Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B1067
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL
Nº do Documento: SJ200504270010677
Data do Acordão: 04/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6163/03
Data: 11/16/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Á revisão nos tribunais portugueses de sentenças proferidas nos tribunais da República de Cabo Verde é aplicável o Acordo Judiciário aprovado pelo Decreto nº 524-O/76, de 5 de Julho e, subsidiariamente, o disposto no Código de Processo Civil português.
2. A aplicação na espécie do mencionado Acordo Judiciário à revisão de sentença homologatória da delegação do exercício do poder paternal não afecta a competência para o efeito dos tribunais da Relação.
3. O sistema de revisão que decorre do mencionado Acordo Judiciário é meramente formal ou de delibação, tal como o previsto no nosso ordenamento jurídico de origem interna, salvo a previsão do artigo 1100º, nº 2, do Código de Processo Civil português.
4. A homologação do acordo de delegação parcial do exercício do poder paternal objecto da sentença a rever não envolve renúncia ao poder paternal, e não releva no juízo de revisão o facto de os menores residirem em Portugal com o delegado sem a pertinente autorização administrativa nem a motivação de defraudação das políticas ou das leis portuguesas relativas à emigração.
5. A sentença de homologação da delegação do exercício do poder paternal à luz do direito substantivo da República de Cabo Verde não contrária os princípios da ordem pública portuguesa nem o seu reconhecimento produz resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
"A" intentou, no dia 20 de Junho de 2003, contra B, acção declarativa de revisão de sentença homologatória da delegação do exercício do poder paternal relativamente a C e D proferida, no dia 14 de Dezembro de 2000, pelo tribunal da comarca de Santa Catarina, República de Cabo Verde.
Foi-lhe concedido o apoio judiciário nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento de honorários de patrono - a advogada E.
O réu não contestou a acção, a autora alegou no sentido de a sentença dever ser confirmada, e o Ministério Público alegou que a lei não permite a sua confirmação, sob o fundamento de que o poder paternal é irrenunciável no direito português, não haver notícia de as menores residirem ou terem autorização de residência em Portugal, e não poderem as sentenças proferidas por tribunais estrangeiros condicionar a política portuguesa de emigração.
A autora e o Ministério Público, na sequência de junção ao processo de documento comprovativo do pertinente direito de família caboverdeano, produziram novas alegações, reiterando as suas anteriores posições.
O relator, no dia 15 de Julho de 2004, proferiu sentença pela qual julgou a acção procedente, o Ministério Público reclamou para a conferência, e a Relação, por acórdão proferido no dia 16 de Novembro de 2004, manteve aquela sentença, indeferindo a reclamação.

Interpôs o Ministério recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- as normas relativas ao poder paternal são de interesse e ordem pública;
- a delegação do poder paternal traduz-se, no caso, na renúncia pelo progenitor paterno do poder-dever por natureza irrenunciável e intransmissível;
- a confirmação da sentença revidenda para produzir efeitos em Portugal significaria a admissão na ordem jurídica portuguesa, de forma indirecta, de uma adopção fora do respectivo processo;
- o acórdão recorrido desrespeitou os artigos 8º e 31º do Acordo Judiciário entre Portugal e Cabo Verde, aprovado pelo Decreto nº 524-O/76, de 5 de Julho, 1882º e 1973º, nº 2, do Código Civil e 1096º, alínea f), do Código de Processo Civil;
- deve ser substituído por outro que declare a incompetência do tribunal recorrido para conhecer da acção ou negue a revisão.

Respondeu a autora, em síntese de conclusão de alegação:
- o tribunal recorrido é competente para apreciar o pedido de confirmação da sentença, e o Acordo Judiciário entre Portugal e Cabo Verde não é aplicável no caso;
- o pedido de revisão visa informar os estabelecimentos escolares e demais entidades públicas da titularidade do poder paternal das menores, que residem em Portugal;
- a referida regulação do exercício do poder paternal não colide com os princípios do ordenamento jurídico português ou da ordem pública internacional do Estado Português;
- relevam para a decisão de confirmar ou não confirmar a sentença em causa os seus efeitos práticos, que não são incompatíveis com os princípios acima enunciados em segundo lugar, pelo que está preenchido o requisito da alínea f) do artigo 1096º do Código de Processo Civil.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Nos dias 5 de Dezembro de 1989 e 4 de Setembro de 1990 nasceram nas freguesias de Santa Catarina e de São Miguel, concelho de Santa Catarina, República de Cabo Verde, C e D, filhas de B e de F, solteiros, a última falecida no dia 30 de Setembro de 1998.
2. B requereu no tribunal da comarca de Santa Catarina, República de Cabo Verde, a delegação do exercício do poder paternal relativamente a C e D na pessoa de A, casada, nascida no dia 28 de Março de 1955, filha de G e de H, irmã de F.
3. Alegou, para o efeito, terem as menores nascido do seu relacionamento marital com E durante 11 anos, terem aquelas ficado ao seu cuidado, viver da agricultura, sem rendimento certo, ter enfrentado dificuldades na educação e sustento delas, conferir voluntariamente à delegada as faculdades integrantes do poder paternal estatuído no artigo 1815º do Código Civil, designadamente a guarda e a regência das menores, a garantia do seu sustento e zelo pela sua saúde e normal desenvolvimento, o dirigir e assegurar a sua educação, formação intelectual e cultural, inculcando-lhe o amor pelo estudo e trabalho, o velar pela sua correcta formação moral e social no respeito de si, dos outros e da comunidade, determinar o seu domicílio enquanto estiverem na sua dependência, representá-las nos actos e negócios jurídicos necessários não vedados por lei, administrar diligentemente os bens que elas adquirirem, autorizá-las a praticarem os actos que, por determinação da lei, dependam do seu consentimento, acordar com a delegada perdurar a delegação até atingirem a maioridade e que a última já tinha dado o consentimento em as educar como se fossem suas filhas.
4. O requerente tem nove filhos - C de 12 anos, I de 12 anos, D de 10 anos, Y de 10 anos, X de oito anos, Z de 6 anos, não tem trabalho, passa grandes dificuldades e A - a delegada - é tia materna delas
5. A decisão judicial é do seguinte teor: Face aos factos dados como provados no requerimento apresentado pelo progenitor das menores e à não oposição do Ministério Público, na qualidade de curador de menores, por estarem verificados os pressupostos da delegação voluntária do exercício do poder paternal, nos termos dos artigos 1861º, 1862º, 1863º e 1864º, nº 2, do Código Civil em vigor, homologa-se por sentença o requerimento transcrito para todos os efeitos legais, conferindo a A todas as faculdades que integram o exercício do poder paternal em relação às menores C e D Teresa da Veiga Batista até à sua maioridade.
6. A secretaria do Tribunal da Comarca de Santa Catarina, República de Cabo Verde, certificou, no dia 14 de Dezembro de 2000, ter a sentença mencionada sob 5 transitado em julgado.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se ocorrem ou não no caso espécie os pressupostos de confirmação da sentença mencionada sob II 5.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente e pela recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- requisitos de revisão de sentenças estrangeiras e pressupostos da sua impugnação à luz do direito português de origem interna;
- regime legal de revisão em Portugal de sentenças proferidas da República de Cabo Verde;
- regime legal aplicável de entre os regimes de origem interna e externa acima referidos;
- tal regime implica ou não a incompetência do tribunal recorrido para a revisão e confirmação da sentença em análise?
- regime jurídico substantivo estrangeiro em que assentou a sentença revidenda no confronto com o regime legal do poder paternal decorrente da lei portuguesa;
- conceito de ordem pública internacional do Estado Português;
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise dos requisitos de revisão de sentenças estrangeiras e dos pressupostos da sua impugnação, à luz do direito português de origem interna.
Nos termos do artigo 1096º do Código de Processo Civil, a revisão e a confirmação de sentenças estrangeiras depende da verificação dos seguintes pressupostos:
- exclusão de dúvida sobre a inteligência da decisão ou sobre a autenticidade do documento que a consubstancia;
- trânsito em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
- proveniência de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei;
- não ser a matéria sobre que verse da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
- ininvocabilidade de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, salvo se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
- citação regular do réu e observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes;
- conteúdo não manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Tendo em conta, além do mais, que a sentença revidenda está escrita em língua portuguesa, ocorrem, à luz do regime enunciado, os seus seis primeiros pressupostos.
Acresce que, além da questão da competência do tribunal suscitada pelo recorrente, só é colocada no recurso a verificação do sétimo dos mencionados documentos, a que abaixo se fará referência.
Vejamos agora os fundamentos de impugnação dos pedidos de revisão de sentenças estrangeiras à luz do mencionado regime.
Nos termos dos artigos 771º, alíneas a), c) e f), e 1100º do Código de Processo Civil, o pedido de revisão de sentenças estrangeiras proferidas contra cidadãos estrangeiros só pode ser impugnado com algum dos fundamentos seguintes:
- falta de algum dos requisitos mencionados sob 1;
- existência de sentença criminal transitada em julgado reveladora de que a sentença revidenda foi proferida por prevaricação, concussão, peita, suborno ou corrupção do juiz seu autor;
- existência de documento suficiente para modificar a sentença revidenda em sentido mais favorável à parte contrária de que esta não tivesse tido conhecimento ou não tivesse podido dele fazer uso no processo em que foi proferida;
- ser a sentença revidenda contrária a outra que constitua caso julgado para as partes formado anteriormente.
O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é de natureza formal, isto é, não envolve, em regra, a revisão de mérito.
A excepção à referida regra só ocorre se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, caso em que a impugnação também pode ser fundada na circunstância de o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa (artigo 1100º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ora, como no caso vertente a sentença revidenda é proferida no confronto de cidadãos estrangeiros, a revisão e a confirmação é meramente formal, em conformidade com o sistema designado de delibação.

2.
Atentemos, ora, em tanto quanto releva no caso vertente, o regime legal de revisão em Portugal de sentenças proferidas nos tribunais da República de Cabo Verde.
O referido regime consta no Acordo Judiciário entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde, aprovado pelo Decreto nº 524-O/76, de 5 de Julho.
Relevam no caso vertente as normas dos seus artigos 8º e 31º, o primeiro epigrafado de revisão de decisões não penais e o segundo de documentos e decisões.
Prescreve o primeiro dos mencionados normativos, por um lado, que as decisões proferidas nos tribunais de uma das Partes Contratantes em matéria civil têm eficácia no território da outra desde que tenham sido proferidas por um tribunal competente segundo as regras de conflitos de jurisdição da lei do país onde se pretendem fazer valer, tiverem transitado em julgado segundo a lei do país em que foram proferidas, ter o réu sido devidamente citado segundo a lei do país do foro e não serem contrárias aos princípios de ordem pública do país onde se pretendem fazer valer ( nº 1).
E, por outro, que a verificação dos requisitos referidos no nº 1 do mencionado artigo será feita liminarmente pelo tribunal territorialmente competente, segundo a lei do país onde se pretende fazer valer a decisão ( nº 3).
Finalmente, estabelece o nº 2 do artigo 31º do mencionado Acordo Judiciário serem dispensadas de revisão para efeitos de ingresso no registo civil as decisões proferidas em acções de estado ou de registo pelos tribunais de uma das Partes Contratantes relativas aos nacionais da outra, ficando a cargo da entidade que proceda ao registo a verificação das condições referidas no artigo 8º.
Tendo em conta o referido regime de revisão e confirmação de sentenças proferidas em tribunais portugueses e caboverdeanos e o disposto nos artigos 65º e 65º-A do Código de Processo Civil, o tribunal português não era internacionalmente competente para conhecer da acção tendente à homologação do acordo de delegação do exercício do poder paternal relativo às cidadãs de Cabo Verde, C e D.
Assim, à luz desse regime legal, a sentença revidenda foi proferida por tribunal internacionalmente competente para o efeito e transitou em julgado segundo a lei adjectiva do Estado do foro.
Não está em causa, no caso vertente, a infracção do princípio do contraditório, porque se tratou de homologação de um acordo de delegação do exercício do poder paternal, nem há dúvida sobre a autenticidade do documento em que se consubstancia a sentença revidenda nem sobre a intelegibilidade da concernente decisão.

3.
Vejamos agora o regime legal adjectivo de revisão e confirmação da sentença estrangeira em causa, tendo em conta as referidas normas de direito português de origem interna e de origem externa.
As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem jurídica interna portuguesa enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português (artigo 8º, nº 2, da Constituição).
Por isso, em sede de aplicação no caso espécie, as normas do mencionado Acordo judiciário prevalecem sobre as normas dos artigos 1096º e 1100º do Código de Processo Civil.

4.
Atentemos agora sobre se a aplicação do regime de revisão de sentenças previsto nas normas de origem externa implica ou não a incompetência do tribunal recorrido para o efeito.
A luz do Acordo Judiciário celebrado entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde, entende o recorrente que a revisão da sentença estrangeira em análise, por haver sido proferida em acção de estado e ser executada por via de averbamento ao assento de nascimento de C e D, nos termos do 69º, alíneas g) e h), do Código do Registo Civil, não se inscreve na competência do tribunal recorrido.
O estado pessoal é a qualidade condicionante da titularidade de um núcleo pré-determinado de direitos e vinculações que afectam a pessoa singular, e as acções que a ela se reportem são designadas acções de estado de pessoas ou de estado pessoal ou, simplesmente, acções de estado.
O género próximo das referidas acções abrange as que se reportam a interesses imateriais, ou seja, as que não têm valor pecuniário próprio e visam realizar interesses não patrimoniais, como é o caso das acções de regulação do exercício do poder paternal ou da delegação do seu exercício, que, como é natural, têm estrutura diversa das acções de registo, que visam actos de registo.
Nesta perspectiva, a acção tendente à homologação do acordo de delegação do exercício do poder paternal em causa não é qualificável de acção de estado pessoal ou acção de estado.
Por isso, ao invés do que o recorrente alegou, o nº 2 do artigo 31º do referido Acordo Judiciário não dispensa a revisão da sentença estrangeira em análise, porque não estamos perante uma sentença revidenda proferida em acção de estado ou em acção de registo.
Mas ainda que se considerasse tratar-se de sentença proferida em acção de estado pessoal, a dispensa de revisão não a abrangeria, porque não é relativa a cidadãos portugueses.
Compete às Relações julgar os processos de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras, sem prejuízo da competência atribuída a outros tribunais e, no caso espécie, é territorialmente o tribunal da Relação de Lisboa (artigos 56º, nº 1, alínea f), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, 85º, nº 3, e 1095º do Código de Processo Civil ).
Em consequência, a aplicação ao caso espécie do regime de revisão de sentenças previsto no referido Acordo Judiciário não implica a incompetência para o efeito do tribunal recorrido.

5.
Vejamos agora o regime jurídico substantivo estrangeiro em que assentou a sentença revidenda e o regime legal do poder paternal decorrente da lei substantiva portuguesa, começando pelo primeiro.
No Código Civil de Cabo Verde, entre os meios de suprir o poder paternal conta-se a delegação voluntária do seu exercício.
Está regulada nas vertentes das suas condições, forma, conteúdo, procedimento, e efeitos da sua cessação.
Quanto às referidas condições, a lei estabelece poderem os pais, de comum acordo, delegar parcialmente o poder paternal em relação ao filho menor de dezasseis anos, designadamente no que respeita à guarda, sustento ou educação, a uma terceira pessoa adulta e idónea que esteja no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, quando por motivos ponderosos não lhes seja possível exercer pessoal e eficazmente os seus deveres correspondentes, a qual não produz efeitos sem o expresso consentimento da pessoa a quem o poder paternal for delegado (artigo 1864º).
Quanto à forma e ao conteúdo, a lei prescreve que a delegação voluntária do exercício do poder paternal será formulada em documento escrito e apresentada ao tribunal competente para a homologação, contendo a indicação precisa das faculdades que integram o poder paternal que serão transmitidas à pessoa delegada, a sua duração e os encargos inerentes (artigos 1865º e 1866º).
No que concerne ao procedimento, a lei estabelece que o tribunal competente, antes de proceder à homologação, poderá proceder a diligências sumárias para a confirmação da delegação, ouvindo sempre que possível ambos os progenitores, a pessoa delegada e o filho maior de doze anos, se a audiência não lhe causar quaisquer distúrbios, e os pais podem fazer acompanhar o documento continente da delegação voluntária de declaração escrita de aceitação da pessoa delegada, reconhecida notarialmente (artigo 1867º).
Relativamente aos efeitos da delegação do exercício do poder paternal, a lei prescreve, por um lado, tê-lo o delegado nos termos da delegação, suportando os encargos inerentes e sendo solidariamente responsável com os pais pelos prejuízos que a delegação causar a terceiros, e, por outro, que o menor sujeito a essa delegação não fica privado de quaisquer direitos decorrentes do estabelecimento da filiação, conservando, designadamente, o seu nome e os seus direitos sucessórios (artigo 1868º do Código Civil).
Quanto ao termo da delegação, a lei expressa, por um lado, que ela cessa no termo do prazo constante do auto de transmissão de poderes, pela sua revogação por decisão judicial ou pelo delegante ou pela denúncia do delegado (artigo 1869º, nº 1).
E, por outro, que a requerimento de qualquer parente do menor, do próprio delegado, do Ministério Público ou de instituição pública nacional encarregada de defesa e promoção das condições dos menores, o tribunal competente decretará, sem recurso a outra instância, a revogação da delegação, se esta se mostrar inútil ou prejudicial para o desenvolvimento do menor (artigo 1869º, nº 2).
Finalmente, estabelece a lei que a delegação voluntária é revogável a todo o tempo por qualquer dos progenitores, mediante simples notificação judicial avulsa ao delegado, e que pode ser denunciada pelo delegado a todo o tempo, mediante simples notificação judicial avulsa ao delegante, mas que só produz efeitos no prazo de sessenta dias a contar do seu conhecimento pelo delegante (artigo 1869º, nºs 3 e 4).
Portugal está vinculado à Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pela Resolução da Assembleia da República, nº 20/90, de 12 de Setembro de 1990.
Deve, por isso respeitar as responsabilidades, direitos e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada ou da comunidade nos termos dos costumes locais, dos representantes legais ou de outras pessoas que tenham legalmente a criança a seu cargo (artigo 5º).
Nessa linha, o ordenamento jurídico português atende especialmente aos interesses superiores dos menores e das crianças, promovendo o seu desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual social, em condições de liberdade e dignidade (artigos 147º e 180º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, e 4º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro).
Certo é que, no nosso ordenamento jurídico, os pais não podem renunciar ao poder paternal nem a qualquer dos direitos que ele especialmente lhes confere, sem prejuízo do disposto na lei relativamente á adopção (artigo 1882º do Código Civil).
Abrange este artigo a proibição de renúncia ao poder paternal e de qualquer das faculdades que o integram, ou seja, é legalmente inadmissível a abdicação ou a alienação do concernente complexo de direitos ou de algum dos seus elementos.
Não obstante a referida proibição de renúncia pelos pais ao poder paternal relativamente aos filhos, o nosso ordenamento jurídico admite, com considerável amplitude, e relevo de consentimento dos pais do adoptando, ainda que não exerçam o poder paternal, desde que não tenha havido confiança judicial (artigos 1973º, 1974º, 1977º, 1978º, nº 1, alínea b), e 1981º, nº 1, alínea c), do Código Civil).
Ademais, por via do instituto da tutela, o poder paternal pode ser exercido por terceira pessoa, além do mais, no caso de os pais dos menores terem sido inibidos do poder paternal quanto à regência da pessoa do filho ou de estarem impedidos de facto há mais de seis meses de o exercerem (artigo 1921º, nº 1, alienas b) e c), do Código Civil).
Fora do referido quadro específico, o nosso ordenamento jurídico permite que o poder paternal seja exercido por pessoa diversa dos pais dos menores, designadamente no âmbito de estabelecimento de educação e assistência.
Trata-se de situações em que a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se encontrem em perigo e não seja caso de inibição do poder paternal, caso em que o tribunal, a requerimento do Ministério Público, de qualquer parente do menor ou de pessoa a cuja guarda esteja confiado de facto ou de direito (artigos 1904º, 1905º, 1907º, 1912º e 1918º do Código Civil).
Voltemos agora ao instituto da delegação do exercício do poder paternal previsto no Código Civil de Cabo Verde em aproximação ao caso vertente.
Trata-se, no caso espécie, em conformidade com o respectivo regime legal estrangeiro, de uma delegação parcial do exercício do poder paternal, acordada entre o delegante e o delegado, justificada por motivos ponderosos de impossibilidade de exercer pessoal e eficazmente os deveres correspondentes.
É-lhe exigida a forma escrita e o conteúdo e duração precisos e está sujeita a controlo judicial activo em vista da realização do interesse dos menores, que mantêm os direitos decorrentes do estabelecimento da filiação, incluindo o nome e os direitos sucessórios.
Atinge o seu termo no fim do prazo constante do respectivo documento e é revogável pelo delegante e por decisão judicial e denunciável pelo delegado.
A revogação judicial ocorre se a delegação se mostrar inútil ou prejudicial para o desenvolvimento dos menores a requerimento de qualquer dos seus parentes, do delegado, do Ministério Publico ou de instituição pública nacional de defesa e promomoção de menores.
Finalmente a delegação é revogável a todo o tempo por qualquer dos progenitores do menor e é denunciável, também a todo o tempo, por via de notificação judicial avulsa.
A renúncia é a manifestação de vontade pelo titular de um direito no sentido da sua extinção.
Tendo em conta, por um lado, o mencionado regime legal da delegação voluntária parcial do exercício do poder paternal e o conteúdo do objecto da homologação operada pela sentença revidenda, e, por outro, a vertente de pluralidade de meios e fundamentos de lhe pôr termo, a conclusão é no sentido de que B não renunciou ao exercício do poder paternal relativamente às filhas C e D.

6.
Vejamos agora, em aproximação ao caso vertente, o conceito de ordem pública internacional do Estado Português.
Um dos requisitos negativos necessários à confirmação das sentenças estrangeiras, designadamente da que está em causa, previsto no aludido Acordo Judiciário é o de não serem contrárias aos princípios de ordem pública do Estado Português.
O referido requisito é essencialmente idêntico ao previsto no direito português de origem interna, segundo o qual, as sentenças estrangeiras não podem ser revistas e confirmadas se o seu reconhecimento conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português (artigo 1096º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O conceito de ordem pública internacional do Estado português não está definido na lei, como é natural, porque se trata de princípios gerais cujo conteúdo material positivo é preenchido em cada caso pelo juiz ou pelo colectivo de juízes.
Trata-se, em suma, grosso modo, das normas inspiradas por razões políticas, morais e económicas aceites pelas nações como expressão de civilização e cultura idênticas.
As normas que regulam as relações familiares são na sua maioria de interesse e ordem pública, mas o normativo em análise a elas não se reporta, certo que se refere aos princípios da ordem pública internacional do Estado português.
A circunstância de o ordenamento jurídico português não prever a delegação voluntária do exercício do poder paternal não impede que, à sua luz, deva ser reconhecida por via da revisão e confirmação da sentença que a homologue, desde que isso não seja incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
A violação da reserva de ordem pública internacional do Estado Português, como Estado do foro de revisão e de confirmação, é essencialmente aferida tendo em linha de conta o resultado da sua aplicação, isto é, à margem à margem dos princípios consagrados na lei estrangeira que serviram de base à sentença estrangeira revidenda.
A incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português deve ser aferida, essencialmente. pelo conteúdo da respectiva decisão, isto é, em termos de desvalorização dos respectivos fundamentos.
Apesar de as normas do direito português relativas às relações de família serem de interesse e ordem pública, aos princípios que as envolvem não repugna a motivação das normas estrangeiras que permitem a delegação voluntária parcial do exercício do poder paternal judicialmente controlável.
7.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente da situação processual envolvente e da lei.
O Tribunal da Relação é competente para conhecer da pretensão de revisão e confirmação da sentença estrangeira em causa formulada pela recorrida, à luz do Acordo Judiciário outorgado entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde.
O sistema de revisão que decorre do mencionado Acordo Judiciário é meramente formal ou de delibação, tal como o previsto no nosso ordenamento jurídico de origem interna, salvo a excepção a que se reporta o artigo 1100º, nº 2, do Código de Processo Civil.
A homologação do acordo de delegação parcial do exercício do poder paternal objecto da sentença revidenda não consubstancia decisão homologatória de renúncia ao poder paternal.
Irreleva no juízo de revisão a formular a circunstância de C e D residirem em Portugal sem a pertinente autorização administrativa ou qualquer motivação, aliás não provada, de defraudação das políticas ou das leis portuguesas relativas à emigração.
A sentença revidenda não é contrária aos princípios da ordem pública portuguesa nem contém decisão cujo reconhecimento produza um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Em consequência, o acórdão recorrido não infringiu qualquer das disposições legais indicadas pelo recorrente.

Improcede o recurso, com a consequência da manutenção do acórdão recorrido.
Vencido no recurso, seria o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, goza de isenção subjectiva de pagamento de custas (artigo 2º, nº 1, alínea b), do Código das Custas Judiciais, redacção anterior (artigos 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 324/2003, de 27 de Dezembro).
A advogada E, nomeada no quadro do apoio judiciário para patrocinar a recorrida, subscreveu neste recurso o instrumento de alegações.
Tem, por isso, direito a honorários, a suportar pelo Cofre Geral dos Tribunais (artigos 3º, nº 1, 15º, nº 1, 48º, nº 1, 57º, nº 2, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nºs 1 e 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.
O quantitativo que lhe é devido corresponde, conforme está fixado na lei, independentemente da simplicidade do recurso, ao valor correspondente a 2,25 unidades de conta (1.3.1. da Portaria nº 1386/2004, de 10 de Novembro).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e fixam-se os honorários devidos à advogada E no montante de duzentos euros e vinte e cinco cêntimos.

Lisboa, 27 de Abril de 2005.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís