Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8894/22.2T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES
UNIÃO DE FACTO
RECONHECIMENTO
AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE
JUÍZO CÍVEL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
Os juízos de família e menores não são competentes para julgar as acções de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Recorrente: Ministério Público

Recorridos. AA e BB

I. — RELATÓRIO

1. Em 3 de Novembro de 2022, AA, cidadão português, divorciado, e BB, cidadã brasileira, divorciada, intentaram no Juízo de Família e Menores de ... acção para reconhecimento judicial da situação de união de facto contra o Estado portugu~es, representado pelo Ministério Público, acção de processo comum para reconhecimento judicial da situação de união de facto.

2. O Ministério Público contestou deduzindo a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Juízo de Família e de Menores.

3. Os Autores responderam à excepção dilatória deduzida pelo Ministério Público.

4. Em 2 de Fevereiro de 2023, foi proferido despacho, por que se declarava o Juízo de Família e de Menores “absolutamente incompetente para preparar e julgar a presente ação, de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição da nacionalidade portuguesa, por ser materialmente competente para o efeito o Juízo Local Cível, em conformidade com o disposto no art.º 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro e art.º 130.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e, consequentemente, absolve-se o Réu da instância, em conformidade com o disposto nos art.ºs 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. a), todos do Cód. Processo Civil”.

5. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação.

6. Em 13 de Novembro de 2023, o Tribunal da Relação do Porto revogou o despacho de 2 de Fevereiro.

7. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor.

Pelas razões vindas de expor, acordam os juízes desta ....ª Secção Judicial (....ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação de AA e BB e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento da acção no Juízo de Família e Menores em que foi intentada, por ser o materialmente competente.

Sem tributação.

8. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de revista.

9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1) O Acórdão recorrido fez inadequada interpretação e aplicação do disposto no Artº. 3º. Nº. 3 da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei Nº. 37/8 e o que é fundamento do presente recurso.

2) Nele foi decidido que a expressão “tribunal cível”, a que nele se alude no contexto da actual orgânica judiciária tem de ser entendida como sendo o “Juízo de Família e Menores” por integrar um tribunal com competência especializada cível, conforme a estatuição da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da Lei nº. 62/2013, de 26/8 - Lei de Organização do Sistema Judiciário - com competência material para reconhecimento da situação de união de facto em ordem a ulterior aquisição de nacionalidade.

3) À Lei da Nacionalidade - Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, decorrente da alteração introduzida pela Lei Orgânica Nº. 2/2006 e suas sucessivas alterações, foi conferido o valor de Lei Orgânica, o que lhe concede uma relevância constitucional de valor reforçado, nos termos dos artº.s 112º. nº. 3 e 168º. nº. 5 da CRP.

4) O seu artº. 3º. Nº. 3 foi introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2006, que pela 5ª. vez alterou a Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro e, desde a sua entrada em vigor, até ao presente, sem qualquer outra alteração, com manutenção do mesmo tipo de política legislativa, decorrente de tal valoração.

5) Tem esta norma uma natureza especial e estabilizada na ordem jurídica, pelo que a atribuição da competência material aí prevista, o segmento tribunal cível, tendo em consideração a actual Lei Nº. 62/2013, que aprovou a Lei Orgânica do Sistema Judiciário, não pode ser entendido como sendo o Juízo de Família e Menores, mas sim o Juízo Local Cível.

6) O acórdão recorrido merece ser revogado e em consequência ser repristinado o despacho que foi proferido em 1ª. Instância.

7) Decidindo, como decidiu, este Tribunal “a quo” violou o disposto nos artº.s 112. nº. 3 e 168º. nº. 5 da CRP; 3º. Nº. 3 da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, na redacção da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04, e, 122.º n.º 1 alínea g) da Lei nº. 62/2013, de 26/8 - Lei de Organização do Sistema Judiciário.

Nestes termos e nos mais de direito aplicável, deve ser concedido provimento ao presente recurso, tal como o que nele se impetra.

Contudo, V. Exas. farão como sempre, inteira e sã JUSTIÇA

10. Os Autores contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

11. Finalizaram a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

A. O douto Acórdão recorrido deverá manter-se, uma vez que a decisão nele inserta consubstancia uma solução que não viola preceitos legais ou processuais ao excecionar a sua incompetência material nos termos já enunciados.

B. O tribunal da Relação do Porto decidiu declarar absolutamente competente o Tribunal de Família e Menores de ... para preparar ej ulgar a ação de reconhecimento de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa.

C. O artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, conjugado com o artigo 14.º, n.ºs. 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, não pode ser interpretado como constituindo uma norma especial que derroga a lei geral (o artigo 122.º, n.º1, alínea g LSOJ), tendo assim sido violado.

D. A alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, atualmente em vigor, refere que: “1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: (…)

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.”

E. É cristalino que o legislador ao dizer que o reconhecimento da união de facto cabe ao tribunal cível, quis apenas afastar estas ações do Tribunal Administrativo e Fiscal, face ao disposto no artigo 26º da mesma lei, e não os tribunais de família.

F. A Lei da Organização do Sistema Judiciário, Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, foi criada POSTERIORMENTE à Lei da Nacionalidade.

G. O legislador não pretendeu criar uma atribuição diferente, uma vez que naquela época vigorava ainda a aplicação das regras gerais da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ – Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro.

H. A Lei da Nacionalidade não delimitou a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada ação, sendo esse o motivo pelo qual no n.º3 do artigo 3.º, a Lei aceitou, se conformou e se adequou ao que a LOFTJ regulava, não constituindo a escolha dos Tribunais Cíveis uma opção autónoma, mas apenas um sancionar da realidade normativa existente.

I. Os Juízos de Família e Menores são os materialmente competentes para preparar e julgar as ações de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa, assim preenchendo a previsão da alínea g) do n.º1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ.

J. Termos em que o douto acórdão não violou o disposto nos artºs 112º, nº 3 e 168º, nº 5 da CRP, o artº 3º, nº 3 da Lei nº 3/81, de 3 de Outubro, na redação da Lei Orgânica nº 2/2006, de 17/04, nem o artº 122º, nº 1 da alínea g) da Lei nº 62/2013, de 26/08.

L. Nem merece qualquer censura, devendo ser confirmado em revista.

Nestes termos e no mais de direito, sempre sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deve o Acórdão em crise ser confirmado, com todas as devidas e legais consequências.

Assim se fará, como sempre, inteira JUSTIÇA!

12. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código do Processo Civil), a única questão a decidir, in casu, consiste em determinar se os Juízos de Família e de Menores são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

13. O art. 3.º da Lei da Nacionalidade, na redacção da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril, é do seguinte teor:

1. — O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio.

2. — A declaração de nulidade ou anulação do casamento não prejudica a nacionalidade adquirida pelo cônjuge que o contraiu de boa-fé.

3. — O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.

14. Em complemento da Lei da Nacionalidade, o art. 14.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei 237-A/2006, de 14 de Dezembro, determina que

1. — O estrangeiro casado há mais de três anos com português, se, na constância do matrimónio, quiser adquirir a nacionalidade, deve declará-lo.

2. — O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.

3. — A declaração prevista no n.º 1 é instruída com certidão do assento de casamento e com certidão do assento de nascimento do cônjuge português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º

4. — No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.

5. — A declaração prevista na parte final do número anterior pode:

a) Ser prestada presencial e verbalmente na Conservatória dos Registos Centrais, nas extensões desta conservatória, e, ainda, nas conservatórias do registo civil ou nos serviços consulares portugueses, sendo neste caso vertida em auto, sempre que possível em suporte eletrónico; ou

b) Constar de documento assinado pelo membro da união de facto que seja português, contendo a indicação do número, data e entidade emitente do respetivo cartão de cidadão ou bilhete de identidade 1.

15. O alcance da devolução da competência para a acção de reconhecimento da união de facto aos tribunais cíveis deve determinar-se atendendo ao contexto normativo da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril — ou seja, considerando as disposições legais em vigor à data da aprovação da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril:

I. — Os arts. 62.º, 64.º e 65.º da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais eram do seguinte teor:

Artigo 62.º — Tribunais de comarca

1. — Os tribunais judiciais de 1.ª instância são, em regra, os tribunais de comarca.

2. — Quando o volume ou a natureza do serviço o justificarem, podem existir na mesma comarca vários tribunais.

Artigo 64.º — Outros tribunais de 1.º instância

1. — Pode haver tribunais de 1.ª instância de competência especializada e de competência específica.

2. — Os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável; os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas pela espécie de acção ou pela forma de processo aplicável, conhecendo ainda de recursos das decisões das autoridades administrativas em processo de contra-ordenação, nos termos do n.º 2 do artigo 102.º

3. — Em casos justificados, podem ser criados tribunais de competência especializada mista.

Artigo 65.º — Desdobramento de tribunais

1. — Os tribunais judiciais podem desdobrar-se em juízos.

2. — Nos tribunais de comarca os juízos podem ser de competência genérica, especializada ou específica.

3. — Os tribunais de comarca podem ainda desdobrar-se em varas, com competência específica, quando o volume e a complexidade do serviço o justifiquem.

4. — Em cada tribunal, juízo ou vara exercem funções um ou mais juízes de direito.

II. — O art. 77.º da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais consagrava o princípio de que compete aos tribunais de competência genérica preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal, o art. 78.º designava os tribunais de competência especializada e os arts. 81.º e 82.º designavam as competências dos tribunais de família:

Artigo 78.º — Espécies [de tribunais de competência especializada]

Podem ser criados os seguintes tribunais de competência especializada:

a) De instrução criminal;

b) De família;

c) De menores;

d) Do trabalho;

e) De comércio;

f) Marítimos;

g) De execução das penas

Artigo 81.º — Competência [dos tribunais de família] relativa a cônjuges e ex-cônjuges

Compete aos tribunais de família preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1773.º do Código Civil;

c) Inventários requeridos na sequência de acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, bem como os procedimentos cautelares com aqueles relacionados;

d) Acções de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Acções intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil;

f) Acções e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges.

Artigo 82.º — Competência [dos tribunais de família] relativa a menores e fillhos maiores

1. — Compete igualmente aos tribunais de família:

a) Instaurar a tutela e a administração de bens;

b) Nomear pessoa que haja de celebrar negócios em nome do menor e, bem assim, nomear curador-geral que represente extrajudicialmente o menor sujeito ao poder paternal;

c) Constituir o vínculo da adopção;

d) Regular o exercício do poder paternal e conhecer das questões a este respeitantes;

e) Fixar os alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil e preparar e julgar as execuções por alimentos;

f) Ordenar a entrega judicial de menores;

g) Autorizar o representante legal dos menores a praticar certos actos, confirmar os que tenham sido praticados sem autorização e providenciar acerca da aceitação de liberalidades;

h) Decidir acerca da caução que os pais devam prestar a favor dos filhos menores;

i) Decretar a inibição, total ou parcial, e estabelecer limitações ao exercício do poder paternal, previstas no artigo 1920.º do Código Civil;

j) Proceder à averiguação oficiosa de maternidade, de paternidade ou para impugnação da paternidade presumida;

l) Decidir, em caso de desacordo dos pais, sobre o nome e apelidos do menor.

2. — Compete ainda aos tribunais de família:

a) Havendo tutela ou administração de bens, determinar a remuneração do tutor ou administrador, conhecer da escusa, exoneração ou remoção do tutor, administrador ou vogal do conselho de família, exigir e julgar as contas, autorizar a substituição da hipoteca legal e determinar o reforço e substituição da caução prestada e nomear curador especial que represente o menor extrajudicialmente;

b) Nomear curador especial que represente o menor em qualquer processo tutelar;

c) Converter, revogar e rever a adopção, exigir e julgar as contas do adoptante e fixar o montante dos rendimentos destinados a alimentos do adoptado;

d) Decidir acerca do reforço e substituição da caução prestada a favor dos filhos menores;

e) Exigir e julgar as contas que os pais devam prestar;

f) Conhecer de quaisquer outros incidentes nos processos referidos no número anterior.

III. — Em consequência, o art. 3.º da Lei da Nacionalidade, na redacção da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril, ao devolver a competência para o reconhecimento da união de facto aos tribunais cíveis, estava a dizer duas coisas.

— em primeiro lugar, que a acção devia ser apreciada e decidida pelos tribunais judiciais;

— em segundo lugar, que, dentro dos tribunais judiciais, devia ser apreciada e decidida pelos tribunais ou, dentro dos tribunais, pelos juízos de competência genérica.

16. Como se diz, designadamente, na fundamentação dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021 — processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1 — e de 22 de Junho de 2023 — processo n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1 —,

“O legislador com a indicação específica de qual o tribunal competente para decidir este tipo de ações, sem que essa atribuição de competência constituísse uma exceção à atribuição que resultava da aplicação das regras gerais de distribuição de competência, em razão da matéria, pelos diferentes tribunais judiciais, terá procurado afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos, face à atribuição do contencioso da nacionalidade a estes tribunais em resultado da alteração da solução do artigo 26.º da Lei na Nacionalidade, pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril”.

Embora “[pudesse] tê-lo feito, dizendo que a competência pertencia aos tribunais judiciais, deixando que as aplicações das regras gerais de distribuição de competências nesta ordem jurisdicional definissem o tribunal competente em razão da matéria”,

“optou por ser mais específico e, de entre os diferentes tribunais judiciais, definiu que seriam os tribunais cíveis os competentes […]”.

16. Ora o contexto normativo do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade alterou-se com a revogação da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais pela Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.

17. O art. 122.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário é do seguinte teor:

1. — Compete às secções de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;

c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;

d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966;

f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

2 - As secções de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.

18. O problema está todo em averiguar se a Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, terá revogado os critérios de atribuição de competência do art. 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade — está todo em averiguar se a Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, terá revogado a atribuição de competência para as acções de reconhecimento da união de facto aos juízos de competência genérica dos tribunais cíveis para a devolver aos juízos de família e menores, por se tratar de acções relativas ao estado civil das pessoas.

19. Em primeiro lugar, chamar-se-á a atenção para que o reconhecimento da existência de uma união de facto é, tão-só, um pressuposto da atribuição da nacionalidade portuguesa — não é um “meio de resolução de qualquer litígio familiar” 2.

20. Em consequência, não há qualquer razão decisiva, de sistema, no sentido da atribuição da competência para o reconhecimento da união de facto aos juízos de família e de menores 3.

21. Em segundo lugar, chamar-se-á a atenção para que o art. 7.º do Código Civil, sob a epígrafe Cessação da vigência da lei, é do seguinte teor:

1. — Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.

2. — A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.

3. — A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.

4. — A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara.

22. Ora, o art. 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade seja em relação ao art. 26.º da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril, no sentido de subtrair as acções de reconhecimento da união de facto aos tribunais administrativos, seja em relação à Lei de Organização do Sistema Judiciário — logo,

“do alargamento da competência dos tribunais de família, designadamente através do aditamento da nova competência constante da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ — as ações relativas ao estado civil das pessoas e família — nunca poderia resultar a revogação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, aditado pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril” 4.

23. Em termos em tudo semelhantes aos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021 — processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1 —,

“mantendo-se na Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica, constante do artigo 3.º, n.º 3 – o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível – e sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.

[…] o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas.

Ora, dispondo este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral”.

24. O resultado dos argumentos deduzidos é o de que

“Os Juízes Cíveis são competentes para apreciar e julgar um pedido de reconhecimento judicial da uma situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa” 5

e, correlativamente,

“[os juízos] de família e menores não são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa” 6.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e repristina-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.º instância.

Custas pelos Recorridos AA e BB.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

José Maria Ferreira Lopes

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1. O actual texto do art. 14.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa resulta do Decreto-Lei n.º 26/2022, de 18 de Março.

2. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2023 — processo n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1.

3. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2023 — processo n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1 —: “… a opção do legislador ter mantido a atribuição da competência aos tribunais cíveis, enquanto tribunais de competência residual, apesar do alargamento das competências dos tribunais de família às ações que tenham por objeto a família, não é destituída de sentido. Existe, aliás, um largo número de ações em que a existência de um casamento ou de uma união de facto é apenas um pressuposto a verificar para o reconhecimento de um direito extrafamiliar (v.g. um direito de crédito de terceiro), competindo o seu julgamento aos tribunais cíveis”.

4. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2023 — processo n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1.

5. Cf. sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2023 — processo n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1.

6. Cf. sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021 — processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1.