorrência.
Mas, salvo o devido respeito, isso não basta para afastar, desde logo, o nexo de causalidade entre o acidente e a inobservância pela entidade patronal das regras de higiene, saúde e segurança no trabalho. Ainda que a queda do sinistrado tivesse sido provocada, por hipótese, por um tropeção, uma tontura ou perda de equilíbrio do próprio ou qualquer outra circunstância que manifestamente nada tivesse a ver com o cumprimento ou incumprimento das regras de segurança no trabalho por parte do empregador, não podemos ignorar que a queda em causa acabou por se traduzir no lançamento do sinistrado de uma altura superior a 20 metros, do nível do 8.º andar para o solo, com as consequências, em termos de lesões traumáticas, que estão descritas no relatório da autópsia e que foram determinantes da sua morte. Se o andaime não apresentasse um espaço aberto desde o nível de apoio dos pés até à altura de 90 cm e a queda não passasse daquele nível e não provocasse qualquer lesão, nem sequer se poderia considerar que tivesse havido um acidente de trabalho.
Ainda que se entenda que o nexo de causalidade é uma questão de facto, há que reconhecer que não se trata de um facto material mas, na medida em que se refere a uma relação de causa efeito entre um facto e um resultado, tem que ser estabelecido através de juízos e inferências lógicas a extrair dos factos materiais apurados.
Ora as regras da lógica e da experiência permitem-nos ajuizar que, se o andaime em que o sinistrado desempenhava as suas funções obedecesse aos requisitos que a lei exige, designadamente se não tivesse, como tinha, um espaço aberto desde o nível de apoio dos pés até à altura de 90 cm, muito provavelmente a queda, ainda que ocorresse, não assumiria as características e consequências de uma queda em altura. Foi seguramente a existência daquele espaço aberto no andaime, por inexistência de rodapés, guarda cabeças e, sobretudo, guarda corpos intermédios que permitiu que a queda não se desse apenas ao nível do próprio andaime onde o trabalhador se encontrava (eventualmente sem causar lesões ou, a causá-las, de muito menor gravidade) e que o sinistrado fosse projectado para o solo de uma altura de mais de 20 metros. Assim, embora não possamos afirmar que foi a violação das regras de segurança que determinou que o trabalhador caísse, já nos parece poder afirmar com alguma segurança recorrendo para tanto a presunções judiciais (arts. 349.º a 351.º do CC), que foi a violação das regras de segurança quanto aos requisitos do andaime que determinou que a queda (embora sem sabermos o que lhe deu causa) assumisse as características que assumiu – de uma altura de mais de 20 metros – e tivesse as consequências que teve (...). A violação das regras de segurança relativamente às características do andaime mostra-se, em nosso entender, causa adequada a que a ocorrência, desencadeada não se sabe por quê, assumisse a configuração e a gravidade que assumiu. O evento infortunístico não é apenas o momento inicial da queda, mas tem de ser visto na sua dinâmica, desde que se desencadeia até que se consuma. A maior parte das lesões, pelo menos as mais graves, hão-de ter resultado sobretudo do impacto do corpo no solo. Só então a ocorrência se consumou e a violação das regras de segurança, embora seja um factor que interveio já no decurso do processo naturalístico que foi a queda, foi determinante para que ela se consumasse daquela maneira, pelo que foi causal do acidente.
Em suma, a matéria de facto assente permite-nos concluir que a violação das regras de segurança higiene e saúde relativamente às características do andaime foi causal do acidente tal como ocorreu, na medida em que só devido a esse incumprimento o acidente revestiu a forma de queda em altura e a gravidade, consequência desta, que assumiu e, por isso, teve as funestas consequências que teve.
Entendemos, pois, contrariamente à Sr.ª Juíza recorrida, que existiu nexo de causalidade entre a violação das regras de segurança e o acidente, tal como ele se consumou” (FIM DE TRANSCRIÇÃO - sublinhados nossos).
3-2-3
A produção de um dano resulta necessariamente de um processo causal, onde podem concorrer circunstâncias da mais variada natureza.
Sendo assim, e porque a obrigação de indemnizar só tem cabimento quando existir um nexo de causalidade entre o acto ilícito do agente e o dano produzido, a questão que se coloca reside em saber quando é que o resultado lesivo se há-de ter como efeito daquele sobredito comportamento.
Debruçando-se sobre esta temática, Pessoa Jorge começa por aludir à “teoria da equivalência das condições”, para a qual “... cada condição sine qua non seria causa de todo o efeito, porque, sem ela, as outras condições não teriam actuado” (in “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil” – “Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal”, Lisboa, 1972, reedição, pág. 389).
Sendo notório, porém, que uma tal teoria jamais poderia ser transposta, na sua genuidade, para o domínio da responsabilidade civil – por ser patentemente injusto responsabilizar alguém por prejuízos que nada tiveram a ver, em concreto, com a sua conduta – haverá que eleger então, de entre as várias condições do dano, aquelas que legitimam a imposição, ao respectivo agente, da obrigação de indemnizar.
O nosso sistema positivo acolheu a “teoria da causalidade adequada”, ao consignar, no artigo 563.º do Código Civil, que “... a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
Como a transcrita previsão legal logo sugere, a adequação relevante não é aquela que se basta com o simples confronto entre o facto e o dano isoladamente considerados mas, pelo contrário, aquela que atende a todo o processo causal que, na prática, conduziu efectivamente ao dano.
E, nessa medida, exige-se “... que o efeito tenha resultado do facto, considerado causa dele, pelo processo por que este é abstractamente adequado a produzi-lo”, como salienta o mesmo professor que, logo após, explicita:
“Pode, na verdade, suceder que o comportamento do agente seja adequado (por si e em abstracto) a provocar o dano, mas este se produza segundo um processo diferente daquele que leva a considerar tal comportamento como causa adequada desse dano”, o que leva a excluir da responsabilidade “... não só os prejuízos, que este normalmente não produziria, como também aqueles que normalmente produziria, mas por processo diferente do que realmente se deu” (obra citadas, páginas 395 e 396 – sublinhados nossos).
Conforme se vê, a lei exige, para fundamentar a reparação, que o comportamento do agente seja abstracta e concretamente adequado a produzir o efeito lesivo.
Por isso se diz que a afirmação de um nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes:
- a vertente naturalística, de conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano;
- a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstracto, como causa idónea do dano ocorrido.
3-2-4
A adequação concreta entre o comportamento do agente e o efeito lesivo tanto pode ser obtida através da prova que tenha sido directamente alcançada sobre a matéria, como pode ser indirectamente afirmada por meio de presunções judiciais.
Em qualquer dos casos, estamos sempre perante num domínio de soberania exclusiva das instâncias.
Na verdade:
“presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, sendo que “as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal” – artigos 349.º e 351.º, respectivamente, do Código Civil.
Ora, porque as presunções judiciais se inserem no julgamento da matéria de facto e constituem um meio probatório da livre apreciação do julgador, está de todo vedado ao Supremo proceder à sua avocação, visto que a sua competência funcional, afora as situações de controlo da prova tabelada, se restringe à aplicação definitiva do regime jurídico, que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelas instâncias – artigos 87.º do Código de Processo do Trabalho e 721.º e 729.º do Código de Processo Civil.
Pela mesmíssima razão, não pode o Supremo sindicar o uso, ou não uso, pela Relação do meio probatório em análise.
Mas já o poderá fazer – por ser uma questão de direito – para aferir se as presunções extraídas pelas instâncias violam os transcritos artigos 349.º e 351.º, ou seja, se foram inferidas de factos desconhecidos – designadamente por não terem sido provados – ou irrelevantes para o efeito – designadamente porque o facto presumido exige um grau superior de segurança na prova – e, bem assim, se a ilação extraída conflitua com factualidade provada ou contrarie outra que, submetida expressamente ao crivo probatório, tenha sido dada como não provada.
No caso dos autos, já conhecemos os juízos divergentes das instâncias neste domínio:
- a 1.ª instância afirmou a omissão probatória de relação causal entre a reconhecida inobservância, por parte da empregadora, das normas de segurança aplicáveis ao caso e o acidente que atingiu o sinistrado, salientando que nem sequer se sabe por que razão caiu o trabalhador;
- a Relação, depois de reconhecer também que se desconhecem em absoluto as razões da queda, veio a concluir, por presunção, que a mesma não teria ocorrido se o andaime, onde o sinistrado laborava, não tivesse um espaço aberto de 90 cm entre o nível de apoio dos pés e a sua guarda superior.
Não se duvida que o apuramento do nexo causal pressupõe um juízo “a posteriori”, em que o julgador se coloca, por abstracção, no momento da prática do facto, cabendo-lhe apurar se o dano ocorrido foi consequência do mesmo facto.
E a questão que se coloca é a de saber se a 2.ª instância, ao concluir do jeito que concluiu, se limitou a fazê-lo a partir de um simples confronto entre o incumprimento das regras de segurança e o acidente produzido, ou se, pelo contraário, o fez através de uma ilação que a factualidade apurada lhe consentia extrair.
Trata-se de saber, em suma, se estamos perante uma afirmação de carácter jurídico-conclusivo ou, ao invés, perante uma válida ilação factual.
No primeiro caso, perfilha-se uma situação que se reconduz à indagação, interpretação e aplicação das regras jurídicas atendíveis – artigo 664.º do Código de Processo Civil – cuja tarefa se inscreve na esfera das competências do Supremo; no segundo caso, haverá que acatar, sem mais, o juízo alcançado.
Conforme se refere no Acórdão desta Secção de 27/5/2004 (Recurso n.º 1280/04), “... a afirmação de que a entidade patronal não cumpriu um determinado requisito de segurança imposto pela norma a partir da simples constatação de que se verificou o efeito danoso que a norma pretendia evitar, não constitui uma presunção judicial, mas uma mera ilação jurídica, que, não tendo o valor de facto material, é livremente sindicável pelo Tribunal de revista”.
Ora, se a Relação reconheceu – e bem – que se ignoram em absoluto as razões, da queda, aceitando ainda que a mesma até poderia nada ter tido a ver com a violação das regras de segurança impostas ao empregador, mal se percebe como pôde vir a concluir que a queda foi motivada pelo espaço de 90 cm que existia entre o sopé do andaime e a sua protecção superior.
Sem pensar já na possibilidade de um acto voluntário do sinistrado – caso em que não lhe seria difícil transpor qualquer protecção para atingir o seu desiderato – ou mesmo de terceiros, basta lembrar que a simples ignorância da posição em que o mesmo se encontrava no andaime – de pé, agachado ou mesmo deitado – é suficiente para reconhecer que a protecção intermédia (a que a Relação faz tanto apelo) poderia não ser suficiente para evitar a queda.
Desconhecendo-se em absoluto a dinâmica do acidente, a Relação não dispunha de qualquer facto conhecido de onde pudesse retirar o juízo conclusivo que veio a firmar.
Sendo assim, estamos perante uma situação em que estava vedado à Relação extrair qualquer presunção sobre a verificação, em concreto, do nexo causal entre a violação cometida pela Ré empregadora e o acidente dos autos.
Todo o raciocínio desenvolvido no Acórdão se mostra mais conforme à adopção abstracta da conduta assumida pela empregadora para desembocar no acidente em análise do que à relação de causa-efeito entre essa conduta e o resultado verificado, em que se traduz a adequação concreta.
Ora, não se provando o questionado nexo causal, também é forçoso concluir que não concorrem os pressupostos que ditaram a alteração decisória produzida no Acórdão sindicando.
4 - DECISÃO
Em face do exposto, concede-se a revista, revoga-se o Acórdão da Relação e repristina-se a sentença da 1.ª instância.
Custas, nas instâncias e no Supremo, a cargo da Ré Seguradora.
Lisboa, 03 de Fevereiro de 2010

Sousa Grandão (Relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis