Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B4602
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOITINHO DE ALMEIDA
Descritores: INCAPACIDADE POR ANOMALIA PSÍQUICA
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ200501270046022
Data do Acordão: 01/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3602/04
Data: 07/01/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I-Para efeitos do disposto no artigo 1601°, alínea b) do Código Civil, deve entender-se como demência o conjunto de perturbações mentais graves que alteram a estrutura mental da pessoa em causa, com profunda diminuição da sua actividade psíquica (funções intelectuais e afectividade), tornando-a incapaz de reger a sua pessoa e bens.
II- a "demência" é notória, designadamente, quando seja objectivamente reconhecível ou reconhecida no meio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B, pedindo a anulação do casamento realizado entre a Ré e C.

Alegou para o efeito e em substância que seu pai desde 1977 necessitava de assistência permanente que a partir de certo momento passou a ser prestada pela Ré. Há cerca de um ano, começou a apresentar sinais de perturbação mental, não reconhecendo as pessoas íntimas, perdendo o sentido da orientação e manifestando lapsos de memória. Em 23 de Março de 2001, no mais completo segredo, seu pai contraiu casamento com a Ré. Faleceu em 9 de Agosto de 2001.

O casamento é anulável por ter sido contraído com o impedimento dirimente absoluto de demência notória;
O casamento foi anulado, tendo a sentença proferida em 1ª instância sido confirmada pela Relação de Lisboa ( acórdão de 1 de Julho de 2004 ).
Inconformada, recorreu B para este Supremo, concluindo as alegações da sua revista nos seguintes termos:
1. Em sede de questão prévia pede a Ré/ recorrente que a Reclamação contra o despacho saneador/base instrutória, constante de fls.305 dos autos, seja admitida e julgada procedente, revogando-se e substituindo-se o despacho recorrido que a não admitiu, por outro; e por conseguinte, a base instrutória, venha a ser ampliada, nos termos constantes da mesma Reclamação; e que, em consequência, o julgamento efectuado seja anulado, procedendo-se primeiramente como se requer, e prosseguindo depois os autos, seus legais termos, até final.

2. Em sede de recurso quanto à questão principal, da prova produzida, não resulta minimamente demonstrada a situação de demência notória;

3. Isso mesmo admite (paradoxalmente ao juízo decisório) o M.mo Dr; Juiz do Tribunal de Primeira Instância: (sic) "os depoimentos das testemunhas...sobretudo os dois primeiros, susceptíveis de conduzirem, no tocante aos factos declarados provados, a julgamento em sentido inverso, não foram suficientes para infirmar a convicção do tribunal, pelos motivos seguintes(2° parágrafo da 6ª página do despacho).

4. Sobre esta questão, dispõe o artigo 13° da Constituição:
"1°. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a Lei;
2° Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever, em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, condições políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social".

5. E dispõe o art.° 36° da Constituição da República Portuguesa:
"1.° todos têm o direito de constituir família e contrair casamento em condições de plena igualdade;

2.° A lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma da celebração;

3.° Os cônjuges têm iguais direitos e deveres, quanto à capacidade civil e política, e à manutenção e educação dos filhos"".
E dispõe o art.°72°:
"1.° As pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e de convívio familiar e comunitário qie evitem e superem o isolamento ou a marginalização social".

7. Os direitos e garantias acima mencionados, são também assegurados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.°16°) e pela convenção europeia dos Direitos do Homem (art.°12°) recebidos formalmente na Ordem Jurídica Portuguesa, através do art.°8° da Constituição;

8. O falecido sempre se manteve lúcido, até finais de Julho de 2001, (até cair, conforme.47°) manifestando apenas, às vezes, sinais de nervosismo, e as limitações próprias daquela idade;

9. Conforme se explicou nestas alegações, para a interdição a que se refere o Dr. Cunha Gonçalves, no seu Tratado de Direito Civil, Volume II,pg.633/634, "não basta que alguém tenha incapacidade para reger a sua pessoa e os seus bens, devido a velhice, pois tudo isto não constitui demência ou alienação mental."

10. O M.mo Dr. Juiz do Tribunal de Primeira Instância, para além de não ter valorizado a prova apresentada pela Ré, passou um atestado de incompetência às duas funcionárias do Registo Civil que participaram no processo de casamento; estas, não só contactaram com o Sr. C para organizar o processo de casamento, como também depois, para renovar o seu B.I., após o casamento;

Logo, não foi só uma vez que contactaram com o nubente, conforme escreve o M.mo Dr. Juiz "a quo";
11. Mas não só por isto andou mal o Tribunal da Relação de Lisboa, ao confirmar a Sentença do Tribunal de Primeira Instância;

Também por ter dado crédito à Informação prestada pelo Hospital de Santa Maria "emitida quatro meses antes do casamento- e não ter dado crédito à informação do Hospital Miguel Bombarda- registada três meses após o casamento " de que o "doente" não sofre de incapacidade alguma, nem sinais ou sintomas indicativos de patologia ou incapacidade mental, conforme doct. de fls.319 dos Autos;

12. Ao nível do Hospital de Santa Maria, nenhum exame médico foi efectuado ao Sr. C, por clínico da especialidade (médico neurologista), pelo que o diagnóstico proferido pelo clínico que o observou, apenas para lhe colocar o pace-maker, é, por si só, insuficiente e não pode ser levado em consideração, nestes autos, para se concluir pela existência de síndrome demencial e, muito menos, pela demência notória.

13. Havendo dúvidas sobre a realidade dos factos, perante estas duas informações contraditórias, o direito probatório formal e material (art.°516° do C.P.C. e 342° e ss. Do Código Civil) manda que se decida contra a parte a quem o facto aproveita;

14. Finalmente, quanto à prova pericial (também tanatológica) o Ac. da R.Lx. aceitou o que decidiu o M.mo Dr. Juiz do tribunal de primeira instância.

No entendimento da Ré, a demência senil "é um enfraquecimento psíquico profundo, de evolução habitualmente progressiva, que se traduz por uma alteração global das funções intelectuais com perturbações da conduta social";

15. Ora, nada disto foi relatado pelas testemunhas, ou pelo exame médico efectuado no Hospital de Miguel Bombarda;
16. Não há que confundir síndrome demencial com demência notória, quando se trata de conceitos diferentes: o primeiro, é um conceito médico; o segundo, tipicamente jurídico;

17. Que relevância tem o exame tanatológico, efectuado cinco meses após o casamento do marido da Ré C a 23. Março.2001/ Autópsia a 13.Agosto.2001 e treze dias após a grave queda, na sequência da qual foi internado e veio a falecer?

Nestes termos
Roga-se ao Supremo Tribunal de Justiça que, na sequência de uma douta e uniforme jurisprudência,

A) Revogue a decisão recorrida (Acórdão) substituindo-a por outra, que julgue procedente a Reclamação da Ré contra a Base Instrutória, a fim de vir a ser ampliada a matéria de facto, como requerido (procedência da Questão Prévia acima formulada);

E, em consequência, o Julgamento efectuado seja anulado;
B) E, se assim não vier a ser entendido, nem decidido, roga-se a esse Supremo Tribunal de Justiça que revogue o Acórdão recorrido, por o mesmo ter julgado e decidido contra a prova testemunhal trazida aos autos, substituindo-o por outro que julgue a acção improcedente, por não provada, e mantenha o casamento celebrado entre a Ré e o seu marido, C.

(em consonância com o voto de vencido do Ex.mo Sr.Dr. Juiz Desembargador António Ferreira de Almeida que exarou a seguinte posição(sic) "Entendo que, da prova produzida, não resultou minimamente demonstrada a situação de demência notória, a que se reporta a previsão do art.°1601° do Código Civil.
Acrescendo que a matéria de facto a tal respeito dada como provada " que reveste aliás, em parte, natureza conclusiva - se afigura, de qualquer modo, insuficiente para integrar o invocado fundamento de anulação do casamento celebrado.

Considerando, assim, dever a acção improceder, votei pela revogação da sentença recorrida".
2. É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelas instâncias:
1."C", pai do Autor, A, nasceu no dia 3 de Janeiro de 1941.
2. Há mais de um ano, C começou a dar sinais de perturbação mental, não reconhecendo pessoas íntimas, perdendo o sentido da orientação e manifestando frequentes lapsos de memória;
3. Em Janeiro de 1999, C, em consequência da fractura de um braço, esteve internado no serviço de ortopedia do Hospital Amadora/Sintra sendo atado à cama de braços e pernas, dado o seu estado de perturbação mental.

4. Face ao agravamento da saúde mental de C, incapaz de governar a sua pessoa, a Ré, que morava na mesma rua, passou a acompanhá-lo quase permanentemente, tratando da sua higiene, preparando as refeições e pernoitando, por vezes, em casa do primeiro.

5. "C" ficava sozinho, saindo em trajes menores para a escada durante a noite, em estado de perturbação psíquica, chegando a bater à porta dos vizinhos que, face à situação, lhe prestavam assistência, reconduzindo-o a casa.

6. Os nubentes C e B casaram um com o outro, civilmente, sob o regime imperativo de separação de bens no dia 23 de Março de 2001, casamento que foi ocultado ao Autor, tendo a Ré, após o casamento, também ocultado ao último tal situação.

7. Antes do casamento, a Ré pretendeu obter junto dos serviços médicos da PSP um certificado médico, atestando a capacidade de C para contrair casamento, o que lhe foi recusado pelo seu médico assistente, Dr. D, porquanto eram manifestos os sinais de síndrome demencial de C e a incapacidade deste para cuidar da sua pessoa e dos seus bens.
8. Por virtude do facto referido em 2., C, já não pôde receber a aplicação, em 20 de Novembro de 2000, no hospital de Santa Maria de um pace-maker;
9. "C", que sofria de síndrome demencial, faleceu no dia 9 de Agosto de 2001.
Cumpre decidir.
3. No presente recurso pede-se a ampliação da matéria de facto, e contesta-se a apreciação desta bem como o facto de C sofrer de demência notória.
3.1 Ampliação da matéria de facto

No que respeita à ampliação da matéria de facto pretendida pela Recorrente, basta observar que como resulta de jurisprudência constante deste Tribunal, o Supremo Tribunal de Justiça não conhece de matéria de facto, mas apenas da legalidade do processo de que as instâncias se socorreram para fixar tal matéria (veja-se o acórdão de 26 de Fevereiro de 2004 e a jurisprudência aí citada). Daí que não seja competente para se pronunciar sobre a conveniência da inclusão de determinados factos na base instrutória. Como veremos adiante a matéria de facto dada como provada basta para a decisão do presente litígio.

3.2 Apreciação da matéria de facto
Estabelece o artigo 729° n°2 do Código de Processo Civil, que "A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional do n.°2 do artigo 722.°" E resulta desta última disposição que só em caso de ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, é admissível o recurso de revista.

Ora, a Recorrente limita-se a invocar a violação do artigo 516.° do mesmo Código bem como dos artigos 342.° e seguintes do Código Civil, alegando errada apreciação da prova testemunhal bem como de informações hospitalares e perícias médicas. Encontramo-nos, pois, claramente fora do âmbito do recurso de revista.

3.3 Demência notória do falecido "C".
Tendo em conta a matéria de facto dada como provada, entendeu o acórdão recorrido que " A debilidade psíquica, a aterosclerose no quadro do síndrome demencial de que C era portador, e as disfunções a ela inerentes, tornaram-no incapaz de reger a sua pessoa e bens. Além disso, era notória a demência de que ele padecia, sendo certo ser cognoscível por pessoas de mediana diligência, a qual se verificava à data do casamento da Ré".
Estabelece o artigo 1601°, alínea b) do Código Civil que é impedimento dirimente, obstando ao casamento da pessoa a que respeita com qualquer outra "A demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a interdição ou habilitação por anomalia psíquica".
Para efeitos desta disposição deve entender-se como "demência " o conjunto de perturbações mentais graves que alteram e estrutura mental da pessoa em causa , com profunda diminuição da sua actividade psíquica (funções intelectuais e afectividade),tornando-a incapaz de reger a sua pessoa e bens. E é "notória", designadamente, quando seja objectivamente reconhecível ou reconhecida no meio.

Ora, as perturbações mentais manifestadas por C, aquando do seu internamento, os lapsos de memória, o facto de não reconhecer pessoas íntimas e de ter perdido o sentido de orientação, a necessidade de recurso a terceiros, abrangendo actos de higiene, a saída para a escada do imóvel em que habitava em trajes menores e em estado de perturbação mental, batendo à porta dos vizinhos, constituem, sinais de demência no sentido exposto, o que, juntamente com a apreciação da restante prova, levou o acórdão recorrido a constatar a existência de síndrome demencial na origem da incapacidade do falecido de reger a sua pessoa e bens. Decidiu-se, pois, com base num conceito de direito e não apenas na noção médica de "síndrome demência".

E a demência era notória, porque objectivamente reconhecível, como bem entendeu o acórdão recorrido.
Termos em que se nega a revista.
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2005
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos