Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1219
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
JUIZ DE CÍRCULO
JUIZ DE COMARCA
Nº do Documento: SJ20070417012191
Data do Acordão: 04/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário :
I. O processo regulado nos arts. 117º e segs. é o meio processual idóneo para a decisão de uma situação em que quer o juiz da comarca quer o juiz do respectivo círculo, em decisões transitadas em julgado, declinaram a sua competência e a atribuíram reciprocamente, para o julgamento de uma acção de oposição à execução.
II. Este conflito deve ser julgado pelas regras da incompetência absoluta e não segundo as regras que regulam a incompetência relativa.
III. Desta forma será competente para o efeito, o Juiz da Comarca, apesar de ter sido este o primeiro a proferir a decisão transitada de incompetência, não se aplicando ao caso, o disposto no art. 111º, nº 2, mas o disposto no art. 106º.
Decisão Texto Integral:
Acordão no Supremo Tribunal de Justiça

O recurso é o próprio e atempado.
Foi recebido com o efeito devolutivo e o recorrente levantou, como questão prévia, a alteração do efeito do recurso que, no seu entender, deve ser suspensivo, por se tratar de um agravo de um acórdão proferido na Relação, mas funcionando este Tribunal como tribunal de primeira instância, pelo que nos termos do art. 758º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil – a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, deve ser alterado o efeito fixado para suspensivo.
Não houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
Está aqui em causa um agravo de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto num processo de conflito de competência, requerido pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto nos arts. 115º e segs.
Desta forma, o Tribunal da Relação, habitualmente funcionando como tribunal de segunda instância, neste caso, funciona como tribunal de 1ª instância, em obediência ao disposto no art. 116º, nº 1.
Assim, é aqui aplicável o disposto no art. 740º, nº 1 – por se tratar de agravo interposto de decisão proferida em primeira instância -, sendo, deste modo, o efeito deste recurso suspensivo.
Defere-se, em consequência, esta questão prévia, alterando o efeito do recurso para suspensivo.
E não havendo mais nada que obste a que se conheça do objecto deste recurso e não revestindo a decisão em causa de grande complexidade, até por já ter sido decidida neste Supremo Tribunal, como abaixo melhor veremos, ao abrigo do disposto no art. 705º, será decidida de imediato, em singular e, tanto quanto possível, de forma sumária.

*

O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto veio requerer a resolução do conflito negativo de competência entre o 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira e o Círculo Judicial sediado na mesma comarca.
Para tanto alegou, em síntese, o seguinte:
- No referido 2º Juízo Cível pende uma execução comum para pagamento de quantia certa no montante de € 84.982,00, titulado por letra de câmbio, que AA requereu contra BB e CC, tendo o executado BB deduzido oposição à mesma por apenso, oposição esta onde foi proferido em 17-05-2006 despacho a considerar o respectivo Juiz titular incompetente para proceder ao respectivo julgamento, por ser competente o respectivo Juiz do Círculo ali sediado, tendo este despacho transitado em julgado em 12-06-2006;
- Remetido o processo ao Círculo mencionado, foi ali proferido pelo respectivo Juiz de Círculo despacho transitado em 17/07/2006, onde se declarou incompetente para proceder ao mesmo julgamento, por ser competente para tal, o referido Juiz do 2º Juízo Cível.
No referido Tribunal da Relação do Porto foi proferido despacho liminar em que se entendeu não haver um verdadeiro conflito negativo de competência, por se estar em matéria de competência relativa e, por isso, nos termos dos arts. 111º, nº 2 e 675º do Cód. de Proc. Civil, dever ser acatada a decisão que tenha transitado em julgado em primeiro lugar, apesar de ali se entender que a decisão correcta seria a que foi proferida em segundo lugar.
Em face destas considerações, aquele Tribunal decidiu indeferir o requerimento do Ministério Público a pedir a resolução do conflito.
Reclamado deste despacho para a conferência, foi aquela decisão liminar confirmada por acórdão.
Deste agravou o requerente, tendo nas suas alegações formulado as conclusões seguintes:
- Ao presente recurso de agravo deve ser atribuído efeito suspensivo;
- Configura-se nos presentes autos um “ conflito de outra natureza” ( que não em razão do valor ou da forma de processo ), a dirimir segundo as regras do conflito de jurisdição e competência previstas nos arts. 117º a 120º do CPC, por força do art. 121º do CPC;
- Mesmo a considerar-se – por mera hipótese -, haver fundamento para indeferimento do requerido, deveria ter-se atribuído a competência para julgamento da oposição à execução ao Mmo. Juiz de Círculo, nos termos dos arts. 111º, nº 2 e 675º, nº 1, ambos do CPC;
- A decisão recorrida violou as normas dos arts. 740, nº 1, 121º, 115º, nº 2 e 116º, nº 1 , 2ª parte, todos do CPC.
Não houve contra-alegações.
Corridos dos vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões do aqui agravante se vê que aquele, para decidir neste recurso, levanta as seguintes questões:
a) O presente litígio configura um conflito de outra natureza que não em razão do valor ou da forma de processo, a dirimir segundo as regras de conflito de jurisdição e de competência, previsto nos arts. 117º a 120º, por força do art. 121º?
b) Mesmo que se verifique haver motivo para indeferimento do requerido, deveria ter-se atribuído a competência par ao julgamento da oposição à execução ao Mmo. Juiz de Círculo, nos termos do art. 111º, nº 2 e 675º, nº 1 ?

Os factos e os factores apurados nos autos com interesse para a decisão daquelas questões são os acima elencados na descrição do presente litígio, tal como resulta da certidão junta.
Vejamos agora as questões levantadas como objecto deste recurso.

a) Nesta primeira questão, defende o recorrente que o litígio em causa deve ser dirimido como conflito de natureza diversa do conflito de competência em razão do valor ou da forma do processo.
Pensamos aqui que o recorrente tem inteira razão.
Com efeito, houve duas autoridades judiciais que declinaram a sua competência para proceder ao julgamento de uma acção, atribuindo reciprocamente a competência à outra.
Logo daqui se pode concluir que há um conflito entre duas autoridades judiciais – embora não dotadas de autonomia orgânica - a carecer de resolução.
Há quem entenda que neste caso não haveria um verdadeiro conflito de competência mas apenas um conflito aparente, por a lei fixar directamente a competência, nos termos dos arts. 111º, nº 2 e 675º.
Tal opinião carece de rigor pois a conclusão de que a lei claramente determina a competência, no sentido de se dever cumprir a primeira decisão de incompetência que tenha transitado em primeiro lugar, apenas pode ser aplicada em casos de incompetência relativa, já que em matéria de competência absoluta já não vigora o disposto no nº 2 do art. 111º, mas o disposto no art. 106º que determina solução oposta para a divergência.
Logo, até para decidir qual a regra legal aplicável, entre a da competência relativa ou a da competência absoluta, há que fazer intervir o Tribunal Superior para dirimir a questão, intervenção essa que se entendermos que o processamento do conflito se não aplica directamente ao caso dos autos - nomeadamente, por não estar em causa conflito entre dois diversos tribunais, como exige o nº 1 do art. 115º-, claramente se aplica pela remissão prevista no art. 121º.
Deste modo, deveria o Tribunal da Relação do Porto, chamado a dirimir tal litígio, concluir afirmando a competência de uma das autoridades judiciais em causa e não deveria ter indeferido o requerimento inicial.
Procede, desta forma, este fundamento do recurso.

b) Nesta segunda questão pretende o da oposição de executado em apreço, no caso de se entender que seria de rejeitar recorrente que se decida a competência do Juiz de Círculo em causa para proceder ao julgamento o requerimento a pedir a resolução do conflito.
Tendo nós acima considerado que o referido requerimento não devia ter sido rejeitado, fica prejudicado o conhecimento desta questão.
Porém, tendo o Tribunal da Relação omitido a decisão que lhe foi solicitada, por ter ficado prejudicada pela decisão tomada, e revogada aqui esta, haverá de ser este Supremo Tribunal a conhecer da referida questão.
É que estando o Supremo Tribunal aqui a decidir recurso interposto na Relação, mas em processo em que aquela decidiu como 1ª instância, há que aplicar o disposto do art. 753º, nº 1 que manda que sendo o agravo interposto de decisão final e tendo o Juiz de 1ª instância deixado de conhecer do pedido, o Tribunal, se julgar que o motivo não procede e que nenhum outro obsta a que se conheça do mérito da causa, conhecerá deste no mesmo acórdão em que revogar a decisão de 1ª instância.
Seria diversa a solução se a decisão recorrida tivesse sido proferida em segunda instância, pois aí aplicar-se-ia o disposto no art. 762º, nº 2 que determina que então seria mandado conhecer daquele objecto do litígio ao Tribunal da Relação.
Passando, desta forma, para o conhecimento do objecto do requerimento inicial, ou seja, a questão da competência para proceder ao julgamento do processo de oposição de executado, há desde logo que saber, como já afloramos acima, se a referida competência se insere na competência relativa ou absoluta, pois a consequência legal é diversa.
Como já dissemos, se entendermos que se trata de competência relativa, nos termos do nº 2 do art. 111º e do art. 675º, seria competente o Juiz de Círculo, por ter transitado em primeiro lugar a decisão do Juiz do 2º Juízo Cível que declarou aquele competente, independentemente de as regras de repartição da competência conduzirem a essa ou a oposta solução.
Se entendermos tratar-se de competência absoluta, haverá que conhecer concretamente o que dizem as regras que regulam a atribuição da competência, nos termos do art. 106º.
Ora tal como já decidiu recentemente este Supremo Tribunal no ac. de 12/07/2006, proferido no recurso nº 05B1823, havendo duas decisões transitadas, uma proferida pelo juiz singular e a outra pelo juiz de círculo, em que se atribuem reciprocamente competência, negando a própria, não se está perante uma situação de incompetência absoluta e nem se trata propriamente dum conflito entre dois tribunais distintos, como na previsão do art. 115º, nº 2, estando apenas em causa as condições da intervenção, consoante epígrafe do art. 68º, dum tribunal de estrutura singular ou de estrutura colectiva, fundamentalmente assente no critério do valor da causa.
Do disposto nos arts. 17º, nº 1, 62º, nº 1, 66º, nºs 1º e 2º, 67º, nº 1, 105º, nºs 1º e 2º, e 106º, al. b) da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ ) – Lei nº 3/99 de 13/01 -, decorre que repartida a competência, na ordem interna, pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território, abrangendo a área dos círculos judicias de uma ou várias comarcas, os tribunais judiciais de 1ª instância, são, em regra, os tribunais de comarca, que funcionam, consoante os casos, como tribunal singular, como tribunal colectivo, composto por três juízes – dois de círculo e o juiz o do processo, ou como tribunal de júri, sendo ao tribunal colectivo que, em matéria cível, compete julgar as questões de facto nas acções de valor superior à alçada da Relação – sem prejuízo, porém, dos casos em que a lei do processo exclua a sua intervenção.
Tendo o art. 68º remetido a solução desta questão para as leis da organização judiciária, não se encontra na referida LOFTJ disposição concreta para solucionar a questão, pois os seus arts. 62º, nº 1 e 66º, nº 1 tratam o círculo judicial como simples circunscrição judicial sem autonomia orgânica.
Temos, porém, de concluir, que há aqui uma questão de competência intrajudicial e funcional a resolver de acordo com o processo previsto nos arts. 117º e segs.
O presente conflito negativo de competência reclama solução, de acordo com as regras do processo mais adequada à boa administração da Justiça e não perante uma situação de incompetência relativa, mesmo que atípica, resolúvel com apelo à figura do caso julgado.
Trata-se assim, de uma situação que, no fundo, tem a ver com a definição da competência específica de duas entidades judiciais, pertencentes ao mesmo órgão judicial ou tribunal, por referência a determinada matéria específica, pelo que no caso estão em causa interesses de ordem pública relativos à boa administração da justiça, não se coadunando a decisão desta questão com os quadros legais da incompetência relativa.
É que atenta a natureza manifestamente pública dos interesses subjacentes repartição de competência entre tribunais singulares e colectivos, ou seja, entre a sua configuração singular ou colectiva, será de aplicar o regime da incompetência absoluta, designadamente por analogia com os preceitos que regulam a incompetência em razão da matéria.
Será, assim, de aplicar ao caso as regras que regulam a competência absoluta, nomeadamente o disposto no art. 106º.
Desta forma, o art. 817º, nº 2 prescreve que a oposição à execução após os articulados segue a forma do processo sumário de declaração.
Por seu lado, o art. 104º da LOFTJ prescreve que compete ao tribunal singular julgar os processos que não devam ser julgados pelo tribunal colectivo ou de júri.
E o art. 106º, al. b) da mesma lei estipula que compete ao tribunal colectivo julgar as questões de facto nas acções de valor superior à alçada dos tribunais da Relação e nos incidentes e execuções que sigam os termos do processo de declaração e excedam a referida alçada, sem prejuízo dos casos em que a lei de processo exclua a sua intervenção.
E o art. 791º, nº 1 prescreve que a audiência de discussão e julgamento no processo sumário é feito pelo tribunal singular.
Daqui que a lei do processo exclua a intervenção do tribunal colectivo, pelo que se não aplica a competência do mesmo, prevista na referida al. b) do art. 106º, por força da sua última parte.
Logo, competente para proceder ao julgamento da presente oposição à execução é o Juiz do 2º Juízo Cível de Santa Maria da Feira.

Em conclusão diremos:
- O processo regulado nos arts. 117º e segs. é o meio processual idóneo para a decisão de uma situação em que quer o juiz da comarca quer o juiz do respectivo círculo, em decisões transitadas em julgado, declinaram a sua competência e a atribuíram reciprocamente, para o julgamento de uma acção de oposição à execução.
- Este conflito deve ser julgado pelas regras da incompetência absoluta e não segundo as regras que regulam a incompetência relativa.
- Desta forma será competente para o efeito, o Juiz da Comarca, apesar de ter sido este o primeiro a proferir a decisão transitada de incompetência, não se aplicando ao caso, o disposto no art. 111º, nº 2, mas o disposto no art. 106º.

Pelo exposto, concede-se provimento ao agravo e se revoga o douto acórdão recorrido, deferindo-se o requerimento inicial do Ministério Público e fixando a competência do Juiz do 2º Juízo Cível de Santa Maria da Feira para conhecer da referida oposição à execução.
Sem custas.

Lisboa, 17-04-2007

João Moreira Camilo.

* Acordão decidido em singular