Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
155/11.9TBPVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: SONEGAÇÃO DE BENS DA HERANÇA
ART. 2096º DO CC
OCULTAÇÃO DOLOSA DE BENS
FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DOS ACTOS DE OCULTAÇÃO
ATENDIBILIDADE DE FACTOS PLENAMENTE PROVADOS
EXCLUSÃO DAS CONCLUSÕES DE RELATÓRIO PERICIAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS SUCESSÕES / ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA / SONEGAÇÃO DE BENS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, citado por Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, 549.
- Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. VI, 157, 158.
- R. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 59.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2096.º.
REGIME DO PROCESSO DE INVENTÁRIO, APROVADO PELA LEI N.º 23/13, DE 5-3: - ARTIGO 35.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 01/07/2010, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 23/11/2011, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. À Relação é legítimo integrar oficiosamente na decisão factos que se encontram plenamente provados, o que, no entanto, não envolve a conclusão inscrita num relatório pericial grafológico acerca da autenticidade da assinatura aposta num documento que foi examinado pelo perito.

2. As conclusões do relatório subscrito pelo perito, no âmbito da prova pericial, não constituem factos que possam ser autonomamente considerados, sendo apenas o resultado de um meio de prova que o Tribunal deve valorar no processo de formação da convicção sobre a matéria de facto controvertida.

3. A resposta “não provado” dada relativamente a um facto controvertido não permite afirmar a prova do facto contrário.

4. A sonegação de bens prevista no art. 2096º do CC pressupõe a prova de actos de ocultação dolosa de bens da herança por parte do herdeiro a quem é imputada.

5. O facto de não se provar a doação de dinheiro depositado em contas bancárias que foi alegada pelo herdeiro a quem é imputada a sonegação de bens da herança é insuficiente para o fazer incorrer na sanção civil prevista no art. 2096º do CC, ou seja, da perda a favor dos demais co-herdeiros do direito sobre tal numerário.

Decisão Texto Integral:
I - AA (falecida na pendência da acção, tendo sido habilitados os seus sucessores BB, CC e DD) demandou EE, por si e na qualidade de tutor do seu filho interdito, FF, e mulher GG, pedindo que fosse declarado que pertenciam à herança dos falecidos HH e II, de quem a A. e o R. são os únicos herdeiros:

a) As quantias depositadas em todas as contas bancárias existentes na titularidade de II, HH, EE, GG e FF, que foram objecto de apropriação por parte dos RR., em valor a liquidar em execução de sentença;

b) E o veículo automóvel de marca Fiat, matrícula …-…-JF.

Pediu ainda que fosse declarada a perda em seu benefício do direito do R. sobre as mesmas quantias, condenando-se os RR. a entregar à A.:

a) A quantia que vier a ser apurada em liquidação de sentença, com juros desde a citação;

b) O veículo automóvel marca Fiat, matrícula …-…-JF.

Os RR. contestaram com a improcedência da acção, alegando que não existiu sonegação de bens da herança, mas apenas um conflito entre herdeiros relativamente à titularidade de uma quantia depositada numa conta bancária.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e:

- Condenou os RR. EE e mulher GG a restituírem à herança de II a quantia de € 162.032,32 e o veículo da marca FIAT de matrícula …-…-JF;

- Absolveu os RR. EE e mulher GG do pedido quanto ao mais peticionado pela falecida A.;

- Absolveu o R. FF do pedido quanto a tudo o peticionado pela falecida A..

Os herdeiros da A. AA e os RR. EE e mulher interpuseram recurso de apelação, tendo a Relação confirmado a sentença, embora com a consideração de que houve da parte do R. EE sonegação da referida quantia de € 162.032,32 (para efeitos do disposto no art. 2096º do CC).

Os RR. EE e GG interpuseram recurso de revista tendo sido apresentadas contra-alegações.

Em tal recurso de revista suscitam-se as seguintes questões:

a) Inadmissibilidade do aditamento oficioso aos factos provados do teor do ponto 34º que foi determinado pela Relação;

b) Falta de verificação dos pressupostos da sonegação de bens da herança regulada no art. 2096º do CC, designadamente a ocultação dolosa da existência de uma conta bancária cujo montante foi transferido para uma conta do R. EE.

II – Matéria de facto:

1. Os RR. EE e mulher GG insurgem-se contra o aditamento que foi feito pela Relação do facto que agora integra o ponto 34º do anterior enunciado, concluindo que tal facto não corresponde a qualquer alegação.

Em tal ponto a Relação fez constar que:

“O R. apresentou uma declaração de doação, que constitui o documento junto a fls. 722, datada de 2008 com uma assinatura que atribuía à sua mãe, onde consta que lhe doa por conta da quota disponível a totalidade dos depósitos em dinheiro que tinha na CCAM, agência da Póvoa de Varzim.

Submetida tal “declaração de doação” a prova pericial concluiu-se que:

É praticamente provado que a assinatura da inventariada é totalmente falsa, ou seja, não ter sido escrita pela referida inventariada.”

2. Não se entende – nem a Relação explicitou – qual a base legal para o aditamento do teor do referido ponto 34º à decisão da matéria de facto.

A nova formulação do art. 662º do CPC deixou de prever especificamente a modificação da decisão da matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, como se previa no art. 712º do anterior CPC.

Da modificação legal não resulta que tenha sido abolida essa possibilidade tenha. Ao abrigo daquele preceito, continuará a justificar-se o aditamento de novos factos cuja prova plena resulte dos autos, seja por confissão judicial ou extrajudicial, seja por acordo das partes estabelecido nos autos ou por documento dotado de força probatória plena.

Tal pode acontecer nomeadamente quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (arts. 371º, nº 1, e 376º, nº 1 do CC), a 1ª instância tenha considerado não provado esse facto, atribuindo relevo a prova testemunhal produzida ou a presunções judiciais. O mesmo acontece quando tenha sido ignorada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358º do CC e arts. 484º, nº 1, e 463º do CPC) ou tenha sido desconsiderado acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2, do CPC).

Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a 1ª instância desatendeu ou considerou não provado, alteração que não depende sequer da iniciativa da parte.

Com efeito, nos termos do art. 663º, nº 2, do CPC, aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o art. 607º, nº 4, do CPC, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na sentença (que agora integra também a decisão sobre os “temas da prova”) os factos admitidos por acordo e os plenamente provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.

3. Porém, relativamente ao teor do aludido ponto 34º não se verificavam condições para a actuação da Relação.

Na presente acção a controvérsia está centrada no facto de a mãe da A. e do R. Isaac ter outorgado ou não uma “doação” a este de determinadas quantias depositadas. Enquanto o R. EE alegou ser beneficiário dessa doação, a A. negou a sua existência, divergência que foi explicitada nos articulados e que acabou espelhada no ponto 65º da base instrutória (fls. 298).

Submetido esse ponto controvertido a instrução, o Tribunal de 1ª instância concluiu que resultara “não provado” (sentença, a fls. 1317), com indicação dos motivos assentes em factos circunstanciais e na ponderação de depoimentos testemunhais e da perícia grafológica que incidiu sobre a autoria da assinatura aposta no documento que titularia tal “doação”. Tal decisão não foi questionada por nenhuma das partes.

Ora, o teor do ponto 34º que anteriormente se reproduziu não traduz qualquer “facto” que sirva para representar a realidade que subjaz ao presente litígio, constituindo uma mera ocorrência processual cujo resultado foi valorada pela 1ª instância quando se pronunciou sobre os factos provados e não provados e quando, nessa ocasião, teve de expor os motivos determinantes da convicção formada.

Trata-se de uma mera conclusão do relatório elaborado no culminar de uma perícia que teve por objecto a averiguação da autenticidade da assinatura imputada a Emília Pinheiro que alegadamente foi aposta por esta no documento apresentado pelos RR. para titular a “doação”.

Ora, a realização de uma perícia com um determinado resultado constitui simplesmente de um facto de natureza processual, não servindo, nessa perspectiva, para descrever a realidade que aos Tribunais cumpre integrar juridicamente.

Do mesmo modo que não integra a matéria de facto provada a descrição de que determinada testemunha foi inquirida e que produziu um certo depoimento, também não faz qualquer sentido, nem aporta qualquer utilidade para a resolução do litígio a descrição de que foi realizada uma perícia grafológica e a reprodução da “conclusão” que foi apresentada pelo perito que a realizou.

Por conseguinte, por falta de fundamento legal, determina-se a exclusão do teor do ponto 34º do conjunto de factos enunciados pela Relação.

4. Factos provados (enunciados de forma lógica e cronológica e com exclusão do que correspondia ao ponto 34º que foi aditado pela Relação):

1. No dia 19-7-91, faleceu HH, no estado de casado com II, conf. certidão de óbito de fls. 40.

2. O falecido HH tinha conta bancária na CCAM da … que, na data do seu falecimento, registava um saldo a crédito no montante de PTE 1.810.285$10.

3. A mãe do R. e A., II, após a morte do pai daqueles, cedeu as quotas de JJ, Lda, pelo valor de € 60.000,00.

4. II vendeu, em 1992, as fracções "C" e "M" do prédio em propriedade horizontal sito na R. …, na cidade da Póvoa de Varzim, descrito na CRP sob o nº 1086, da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, e inscrito no art. 8408, pelo valor de € 52.374,00, conforme resulta do doc. de fls. 66, tendo a A. outorgado as respectivas escrituras, a mãe ficado com ½ do dinheiro das transacções e a outra ½ distribuída pelos dois irmãos.

5. E vendeu ainda o veículo automóvel marca Toyota com a matrícula PT-…-… e o veículo automóvel marca Ford com a matrícula JC-…-…, estando este último adstrito ao estabelecimento comercial, conforme resulta de fls. 67.

6. Após o falecimento do seu marido, pai de A. e R., em 1991, II foi viver na companhia do seu filho, o aqui R. EE e, desde então, este passou a ser co-titular nas contas bancárias da II, conforme a vontade desta, sendo, contudo, o dinheiro aí depositado pertença exclusiva de II.

7. Foi apresentada relação de bens no Serviço de Finanças da Póvoa de Varzim pela então cabeça de casal II, viúva do falecido HH e mãe da A. e do R. EE, da qual constam os seguintes bens móveis e imóveis:

- Uma quota da Soc. Com. JJ, Lda;

- Um veículo automóvel marca Toyota com a matrícula PT-…-…;

- Um veículo automóvel marca Ford com a matrícula JC-…-…;

- Casa destinada a habitação inscrita na matriz predial urbana sob o art. 52 da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim;

- Prédio urbano, composto de casa de habitação sito na R. Sacra Família, inscrita na matriz predial urbana sob o art. 5157 da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim;

- Prédio urbano, composto de casa de habitação sito na R. …, inscrita na matriz predial urbana sob o art. 5228 da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim;

- Fracção B do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. 6020 da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, como resulta de fls. 41 a 43.

8. No dia 11-3-08, foi realizada escritura de habilitação, partilha e doações dos imóveis, no Cart. Not. de KK, exarada desde fls. 33 a 37 do Lº nº 192-A, de Escrituras diversas do referido Cartório, como resulta de fls. 51 a 60.

9. Por via disso, foi adjudicada:

- À A., a raiz ou nua propriedade do prédio urbano, composto de casa de habitação, sito na R. …, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 5228 da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim;

- Ao R. EE a raiz ou nua propriedade do prédio urbano, composto de casa de habitação, sito na R. …, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 5157 da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim e a fracção "B" do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. 6020 da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim;

- À mãe da A. e R., II, o usufruto dos bens referidos;

10. II, com reserva de usufruto:

- Doou ainda à A. a raiz ou nua propriedade da fracção autónoma identificada pela letra "B" do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o nº 8408, da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim e ½ indivisa da fracção "N" do mesmo prédio;

- Ao R. foi doada a fracção autónoma identificada pela letra "A" do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o nº 8408, da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim e ½ indivisa da fracção "N" do mesmo prédio;

11. Como decorre da declaração de rendimentos, relativa ao ano de 2008, junto a fls. 69, a falecida II, tinha por rendimento, resultante de rendas e pensões o valor de € 6.595,54 e como resulta de fls. 72, no ano de 2008 teve um rendimento global de € 26.363,54.

12. Não pagava prestações bancárias e não tinha qualquer empréstimo bancário.

13. A mesma era titular de duas contas bancárias - D.O. - na CCAM, da …, Vila do Conde e Esposende CRL, com os nºs …78 e …24, assim como de contas a prazo associadas, sendo o R. EE co-titular dessas contas e LL, pessoa inabilitada e irmão da II, co-titular da referida em último lugar.

14. II, era titular, era ainda titular das seguintes contas na CGD:

- Conta nº …/…/900, aberta com depósito de € 15.000,00, integralmente liquidada em 15-10-02.

- Conta nº …/…/244, aberta com subscrição de 4.416 unidades de participação Caixagest Rendimento, com o valor de € 22.444,32, integralmente liquidada em 15-10-02.

- Conta nº …/…/661, aberta com depósito de € 39.903,83, integralmente liquidada em 10-10-01.

- Conta nº …/…/934, aberta com € 22.445,91, produto Caixa Poupança Investe, integralmente liquidada em 11.4.2002, tudo conforme resulta dos docs. de fls. 73 a 79.

15. Por vontade e ordem de II, foi sempre foi o R. que movimentou tais contas bancárias, procedendo a depósitos, levantamentos e transferências.

16. O R. EE fez os seguintes movimentos na CGD, da agência da Póvoa de Varzim:

- Da conta nº …/…/661 no dia 10-10-01 resgatou a quantia de PTE 9.000.000$00/€ 44.891,81, a qual foi aplicada em produtos financeiros nas contas nº …/…/244 e …/…/934.

- O saldo das contas nº …/…/244 e …/…/934, no total de € 44.891,81 foi creditado na conta D.O. nº …/…/900, resgatado em, respectivamente, 11-4-02 e 15-10-02.

17. Em 11-4-02 e 15-10-02, o R. EE, seguindo as indicações de II, procedeu ao depósito dos referidos montantes que resgatou das contas da CGD, na referida conta nº …78 da CCAM.

18. Como resulta junto de fls. 81 a 89, II foi internada em 23-2-09, tendo os quadros clínicos, padecendo das enfermidades e internamentos aí constantes.

19. Até, pelo menos, um mês antes de falecer, II sempre esteve mentalmente capaz.

20. No dia 31-7-09, faleceu II, no estado de viúva de HH, como resulta de fls. 44 a 45.

21. Os únicos herdeiros dos falecidos são a A., casada com BB, no regime de comunhão de adquiridos, e o R. EE, casado com GG, no regime de comunhão de adquiridos, como resulta de fls. 46 a 48 e 49 a 501 a 43.

22. O R. EE apresentou no Serviço de Finanças a participação do óbito da sua mãe e a relação de bens, onde relacionou o usufruto dos imóveis e declarou que “o de cujus não deixou testamento”, conf. resulta de fls. 61 a 67.

23. Após a morte da sua mãe, a A. deslocou-se a casa do seu irmão, tendo este afirmado não haver mais nada para partilhar para além daquilo que já tinha sido partilhado.

24. A A. e marido, em 12-8-09, interpuseram processo de inventário que corre termos sob o nº 2157/09.6TBPVZ, no 1º Juízo Cível da Póvoa de Varzim, no qual o R. foi nomeado cabeça de casal e instruído com as diligências e requerimentos juntos pelas certidões de fls. 92 a 199.

25. Todos os movimentos feitos pelo R. nas contas bancárias tituladas pela II, foram efectuados a pedido e/ou autorização da sua mãe, com excepção dos seguintes movimentos na conta nº …78, da CCAM, referida em 13.:

- Levantamento em 9-3-09 da quantia de € 151.475,58, da qual se apropriou e fez sua, tendo procedido ao seu deposito na conta bancária nº …87 da CCAM de que é titular exclusivo juntamente com a sua mulher aqui R.;

- Levantamento em 10-8-09 da quantia de € 10.072,66 da qual se apropriou e fez sua, tendo procedido ao seu depósito na conta bancária nº …87 da CCAM de que é titular exclusivo juntamente com a sua mulher aqui R.;

- Levantamento em 6-10-09 da quantia de € 484,04 da qual se apropriou e fez sua.

26. O R. EE procedeu a tais levantamentos cujo valor total ascende a € 162.032,32, sem o conhecimento ou consentimento da falecida II nem dos seus herdeiros habilitados.

27. Os RR. EE e mulher ficaram com o veículo automóvel da marca Fiat, com a matrícula …-…-JF, de valor não apurado, que pertencia à falecida II.

28. Como resulta de fls. 215 a 222, FF, filho de EE, foi declarado interdito, por sentença já transitada em julgado, no âmbito da acção especial de interdição por anomalia psíquica que correu termos pelo 3º Juízo deste Tribunal, sob o proc. nº 31/00, onde foi fixada a data de tal incapacidade desde a data do seu nascimento.

III – O direito:

1. Os recorrentes impugnam o acórdão da Relação, na parte em que qualificou como sonegação de bens da herança a apropriação, pelo R. EE, de quantias que estiveram depositadas numa conta bancária de que era co-titular juntamente com a sua falecida mãe II. Não colocam em crise que, apesar da contitularidade da conta bancária, a referida quantia pertencia exclusivamente à falecida, pretendendo, no entanto, que a sua condenação na entrega à herança de tal quantia não seja acompanhada da qualificação da anterior transferência para a contra o R. EE como acto de sonegação de bens, tal como decidiu a 1ª instância.

Trata-se de uma pretensão significante. Na realidade, a qualificação jurídica da sua anterior actuação que foi assumida pela Relação importaria para o R. EE a submissão aos efeitos da sanção civil prevista no art. 2096º do CC, daí decorrendo a atribuição exclusiva à co-herdeira, ora A., dessa parte específica da herança da falecida II.

2. Antes de estar regulada no art. 2096º do CC, a sonegação de bens era definida no art. 1343º do CPC de 1961, na sua versão inicial, como o resultado de uma actuação dolosa traduzida na omissão de quaisquer bens na relação ou na negação da existência dos bens acusados.

Relativamente a tal preceito já Alberto dos Reis alertara para as dificuldades de demonstração dos pressupostos normativos integrantes dessa figura e justificativos da aplicação da gravosa sanção civil, concluindo que tudo passaria por saber se o interessado procedeu de boa ou de má fé, tendo em conta as “alegações mais ou menos verosímeis, mais ou menos plausíveis, consoante as circunstâncias de facto que o juiz, em seu prudente arbítrio, avaliará” (citado por Lopes Cardoso, em Partilhas Judiciais, vol. I, pág. 549). No mesmo local concluía que a sonegação dependia da alegação de que alguns bens do inventariado não haviam sido descritos, como ainda de que a falta de descrição fora dolosa.

Relativamente ao que fixou previsto no art. 2096º do CC, Antunes Varela refere que “sob o invólucro civilístico do dolo cabem tanto as manobras activas (sugestões ou artifícios) tendentes a induzir ou a manter em erro os destinatários da relação de bens, quanto à existência de certos bens hereditários, como a atitude (passiva) de dissimulação do erro, em que o herdeiro se aperceba de que o cabeça de casal está laborando” (CC anot., vol. VI, pág. 157, entendimento também adoptado no Ac. do STJ, de 1-7-10 (www.dgsi.pt).

Assevera o mesmo autor que a sanção civil prevista para a sonegação já não será de aplicar ao acto afim da sonegação, ou seja à ocultação, por parte do donatário, de doações feitas em vida do doador que a lei considera como causa de remoção do cabeçalato (art. 2086º, nº 1, al. a), do CC) mas a que não pode aplicar-se, por analogia, a perda patrimonial decretada no nº 1 do art. 2096º (pág. 158) (solução também declarada no Ac. do STJ, de 23-11-11 (www.dgsi.pt).

Segundo R. Capelo de Sousa, a sonegação de bens exige a demonstração de “sugestões ou artifícios com intenção ou consciência de enganar os co-herdeiros, ou de actos de dissimulação de erro destes sobre a não existência de bens, bem como sugestões, artifícios ou dissimulações empregues que resultem numa ocultação de bens da herança” (Lições de Direito das Sucessões, vol. II, pág. 59).

3. A alegação e apreciação dos pressupostos da sonegação pode ser feita no processo de inventário, sem embargo do uso dos meios comuns para os quais os interessados podem ser remetidos, como ocorreu no caso.

Assim o prescreve no art. 35º, nº 4, do Regime do Processo de Inventário aprovado pela Lei nº 23/13, de 5-3, cujo antecedente é o art. 1349º, nº 4, do CPC de 1961 (na versão decorrente da reforma processual de 1995/96), segundo o qual “a existência de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando provada, a sanção civil que se mostre adequada”.

Dotado de maior ou de menor litigiosidade, o processo de inventário, na sua anterior e na actual regulamentação, não afasta obviamente a verificação de divergências entre os diversos interessados, sem exclusão do cabeça de casal a quem a lei atribui o dever de relacionar os bens da herança.

Neste contexto, parece evidente que a mera existência de divergências entre os interessados acerca da integração ou não de determinados bens na herança indivisa, seguida da sua resolução jurisdicional num determinado sentido, não pode implicar automaticamente para o interessado vencido a aplicação dos efeitos gravosos que a lei prescreve para os casos de sonegação de bens da herança.

Para que tal aconteça, é necessário que da matéria de facto apurada se possa confirmar que o herdeiro actuou, por acção ou omissão, de modo a “ocultar dolosamente a existência” de determinados bens da herança que deveriam ser relacionados ou identificados para efeitos de partilha.

Conforme o Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea, “sonegar” é o acto que se traduz em “não dar a conhecer determinado facto ou realidade, no caso em que a lei o exige”, com o significado de “ocultar”; ou também “não dar a conhecer, deliberadamente e de forma fraudulenta”, com o significado de “encobrir, esconder, ocultar”. Por seu lado “sonegação” é aí referenciado como “acção de não mencionar uma coisa quando isso é obrigatório, de ocultar, de subtrair fraudulentamente”.

4. A matéria de facto apurada não permite a conclusão que foi extraída pela Relação.

Nesta acção estabeleceu-se um litígio entre os dois herdeiros de II: o R. a defender que as transferências bancárias realizadas executariam uma doação do numerário efectuada pela sua mãe; a A. a alegar que tais quantias integram o património hereditário, negando a existência de qualquer doação a favor do R.

É de assinalar, desde já, que do objecto inicial da pretensão deduzida pelos AA. resultava a imputação ao R. EE da ocultação de um quantitativo na ordem dos € 1.500.000,00 (o décuplo do que afinal estava em causa), passando depois a discutir-se apenas um quantitativo de cerca de € 300.000,00 (o dobro do que veio a apurar-se existir nas contas bancárias em causa). Quantia que agora se resume a cerca de € 160.000,00.

Malgrado a junção ao autos de um documento titulando uma “doação” e do qual constava uma assinatura imputada à alegada doadora, as instâncias consideraram “não provada” a sua existência (fls. 1317).

Porém, da falta de prova desse facto não é legítimo inferir a prova do facto inverso, ou seja, a falta de prova da doação não permite afirmar que a mesma não ocorreu e que o R., alegado donatário, pretendeu apropriar-se, por essa via, de um bem que deveria entrar no acervo hereditário.

Determinada a eliminação da matéria de facto provada do ponto 34º que, sem fundamento, foi aditado pela Relação, nem sequer é possível atribuir autonomia à correspondente conclusão do relatório pericial acerca da não autenticidade da assinatura imputada à falecida II. Sem embargo dos requisitos que rodeiam a produção de tal meio de prova, a conclusão de que se considerava “praticamente provado que a assinatura da inventariada é totalmente falsa, ou seja, não ter sido escrita pela referida inventariada” não passa de um parecer técnico emitido por quem realizou a perícia, não lhe podendo ser dada equivalência a um facto relevante para efeito de resolução do presente litígio.

Como já se disse anteriormente, não podem confundir-se pareceres de peritos com factos provados, pois que aqueles traduzem tão só o resultado de um meio de prova que deve servir para sustentar o juízo probatório relativamente aos factos controvertidos, sendo este da exclusiva competência do Tribunal que julga a causa, pois que, como já o referia Alberto dos Reis, o juiz é “o perito dos peritos”.

Em conclusão, malgrado a assertividade da aludida conclusão pericial, a mesma não pode ser interpretada como demonstração de que o documento apresentado pelo R. EE era forjado, tal como não legitima a conclusão de que o mesmo interessado tenha agido de forma a prejudicar a co-herdeira.

Deste modo fica sem qualquer suporte factual a existência de uma actuação dolosa do R. EE no sentido de se apropriar de quantias que deveriam integrar a herança de II.

5. É de assinalar ainda que a quantia mais significativa - € 151.475,58 – foi transferida ainda em vida da falecida da conta conjunta a que estava adstrita (conta conjunta de II, mãe da A. e do R. EE, com o nº …78, na CCAM). Quanto aos demais quantitativos de € 10.072,66 e de € 484,04 foram transferidos já depois do óbito de II, mas não podem dissociar-se do que for decidido quanto à transferência principal.

A legalidade formal destas operações não é questionada, uma vez que o R. EE era co-titular da conta bancária e podia realizar essas e outras operações, como, aliás, o fizera em anteriormente.

Poderia, porventura, ocorrer que as concretas transferências estivessem afectadas de algum vício substancial, designadamente por contrariarem a vontade de II, constituindo a transferência uma forma de o R. EE se apoderar de dinheiro que não lhe pertencia e que, por morte da titular, deveria integrar a sua herança e ser objecto de partilha.

Mas tendo-se provado apenas que a transferência principal foi feita sem o conhecimento ou consentimento da falecida II, tal facto, isoladamente considerado, não revela, pela positiva, a existência de um comportamento abusivo da parte do R., sendo insuficiente para sustentar a afirmação de que com tal actuação e com a posterior negação da obrigatoriedade de relacionar o saldo da conta bancária o R. actuou de forma a ocultar dolosamente bens da herança.

6. Importa ainda apreciar o que ocorreu no âmbito do processo de inventário, onde as divergências já anteriormente manifestadas ganharam uma expressão mais solene e inequívoca.

As peças processuais que foram extraídas do processo de inventário e que se encontram certificadas revelam que o R. EE prestou declarações de cabeça de casal em que reconheceu a existência das contas bancárias da falecida II na CCAM (fls. 233). A divergência entre os dois interessados girou apenas em torno da existência ou não da doação do quantitativo depositado (fls. 129 e 130), questão que já fora sinalizada no requerimento de fls. 127.

Na sequência de tais declarações, a A. impugnou a existência da doação (fls. 150 e 151), recebendo do R. EE a resposta de fls. 166 que gerou uma polémica em torno da sua eventual inoficiosidade (fls. 169 e 170).

A questão não foi definitivamente apreciada no processo de inventário. E embora o R. não tenha logrado demonstrar na presente acção a existência da doação, o certo é que não negou a existência da conta bancária, nem os movimentos que foram feitos a partir da mesma, não se encontrando vestígio de alguma oposição ilegítima da sua parte a que o Tribunal acedesse a tais movimentos para determinação das datas em que foram efectuados e verificação da sua autoria e destino.

Ou seja, a discussão acerca da existência da conta bancária de que emergiram as transferências em causa já fora despoletada antes da instauração da presente acção, tendo sido alvo de discussão no processo de inventário, fundando-se o presente litígio não na existência ou inexistência dessa conta bancária, antes na outorga ou não do contrato de doação a favor do R. EE.

Negar a necessidade de relacionar no inventário o saldo que estivera depositado na conta bancária não corresponde necessária e automaticamente à ocultação da existência da conta bancária e do respectivo saldo monetário, constituindo simplesmente um ponto de discórdia que pode e deve ser sanada através dos mecanismos apropriados, como veio a ocorrer. De outro modo, sempre que porventura procedesse a reclamação de algum dos herdeiros por omissão na relação de bens apresentada pelo cabeça de casal existiria da parte deste sonegação de bens, resultado que parece manifestamente desajustado.

Também não serve para qualificar a existência de sonegação de bens o facto de não ter sido feita a participação fiscal da existência da conta bancária cujo montante foi transferido, em grande parte, ainda em vida da contitular. Ainda que tal actuação pudesse configurar a prática de alguma infracção de preceitos de natureza fiscal – matéria que aqui não cumpre apreciar – não se poderia asseverar, a partir dessa singela factualidade, a existência de uma conduta que, na perspectiva da co-herdeira, se tenha traduzido, como o exige o art. 2096º do CC, na ocultação dolosa da existência do quantitativo.

7. Enfim, constituindo pressuposto essencial da sonegação de bens a sua ocultação dolosa por parte do herdeiro, a actuação que os factos revelam não permite tal qualificação.

O que ressalta da matéria de facto é apenas uma situação de dúvida emergente do confronto de duas posições antagónicas, com afirmações de cada uma das partes que não ultrapassaram o plano da verosimilhança mas que não foram suficientes para a prevalência de qualquer das teses.

Assim, constituindo a sonegação o pressuposto do reconhecimento do direito reclamado pela A., a dúvida quanto à verificação dos factos integrantes (ocultação de bens e actuação dolosa) deve ser resolvida contra a parte que invoca o direito.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido e passando a subsistir o que foi decidido na sentença da 1ª instância.

Custas da revista e da apelação a cargo da A.; custas da 1ª instância a cargo de ambas as partes na proporção do decaimento.

Notifique.

Lisboa, 28-4-16

Abrantes Geraldes (Relatora)



Tomé Gomes


Maria da Graça Trigo