Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98A1016
Nº Convencional: JSTJ00035968
Relator: FERREIRA RAMOS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
Nº do Documento: SJ199902240010161
Data do Acordão: 02/24/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N484 ANO1999 PAG389
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 506/98
Data: 05/12/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV867 ARTIGO 227 E.
CCIV66 ARTIGO 1547 ARTIGO 1548 ARTIGO 1550.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1972/12/15 IN BMJ N222 PAG402.
ACÓRDÃO STJ DE 1974/12/20 IN BMJ N242 PAG294.
ACÓRDÃO STJ PROC81543 DE 1992/12/03.
ACÓRDÃO STJ PROC85789 DE 1994/11/17.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/02/01 IN CJSTJ ANOIII TI PAG60.
Sumário : I - As servidões legais podem ser constituídas por sentença judicial, por decisão administrativa e voluntariamente, sendo possível, neste caso, a constituição por contrato, por testamento, por usucapião e por destinação do pai de família.
II - Apenas quanto às servidões não aparentes é de excluir, por disposição expressa da lei, a sua constituição por usucapião.
III - O direito de preferência concedido no artigo 1555º do C. Civil existe qualquer que tenha sido o título constitutivo da servidão legal de passagem em causa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. A, e mulher B, propuseram no Tribunal Judicial de Torres Novas, em 21.9.95, acção declarativa com processo sumário contra C pedindo:
- o reconhecimento do direito de preferência na venda do prédio rústico formalizada por escritura de 28.6.91, referida no artigo 4º da petição inicial;
- a adjudicação desse prédio aos autores, em substituição da ré, compradora, que deverá ser condenada a abrir mão dele e a entregá-lo aos autores;
- o cancelamento de quaisquer registos feitos com base na escritura de venda.
Para tanto alegaram, em síntese, que:
- por escritura pública outorgada em 16.7.86 adquiriram o prédio rústico identificado nos artigos 1º e 2º da petição inicial;
- contíguo a este seu prédio, com ele confrontando pelo Norte, está o prédio rústico adquirido pela ré, encravado, não tendo qualquer contacto directo com a via pública;
- há mais de 30 anos que, para acesso a este prédio, os respectivos proprietários sempre utilizaram uma serventia de terra batida, com cerca de 3m de largura, atravessando o imóvel dos autores;
- o prédio encravado foi adquirido pela ré, por escritura de 28.6.91, de que os autores só tiveram conhecimento em 5.6.95.

A ré contestou por impugnação e por excepção; à cautela, deduziu reconvenção, pedindo o pagamento do que fosse liquidado em execução de sentença, correspondente a obras que realizou no prédio, após 28.6.91.
Houve reclamação, desatendida, da especificação e questionário.
Após realizada a audiência de julgamento, foi lavrada sentença, a 1.7.97, que julgou procedente a acção, e improcedente a reconvenção.
Apelou a ré, mas sem êxito, já que o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 12.5.98, julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença apelada.

2. Continuando inconformada, recorre para este Supremo Tribunal de Justiça oferecendo alegações que remata com as seguintes conclusões:
"1ª A servidão que serviu de fundamento ao direito de preferência do A. era uma servidão constituída por usucapião.
2a As servidões constituídas por usucapião não são servidões legais.
3ª Uma vez que as servidões legais apenas podem constituir-se por negócio jurídico - contrato ou testamento -, sentença judicial ou decisão administrativa.
4ª Ou seja, por modos voluntários, na ausência dos quais poderão ser impostas coercivamente.
5ª Ora a coercibilidade não existe nas servidões adquiridas por usucapião daqui (sic) as mesmas decorram da posse ou da invocação do seu uso, sem que haja vontade negocial, como no caso dos incapazes - artigos 1266º, 1298º, nº 2, 301º e 303º, aplicáveis "ex vi" do artº. 1292º todos do C.C..
6ª O regime próprio das servidões legais de passagem, firmado nos artigos 1550º, 1551º, 1553º, 1554º e 1569º nº 3, não se aplica, em nenhum dos seus pontos às servidões constituídas por usucapião (e por destinação de pai de família), pelo que não podendo considerar-se como servidões legais, lhe é inaplicável a preferência legal consignada no artº. 1555º.
7ª Desde logo e no que tange ao requisito do artº.1550 - prédio encravado - o qual nas servidões adquiridas por usucapião pode nem sequer chegar a existir, caso a posse do direito de passagem seja anterior à falta de comunicação suficiente com a via pública, o que não foi alegado sequer nesta acção.
8ª A evolução legislativa, conforme aos antecedentes históricos do artº. 1555º, vai no sentido de restringir as situações em que se reconhece o direito de preferência.
9ª Limitando, expressamente, essa possibilidade às servidões legais de passagem.
10ª Compensando, assim, com o direito de preferência a limitação da liberdade contratual resultante da ameaça ou do recurso efectivo a meios coactivos.
11ª Sendo certo que, essa falta de liberdade, não existe nas servidões adquiridas por usucapião, pelo que a "ratio" do preceito lhe é alheia, não justificando, por isso, o alargamento de tal preferência.
12ª Por outro lado, o carácter excepcional das preferências legais, impede a sua aplicação analógica.
13ª A servidão de passagem que foi reconhecida aos recorridos, não é fundamento de direito de preferência que, aliás, a sentença lhe conferiu e o acórdão recorrido confirmou pelo que foi violado o disposto no nº 1 do artº. 1555º e no nº 2 do artº. 1557º, ambos do C.C.
14ª Admitindo-se, por mera hipótese, a confirmação do acórdão, deverá excluir-se na parte decisória, do alcance da preferência, o prédio urbano construído pela R. depois da compra".

Pugnou-se, nas contra-alegações, pela confirmação do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
O acórdão recorrido deu como assente o seguinte quadro factual (elencar-se-ão por letras, os factos especificados, e por números, os factos emergentes do questionário):
ESPECIFICAÇÃO
"A- No dia 16 de Julho de 1986, no Cartório Notarial de Torres Novas, D e marido, E, declararam vender a A e este declarou comprar-lhes, pela quantia de 140000 escudos, um prédio rústico composto de terra de semeadura, com oliveiras, figueiras, árvores de fruto e um poço com engenho de ferro, com a área de 2900 m2, sito no Cabrimau, freguesia de Olaia, concelho de T. Novas, descrito na Conservatória sob o n° 158, inscrito na matriz rústica daquela freguesia sob o art. 753 .
B- Tal prédio confronta a Norte com outro prédio rústico, composto de solo subjacente de cultura arvense com olival, amendoeiras, figueiras, horta, pomar e cultura arvense de regadio, com a área de 13280 m2, inscrito na matriz sob o art. 108 e 140 da Secção O e descrito na Conservatória do Registo Predial de T. Novas sob o n° 973 da freguesia da Olaia.
C- Em 28 de Junho de 1991, no Cartório Notarial de Constância, F, G e H declararam vender a C e esta declarou comprar-lhes, pela quantia de 800000 escudos, o predito prédio.
D- Este não tem qualquer contacto directo com a via pública.
E- O acesso a ele é feito através duma serventia, com cerca de 3 ms de largura.
F- Que atravessa o prédio dos Autores.
G- Essa serventia é em terra batida.
H- Por ela passam pessoas e veículos de tracção animal e motriz com destino ao prédio dito em B.
I- Tanto os AA como os seus antecessores sempre reconheceram o direito de passagem no prédio dito em A, para o prédio referido em B.
J- Esta situação existe há mais de 30 anos.

QUESTIONÁRIO
1. O F, antes de contactar com a Ré, para saber se estaria interessada na compra, perguntou ao Autor se queria comprar o prédio dito em B (resposta ao quesito 2).
2. E este respondeu que não, pois não tinha dinheiro para o efeito (resposta ao quesito 3).
3. Mais tarde, o H informou que queria vender a sua parte do prédio descrito em B. na taberna do "filho da Custódia" (resposta ao quesito 4).
4. No prédio descrito em B, havia um barracão (resposta ao quesito 8).
5. Em 1994, a Ré iniciou, a expensas suas, no prédio descrito em B, obras de reconstrução e adaptação ao uso habitacional (resposta ao quesito 9).
6. As quais consistiram em :
- substituição de paredes ;
- elevação do pé direito;
- elevação do telhado e aproveitamento do sótão;
- colocação de placas de soalho e de cobertura em betão e ferro;
- substituição integral da cobertura;
- colocação de telha e forro interior;
- divisão do espaço interior e reboco de paredes e tectos interiores e exteriores;
- revestimentos e azulejaria;
- assentamento de soalho e ladrilhos;
- construção de cozinha e casas de banho;
- execução e instalação de infra-estruturas de electricidade, esgotos e águas;
- alumínios;
- madeiramento;
- portas;
- janelas;
- pinturas;
- mármores;
- muros exteriores em pedra de alvenaria;
- arranjos do espaço exterior circundante: calcetamento e pavimento do logradouro e ajardinamento (resposta ao quesito 10).
7. Para efectuar tais obras, a Ré teve despesas de projecto e junto da Câmara Municipal (resposta ao quesito 11)".
III
São as conclusões da alegação que delimitam o âmbito do recurso (artigos 683º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC).
Sendo certo que, no caso presente, o âmbito da revista surge claramente mais circunscrito, quando cotejado com o da apelação.
Efectivamente, é a própria recorrente a proclamar que são apenas duas as questões ora em causa - questões que enuncia assim:
- "Saber se as servidões constituídas por usucapião são servidões legais de passagem na previsão do disposto no artigo 1555º do Código Civil;
- Decidir se na parte decisória da sentença se deverá excluir taxativamente do alcance da preferência o prédio urbano construído pela ré, depois da compra".

Abordá-las-emos por essa ordem.
1. O artigo 2271º do Código Civil de 1867 distinguia três modos de constituição das servidões e, daí, a tripartição das servidões em voluntárias ("por facto do homem"), naturais ("pela natureza das coisas") e legais ("pela lei").
As servidões legais são impostas pela lei, mas "não resultam imediatamente da lei, quer dizer, não bastam, para a sua constituição, as normas legais que as impõem... A lei impõe a servidão. O direito a ela representa um poder objectivo ou legal... Para que se constitua a servidão, necessário se torna que, por meio de um negócio jurídico, pela posse, ou por acção judicial, se exerça esse poder. Estas servidões apresentam-se assim como restrições ao direito de propriedade, estabelecidas por lei, mas só mediatamente. Imediatamente elas resultam daquele negócio, da posse ou da acção judicial. Daqui resulta que nesta espécie de encargos há dois momentos a distinguir. Enquanto a servidão não está constituída é uma restrição legal ao direito de propriedade, que entra na regulamentação objectiva deste direito...Mas, uma vez constituída, fica sujeita ao mesmo regime que as outras servidões cuja constituição não é imposta por lei. Quando falamos em servidão legal temos em vista o primeiro momento - o poder legal que a lei confere para a constituição da servidão. Neste aspecto é que as servidões legais se distinguem das servidões propriamente ditas que não são impostas por lei. A servidão legal é um encargo normal sobre a propriedade, ao passo que a servidão propriamente dita é um encargo excepcional" (Pires de Lima, "Lições de Direito Civil - Direitos Reais", publicadas por David Augusto Fernandes, 4ª ed., 1958, pp. 312-314).
E mais adiante (pp. 328-329), o mesmo Autor escreve:
"Quando se fala em servidão legal tem-se em vista o encargo normal sobre a propriedade, isto é, aquele poder legal de constituir uma servidão, que é reconhecido por lei, desde que se verifiquem certas condições. No uso deste poder legal pode, por facto voluntário ou por sentença, constituir-se uma servidão propriamente dita... Mas este segundo momento - a constituição efectiva da servidão - já nada tem que ver com a sua imposição por lei, que é o primeiro momento e que constitui precisamente a servidão legal... as servidões legais são impostas por lei apenas mediatamente, o que significa que a sua constituição fica dependente da intervenção do homem, dum facto voluntário, do qual imediatamente derivam...podem ser estabelecidas coercivamente sobre um prédio, desde que se verifiquem as condições exigidas na lei".
Finalmente, lê-se a pp. 338-339:
"a lei apenas reconhece o direito a que se constitua a servidão; dá um poder objectivo, poder que se subjectiva no momento em que a servidão se constitui. É necessário portanto um título pelo qual imediatamente se constitua a servidão, determinando-se, por esse título, o conteúdo dessa servidão ou o modo porque deve ser exercido o respectivo direito. Quais então os factos por que se constituem as servidões legais?".
Posta esta interrogação, o Professor que vimos acompanhando, após breve referência a esses factos - acordo dos interessados, sentença, destinação do pai de família e prescrição -, responde assim:
"Vê-se deste modo que as servidões legais podem constituir-se, além da sentença, pelos mesmos modos por que se podem constituir as servidões voluntárias" (entendimento reafirmado a fls. 368).
Conclusão esta que também vamos encontrar em Pires de Lima, "Noções Fundamentais de Direito Civil", vol. II, 4ª ed., 1958, p. 116:
"Quanto às servidões legais, além dos modos de aquisição aludidos [e que são, segundo o artigo 2272º "qualquer modo de adquirir declarado no presente Código", logo, "quer por negócio jurídico, quer por prescrição"], devemos acrescentar a sentença. Na verdade, se as partes não concordarem voluntariamente na sua constituição, concede a lei ao proprietário do prédio dominante o poder de a constituir por via judicial, obtendo uma sentença que reconheça o seu direito e ordene a constituição de servidão".

1.1. Releve-se a extensão das transcrições a que intencionalmente procedemos, no convencimento de que elas terão trazido alguma luz (clarificando e afinando conceitos) - assim se espera - a uma temática onde parece lavrar alguma imprecisão.
Além de que essas considerações, embora produzidas na vigência do Código Civil de Seabra, mantêm, no essencial, plena validade e pertinência no actual quadro legal, como desde logo resulta das anotações aos artigos respectivos - mormente aos artigos 1543º, 1547º e 1548º - do "CC Anotado", vol. III, de Pires de Lima e Antunes Varela.

2. O conceito de servidão encontra-se hoje plasmado no artigo 1543º do CC, que dispõe:
"Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia".
Daqui resultam quatro notas fundamentais: a servidão é um encargo; o encargo recai sobre um prédio; aproveita exclusivamente a outro prédio; os prédios têm de pertencer a donos diferentes (Pires de Lima e Antunes Varela, "CC Anotado", vol. III, 1972, pp. 564-568).

O artigo 1547º rege sobre a constituição das servidões:
"1. As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.
2. As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos".
O nº 1 enuncia quatro títulos (ou modos) de constituição voluntária (terminologia porventura não muito rigorosa, perante as servidões constituídas por usucapião) das servidões: contrato, testamento, usucapião e destinação do pai de família (correspondendo às servidões constituídas "por facto do homem", na terminologia do artigo 2271º do CC de 1867).
O nº 2 reporta-se às servidões legais - servidões que podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, na falta de constituição voluntária.

2.1. Ao menos numa primeira aproximação, não pode deixar de reconhecer-se que o segmento intencionalmente acabado de sublinhar aponta claramente para a previsão, do nº 1, que imediatamente o precede, significando, portanto, que as servidões legais também podem ser constituídas por qualquer dos títulos nesse nº 1 elencados.
E se tal emerge de uma primeira abordagem de ordem essencialmente literal, a verdade é que o excurso antes efectuado permite que ora se afirme, com alguma segurança, que a essa conclusão conduzem os elementos histórico, sistemático, e teleológico ou racional da interpretação da lei.
Conclusão reforçada pelo que se dispõe no artigo imediato - 1548º -, que apenas exclui da constituição por usucapião as servidões não aparentes, abrangendo, consequentemente, todas as demais, servidões legais incluídas.

2.2. Neste mesmo sentido se pronunciam também, inequivocamente, Pires de Lima e Antunes Varela, "CC Anotado", vol. III, 1972, parte final da anotação 4., p. 577, ao considerarem que a aquisição por usucapião é válida para todas as servidões (com excepção das não aparentes).
Autores que na anotação ao artigo 1293º (pp. 63-64) consideram que em 1930 se chegou à solução mais razoável - solução que se traduziu em restringir às servidões não aparentes (sem que se distinga, por forma a tornar legítima a conclusão de que também estão compreendidas as servidões legais) a impossibilidade de constituição por usucapião.

2.3. É também este o entendimento que se colhe em "Direitos Reais", segundo as prelecções de Mota Pinto ao 4º Ano Jurídico de 1970-1971, publicação de Álvaro Moreira e Carlos Fraga:
"Para além das quatro formas referidas de constituição de servidões - contratual, testamentária, usucapião e destinação do pai de família - referidas no nº 1 do artigo 1547º citado, podem estas também constituir-se, nos termos do nº 2 da mesma disposição, por sentença judicial" (pp. 323-324).
E se este passo é deveras significativo, o mesmo entendimento já se deduzia, com alguma segurança, de p. 321, onde se considera, irrestritamente, que as servidões podem, também, constituir-se por usucapião, embora só sejam susceptíveis deste modo de aquisição as chamadas servidões aparentes.
Refira-se, a rematar, que este último raciocínio é igualmente válido e aplicável ao que Luís A. Carvalho Fernandes escreve a fls. 430-431 das suas "Lições de Direitos Reais", 2ª ed., 1997, assumindo, porém, maior significado e pertinência o seguinte trecho:
"A constituição coactiva ou coerciva das servidões é própria das servidões legais, o que não significa, como logo se deixa ver da simples leitura do nº 2 do artigo 1547º, a exclusão da possibilidade de, em relação a elas, se verificar a constituição voluntária" (p. 432).

3. Ficou, assim, demonstrado que as servidões legais se podem constituir, também, por usucapião.
Entre as servidões legais, prevê o Código Civil as servidões legais de passagem (artigos 1550º a 1556º), dispondo no artigo 1550º:
"1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio".

Nos termos deste último normativo, gozam de um direito potestativo (ou faculdade) de constituir uma servidão de passagem os proprietários de prédio encravado, como tal sendo considerado "não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública (encrave absoluto), mas também aquele que dispõe de uma comunicação insuficiente para as suas necessidades normais e aquele que só poderia comunicar com a via pública através de obras cujo custo esteja em manifesta desproporção com os lucros prováveis da exploração do prédio ou com as vantagens que ele proporciona" (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cits, pp. 585-586; Henriques Mesquita, RLJ, ano 129º-191 e ss.).

4. Estabelece, por seu turno, o artigo 1555º:
"1. O proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito de preferência, no caso de venda, ...".

Somos chegados ao âmago da questão.
Instituído o direito de preferência, em matéria de servidão legal de passagem, pelo Decreto de 23.5.1911 e, posteriormente, pela Lei nº 1621, de 5.7.1924, a Reforma de 16.12.1930 (Decreto nº 19126) resolveu expressamente uma questão até então discutida, proclamando o direito de preferência seja qual for o título de constituição da servidão.
No mesmo sentido haverá que interpretar o trecho paralelo do artigo 1555º: "qualquer que tenha sido o título constitutivo" (Pires de Lima e Antunes Varela, "CC Anotado", vol. III, p. 593).
Ponto é que - como logo advertem estes dois Professores - se trate, por um lado, de uma servidão legal de passagem e, por outro, que a servidão esteja já constituída, não bastando que se verifiquem os pressupostos legais da sua constituição (por isso a lei fala no proprietário de prédio "onerado").
O fim principal que o legislador de então teve em vista com a concessão do direito de preferência foi o de regularizar e desenvolver a propriedade perfeita (Pires de Lima, "Lições...", cit., p. 371).
Mais recentemente - no domínio do CC vigente, que eliminou o direito de preferência de que gozava o proprietário do prédio dominante, mantendo-o apenas em benefício do proprietário do prédio serviente -, Henriques Mesquita, RLJ, ano 129º-191, escreveu que o direito de preferência visa precisamente pôr termo a um encargo sobre o prédio serviente, que o respectivo proprietário expressamente consentiu, ou a cuja constituição se não opôs, por saber de antemão que o proprietário do prédio encravado poderia sempre conseguir a servidão por via judicial.

5. A questão com que estamos confrontados é, confessadamente, complexa e geradora de controvérsia, não se desconhecendo que ela divide doutrina e jurisprudência.
5.1. Na verdade, António Menezes Cordeiro ("Servidão legal de passagem e direito de preferência", na Revista da Ordem dos Advogados, 50º, 1990, III, pp. 574 e ss., e Parecer de 8.8.88, na CJ, 1992, 1º-63), entende que as servidões legais não podem constituir-se por usucapião, não sendo aplicável / alargado o regime das servidões legais, com a preferência a elas inerente, às servidões constituídas por usucapião.
Porém, já Henriques Mesquita (RLJ, ano 129º, pp. 189-190) afirma que, "segundo entendimento pacífico da doutrina (cita Pires de Lima, "Lições de Direito Civil - Direitos Reais", publicadas por David Augusto Fernandes, 4ª ed., p. 368, e Oliveira Ascensão, "Direito Civil - Reais, 5ª ed., 1993, pp. 258-260) e da jurisprudência (cita os acórdãos do STJ de 20.12.74, e da RE de 12.12.91), o direito de opção que o artigo 1555º atribui ao proprietário do prédio serviente pressupõe apenas a existência de uma servidão legal de passagem - isto é, de uma servidão estabelecida em benefício de um prédio encravado, seja qual for o título por que se tenha constituído".

5.2. A orientação jurisprudencial dominante vai também neste sentido, ou seja, o conceito de servidão legal abrange além das servidões constituídas por decisão judicial, também as constituídas por qualquer outro título, mas que, não fora a existência desse título, podiam ser judicialmente impostas.
Assim, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.72, BMJ, nº 222-402, de 20.12.74, BMJ, nº 242-294, de 3.12.92, Proc. nº 81543, de 17.11.94, Proc. nº 85789, de 1.2.95, CJSTJ, III, tomo I, p. 60, de 16.1.96, Proc. nº 87824, e de 26.2.98, Proc. nº 780/97 (cfr., também, o acórdão de 2.10.97, Proc. nº 708/97).
A nível das Relações, entre outros os acórdãos da RP de 11.2.77, BMJ, nº 266-213, de 6.2.79, BMJ, nº 285-374, de 6.7.82, CJ, 1982, 4º-201, de 12.12.91, BMJ, nº 429-905, da RE, de 9.5.91, BMJ, nº 412-553, de 8.7.93, BMJ, nº 429-905, de 12.12.96, CJ, 1996, 5º-276).
Impondo-se, embora, reconhecer como francamente maioritária a descrita orientação jurisprudencial, não pode, todavia, olvidar-se a existência de arestos em sentido oposto, como sejam os acórdãos do Supremo de 1.2.94, CJ, 1994, tomo I, p. 78, e de 21.2.95, Proc. nº 86291, 1ª secção (também o acórdão da RL de 3.5.74, BMJ, nº 237-300).

6. Tudo ponderado (e sem embargo de reconhecermos a valia dos argumentos que militam em sentido contrário, expostos, sobretudo, no citado Parecer de Menezes Cordeiro), a argumentação que desenvolvemos permite-nos concluir, fundadamente, que a norma do artigo 1555º deve ser interpretada no sentido de se entender que o direito de preferência nela consignado abrange os proprietários de prédios onerados com servidões legais de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo.
Nessa previsão compreendem-se, também, as servidões constituídas por usucapião.
Como se procurou demonstrar, é esse o entendimento que resulta de uma correcta interpretação da lei, que tem na devida conta, partindo da sua letra, os elementos histórico, sistemático e teleológico; além de que é sufragado pela maioria da doutrina e jurisprudência.

Como assim, e não se discutindo, no caso dos autos, que estamos perante um prédio encravado em benefício do qual se constituiu (já) uma servidão de passagem por usucapião, há que concluir que não assiste razão à recorrente (cujas alegações se fundam, decisivamente no citado Parecer de Menezes Cordeiro), improcedendo as respectivas conclusões e não se verificando, do mesmo passo, violação da norma por ela invocada - o nº 1 do artigo 1555º do Código Civil.
IV
A segunda questão, tal como equacionada pela recorrente, consiste em "decidir se na parte decisória da sentença se deverá excluir taxativamente do alcance da preferência o prédio urbano construído pela ré depois da compra".
Como se compreende, esta questão só surge porque se respondeu à anterior em termos que, nessa parte, conduziu à confirmação do acórdão recorrido (daí, o segmento inicial da conclusão 14ª das alegações: "Admitindo-se, por mera hipótese, a confirmação do acórdão, deverá excluir-se na parte decisória...").

Vejamos então.
1. A pretensão da recorrente limita-se a que, na parte decisória, seja expressamente / taxativamente excluído do alcance da preferência o prédio urbano que edificou no prédio rústico objecto da preferência.
O acórdão recorrido ponderou a tal propósito:
"O teor da sentença - "a agora casa e antes barracão deixou de fazer parte do prédio preferendo", e a menção a eventual futura acção de acessão imobiliária - acautelam suficientemente os interesses da ré. Vista a formulação do pedido reconvencional, conhecidos os princípios da estabilidade da instância (artigo 268º) e dos limites da decisão (artigo 660º, nº 2) do CPC, nada deve aditar-se ou excluir-se na parte decisória".

2. Em bom rigor, porventura a pretendida exclusão devesse constar expressamente da parte decisória.
Julga-se, porém, que as considerações adrede desenvolvidas pelo acórdão recorrido, e que no essencial recenseamos, conjugado com a improcedência do pedido reconvencional (formulado precisamente com fundamento na realização de obras - materializadas na "agora casa" -, a que a sentença da 1ª instância negou a caracterização de benfeitorias), são de molde a compreender e justificar que a decisão possa ser deixada tal qual (sem que daí resultem afectados os interesses da ré, a quem, aliás, tanto a sentença, como a decisão recorrida, apontam já uma via processual).
Improcede assim, também nesta parte, a conclusão da recorrente, não se verificando violação de qualquer norma jurídica.

Termos em que se nega a revista e se confirma o acórdão recorrido.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 1999.
Ferreira Ramos,
Pinto Monteiro,
Lemos Triunfante.