Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | FARIA ANTUNES | ||
| Descritores: | PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA | ||
| Nº do Documento: | SJ200403160042571 | ||
| Data do Acordão: | 03/16/2004 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 3093/03 | ||
| Data: | 05/29/2003 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Sumário : | 1- O Supremo Tribunal de Justiça pode censurar o mau uso feito pela Relação da faculdade de anulação da decisão da matéria de facto, por ter exorbitado dos limites fixados pelo nº. 4 do artº. 712º do CPC, visto em tal hipótese ter sido cometida uma violação da lei o que constitui matéria de direito, logo de conhecimento oficioso pelo STJ. 2- Não pode todavia o STJ - a não ser quando se verifique alguma das excepções referidas no segmento final do nº. 2 do artº. 722º do CPC - alterar os factos provados pela Relação, ainda que se alegue erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, o que acarreta que não possa censurar o não uso, pela Relação, do poder de anulação do julgamento da matéria de facto. 3- O STJ, como tribunal de revista, e não de mais uma instância, não tem competência para dar ou não razão à parte que vem junto dele repetir o pedido de anulação da decisão da matéria de facto ao abrigo do artº. 712º, nº. 4 do CPC, já desatendido na 2ª instância. 4- A possibilidade de o STJ, ao abrigo do artº. 729º, nº. 3 do CPC, sindicar a ocorrência de contradições na decisão sobre a matéria de facto (ou a sua insuficiência) poderá contudo ocorrer mas só quando, ao apreciar a causa de direito, chegar à conclusão de que, mercê de contradições entre pontos de facto essenciais para a sorte da demanda, se encontra inviabilizada a solução jurídica do pleito, ou de que se revela imprescindível alargar a matéria de facto para o efeito. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "A" propôs acção sumária, emergente de acidente de viação, contra o Estado Português, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 7.380.000$00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento. Após a contestação, saneamento, condensação, instrução e audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente. O A. interpôs recurso para a Relação de Lisboa que anulou a decisão da matéria de facto e ordenou a repetição do julgamento. Realizado o novo julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo o réu do pedido. O A. recorreu uma vez mais para a Relação de Lisboa, que confirmou a decisão da 1ª instância. Inconformado, recorre agora o A. de revista, formulando as seguintes Conclusões: 1ª- Subsiste a contradição insanável entre o facto de o condutor do veículo ter encetado uma travagem de 7,70 mts e o facto do peão só ter iniciado a travessia da faixa de rodagem a um metro daquele; 2ª- Pois a explicação de que 6,00 mts dessa travagem ocorreram já para lá do local do embate esbarra com a sequência lógica dos factos, com o próprio senso comum e com a participação policial junta aos autos; 3ª- Aliás, se o próprio acórdão recorrido salienta (e o recorrente subscreve) que o acto de travar só ocorre algum tempo após a observação de um determinado obstáculo ou a necessidade de travar então também não seria possível que o condutor do veículo ainda travasse 1,70 mts quando o peão, ora recorrente só se atravessou à sua frente a 1 mt de distância. Para isso seria necessário possuir reflexos antecipatórios; 4ª- Por outro lado, muito embora a largura total da faixa de rodagem não tivesse sido medida no local onde ocorreu o embate (ou seja, na confluência das estradas nacionais nºs. 10 e 110-5), mas mais adiante, não pode significar que a sua largura naquele local fosse muito superior, considerada da berma esquerda da faixa de rodagem, atendendo ao sentido de marcha do veículo até á linha imaginária que delimita a faixa de rodagem pela sua direita, atento o mesmo sentido de marcha; 5ª- Sendo assim, não seria possível que o veículo "AM" tivesse ficado a distar 6,80 mts à berma esquerda da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha já referido e ainda assim ficasse imobilizado no interior da EN 10, dado que, a referida via só tem 6 mts de largura da faixa de rodagem; 6ª- Porque isso faria com que a largura da faixa de rodagem naquele local não fosse inferior a 8,30 mts, porquanto à já referida largura teria de ser adicionada a própria largura do veículo; 7ª- Para além disso, essa distância medida da parte lateral esquerda da viatura após a sua imobilização não pode ser significativamente diferente da do local provável do embate a essa mesma berma, atenta a curta distância percorrida pela viatura após o mesmo; 8ª- Tal facto é igualmente contraditório com a conclusão de que o peão iniciou inadvertidamente a travessia da EN 10, atenta a largura total da mesma, fazendo com que se assim fosse o embate tivesse ocorrido no interior da EN 110-5 e não na via por onde seguia o "AM"; 9ª- As contradições apontadas não foram dissipadas em face do acórdão recorrido, impondo-se a repetição do julgamento para esclarecimento dos pontos de facto em contradição, ao abrigo do artº. 712º, nº. 4 do CPC; 10ª- No que respeita à culpa na produção do acidente, os factos apurados não permitem concluir se o embate ocorreu ou não no interior da EN 10; 11ª Como já se referiu, a parte lateral esquerda do ligeiro ficou a distar 6,80 mts à berma esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, após a sua imobilização que, no entanto, ocorreu 6 mts após o próprio embate; 12ª- Daí que, o local do embate no peão não possa ter ocorrido no interior da faixa de rodagem por onde seguia o veículo, dada a largura da faixa de rodagem naquele local, conclusão que resulta reforçada se se constatar que o embate naquele ocorreu com a parte dianteira direita da viatura; 13ª- Com efeito, a faixa de rodagem não sofrerá grandes alterações de largura naquele local só porque é um local de entroncamento pois essa largura só deverá considerar-se até á linha imaginária que delimita a EN 10 pela sua direita, atento o sentido de marcha de Porto Alto para Vila Franca de Xira; 14ª- Por isso, inexistindo factos concretos sobre o local provável do embate fica prejudicada a imputação de culpa a conduta do recorrente, restando a subsunção do acidente dos autos à responsabilidade do recorrido por culpa presumida do condutor do seu veículo, pois este conduzia o "AM" sob as ordens, no interesse e sob a direcção daquele, enquanto militar da FAP e no exercício dessa sua função; 15ª- Por outro lado, a sua presunção de culpa não foi ilidida pela prova de que tivesse sido a conduta do peão a única causal do acidente, dada a manifesta insuficiência de factos que sustentem o local provável do embate e a contradição existente em muitos desses factos; 16ª- Deste modo, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que condene o recorrido a pagar ao ora recorrente o montante indemnizatório devido por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que o condutor do seu veículo lhe infligiu e, em conformidade com a prova produzida sobre os mesmos; 17ª- Tendo o acórdão recorrido violado os artºs. 494º, 496º, 503º, nº. 3, 562º, 564º e 566º do CC e 712º, nº. 4 e 729º, nº. 3 do CPC. Contra-alegou o Ministério Público, em representação do Estado Português, sustentando que, nos termos do nº. 6 do artº. 712º do CPC, se não deve tomar conhecimento do objecto do recurso, por este versar unicamente matéria de facto, e que, se assim não for entendido, se deverá confirmar o acórdão recorrido, por inexistir contradição insolúvel entre a matéria de facto provada. Correram os vistos legais. Decidindo. Com interesse para a decisão deste recurso, deram as instâncias como provada a seguinte matéria de facto: A E.N. 10 em determinada parte do seu trajecto estabelece a ligação entre as localidades do Porto Alto - Vila Franca de Xira (A)); Ao seu Km 109,90 existe, do lado direito, atento o sentido de marcha Porto Alto - Vila Franca de Xira, um entroncamento que dá acesso a Samora Correia (B)); A faixa de rodagem apresenta no local uma largura não inferior a seis metros (C)); Sendo ladeada por bermas de ambos os lados com largura não inferior a setenta centímetros (D)); No dia 2 de Março de 1992, cerca das 7 horas e 20 minutos, na EN 10, no Porto Alto, B, Tenente Coronel da Força Aérea Portuguesa, a prestar serviço no Comando Operacional da Força Aérea de Monsanto, Lisboa, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matricula AM, propriedade daquele Comando (E)); Tal veículo estava-lhe distribuído, por aquele militar exercer funções de comandante no Grupo de Apoio da F.A.P., e conduzia-o no interesse, por conta e sob as ordens desta (F)); No local do acidente não existe passadeira de peões (H)); O veículo AM, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionados na alínea E), circulava no sentido Porto Alto - Vila Franca de Xira, pela metade direita da estrada, atento o sentido de marcha referido (I)); Os condutores que circulam na EN 10, no sentido Vila Franca de Xira - Porto Alto, cerca do Km 109,90, avistam-se reciprocamente a uma distância não inferior a 75 metros (1º); O piso nesse local é de revestimento betuminoso (2º); No dia 2 de Março de 1992, pelas 7h20m, o A. saiu do veículo onde se fazia transportar e que se encontrava estacionado no parque existente em frente do restaurante "Vira Milho" (5º); Este restaurante fica situado ao Km 110 da EN 10 do lado direito, atento o sentido de marcha Porto Alto - Vila Franca de Xira (6º); O A. pretendia atravessar a estrada do lado direito para o lado esquerdo da mesma, atento o sentido referido (7º); O A. abeirou-se da estrada e parou junto da berma da mesma (8º); Nenhum veículo seguia à frente do veículo conduzido por B (15º); Após o embate o A. ficou caído no asfalto (20º); O AM, após o embate ficou a 5,06 mts da berma do seu lado direito e a 6,80 mts da do seu lado esquerdo, atento o sentido de marcha Porto Alto - Vila Franca de Xira (21º); O AM deixou marcado no pavimento um rasto de travagem de 7,70 mts, enviesado da sua esquerda para a direita (22º); O veículo AM seguia a uma velocidade de cerca de 40 Km/h (43º); Com as luzes de intensidade média acesas (44º); Na porção de terreno de forma triangular que delineia a confluência da EN 110-5 com a EN 10, encontrava-se estacionado o veículo automóvel Mitsubishi com a matricula SL (45º); O A. parou, como se refere na resposta ao quesito 8º, voltado para Vila Franca de Xira (48º e 49º); Quando o veículo AM se encontrava a cerca de um metro do A., este iniciou a travessia da EN 10 (50º); O A. colocou o seu corpo na trajectória do veículo (52º); O B travou o veículo que conduzia, de imediato (53ª); Mas já não conseguiu evitar o embate (54º); O AM embateu no A. com a parte dianteira direita (55º). Perante este quadro factual e a problemática colocada no conclusório da revista, que dizer? Antes de mais, vejamos a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso, colocada na contra-minuta recursória com base no nº. 6 do artº. 712º do CPC, segundo o qual das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Essa questão prévia improcede por a acção ter sido proposta em 23.2.1995, e, de acordo com o artº. 8º, nº. 2 do DL nº. 375-A/99, de 20/9, o nº. 6 do artº. 712º, aditado por esse mesmo diploma legal, não ser aplicável às acções pendentes. Urge pois conhecer do objecto do recurso, delimitado pela problemática colocada nas conclusões da peça alegatória. Ora, examinando essas conclusões, constata-se que o recorrente se insurge - como já havia feito no recurso para a Relação - contra a matéria de facto atinente ao modo como eclodiu o acidente, que diz conter pontos de facto contraditórios, a reclamar a repetição do julgamento, nos termos do artº. 712º, nº. 4 do CPC. Deflui deste preceito que se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº. 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto. Todavia, a faculdade de anulação aí prevista pertence exclusivamente à Relação, e no caso sub judice esta não fez uso dela, apesar de tal ter sido pedido na apelação. Não podendo o STJ - a não ser quando se verifique alguma das excepções referidas no segmento final do artº. 722º, nº. 2 do CPC - alterar os factos provados pela Relação, ainda que se alegue erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, tal acarreta que não possa censurar o referido não uso, pela Relação, do poder de anulação do julgamento da matéria de facto (neste sentido, entre muitos outros, o aresto do STJ, de 23.3.94, tirado no processo nº. 84.909, em que foi relator o Conselheiro Fernando Fabião). O que o STJ poderia censurar seria o mau uso que a Relação porventura tivesse feito do poder de anular a decisão da matéria de facto, por ter exorbitado dos limites fixados pelo nº. 4 do artº. 712º, por em tal hipótese se registar uma violação da lei, e isso constituir matéria de direito, do conhecimento oficioso do STJ (cfr. v. g. acórdão do STJ, de 23.3.94, no processo nº. 84.987, em que foi relator o Conselheiro Pereira Cardigos). Mas, repete-se, o STJ, como tribunal de revista, que não de mais uma instância, não tem competência para dar ou não razão à parte que vem repetir o pedido de anulação da decisão da matéria de facto ao abrigo do nº. 4 do artº. 712º do CPC, pois só à 2ª instância cumpre apreciar e decidir se as respostas aos quesitos são deficientes, obscuras ou contraditórias, e anular o julgamento, em caso afirmativo. Isto sem embargo de o nº. 3 do artº. 729º do CPC, após a reforma adjectiva operada pelos DL nºs. 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/9, prever expressamente a possibilidade de o STJ sindicar a ocorrência de contradições na decisão sobre a matéria de facto (ou a sua insuficiência). É que tal sindicância só poderá ocorrer quando, ao apreciar a causa de direito, o STJ chega à conclusão de que, mercê de contradição entre pontos de facto essenciais para a sorte da demanda, se encontra inviabilizada a solução jurídica do pleito, ou então de que se revela imprescindível alargar a matéria de facto, para o efeito. O artº. 729º, nº. 3 é por conseguinte aplicável quando o STJ, legalmente vocacionado para julgar de direito, oficiosamente conclui que não está em condições de cumprir a sua específica tarefa de controlar o aspecto jurídico das decisões das instâncias, por haver contradição essencial na matéria de facto, ou esta carecer de ser ampliada. Como refere Lopes do Rego nos Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 497, os poderes conferidos ao STJ pelo artº. 729º, nº. 3 do CPC estão funcionalmente orientados para um correcto enquadramento jurídico do pleito, conhecendo das insuficiências, inconcludências ou contradições da decisão proferida acerca da matéria de facto se e enquanto tais vícios afectarem ou impossibilitarem a correcta decisão jurídica da acção. Ora, tendo a Relação, como tribunal de instância, decidido que não existem as contradições na matéria de facto apontadas pelo recorrente, e não tendo portanto anulado o julgamento nos termos do artº. 712º, nº. 4 do CPC, tal é insindicável pelo STJ, que é um tribunal de revista, e não mais um tribunal de instância. E, na apreciação jurídica da causa, não se divisa que o desenho da matéria de facto dada como cimentada pelas instâncias careça de ser ampliado, nem que não permita a solução jurídica do pleito, não sendo por consequência necessário lançar mão, ex officio judicis, dos poderes conferidos pelo artº. 729º, nº. 3 do CPC. Com efeito, o AM circulava na EN 10, com largura não inferior a 6 mts, pela metade direita da faixa de rodagem, a cerca de 40 km/hora, com os médios acesos, não existindo no local passadeira de peões, e o autor, parado junto da berma da estrada e voltado para Vila Franca de Xira, iniciou a travessia da EN 10, da direita para a esquerda, colocando o seu corpo na trajectória daquele veículo quando este se encontrava a cerca de um metro de distância. O acidente ocorreu, destarte, na EN 10, como apuraram as instâncias em sede de decisão de facto, onde o STJ se não deve imiscuir. O condutor do automóvel travou de imediato, deixando no pavimento um rasto de travagem de 7,70 mts, enviesado da sua esquerda para a direita, mas não conseguiu evitar o acidente, ficando parado a 5,06 mts da berma do seu lado direito e a 6,80 mts da seu lado esquerdo, atento ainda o sentido de marcha Porto-Alto - Vila Franca de Xira, medições que não devem causar qualquer espécie por essa paragem se ter verificado na porção de terreno de forma triangular existente na confluência da EN 10 com a EN 110-5, e por o veículo automóvel ter seguido na travagem uma trajectória enviesada, da esquerda para a direita. Os factos permitem a imputação de culpa exclusiva ao próprio autor, como bem ajuizaram as instâncias, não havendo assim condições para resolver o litígio quer com base na culpa presumida do condutor do AM, quer com base na responsabilidade objectiva ou pelo risco. Termos em que acordam em não conceder a revista, condenando o recorrente nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário que em devido tempo lhe foi concedido. Lisboa, 16 de Março de 2003 Faria Antunes Moreira Alves Alves Velho |