Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1097/04.0TBLLE.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
DEFESA DO CONSUMIDOR
DIREITOS DO CONSUMIDOR
REGIME APLICÁVEL
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
COMUNICAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - O conceito de consumidor, constante da Lei n.º 29/81, de 22-08, da Lei n.º 24/96, de 31-07, do DL n.º 359/91, de 21-09, da Directiva 1999/44/CE, de 25-05, e do DL n.º 67/2003, de 08-04 (entretanto reformulado pelo DL n.º 84/2008, de 21-05) tem um sentido restrito, mas coincidente, em todos esse diplomas: consumidor é a pessoa singular a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados exclusivamente a uso não profissional, por pessoa (singular ou colectiva) que exerça com carácter profissional um actividade económica que vise a obtenção de benefícios.

II - É a finalidade do acto de consumo que determina, essencialmente, a qualificação do consumidor como sujeito do regime de benefício que aqueles diplomas legais regulamentam, partindo da presunção de que se trata da parte mais fraca, menos preparada tecnicamente, em confronto com um contratante profissional, necessariamente conhecedor dos meandros do negócio que exercita.

III - Se as cláusulas gerais se encontram formalmente inseridas no verso de um contrato, após as assinaturas dos outorgantes, constando antes do local onde foram apostas as assinaturas a declaração: “Declaro(amos) que tomei(amos) conhecimento de todas as cláusulas constantes neste contrato, nomeadamente, as que constam no verso do mesmo”, o autor, que assinou o contrato, não podia razoavelmente desconhecer a declaração que assinou, se agisse com a normal diligência. Nestas situações não terá aplicação o disposto no art. 8.º, al. d), da LCCG.

IV - Desde que idoneamente alertado para a existência das cláusulas impressas no verso do contrato, o eventual desconhecimento das mesmas só pode imputar-se ao aderente a título de descuido ou negligencia

V - Perante o evidente conhecimento das cláusulas pelo autor – que as leu e só depois assinou – constituiria manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, vir depois, quando ocorreu desentendimento entre as partes, peticionar-se a nulidade das cláusulas gerais que antes se aceitaram.
Decisão Texto Integral:

Relatório


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No Tribunal Judicial da Comarca de Loulé,

AA,

intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

BB – CRÉDITOS – Sociedade Financeira Para Aquisições a Crédito, S.A.,

e

CC.


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peticiona:

I- A nulidade do contrato de crédito ao consumo celebrado entre o A. e a 1ª Ré, por violação do disposto no n.º 1 do Art.º 6º do D.L. 359/91, devendo a Ré, solidariamente com o 2º R., repetir ao A., os seis meses de rendas entretanto pagas, num total de 2.864,64 €, acrescido dos juros de mora legais desde a citação;

II- Deve também e de acordo com o estabelecido no n.º 1 do Art. 12 do D.L. 359/91, declarar-se a nulidade do contrato de compra e venda celebrado pelo A. com o 2º R., condenando-se este a entregar à 1ª Ré/Créditos, a quantia que esta lhe pagou, que terá sido de 18.954,00€

III- Caso não se declare a nulidade do contrato de crédito, como o peticionado em I), deve então declarar-se a sua nulidade por alguma (ou  todas) as seguintes razões:

- porque não foi entregue ao A., no acto da subscrição do contrato, o plano de pagamento (Art.ºs 6º/3-E e 7/1 do D.L. 359/91) e

- porque até hoje, o A. desconhece: as condições em que pode ser alterado o TAEG, as condições de reembolso do crédito e o preço a contado do veículo em causa (Art.ºs 6º/2-C e D e n.º 3-A e C e 7/1 do D.L. 359/91);

IV- Também neste caso, deve o 2º R. ser condenado nos termos peticionados em II);

V- Se ainda assim se não entender, então deve considerar-se anulado o contrato de crédito, nos termos do disposto no n.º 2 do Art. 7 e alínea E do n.º 2 do Art. 6 do D.L. 359/91;

VI- Condenando-se também e simultaneamente conforme peticionado em II);

VII- Qualquer que seja a decisão, deve, ainda, decretar-se a inexigibilidade, ao abrigo do disposto no Art.º 7º/3 e 11/1 do D.L. 359/91, da livrança subscrita pelo A. e entregue à 1ª Ré, por esta não haver cumprido o estabelecido na alínea G. do n.º 2 do Art.º 6º do D.L. 359/91;

VIII- Em qualquer circunstância, deve declarar-se nulo o contrato de compra e venda estabelecido pelo A. com o 2º R., por força do estabelecido no Art.º 12 – 1 da Lei do Consumidor, dado que o defeito do carro foi denunciado imediatamente e a resolução teve, aliás, a anuência expressa do 2º R., que aceitou a devolução do veículo, tendo-o posto de novo à venda no seu stand;

IX- Deve, por fim, condenar-se o 2º R. a indemnizar o A. pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, de acordo com o prescrito no n.º 4 do Art.º 12 da Lei do Consumidor.

X- Sendo que, de danos não patrimoniais, o A. exige 7.000,00 €, dado o prejuízo que sofreu o seu bom nome e reputação, por ter tido de desistir do negócio abruptamente, tendo ficado com dívida a terceiros que ainda está a liquidar (ao capital acrescem os juros moratórios desde a citação);

XI- Quanto aos danos patrimoniais, deve o 2º R. ser condenado a pagá-los em sede de execução de sentença, por ainda se não ter procedido à sua liquidação;

XII- Devem dar-se por não escritas todas as cláusulas contratuais gerais do contrato de crédito junto aos autos, em virtude de os mesmos se acharem exarados para lá das assinaturas das partes outorgantes, o que viola o disposto no Art.º 8 d) do D.L. 446/85 de 25/10.


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Alegou em fundamento a factualidade que julgou pertinente e que aqui se dá por reproduzida.

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Citados regularmente os RR. contestaram e o A. replicou.

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Elaborou-se despacho saneador, fixaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.

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Na audiência de discussão e julgamento de 4/10/2007 (cof. fls. 630 e ss.), o A. veio ampliar o pedido, traduzida essa ampliação na condenação do 2º R. a entregar ao A. a quantia de 5.687,00 €, que este lhe entregara de sinal, à qual devem acrescer os juros de mora, desde a data da entrega do veículo nas instalações do R., ou, pelo menos, desde a citação.

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Foi admitida tal ampliação.

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Terminada a discussão da causa e lida a decisão de facto, foi proferida sentença final que julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente, declarou excluídas do contrato celebrado entre o A. e a Ré BB – Crédito, as denominadas cláusulas gerais constantes do verso do documento que o formalizou, após a assinatura do A..

No mais, julgou improcedente a acção absolvendo os RR. do restante peticionado.


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Inconformados recorreram o A. e a 1ª Ré (BB – CRÉDITOS), recursos que foram admitidos como de apelação.

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Conhecendo dos recursos, a Relação decidiu:

- Julgar parcialmente procedente a apelação do A. e, em conformidade,

   - declarou a nulidade da cláusula do contrato de mútuo celebrado entre a A. e a 1ª Ré, na qual se estipulou, como garantia, a reserva de propriedade do veículo em causa (que o A. adquiriu ao 2º R.) a favor da mutuante, ordenando-se, por isso, o cancelamento do registo de reserva de propriedade do veículo ...-...-JT a favor da Ré BB – Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A.,

   - no mais julgou improcedente o recurso.


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Quanto à apelação da 1ª Ré, a Relação julgou-a procedente e, consequentemente,

- revogou a sentença recorrida na parte em que declarou “excluídas do contrato celebrado entre o A. e a Ré BB, as denominadas cláusulas gerais constantes do verso do documento que o formalizou, após a assinatura do A.”, declarando, improcedente o atinente pedido.


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Novamente inconformado, volta a recorrer o A., agora de revista e para este S.T.J..

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Conclusões

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Oferecidas tempestivas alegações, formulou o recorrente as seguintes conclusões:

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CONCLUSÕES

I-   O Recorrente, que é advogado  de profissão, e no começo do ano de 2002, decidiu implementar os seus réditos profissionais, e decidiu que iria dedicar-se ao comércio de peixe.

II- Porém, para isso, necessitava de adquirir, primeiro, e como a lei lho impunha, uma viatura com caixa térmica e com sistema de frio, para poder transportar o peixe em boas condições.

III- Depois de meses de procura de um veículo para o efeito (coisa rara de encontrar em segunda mão, e que, novo, só por encomenda, o que obriga a pelo menos 8 meses de espera), topou com um, em bom estado de conservação, no Stand do 2º/R./CC.

IV-   Adquiriu-o em fins de Julho, princípios de Agosto de 2002, depois de lhe haver sido garantido, pelo vendedor, que tudo se achava em perfeito estado de funcionamento, já que lhe mandara fazer uma revisão antes da entrega ao A.

V- O seu preço foi parcialmente financiado com um crédito ao consumo que lhe foi concedido pelo 1°R/Creditus BB, financeira que lhe foi recomendada pelo 2º R., que com ela trabalhava no seu Stand, tendo até tudo sido tratado pelos empregados deste.

VI- sucede que, logo no primeiro transporte, o frio do carro claudicou, tendo-se perdido a totalidade do pescado, atento o calor que se fazia sentir.

VII- Do facto deu, o ora Recorrente, pronto conhecimento,  ao 2°R.,

VIII- Que mandou então reparar o veículo, a expensas suas, e porque o dever de garantia assim lho impunha, a uma oficina especializada.

IX-  Sucede que logo no dia a seguir, o sistema de frio avariou de novo, causando mais uma vez, um grande prejuízo ao recorrente.

X- Porque a situação se não podia manter, o A./Recorrente resolveu o contrato de compra e venda, facto que comunicou ao 2°R, e que este aceitou, tendo, então, ambos acordado em pôr o carro à venda, obviamente, no stand deste, para assim se conseguir o dinheiro suficiente para liquidar a dívida do empréstimo à credora 1ª Ré, uma vez que aquele (o 2º R.) asseverara não dispor, na altura, de dinheiro para recomprar o veículo.

XI- Ora, embora tivessem aparecido interessados na compra do veículo, o 1º R. opôs-se à venda com manifesto abuso de direito, já que se apressou a fazer saber que tinha a reserva de propriedade do mesmo, e que, por isso, só autorizaria a venda depois do Recorrente lho pagar integralmente, e aos juros.

XII- Face ao impasse em que as coisas caíram, e a esta má vontade do 1°R. , que se manteve sempre renitente em solucionar o problema ao longo de meses, o A./Recorrente não teve outra solução senão, antes que vencidos fossem os 2 anos de prazo previstos no art. 5°/l da Directiva 1999/44/CE sobre a data da outorga dos contratos com os RR., sustar no pagamento das rendas que até aí vinha efectuando, na esperança de uma solução a contento e extra-judicial do caso, e intentar esta acção contra os mesmos RR., ao abrigo do disposto no art. 12°/2 do DL 359/91, de 21/9, pedindo ao tribunal da 1ª Instância que declarasse a nulidade dos contratos de compra e venda e de crédito ao consumo, atento o facto de se tratar de uma união de contratos, e por via da violação, pelo 2º R., do princípio da conformidade com o contrato, previsto no art. 2º e do impasse culposamente criado pelo 1º R., ao impedi-lo deliberadamente  de resolver o assunto,  a contento de todos.

XIII- Discutida  a causa, deram-se por provados  os seguintes factos:

(...)

XIV- Face a estas respostas, que fez o Senhor Juiz do Tribunal de Loulé? Nada! E nada porque, louvando-se nos Acs., da RP de 26/6/08 (in proc. n°0831242) e da RL, de 31/5/07 (in proc. n°3862/2007-6), ambos publicados em www.dgsi.pt, concluiu que, na ordem jurídica portuguesa o conceito de consumidor era unívoco e universal, e que era o plasmado na Lei do Consumidor (Lei 24/96, de 31/7), tendo encerrado o silogismo judiciário dizendo que, à luz deste conceito, o A. /Recorrente não podia ser havido por consumidor, nem em sede de contrato de compra e venda, nem do contrato de crédito ao consumo.

XV- Tendo ainda concluído serem, ambos os contratos, de índole mercantil, e que, por isso, se lhe aplicava, quer o Código Comercial,   quer o Civil.

XVI- Por via disso, entendeu depois que, à luz desta legislação, eram extemporâneas as atitudes tomadas pelo A. contra os RR. , bem como o aforamento desta acção, tendo-lhe negado provimento.

XVII- Deu no entanto provimento ao pedido subsidiário, formulado pelo aqui Recorrente, de declaração de nulidade das cláusulas gerais do contrato de crédito, por se acharem para lá das assinaturas das partes.

XVIII- Inconformado, o ora Recorrente de Revista, apelou, alegando manifesto erro judicial, já que o conceito de consumidor que rege o contrato de compra e venda firmado por A. e 2°R., é o plasmado na Directiva 1999/44/CE, em vigor ao tempo dos factos, e então, ainda não transposta para o direito português (o actual DL 67/2003, de 8/4), e, o conceito de consumidor que tutelava (e tutela ainda) o contrato de crédito ao consumo, era o constante do DL 359/91, de 21/9, pelo que, à luz de qualquer um dos dois conceitos, aliás iguais, o A. não poderia deixar de ser havido por consumidor.

XIX- Os Mmos. Juízes Desembargadores da Relação de Évora, depois de darem razão ao Apelante, anuindo em que,  em tese,  ao caso se aplicava deveras estatuído na Directiva 1999/44/CE do Parlamento e do Conselho, de 25/5/99, por efeito da decisão tirada no processo 2212/06ATBMAAI.P1.S1, da 6ª Secção desse Venerando Tribunal Superior,

XX- Concluíram por seu turno, e de seguida, que, no entanto, tal facto irrelevava, já que a situação do ora recorrente se não subsumia no conceito que ali se dava de "consumidor", cortando assim cerce, as pretensões do ora Recorrente,

XXI- Já que aplicaram, ao caso, as normas do Código Civil, para concluírem pela extemporaneidade do aforamento desta acção.

XXII- Anularam também, os senhores Desembargadores, a decisão tirada na 1ª Instância, de declarar nulas as cláusulas gerais do contrato de crédito ao consumo firmado pelo Recorrente e a 1ª Ré/BB Creditus, por entenderem que, sendo aquele Advogado, tinha uma especial obrigação de não assinar o contrato, se as ditas cláusulas estavam, como deveras estavam, plasmadas para lá das assinaturas das partes.

XXIII- No entanto a verdade é que, o recorrente tem de ser havido por consumidor seja para efeitos da Directiva 1999/44/CE, seja para efeitos do DL 359/91, de 21/9, já que era apenas e só Advogado na altura que negociou com os RR. , e o objecto dos negócios foi um veículo que viria a ser posteriormente afectado ao comércio de peixe.

XXIV- E, por via disto, devem, V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, anular toda a decisão tirada, a este propósito, na Relação, por consubstanciar uma violação de lei substantiva (al. a) do n°l do art. 722° do CPC então em vigor) ,

XXV- Substituindo-a por outra que, acolhendo os termos deste recurso, confira pleno ganho de causa ao Recorrente, com a consequente anulação dos dois contratos (de compra e venda e de crédito ao consumo) que firmou com os RR.,

XXVI- Condenado os RR. a repetirem, ao A., os €5 687,00 que este desembolsou   a título da sua contribuição para o preço do veículo em causa, acrescido dos juros caídos, à taxa legal, desde o aforamento desta acção até efectivo pagamento.

XXVII- Devem também, e caso não acolham o pedido anterior, o que só por mera hipótese académica se admite, anular a decisão de considerar plenamente válidas as cláusulas gerais do contrato de crédito ao consumo, já que se entende que, o julgador não deve distinguir onde o legislador não distingue,

XXVIII- E a verdade é que, nem no corpo do art. 8° do DL 446/85, de 25/10, nem na sua alínea d), se faz qualquer distinção entre o cidadão comum e o advogado, que assinam um contrato de adesão, sendo a dita distinção manifestamente discriminatória, até porque nem todos os advogados são especialistas em direito do consumo e de contratos de adesão, e, o Recorrente, teve o cuidado de o dizer expressamente na  sua  PI.

XXIX- É que da matéria dada por provada, só se podem retirar as seguintes  conclusões:

XXX- A primeira é a de que, indubitavelmente, as condições gerais do contrato de crédito ao consumo estavam plasmadas para além das assinaturas das partes outorgantes (cfr. ai. C) da Matéria Assente, transcrita na ai. c) do n° XIII);

XXXI-A segunda é a de que, o A./Recorrente desembolsou, no que tange ao preço do veículo, a quantia de €5 687,00, uma vez que o preço do veículo foi de €24 641,00, e o financiamento da Ia Ré/BB foi de apenas €18 954,00 (cfr. ai. F) da Matéria Assente e quesito 69°, da base instrutória, transcritos nas ais. g) e rr), do n° XIII);

XXXII- A terceira é a de que, o pagamento do empréstimo foi directamente feito, pela 1ª Ré/BB à 2ª/Stand DD (cfr. ai. G) da Matéria Assente, transcrita na ai. g) do n° XIII);

XXXIII- A quarta é a de que, quando levantou o veículo no Stand da 2a Ré, o A./Recorrente, estava absolutamente convencido de que, o mesmo, estava em perfeitas condições de operacionalidade, em função do fim a a que o mesmo se destinava, ou seja, transportar peixe, em frio (cfr. ai. H) da Matéria Assente, transcrita na ai. h) do n° XIII);

XXXIV-   A quinta, é a de que, o Recorrente, ao tempo da compra do referido veículo, não tina a profissão de comerciante de peixe, nem sequer se dedicava ao seu comércio (cfr. respostas aos quesitos 1º e 2º da Base Instrutória, transcritas nas als. i) e j) do n° XIII);

XXXV-    A sexta é a de que, o sistema de frio do veículo adquirido pelo Recorrente estava, aquando do seu levantamento do Stand, a funcionar e operacional, embora o dono do mesmo Stand haja comunicado que o dito sistema de frio precisava de uma reparação (cfr. respostas ao quesito 8º da Base Instrutória, transcrita na ai. p) do n° XIII);

XXXVI-   A sétima é a de que, a 2ª Ré/Stand DD não pode afectar ignorância sobre o real estado em que se encontrava o sistema de frio do aludido veículo, bem como que, isso, era essencial para o fim a que o mesmo se destinava, dado haver advertido, o Recorrente, de que ele precisava de uma reparação, e atenta a sua condição de profissional do ramo (cfr. respostas ao quesito 8o da Base Instrutória, transcrita na ai. p) do n° XIII);

XXXVII- A oitava é que, visto o que acaba de se dizer, o 2º R./Stand DD não pode deixar de ser responsabilizado por tudo quanto veio a acontecer ao Recorrente por causa da falha no sistema de frio do veículo que vendeu a este, e que só tinha aquela serventia (cfr. respostas aos quesitos 34°, 35°, 36°, 370, 39°, 40°, 41°, 42°, 430 e 53°, da Base Instrutória, transcritos nas ais. i) a hh), do n° XIII);

XXXVIII- A nona é a de que, o Recorrente tratou de tudo quanto teve a ver com o contrato de crédito ao consumo, com o 2º Réu/Stand DD, tendo sempre e só, tratado com o Senhor CC e empregadas, que foram quem lhe forneceu a documentação do contrato de crédito ao consumo, quem lhe explicou as cláusulas do mesmo, quem recolheu os seus dados, documentos pessoais e assinaturas, quem contactou directamente com a 1ª Ré/BB, quem enviou os documentos  àquela,   quem   a   instou  a  aprovar  o crédito, quem soube em primeira mão que o crédito fora aprovado, e quem contactou o recorrente e lhe deu nota dessa aprovação, sendo que, este, nunca viu, falou ou sequer contactou com qualquer responsável ou representante da dita 1ª Ré (cfr. respostas aos quesitos 8º, 11°, 12°, 24°, 27°, 28°, 66°, 67°, 69°, 70°, 71°, 72°, 73°,75° e 78°, da Base Instrutória, transcritas nas ais. p), q), r), t), u), v), oo), pp), rr), ss), tt), uu), vv), ww) e aaa), do n° XIII);

XXXIX- A décima é a de que, a confusão e proximidade entre a 1ª Ré e a 2ª era tal que, esta, se viu forçada a excepcionar que "o A. sabia que os intervenientes nesse acordo eram apenas ele e a Ré" (resposta ao quesito 78°), o que não releva já que, isto, não elide a possibilidade de haver, entre as duas RR., uma "relação de exclusividade"; que "existiam" mais financeiras "que concorrem á concessão de crédito" (resposta ao quesito 73°), o que não quer dizer que não fosse a 1ª Ré a única a "ganhar os concursos"; e que entre ela (2ª Ré) e a 1ª Ré não existia qualquer acordo prévio ou relação de exclusividade, o que sendo uma conclusão, nada prova, já que a exclusividade se retira dos actos do dia-a-dia, não sendo necessária qualquer formalização da mesma (resposta ao quesito 75º);

XL- A décima primeira é a de que, o Recorrente resolveu deveras o contrato que firmara com o 2º R./Stand DD, que este foi disso notificado, que aceitou pacificamente a resolução, tanto que recebeu o veículo nas suas instalações, e se empenhou em vendê-lo de novo a terceiros, contactando, para tanto, com potenciais compradores, que os houve, e solicitando directamente, à 1ª Ré/Financeira, a competente autorização para o vender, por este se achar registada, a favor desta, a reserva de propriedade (cfr. respostas aos quesitos 43°, 54°, 55°, 68°, da Base Instrutória, transcritos nas ais. gg), ii), jj) e qq), do n° XIII);

XLI- A décima segunda é a de que, a 1ª Ré/Financeira, BB, teve pleno conhecimento da rescisão do contrato de compra e venda por parte do Recorrente; foi-lhe proposta a venda do veículo em causa a terceiros pelo 2º R. em Maio de 2003, de molde a que, se a dita venda se fizesse, receberia a totalidade do preço que estabelecera com o Recorrente;    não aceitou, prevalecendo-se do facto, ilegal, de ter registado a seu favor a reserva de propriedade, e apenas e só para obrigar o recorrente a cumprir; e, mais tarde, e apercebendo-se do impasse que criara com a sua negativa, veio dizer que concordava com a venda, desde que o preço apurado resultasse integralmente para ela, devendo o Recorrente suportar o diferencial, caso o dito preço fosse inferior àquilo que entendia ser então o débito do Recorrente para consigo (cfr. respostas aos quesitos 43°, 54°, 55°, 56°, 76° e 77°, da Base Instrutória, transcritos nas ais. gg), ii), jj), kk), yy) e zz), do n° XIII);

XLII- E a décima terceira, é a de que o Recorrente sustou nos pagamentos das prestações, a partir de Janeiro de 2003, depois de haver liquidado seis (cfr. resposta ao quesito 53° da Base Instrutória, transcrita na al. hh) do n.º XIII).


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Contra-alegou a 1ª Ré, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.

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Os Factos

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A Relação fixou a seguinte factualidade.

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O Autor solicitou à Ré BB que esta financiasse a aquisição do veículo ...-...-JT, no montante de 18.954 euros (A).

O Autor e a Ré BB acordaram que a segunda entregaria ao primeiro a quantia de 18.954 euros destinado ao financiamento da aquisição por este da viatura de matricula ...-...-JT, obrigando-se o Autor a reembolsar essa quantia, acrescida de encargos, impostos e despesas, em 72 prestações mensais no valor de 477,44 euros, tudo conforme documento junto a fls. 49 e 50 (B).

O referido acordo constou de documento escrito, em modelo emitido pela Ré BB e assinado pelo Autor na frente desse escrito, datado de 5 de Julho de 2002, o qual é denominado "contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros", encontrando-se impresso no verso desse escrito diversas cláusulas denominadas "condições gerais", conforme documento de fls. 49, tendo o Autor assinado o escrito nesse dia 5 de Julho de 2002 (C).

Entre essas cláusulas constantes no verso do escrito, está a 5.2, onde se refere; «O empréstimo considera-se imediatamente utilizado pela entrega neste acto pela BB de um cheque no valor fixado nas condições específicas, emitido à ordem do mutuário ou de quem este indicar ou por crédito em conta bancária deste.» Assim como a cláusula 4. onde consta: «1.0 mutuário poderá nos termos do artigo 8º do Dec. Lei n.° 359/91, de 21 de Setembro promover, unilateralmente, a revogação do presente contrato, em declaração enviada à Creditus por carta registada com aviso de recepção e expedida no prazo de sete dias úteis a contar da assinatura do mesmo contrato, e de acordo com a minuta a ela anexa. Nesse caso deverá reembolsar a Creditus dos encargos fiscais em que esta tenha incorrido por força da sua  celebração. 2. Caso o mutuário pretenda aceder, de imediato, ao crédito disponibilizado de acordo com a cláusula 3, poderá renunciar ao período de reflexão, em documento escrito que passará a constituir parte integrante do presente contrato.» (D).

Em 28 de Junho de 2002 a Ré BB aprovou a concessão do financiamento referido na alínea B) dos Factos Assentes (E).

O Autor e o Réu CC acordaram que o segundo transmitiria para o primeiro de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do veículo ...-...-JT, mediante o pagamento por este do preço de 24.641 euros (F).

A Ré BB entregou a quantia referida na alínea B) dos Factos Assentes, fazendo esse pagamento a favor do Réu DD, enquanto entidade vendedora (G).

O Autor assinou um escrito, em modelo emitido pela Ré BB, e onde declarava: «tendo recebido nesta data o bem referido no contrato em epígrafe, e encontrando-se o mesmo em condições de cumprir a finalidade a que é destinado, venho nos termos do art.° 8º, n.° 5 do Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Setembro, renunciar ao exercício do direito de reflexão e revogação previsto no referido preceito legal.», conforme documento junto fls. 213 dos autos (H).

O A. pretendia vir a dedicar-se ao comércio de peixe (1º).

Sendo necessário para o exercício dessa actividade a utilização de um veículo de mercadorias com caixa térmica e motor de frio acoplado (2°).

O Réu DD explora um stand de venda de automóveis (3°).

Onde se encontrava exposto para venda um veículo ligeiro de mercadorias, com matricula ...-...-JT (4°).

Cujo ano de fabrico era 1998 (5°).

E tinha caixa térmica e motor de frio acoplado (6°).

Encontrando-se em bom estado de conservação (7°).

O Réu DD comunicou ao Autor que o veículo ...-...-JT se encontrava operacional, mas que o sistema de frio precisava de uma reparação (8°).

Uma funcionária do R. DD realizou diligências com vista à concessão ao A. do financiamento esp. em B) (11°).

O Autor assinou o escrito referido na al. C) dos Factos Assentes nas instalações do stand do Réu DD (12°).

Só se encontrava em branco o local destinado à data (140).

Foi uma empregada do R. DD quem comunicou ao A. a concessão do financiamento esp. em E) (24°)..

Em anexo ao escrito esp. em C) existiam outros documentos (27°).

O solicitado pelo Autor, nos termos referidos na al. A) dos Factos Assentes, foi efectuado por intermédio do Réu DD, por referência às suas funcionárias (28°).

O R. DD entregou o veículo ao A. em data próxima de 28-6-02 (32°).

Tendo o Autor de imediato iniciado a utilização desse veículo (33°).

Logo no primeiro carregamento de peixe, o motor do veículo não produziu frio (34°).

O que provocou a deterioração de dezenas de quilos de pescado carregado (35°). O que foi comunicado de imediato ao Réu DD, quer pelo Autor quer pelo seu motorista (36°).

Tendo o Réu DD comunicado ao Autor que levasse o motor a reparar, a suas expensas (37°).

Obrigando o Autor a utilizar como alternativa, gelo na caixa térmica (39°).

O que se verificou até ao início de Agosto de 2002 (40°).

Sendo insuficiente para a produção de frio o recurso ao gelo (41°).

Assim como não era operacional o recurso ao gelo (42°).

O A. desistiu de comercializar peixe (43°).

O Autor pagou seis das prestações mensais mencionadas na al. B) dos Factos Assentes, no valor de 477,44 euros, até Janeiro de 2003 (53°).

Em Maio de 2003 apareceu um interessado na compra do veículo, do que o A. teve conhecimento (54°).

O R. CC comunicou tal situação à R. BB (55°).

Não tendo a Ré BB dado o seu acordo à venda (56°).

O R. CC responsabilizou-se pelas despesas de reparação do sistema de frio (60°).

O A. tinha pressa na utilização do veículo (61°).

O A. só assinou o escrito esp. em C) após a sua leitura (65º).

O Réu DD esclareceu o Autor que apenas era o vendedor que a financiadora era uma pessoa distinta (66°).

Tendo o financiamento sido feito através do stand do Réu DD, a pedido do próprio Autor (67°).

O veículo ...-...-JT encontra-se no stand do Réu DD a pedido do Autor (68°).

Em finais de Julho de 2002, o Réu DD, através da funcionária EE, remeteu à Ré BB um escrito denominado proposta de crédito, onde constavam elementos relativos à identificação do Autor, veículo a adquirir (...-...-JT) e quantia pretendida (18.954 euros) (69°).

A Ré BB enviou o escrito referido na al. C) já preenchido e nos termos que constam desse escrito, com excepção do local destinado à data (70°).

Tendo o Autor assinado esse escrito já preenchido, com excepção do local destinado à data, e depois de ler todo o seu conteúdo (71°).

E recebido um duplicado do mesmo, bem como o plano de reembolso das prestações acordadas (72°).

No stand do Réu CC, e para além da Ré BB, existem outras entidades financeiras que concorrem à concessão de crédito, tais como o Banco FF, S.A. e a GG - Banco de Crédito ao Consumo, S.A. (73°).

Sem que existisse qualquer acordo prévio ou relação de exclusividade entre a Ré BB e o Réu CC (74°).

Tendo o Autor optado por solicitar o crédito à Ré BB (75°).

A Ré BB anuiu à venda do veículo ...-...-JT, a pedido do Autor, e sob a condição que o produto da venda se destinasse a amortizar as prestações devidas pelo A., nos termos do acordo ref°. em B) dos Factos Assentes, obrigando-se o Autor a pagar o remanescente em falta (76°).

O que o Autor não aceitou (77°).

Quando celebrou o acordo referido na al. B) dos Factos Assentes, o A. sabia que os intervenientes nesse acordo eram apenas ele e a Ré BB (78°).


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Fundamentação

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Como resulta das conclusões são duas as questões essenciais colocadas na revista.

A 1ª, diz respeito à questão, que desde início se debate no processo, e que consiste em saber se, em relação aos contratos dos autos, o A. deve considerar-se como consumidor para efeitos da aplicação das leis de protecção ao consumidor (D.L. 359/91, L. 24/96, Directiva 199/44/CEE ...), como pretende o recorrente, caso em que os eventuais direitos a que se arroga não estariam caducados, ou se, diferentemente, não pode o A. ser considerado consumidor para os referidos efeitos, pelo que se aplicam ao caso, as regras comuns, face às quais a acção é intempestiva, com decidiram as instâncias.


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A 2ª questão, aliás colocada subsidiariamente, consiste em saber se as cláusulas gerais apostas no contrato de crédito celebrado entre o A. e a 1ª Ré, devem ter-se por excluídos nos termos do Art.º 8 d) do D.L. 446/85, por terem sido nele inseridos para lá (depois) das assinaturas das partes, como decidiu a 1ª instância, ou se são, mesmo assim, válidos como entendeu o acórdão recorrido, do qual discorda o recorrente.

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Diga-se, desde já, que concordamos inteiramente com o acórdão recorrido quando afastou a aplicação ao caso concreto das leis de protecção do consumidor, como aderimos à decisão de neutralizar o disposto no Art.º 8º do 446/85, por ser abusiva a pretensão do A. ao pedir a nulidade das cláusulas gerais que se comprovou conhecer (já que os leu).

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Sem prejuízo, não deixaremos de encarar as questões suscitadas, procurando responder à argumentação do recorrente.

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Vejamos então.

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1ª Questão

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Está em causa a aplicação ao caso concreto do D.L. 359/91 de 21/9, que regularmente o crédito ao consumo, bem como a Directiva 1999/44/CEE do Parlamento Europeu e do Conselho.

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Não vem discutida pelas partes a eventual aplicação directa da Directiva 1999/4/CEE, ponderada pelo acórdão recorrido, pelo que nos dispensamos de analisar tal questão.

No entanto, na sequência da mais recente jurisprudência deste S.T.J. sobre a matéria, aceita-se que, se fosse caso disso (e não é, tal como concluiu o acórdão recorrido depois de ponderar a hipótese), poderia aplicar-se directamente a referida directiva, apesar de ainda não transposta.

Neste sentido cof. Ac. do S.T.J. de 12/1/2010 C.J./STJ. – 2010 – I- 19 e seg..


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Considerou o acórdão recorrido que o A. não pode ser tido como consumidor para efeitos da Lei 24/96, da aludida Directiva ou do D.L. 359/91, porque comprou o veículo em causa para o utilizar no comércio de pescado, que passou a fazer imediatamente após o mesmo lhe ter sido entregue pelo vendedor, sendo igualmente essa a finalidade para que contraiu o crédito junto da 1ª Ré.

Pretende, porém, o A. que, ao tempo da compra e venda, não tinha a profissão de comerciante de peixe, nem sequer se dedicava ao seu comércio, razão porque, em relação a essa compra e ao crédito obtido para o efeito, tem de ser havido como consumidor.


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Interessa, pois, apurar o que deve entender-se por consumidor para efeitos dos referidos diplomas, o que implica interpretar as definições que, no domínio do direito do consumo, surgem em inúmeros diplomas que o procuram sistematizar.

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Assim e desde logo, a Lei Quadro de defesa do consumidor – L. 29/81, substituída, hoje, pelo D.L. 24/96 – define consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens ou serviços destinados ao seu uso privado, por pessoa singular ou colectiva que exerça, com carácter profissional uma actividade económica”.

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O D.L. 359/91 de 21/9, que regulamenta o crédito ao consumo, no seu Art.º 2 b), apresenta a seguinte definição:

“«Consumidor», a pessoa singular que nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente diploma, actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional.”


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Por sua vez, a L. 24/96 de 31/7 – Lei de Defesa do Consumidor –, diz-nos que,

“Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.


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Também a Directiva 1999/44/CEE de 25/5/1999, que visa, exactamente regular “certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar um nível mínimo de defesa dos consumidores no contexto do mercado interno”, define o conceito de consumidor do modo seguinte:

“Consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional”.


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Finalmente, atente-se no D.L. 67/2003 de 8/4, que procedeu à (1ª) transposição da Directiva 1999/44/CEE, diploma que foi reformulado pelo D.L. 84/2008 de 21/5, onde surge a seguinte definição:

“Consumidor, aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios nos termos do n.º 1 do artigo 2 da Lei 24/96 de 31 de Julho”.


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Vê-se, assim, que apesar de algumas diferenças de forma, o conceito de consumidor, tem um sentido restrito, mas coincidente, em todos os diplomas referidos.

Trata-se de um conceito restrito que, como ensina Calvão da Silva, é o “mais corrente e generalizado na doutrina e nas Directivas Comunitárias: pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico, na fórmula da al. a) do Art.º 2 da Convenção de Viena de 1980 – de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou da sua empresa” (Cof. Compra e Venda de Coisas Defeituosas – 5º ed. – 122).


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Ora, a aquisição de bens de consumo ou serviços com objectivos alheios à actividade comercial ou profissional do adquirente ou destinados a uso não profissional, significa que essa aquisição deve ter por objectivo as referidas finalidades privadas a que aludia a Lei 24/96, inspirada na Convenção de Viena de 1980, também inspiradora da Directiva 1999/44/CEE.

Ocorre, por conseguinte, uma ideia comum, nas diversas formulações do conceito e é essa ideia que está subjacente à Directiva 1999, que veio a ser transposta para o direito nacional pelo D.L. 67/2003, posteriormente ajustado pelo D.L. 84/2008, bem como às Directivas n.ºs 87/102/CEE de 22/12/86 e 90/88/CEE de 22/2/90, transpostas pelo D.L. 359/91 de 21/9, que regulamenta o crédito ao consumo.


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Existe, portanto, total conformidade substancial entre a noção de consumidor contida nos diplomas nacionais citados com as Directivas Comunitárias.

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Concluindo, podemos definir consumidor, para efeitos de aplicação das leis dirigidas à sua protecção como sendo “... todo aquele (pessoa singular) a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados (exclusivamente) a uso não profissional, por pessoa (singular ou colectiva) que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” (cof. Calvão da Silva, obra citada – fls. 125).

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Encontrado o conceito de consumidor, cumpre regressar ao caso concreto, para verificar se o A. pode ser considerado como consumidor, dentro do contexto da factualidade provada.

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Há, então, que recordar, que se encontra demonstrado que o A. pretendia vir a dedicar-se ao comércio de peixe, tendo sido com esse objectivo que adquiriu ao 2ª R. o veículo de mercadorias com caixa térmica e motor de frio acoplado.

Ficou igualmente provado que o A. contraiu junto da 1ª Ré o empréstimo de 18.954,00 €, para pagamento de parte do preço da dita viatura.

Notar-se-á que o A. alegou coisa diferente. Na verdade, como resulta inequivocamente dos pontos 1,2,3,4,5,6,17, 21, 22, 23 e 40 (essencialmente) da petição inicial, à data do empréstimo e da compra do veículo, já o A. se dedicava, desde o início de 2002, à comercialização de peixe, utilizando para o efeito um outro camião com caixa térmica e motor de frio, dispondo, então, do seu motorista, o que tudo denotava, na versão do A., uma já consolidada organização da sua actividade comercial.

Foi só porque deixou de poder contar com o dito camião, que o A. se viu na necessidade de obter outro – o aqui em questão – .


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Só que, incompreensivelmente, tal matéria foi impugnada pelos RR. e não menos incompreensivelmente, surgem as respostas restritivas aos quesitos 1º e 79º, dos quais o A. agora se aproveita, contra o que alegou ...

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Seja como for, não podendo o STJ sindicar as respostas aos quesitos, é apenas com base na factualidade disponível que se terá de decidir. Assim sendo, no que ora interessa, a matéria de facto a ter em conta é apenas a que acima se referiu como provada.

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Portanto, não pode ter-se por assente que à data do empréstimo e da compra do veículo de mercadorias o A. exercia já a actividade comercial na área da comercialização de pescado.

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Todavia, resulta já da prova que, quer o empréstimo quer a compra, tiveram por objectivo exclusivo o exercício de tal actividade comercial, à qual o A. pretendia dedicar-se, e que, pelo menos, iniciou efectivamente, logo que o veículo lhe foi entregue.

Ou seja, não sofre a mais pequena dúvida que o crédito que obteve da 1ª Ré e a compra que efectuou ao 2º R., não se destinaram à satisfação de nenhuma necessidade privada e pessoal do A., o mesmo é dizer, como se viu, não se destinaram a uso não profissional, e isto independentemente de o A., até esse momento, apenas exercer a profissão de advogado.

Certo é que, juntamente (ou não, pouco interessa) com esta profissão, pretendia exercer a actividade de comercialização de peixe, que aliás, como se disse, pelo menos iniciou logo que o veículo lhe foi entregue.

Sendo assim, como é, irreleva para o caso, que o A. não fosse comerciante à data dos factos, uma vez que a obtenção do crédito e a compra do veículo de mercadorias se destinavam a actividade comercial, ainda que iniciada logo após a aquisição da viatura.

O que tudo significa, por outras palavras, que pelo menos a partir da entrega do veículo pelo vendedor, o A. passa a ser qualificado como comerciante, já que, tendo capacidade, passou a desenvolver uma actividade comercial, sendo indiferente que o fizesse exclusivamente ou conjuntamente com a profissão de advogado.

Portanto, é fora de dúvida, que foi para o exercício da profissão de comerciante ou da referida actividade comercial que o A. contraiu o empréstimo e adquiriu o veículo, pelo que, quer o crédito concedido pela 1ª Ré, quer o veículo vendido ao A. pelo 2º R., não se destinaram a objectivos alheios à sua actividade comercial ou a uso não profissional, isto é, não se destinaram a fins privados.


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De resto, o objecto do direito de consumo diz respeito “... a uma categoria particular de actos – os actos de consumo que ligam um consumidor final a um profissional que actua no quadro da sua actividade ou profissão – não a uma classe particular de pessoas” (cof. Calvão da Silva – ob. cit. – 123 - ).

Consequentemente, é a finalidade do acto de consumo que determina, essencialmente, a qualificação do consumidor como sujeito do regime de benefício que os diplomas legais em análise regulamentam, partindo da presunção de que se trata da parte mais fraca, menos preparada tecnicamente, em confronto com um contratante profissional, necessariamente conhecedor dos meandros do negócio que exercita (ou que se preparou para exercitar, como será o caso do A.).


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Deste modo, como observa o autor citado (Responsabilidade Civil do Produtor) “... tal como a lei comercial regula os actos de comércio, assim também o denominado direito de consumo regulará os actos de consumo, relação jurídica existente entre um consumidor e um profissional (produtor, empresa de publicidade, instituição de crédito), acto de consumo que assim será o eixo, o coração do chamado direito do consumo, o seu elemento aglutinador e o fundamento da sua procurada autonomia dogmática”.

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Postas estas prévias considerações, não será difícil concluir que, perante a factualidade que aqui tem de ser tida em conta, o A. não pode ser considerado como consumidor para o efeito de beneficiar do regime jurídico instituído pelos diplomas que regulamentam o direito de consumo, designadamente, do regime instituído pelos D.L. 24/96, pela Directiva 1999/44/CEE ou pelo D.L. 359/91.

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Não tendo aplicação ao caso os mencionados diplomas legais, estamos perante um contrato de mútuo que se rege pelo direito comum (Art. 1142º e seg. do C.C.) e perante um contrato de compra e venda de coisa defeituosa a que se aplica o regime fixado nos Art. 913º e seg. do C.C., de onde resulta que, em relação a este último negócio, o prazo para o exercício dos direitos a que se arroga o A. (anulação, resolução, indemnização) há muito se tinham esgotado, à data da instauração da presente acção, sendo certo que, ao contrário do que diz o A. na sua conclusão XL, não está provado que tenha resolvido o contrato e que tal resolução tenha sido aceite pelo 2º R., como tudo resulta claramente dos pontos 45, 46, 47, 48, 49, 50 e 51 da matéria de facto provada (os pontos de facto referidos pelo A. na dita conclusão, estão desinseridas do contexto da prova e nada revelam a respeito da alegada rescisão do contrato).

Em relação ao contrato de mútuo mantém-se válido e operante (com essa validade não contende a decretada nulidade da reserva de propriedade, como é óbvio, que apenas afecta a garantia e não a substância do negócio).


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2ª Questão

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Como se viu, a sentença de 1ª instância declarou excluídos do contrato de financiamento celebrado entre o A. e a 1ª Ré, as cláusulas gerais constantes do verso do contrato, por se mostrarem nele inseridos em formulário, depois da assinatura dos contraentes, tudo nos termos do Art.º 8 d) do D.L. 446/85.

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A Relação, porém, revogou esse segmento da sentença, porquanto entendeu que, apesar da inserção das cláusulas em formulário existente no verso do contrato e após as assinaturas dos outorgantes “o A., advogado de profissão, leu todo o contrato em apreço, após o que o subscreveu ..., do que se presume, atentas as suas qualificações literárias, que o entendeu e ficou ciente dos seus direitos e obrigações.

Pelo que vir agora, pela presente acção, pretender que as cláusulas contratuais gerais do dito contrato após as assinaturas das partes, sejam nulas, é violar as mais básicas regras da boa-fé, actuando com abuso de direito”.

Daí a improcedência desse pedido.


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Embora concordando com a decisão, convém aprofundar a questão um pouco mais.

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Ora, desde logo, convém notar que não obstante as ditas cláusulas gerais se encontrarem formalmente inseridos no verso do contrato, após as assinaturas dos outorgantes, o certo é que, como se vê do documento de fls. 49 (cópia do contrato, que o A. juntou aos autos) sob o n.º 6 com a epígrafe “Declarações”, consta os seguintes dizeres “Declaro(amos) que tomei(amos) conhecimento de todas as cláusulas constantes neste contrato, nomeadamente, os que constam no verso do mesmo”.

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Tal declaração encontra-se impressa imediatamente antes do local de onde constam as assinaturas dos outorgantes.

Trata-se, pois, de uma expressa remissão para o que consta do verso do documento, o que significa que se dão por reproduzidos, na face do documento as cláusulas redigidas no seu verso.

Consequentemente, o A., que assinou o contrato, não podia razoavelmente desconhecer a declaração que assinou, se agisse com a normal diligência. Não poderá dizer-se, por isso, sem mais, que se está perante a situação descrita na alínea d) do Art.º 8 da L.C.G..

Ao que nos parece, embora com algumas dúvidas, é que, o mais razoável será o entendimento de que, nestas situações, não terá aplicação aquele dispositivo, pois elas escaparão à sua lógica e razão de ser.


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O que pretendeu o legislador com tal disposição, como aliás, com os contidos nos Art.ºs 5º e 6º e nas restantes alíneas do Art.º 8, foi exercer um controlo efectivo ao nível da formação do acordo, tendo em conta a possibilidade de desconhecimento de alguns aspectos importantes do contrato regulado por cláusulas gerais, considerando que o acordo de vontades, no caso, se obtém por simples adesão às cláusulas predeterminados, com exclusão de negociação prévia.

E, no caso da alínea d) (e c)) do Art.º 8º, dentro do âmbito deste controle genérico, pretendeu-se, ainda, proteger o aderente, visto como a parte mais fraca, contra cláusulas “surpresa” ou “inesperados”.

Como observa a respeito o Prof. Pinto Monteiro (ROA – 46-733 e seg.) “Trata-se ... de impedir que se façam valer perante o aderente cláusulas que suscitam, justificadamente, reacções de surpresa ... por não lhe ser exigível – pela forma ardilosa com que as mesmas foram disfarçadas ou pela forma sub-reptícia ou camuflada com que foram apresentados – o seu conhecimento efectivo, ainda que previamente comunicados. Protege-se, assim, a confiança depositada pelo aderente num conteúdo diverso do real, legitimada pelo comportamento fraudulento de quem os predispôs nesses termos”.


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Ora, sendo a razão de ser do disposto no Art.º 8º d) do D.L. 446/85 obviar à suspeita de que as cláusulas não foram lidas ou que sobre elas não tenha ocorrido acordo consciente (cof. Meneses Cordeiro – Tratado de Direito Civil Português – I – 2ª ed. – 436), se se pretende proteger o aderente contra a inclusão no contrato de cláusulas surpresa ou inesperadas, então parece razoável aceitar que tais perigos ficam afastados em situações como a descrita, uma vez que da face do texto contratual, e em local destacado, colocado imediatamente antes daquele que é destinado às assinaturas, expressamente se fez constar a existência de cláusulas gerais impressas no verso do contrato, exigindo-se do aderente que o assine, a declaração de que tomou conhecimento dessas cláusulas.

É claro que, mesmo assim, pode o aderente não tomar conhecimento, não ler, sequer, o contrato (o que igualmente se pode verificar, mesmo que todas as cláusulas se encontrem formalmente antes das assinaturas), mas, desde que idoneamente alertado para a existência das cláusulas impressas no verso, um tal eventual desconhecimento só pode imputar-se ao aderente a título de descuido ou negligência.

Mas, se é certo que o D.L. 446/85, atenta a especial feição dos contratos de adesão, estabeleceu um regime de favor (de resto perfeitamente justificável) em relação ao aderente, tido como a parte mais frágil da relação contratual, tal não significa, como será óbvio, que não lhe seja exigível uma conduta normalmente diligente, pautada pelo zelo e cuidado, que os princípios da boa-fé impõe a qualquer contratante.

Aos deveres acrescidos impostos ao utilizador de cláusulas gerais, não pode deixar de corresponder o dever de agir com zelo e diligência por parte do aderente, o qual, tendo o direito de ser informado, lhe há-de também caber o dever de se informar, desde que disponha de condições para esse efeito, como sucede nas situações que analisamos.

Só assim se conseguirá o necessário equilíbrio dos direitos e deveres das partes contratantes.

Por isso, concordamos com o acórdão recorrido quando observa que  “interpretar uma qualquer norma da referida Lei, por forma a fazer vingar qualquer tese que permita o exercício abusivo do direito à fiscalização judicial de determinada cláusula contratual geral, mesmo que favorável ao aderente, é inverter o espírito do diploma que tem como fito assegurar a liberdade contratual na sua plenitude, ou seja uma contratação livre e esclarecida”.

Daí também que, como se refere no Ac. desde S.T.J. de 15/3/2005 – Proc. 05B282 “Para que as Condições Gerais, contidas no verso do contrato, vinculam o mutuário impõe-se que este expressamente refira deles ter conhecimento através de declaração como, por exemplo, a seguinte: «depois de tomar conhecimento, declaro aderir a todas as condições que precedem bem como no verso do contrato».

Declarações deste tipo figuram normalmente nos contratos de mútuo praticados em países, como a França, com regulamentação semelhante à portuguesa e que levaram o Advogado-Geral Tizzam, no caso Cofidis (Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, 2002 -, p.I – 10889 n.º 41) a concluir pela sua legalidade”.


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Ao que acaba de dizer-se, acresce, no caso concreto, que está provado que o A. e a 1ª Ré celebraram o acordo escrito (contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouro) datado de 5 de Julho de 2002 do qual consta, impressos no verso, diversas cláusulas denominadas “condições gerais” (doc. de fls. 49).

Tal contrato escrito foi enviado ao A. pela 1ª Ré, já preenchido, nos termos que dele constam (com excepção da data), tendo o A. assinado esse contrato depois de ler todo o seu conteúdo e recebido um duplicado do mesmo, bem como o plano de reembolso das prestações acordadas (cof. alíneas C) e D) dos factos assentes e respostas aos quesitos 70, 71 e 72).


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Está, pois, demonstrado que a 1ª Ré comunicou previamente à assinatura, todo o conteúdo do contrato, incluindo as cláusulas gerais inseridas no verso, tendo o A. assinado o dito acordo após o ter lido integralmente.

Portanto, de tal factualidade só pode concluir-se que a 1ª Ré agiu de modo idóneo a possibilitar ao A. o conhecimento efectivo e completo do texto contratual, pressupondo a normal diligência do A. aderente.

Trata-se, como se alcança da sua simples leitura de um contrato de financiamento, inteiramente vulgar, pouco extenso, cujas cláusulas são de fácil compreensão para qualquer pessoa normalmente diligente (pelo que a qualidade de advogado do A. nem sequer é relevante para o caso).

Não se vê, pois, que quaisquer circunstâncias concretas, exigissem mais completa informação, tanto mais que o A. não alegou, sequer, que necessitava de melhores esclarecimentos (o que o A. alegou foi que, quando assinou o contrato, ele não estava ainda preenchido – encontrava-se em branco -, pelo que não lhe teriam sido comunicados os diversos itens do acordo, o que, não só não provou, como se provou o contrário, como se viu ...).


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Assim, perante a referida factualidade, tem de concluir-se que a 1ª Ré cumpriu o dever de comunicação que sobre ela impendia colocando o A. em condições objectivas de tomar conhecimento de todas as cláusulas contratuais, sem que as circunstâncias mostrem tornar-se necessária informação especial (cof. Art. 5º e 6º de L.C.G.).

Vê-se, por outro lado, que o A. leu todo o conteúdo do contrato e só depois disso o assinar, o que, dada a vulgaridade do acordo e considerando a diligência normal, revela que o A. tomou conhecimento das cláusulas gerais em causa e as achou conformes aos seus direitos.


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Deste modo, ainda que se considere que a situação dos autos preenche a previsão da alínea d) do Art.º 8º (o que, como se deixou dito, tendemos a rejeitar e, portanto, a aceitar a legalidade da acima referida declaração constante do contrato), mesmo então, perante o evidente conhecimento das cláusulas pelo A. (que as leu e só depois assinou), pensamos não oferecer dúvida que constituiria manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum próprio, vir agora, quando ocorreu desentendimento entre as partes, peticionar-se a nulidade das cláusulas gerais que antes se aceitaram.

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Consequentemente, também por esta via, o pedido improcede, na medida em que tem de ter-se por paralisado o direito de ver excluídos do contrato as cláusulas gerais em causa, ou seja, o direito de accionar o dispositivo da alínea d) do Art.º 8, caso se entendesse aplicável à situação concreta dos autos.

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Subscreve-se, portanto, o decidido no acórdão recorrido, que não nos merece censura.

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Decisão

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Termos em que acordam neste S.T.J. em negar revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

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Custas pelo recorrente.

Lisboa, 20 de Outubro de 2011.

Moreira Alves (Relator)

Alves Velho

Paulo de Sá