Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª. SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO GOMES | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE PRAZO DE CADUCIDADE INTERPRETAÇÃO DA LEI ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 10/18/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE / EXERCÍCIO DO DIREITO DE RESOLUÇÃO. DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / CADUCIDADE. | ||
Doutrina: | - FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Resolução em benefício da massa insolvente, Almedina, Coimbra, 2008, 159. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, N.º 3, 329.º. CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 14.º, N.º1, 83.º, 120.º, N.ºS 1, 3, E 4, 121.º, N.ºS 1 E 2, 122.º, 123.º, N.º1, 124.º, N.º1, 126.º, N.ºS 4, 5 E 6. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 29/04/2014. | ||
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Sumário : | I - A jurisprudência e a doutrina dominantes têm entendido que, pese embora a epígrafe do art. 123.º do CIRE se referir à “prescrição do direito”, o seu n.º 1 consagra um genuíno prazo de caducidade para o exercício do direito de resolução. II - Determinando o art. 329.º do CC que “o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido”, o facto de o n.º 1 do art. 123.º do CIRE se ter referido aos seis meses seguintes “ao conhecimento do ato” não deve implicar a fixação de outra data que não aquele momento em que o direito pode legalmente ser exercido. III - Partindo da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (art. 9.º, n.º 3, do CC, que também se refere à presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados), entende-se que a referência ao conhecimento do acto implica o conhecimento da plenitude do mesmo em tudo o que ele releva para efeitos de resolução do contrato. IV - Apesar de se aceitar que o administrador da insolvência não deva ficar inteiramente inerte ou passivo ao momento em que tem conhecimento da existência dos actos praticados pelo devedor, devendo, por exemplo, pedir esclarecimentos e informações ao devedor – sobre quem incumbe um dever de colaboração –, afigura-se excessivo impor-lhe um dever de investigar ou de averiguar o real conteúdo dos mesmos – por exemplo, impondo-lhe o ónus de, sob pena de caducidade do direito, de pesquisar as conservatórias – sobretudo porque não dispõe de especiais poderes para o efeito. V - A interpretação referida em III não representa uma ameaça excessiva para a segurança jurídica: (i) em primeiro lugar, além do prazo de seis meses a contar do conhecimento do acto pelo administrador da insolvência, a resolução nunca pode ter lugar decorridos dois anos sobre a data da declaração da insolvência (parte final do n.º 1 do art. 123.º do CIRE); (ii) em segundo lugar, porque a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores a título oneroso pressupõe a má fé destes (art. 124.º, n.º 1) e a protecção dos mesmos – que decorre do art. 126.º, n. os 4 e 5 – não deve prevalecer sobre os interesses dos restantes credores e da massa. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção) Processo n.º 7/13.8TBFZZ-G.E1.S1 Relatório AA instaurou a presente acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, contra Massa Insolvente de AA, pedindo que seja declarada nula a resolução por extemporânea, ou subsidiariamente, declarada a sua ineficácia e invalidade por não estarem cumpridos os requisitos formais e matérias da resolução, sendo mantida a titularidade do imóvel em causa por declarada válida a dação celebrada. Alegou, em síntese, no que aqui importa, que por carta registada com A/R datada 24.03.2014 foi notificado pelo Administrador da Insolvência (AI) da resolução da escritura pública de dação em cumprimento celebrada em 5 de Abril de 2012 no Cartório Notarial de BB, entre si e CC. Porém, tendo o AI tomado conhecimento da existência do acto de dação em 22.08.2013, na Assembleia de Apreciação do Relatório realizada no âmbito dos autos principais, o seu direito a resolver aquele acto já teria caducado, nos termos do art. 123º, nº 1, do CIRE. A Ré contestou, sustentando não ter ocorrido a caducidade do direito, por entender que só em data muito posterior, a 17.12.2013, ficou em condições para se pronunciar sobre a prejudicialidade da dação para a massa insolvente, só aí tendo tomado conhecimento integral das circunstâncias que lhe permitiram resolver o negócio em benefício da massa, motivo pelo qual em 24.03.2013 o AI ainda estava em tempo para proceder à resolução daquele acto em benefício da massa insolvente. Houve resposta, concluindo o autor como na petição inicial. Por considerar estar em condições para conhecer imediatamente do mérito da causa, por via da apreciação da excepção peremptória de caducidade invocada pelo Autor, a Mmª Juíza a quo dispensou a realização da audiência prévia, tendo proferido, de imediato, saneador-sentença, no qual veio a julgar procedente, por provada, a excepção de caducidade e, nessa conformidade, julgou procedente a presente acção, declarando sem nenhum efeito a resolução pelo AI do contrato de dação em cumprimento. Inconformada, a Ré apelou do assim decidido. Por Acórdão de 3 de Dezembro de 2015 o Tribunal da Relação julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida. A Ré recorreu novamente, invocando a contradição de Acórdãos no âmbito do artigo 14.º n.º 1 do CIRE, sustentando que “o prazo de caducidade a que se refere o artigo 123.º n.º 1 do CIRE apenas se inicia após o AI ter conhecimento integral e esclarecido das concretas condições em que o negócio se celebrou” (n.º 19 das Conclusões) e pedindo a revogação do Acórdão recorrido. Fundamentação De Facto Foram dados como provados nas Instâncias os seguintes factos (Transcrição) 1. Em 3-7-2013 foi proferida sentença de insolvência de AA, pacificamente transitada em julgado (refer. 548749 dos autos principais) 2. Em 22-8-2013 teve lugar a Assembleia de Credores de Apreciação do Relatório, onde compareceu o Administrador de Insolvência Dr. DD, entre outros, tendo, a determinada altura, o Il. Mandatário do credor BANCO EE, S.A., solicitado a palavra e, no seu uso, disse: (refer. 553422 dos autos principais) «1- No Relatório a que alude o artigo 155º do CIRE, o Sr. Administrador de Insolvência faz referência à existência actual de três imóveis registados em nome do Insolvente (vide Ponto 5.2. do Relatório, constante de fls. do processo). 2 - No requerimento inicial do PER, datado de 13 de Janeiro de 2013, que antecedeu o presente processo de insolvência, o ora Insolvente referia a existência de quatro imóveis, por si titulados (vide doc.8, do requerimento inicial do PER, apenso ao presente processo). 3- Assim sendo, no espaço temporal que mediou o PER e a sentença do presente processo de insolvência, proferida em 3 de Julho de 2013, o imóvel inscrito na matriz sob o artigo 0021, fracção X, da freguesia de ..., concelho de ..., parece ter deixado de pertencer ao Insolvente. 4 - Acresce que o Banco Reclamante sabe que, até à data de 5 de Abril de 2012, no património do Insolvente constavam, nomeadamente, os seguintes bens imóveis: a) Prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 005-XX, da freguesia de ..., com o artigo matricial 0037; (doc. 1) b) Prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 00020, da freguesia de ..., com o artigo matricial 0082; (doc. 1) c) Prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 0017, da freguesia de ..., com o artigo matricial 05; (doc. 1) d) Prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 0091, da freguesia de ..., com o artigo matricial 00; (doc. 1) e) Prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 0090, da freguesia de ..., com o artigo matricial 01; (doc.1) f) Prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 0097, da freguesia de ..., com o artigo matricial 07; (doc. 1) g) Prédio rústico, sito na freguesia de ..., não descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., com o artigo matricial 02, Secção A; (doc. 1) h) Prédio urbano, sito na freguesia de ..., com o artigo matricial 0039, mas não descrito na Conservatória do Registo Predial; (doc. 1) i) Prédio urbano, sito na freguesia de ..., com o artigo matricial 0040, mas não descrito na Conservatória do Registo Predial. (doc. 1) j) Prédio urbano, sito na freguesia de ..., com o artigo matricial 002, Secção C, mas não descrito na Conservatória do Registo Predial. (doc. 1). 5 - Ora, na presente data, apenas o imóvel referido na alínea a), do precedente artigo, continua a integrar o património do Insolvente. Com efeito, (…) 8 - Em 5 de Abril de 2012, o Insolvente deu em cumprimento o prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 1391, da freguesia de ..., com o artigo matricial 00, a favor de CC, sua esposa. (…) 9 - Junta-se, adiante, cópia da certidão predial do referido imóvel, que, aqui, se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. (Doc.6) 10 - Também os imóveis referidos nas alienas h) e i) do artigo 4. do presente articulado foram, entretanto, transmitidos à sua esposa CC, conforme se afere pela análise das respectivas cadernetas prediais actualizadas (cfr. Doc.7 e Doc.8). 11 - Neste particular, e segundo consta do Assento de Nascimento do Insolvente, este permanece casado com CC, apesar do Insolvente se apresentar no presente processo como “divorciado” (cfr. Assento de Nascimento do Insolvente, junto como Doc.9) – factualidade que cumpre também esclarecer pelo A.I. Posto isto, 12 - As mencionadas transmissões ocorreram, ambas, no mês de Abril de 2012, altura em que a sociedade de que era sócio-gerente “FF, Lda.”, apresentava já graves problemas económico-financeiros. 13 - Na verdade, este facto é confessado pela própria sociedade aquando da sua apresentação ao PER, em 2 de Novembro de 2012, (data em que já pendiam várias execuções contra a sociedade e pendia um processo de insolvência da mesma, requerida pela “GG, S.A.” (processo n.º 227/12.2TBFZZ) e que ficou suspenso com o início do PER). 14 - Portanto, à data da celebração das mencionadas transmissões, o ora Insolvente já tinha conhecimento de que a situação de insolvência da sociedade de que era sócio-gerente acarretaria a sua própria insolvência, por via dos avais prestados à referida sociedade, e cujo montante global, só relativamente ao Banco Reclamante, ascende a, pelo menos, Eur.3.270.020,88. 15 - Como veio efectivamente a acontecer. Logo, 16 - As transmissões acima referidas tiveram como consequência a diminuição do património do Insolvente. 17 - Transmissões que podem ter prejudicado os interesses legítimos dos credores. 18 - Nesse sentido, a factualidade descrita poderá acarretar diversas consequências jurídicas, mormente i) a resolução dos negócios celebrados pelo Insolvente…» 3. O A.I., por carta registada com AR datada de 24 de Março de 2014, notificou AA da “Resolução da escritura de Dação em Cumprimento, celebrada em 5 de Abril de 2012, no Cartório Notarial de BB, entre AA e CC”, escritura essa onde era efectuada a transmissão, pelo valor de € 22.100,00, do seguinte prédio: (Doc. 1 junto com a p.i.) a. Prédio misto, composto de casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, casa de habitação de rés-do-chão amplo e primeiro andar e logradouro, parte rústica composta de terreno de olival, solo subjacente de cultura arvense, macieiras, cultura arvense de regadio, oliveiras, construção mural, citrinos, vinha, eucaliptal, pinhal, pereiros, leito de curso de água, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 00, Secção C com o valor patrimonial e tributário de 11.032,59 €, e nas respectivas matrizes urbanas sob o artigo 0039, com o valor patrimonial e tributário de 7.694,10 €, e sob o artigo 0.040, com o valor patrimonial e tributário de 11.541,15 €, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0091 - ....
De Direito O presente recurso é admissível, porquanto o Recorrente satisfez o ónus que lhe cabia á luz do n.º1 do artigo 14.º do CIRE de demonstrar a existência de Acórdão contraditórios, no caso de Tribunais da Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito. Essa questão, de resto a única questão que se suscita no presente processo, respeita à fixação do momento inicial para a contagem do prazo previsto no n.º 1 do artigo 123.º do CIRE para o exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente. O Acórdão recorrido sustenta que “esse prazo conta-se desde o conhecimento do acto, ou seja, das partes que nele intervieram, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes e não desde o conhecimento pelo administrador da insolvência dos pressupostos que podem fundamentar a resolução”. Em sentido diferente pronunciou-se, no entanto, o mesmo Tribunal da Relação de Évora em outros apensos da insolvência do mesmo Recorrido, AA. Assim, em Acórdão proferido a 30 de Junho de 2015, no âmbito do processo P.7/13.8TBFZZ-F.E1, o Tribunal da Relação decidiu que “o prazo de caducidade do direito de resolução apenas se inicia após o administrador da insolvência ter conhecimento das condições concretas em que o negócio se realizou e de que forma o contrato a resolver foi celebrado”. É esta, pois, a questão que cumpre decidir. O já mencionado n.º 1 do artigo 123.º do CIRE estabelece que “a resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência”, permitindo, no entanto o n.º 2 que a resolução possa ser declarada, por via de exceção, sem dependência de prazo enquanto o negócio não estiver cumprido. A jurisprudência e a doutrina dominantes têm entendido que, pese embora a epígrafe do preceito se referir à “prescrição do direito”, o n.º 1 do artigo 123.º do CIRE consagra um genuíno prazo de caducidade para o exercício do direito de resolução. Aliás, os dois Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, o Acórdão recorrido e aqueloutro proferido no âmbito de outro apenso da mesma insolvência, convergem neste ponto. Sublinhe-se, também, que o artigo 329.º do Código Civil determina que “o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido”. O facto de o n.º 1 do artigo 123.º do CIRE se ter referido aos seis meses seguintes “ao conhecimento do ato” implicará a fixação de outra data que não aquele momento em que o direito pode legalmente ser exercido? O Acórdão recorrido, que cita, aliás, no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.04.2014, processo 738/12.0TBFAF-J.G1, e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2014, processo 3324/10.5TBSTS-F.P1, invoca, desde logo, a letra da lei, para sustentar que o prazo de caducidade de seis meses “se conta a partir do conhecimento puro e simples, ou seja, do conhecimento das partes nele intervenientes, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes”. Afirma-se, no Acórdão recorrido que “o sentido de que esse de seis meses se conta a partir do conhecimento dos pressupostos resolutórios não tem qualquer correspondência na letra da lei” e que se o legislador tivesse a intenção de consagrar tal regime teria optado por uma diferente redacção do preceito, “tendo em conta o efeito gravoso que daí resultava par as partes intervenientes nesses actos”. Esgrime-se, com efeito, o argumento da segurança jurídica e afirma-se que “perante o conhecimento do acto resolúvel, o administrador de insolvência tem que o analisar de forma a avaliar se o mesmo prejudicou a massa insolvente, de forma a poder, se for caso disso impugná-lo no prazo de seis meses, sob pena de caducidade”. O Acórdão que serve de fundamento para a oposição sublinha que a resolução – como, de resto, este Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado – tem que ser fundamentada. Tal resolução, com efeito, “embora não exija para a sua plena eficácia uma justificação completa que esgote todos os fundamentos, deverá (…) conter os elementos fácticos suficientes que permitam ao destinatário saber o porquê da resolução, e essa suficiência deverá ser objecto de análise casuística” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/2014). Desta necessidade de fundamentação decorreria que a contagem do prazo só deveria começar a fazer-se a partir do momento em que o administrador está em condições de poder exercer o seu direito de resolução. Em suma, e nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/06/2015, “o prazo de seis meses a que se refere o artigo 123.º do CIRE apenas se inicia após o Administrador da Insolvência ter conhecimento integral da factualidade inerente ao acto em crise”. Para decidir entre estas duas posições jurisprudenciais, importa ter presente, desde logo, que os pressupostos para o exercício da resolução em benefício da massa insolvente são muito variáveis. Em princípio, exige-se a má fé do terceiro (artigo 120 n.º 4), ainda que esta se presuma nos casos em que tenha participado no acto ou dele tenha beneficiado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, mas em outras situações previstas no artigo 121.º n.º 1 não é requisito para a resolução a má fé do terceiro (com o caveat do n.º 2 do mesmo artigo 121.º). Exige-se, também, o carácter prejudicial do acto (n.º 1 do artigo 120.º), mas certos actos presumem-se prejudiciais à massa sem admissão de prova em contrário (n.º 3 do artigo 120.º) e a resolução “incondicional” prescinde por completo de tal requisito. Em resultado, existem situações em que o simples conhecimento do acto praticado pelo devedor e da data em que ocorreu possibilita a resolução do mesmo: pense-se na hipótese de o devedor ter efectuado a doação de um prédio dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. Embora a eventual boa fé do donatário tenha interesse em sede dos efeitos da resolução, o simples conhecimento da existência da doação e do seu momento temporal é suficiente para que o administrador possa resolver a doação. Mas mesmo no âmbito do artigo 121.º e do que a lei designa por resolução “incondicional” a situação pode ser muito diversa: assim, mesmo que o devedor tenha vendido um bem no ano anterior à data do início do processo de insolvência o mero conhecimento da venda não é suficiente para que o administrador possa resolver esse contrato. Terá, por exemplo, de averiguar se as obrigações assumidas pelo devedor excedem – e excedem manifestamente (artigo 121.º, n.º 1, alínea h)) – as da contraparte e até qual o modo de pagamento utilizado (artigo 122.º do CIRE). Não será, por conseguinte, suficiente para poder optar pela resolução o mero conhecimento da existência do acto. Esta heterogeneidade de situações tem que ser tida em conta ao interpretar o artigo 123.º n.º 1. Interpretar o preceito como fixando o prazo de seis meses para o exercício do direito de resolução a partir do conhecimento da mera existência do acto teria como resultado um prazo manifestamente excessivo para certas situações (por exemplo, a resolução de uma doação), mas que se poderia revelar muito curto e até insuficiente para outras, em que se torna necessário determinar, designadamente, quem contratou (caso se trate de um contrato) com o devedor, qual a relação entre eles, qual o conteúdo do acto… Partindo da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º n.º 3 do Código Civil, que também se refere à presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados) entendemos que a referência ao conhecimento do acto implica o conhecimento da plenitude do mesmo em tudo o que ele releva para efeitos de resolução do contrato. E atenda-se a que mesmo o Acórdão recorrido, ainda que se refira ao conhecimento puro e simples do acto acaba por atender também ao “conhecimento das partes nele intervenientes, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes”. A divergência entre as duas posições jurisprudenciais resulta de uma diferente concepção dos deveres do administrador nesta sede. Recorde-se, aliás, que alguma doutrina – é o caso de FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, em estudo monográfico dedicado a este instituto da resolução em benefício da massa insolvente – defende que ao conhecimento pelo administrador da insolvência deveria ser equiparado o “dever de conhecimento”. Afirma este autor, com efeito, o seguinte: “Suponhamos, v.g., que o administrador da insolvência porventura tomou conhecimento, em abstracto, da prática de vários actos, mas descurou a sua apreciação em concreto. Parece dever entender-se que essa falta de actuação não pode prejudicar a contraparte dos que negociaram com aquele que se encontra numa situação de insolvência”[1]. E acrescenta, ainda, o mesmo autor. “É certo que tal interpretação não é a que mais favorece os credores da massa insolvente, porque esta fica sem bens ou valores que doutra sorte a poderiam integrar. Mas o legislador foi peremptório na fixação de um prazo. E se se negligenciasse o momento em que o administrador da insolvência devia conhecer o circunstancialismo isso significaria, em concreto, um excessivo alargamento do prazo”. Outra doutrina critica o referido prazo de seis meses referindo-se á “necessidade de rapidamente se pôr termo á incerteza quanto ao destino dos atos em causa, tanto mais que em certos casos eles revestem natureza onerosa”, e pondo reservas quanto ao alargamento do prazo operado pelo legislador, de três para seis meses. Afigura-se excessivo impor ao administrador da insolvência um dever de investigar ou de averiguar o real conteúdo dos atos praticados pelo devedor, mal chegue ao seu conhecimento a existência dos mesmos. Aceita-se que não deva ficar inteiramente inerte ou passivo, devendo, por exemplo, pedir esclarecimentos e informações ao devedor sobre quem incumbe um dever de colaboração, de acordo com o artigo 83.º do CIRE. Mas seria excessivo, sobretudo porque não dispõe de especiais poderes de investigação impor-lhe o ónus, sob pena de caducidade do direito, de pesquisar as conservatórias, a tentar apurar o verdadeiro conteúdo dos actos praticados pelo devedor. Recorde-se que no caso dos autos foi dada como provada a alienação pelo devedor de pelo menos nove prédios, sitos em diferentes localidades, sendo que alguns nem sequer estavam descritos nas competentes conservatórias do registo predial. A tese de que o prazo de seis meses começaria a correr do mero conhecimento da existência do acto conduziria a beneficiar o devedor que praticasse múltiplos actos prejudiciais à massa, mais ou menos complexos, na expectativa de o administrador da insolvência não conseguir descobrir o real conteúdo de todos ou de alguns deles no prazo dos seis meses. A tese que aqui se acolhe – a de que o prazo de seis meses só deve contar a partir do conhecimento pelo administrador do acto na sua íntegra e, portanto, dos pressupostos de que depende o exercício do direito de resolução não representa, ao contrário do que se pretende, uma ameaça excessiva para a segurança jurídica. Em primeiro lugar, porque além do prazo de seis meses a contar do conhecimento do acto pelo administrador da insolvência, há sempre que ter em conta que a resolução nunca pode ter lugar “depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência” (n.º 1 do artigo 123.º do CIRE, parte final). Depois porque a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores a título oneroso pressupõe a má fé destes (n.º 1 do artigo 124.º). Quanto à contraparte do devedor que veio a ser declarado insolvente, se se tratar de um adquirente a título gratuito, a obrigação de restituir só existirá “na medida do seu enriquecimento, salvo o caso de má fé, real ou presumida” (n.º 6 do artigo 126.º), solução muito criticada pela doutrina mas que permite proteger adequadamente o donatário nos casos, por exemplo, de doação modal ou de doação remuneratória, negócios que a maior parte da doutrina considera serem gratuitos. Relativamente à contraparte a título oneroso – que até pode ser, no caso concreto, a contraparte de um negócio gravemente desequilibrado, como previsto na alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º – a sua tutela decorre dos números 4 e 5 do artigo 126.º. Em suma, a protecção da contraparte que adquiriu a título oneroso não deve prevalecer sobre os interesses dos restantes credores e da massa. Subscreve-se, pois, a asserção do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/06/2015, de que “o prazo de seis meses a que se refere o artigo 123.º do CIRE apenas se inicia após o Administrador da Insolvência ter conhecimento integral da factualidade inerente ao acto em crise”. Decisão: Concedida a Revista e revogado o Acórdão recorrido Custas pelo Recorrido Lisboa, 18 de Outubro de 2016
Júlio Gomes - Relator José Rainho Nuno Cameira
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