Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
164/15.9T8VNF.P1.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
OBJETO DO RECURSO
DECISÃO SURPRESA
TAXA SANCIONATÓRIA EXCECIONAL
NULIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADI
Sumário :
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL



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Notificado do acórdão proferido na revista acima identificada, vieram os recorridos/autores, arguir a nulidade do mesmo, por alegada omissão de pronúncia e ainda por constituir uma decisão surpresa.

Fundamentou os pedidos nos seguintes termos:

«AA e outro, Recorridos nos autos em referência, em são Recorrentes BB e outro, notificados do Acórdão proferido, vêm, com todo o respeito, arguir duas nulidades do mesmo, com os seguintes fundamentos:

I)

1.      Nas contra-alegações que os ora exponentes apresentaram, estes suscitaram a questão de se ter formado «dupla conforme» relativamente à validade da cessão de créditos, da legitimidade e da condenação conjunta dos Réus na restituição do sinal em singelo, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do art. 671.º do mesmo Código, mantém-se como requisito de inadmissibilidade do recurso de revista.

2.     Uma vez que o conceito de dupla conforme deve ser aferido separadamente em relação a cada segmento decisório, se, quanto a um determinado (segmento), se verificar a plena confirmação do resultado declarado na 1ª Instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, fica eliminada, nessa parte, a possibilidade de interposição de recurso «normal» de Revista.

3.     Na verdade, tanto a 1ª Instância como o Tribunal da Relação consideraram que os Réus incumpriram o contrato promessa; aquela, condenou-os Réus na restituição do sinal em singelo, e por forma conjunta; e o Tribunal da Relação condenou-os Réus na restituição do sinal em dobro, e por forma solidária.

4.      Afigura-se por isso que, quanto à condenação da 1ª Instância, de restituição do sinal em singelo e da responsabilidade conjunta dos Réus, formou-se dupla conforme, por essa decisão estar contida na que condenou na restituição do sinal em dobro e solidariamente, subsiste a sobreposição da decisão da Relação sobre a da 1ª Instância.

5.     Cotejem-se, a propósito, os seguintes Acórdãos deste Supremo:

Acórdão de 2014-04-24, Revista nº 50/09.1TBVPA.P1.S1 - 2ª Secção: «A dupla conformidade não implica a sobreposição total entre os dispositivos da sentença e do acórdão que sobre ela recaia» Acórdão de 2014-06-18, Revista nº 291/11.1TVLSB.L1.S1 - 2ª Secção: «Nos casos em que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, o conceito de dupla conforme terá de se aferir separadamente relativamente a cada um deles». Acórdão de 2014-09-18, Revista nº 630/11.5TBCBR.C1.S1 - 7ª Secção: «Verifica-se, igualmente, dupla conforme se a decisão sobre determinado ponto de facto na sentença e no acórdão da Relação é a mesma assim como a sua justificação». Acórdão de 2016.01.21, Revista nº 76/12.8T2AND.P1.S1 - 7ª Secção: «É de equiparar à situação de dupla conforme, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista, aquela em que a Relação profere uma decisão que, embora não seja rigorosamente coincidente com a da 1.ª instância, se revela mais favorável à parte que recorre»

6.    Por essas razões, os exponentes mais suscitaram a questão prévia de o recurso de Revista dever ser, nessa parte, objecto de indeferimento liminar (CPC, art. 671º nº 3).

7.     Ora, o Tribunal não se pronunciou sobre tal questão prévia, e afigura-se que o deveria ter feito, por a mesma se conter nas questões sobre as quais se deve pronunciar, decidindo-as (CPC, art.s 608º nº 2, 615º bº 1 al. d), ex vi art. 666º).

8.     Foi assim omitida a prática de um acto que a lei prescreve e que pode influir no exame ou decisão da causa, vale dizer, foi praticada uma nulidade (CPC art. 195º nº 1) – salvo o devido respeito –, cujo suprimento se requer, devendo este Tribunal apreciar a referida questão prévia da dupla conforme suscitada – alterando, se for caso disso, o douto Acórdão proferido (cfr. art. 684º CPC), no sentido da prevalência da decisão da 1ª Instância.

II)

9.     Por outro lado, o douto Acórdão proferido abordou uma questão que não foi configurada pelas partes, mormente pelos ora exponentes, sem que estes tivessem a obrigação de a prever, qual seja, o que o douto Acórdão designa por «legitimidade material, substantiva ou «ad actum», tendo sido com base nela que veio a proferir a sua decisão.

10.   Como é consabido, «decisão-surpresa» é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.

«Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de «decisões-surpresa», pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios. «Constitui «decisão-surpresa» a decisão tomada pelo tribunal relativamente à notada ilegitimidade passiva não discutida pelas partes e que esteve na base da decisão de forma proferida. A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respectivo enquadramento jurídico, mesmo que adjectivo» (Ac. RP 2019.12.02, P. nº 14227/19).

11.   Uma decisão-surpresa pressupõe que a parte seja apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível,não estivesse prevista nem tivesse sido configurada por aquela, o que determina a respetiva nulidade (ac. RG 2019.12.05, P. nº 858/15).

12.     Afigura-se ter sido o caso do douto Acórdão proferido, pois que se fundamentou numa questão que não foi configurada pelas partes, mormente pelos ora exponentes, sem que estes tivessem a obrigação de a prever, tendo sido com base nela que veio a proferir a sua decisão, sem ter conferido o direito ao contraditório.

13.     Como refere o Acórdão deste Supremo de 2018.12.09 Revista nº 543/05.0TBNZR.C1.S1:

«Tendo o autor configurado a acção em termos de responsabilidade civil por factos ilícitos, tendo as rés se defendido com base nos pressupostos deste instituto e tendo a sentença decidido com base no enriquecimento sem causa, sem ter dado às partes a possibilidade de sobre tal se pronunciarem, estamos perante uma decisão surpresa proferida com violação do princípio do contraditório. E, entre muitos outros, mais se cita o Ac. RP de 2008.01.10 (P. 0736877):

 «Não ajuizou correctamente o tribunal recorrido que conheceu da nulidade do contrato de arrendamento sem conhecimento prévio das partes, constituiu uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório. A inobservância do princípio do contraditório gera nulidade processual»

Nestes termos, respeitosamente requerem a V. Exa.s se dignem suprir as nulidades invocadas, pronunciando-se sobre a questão prévia que os recorrentes arguiram e, caso essa não proceda – o que por mera hipótese se admite – conferindo às partes o direito ao contraditório quanto à questão nova em que se baseou o douto Acórdão proferido.


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Responderam os recorrentes pedindo a improcedência da reclamação

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Cumpre apreciar e decidir.

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Das Nulidades

A nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1 al. d) só ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Esta nulidade está directamente relacionada com o comando previsto no art.º 608º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, e serve de cominação para o seu desrespeito[1]. O dever imposto no art.º 608º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam, quanto à procedência ou improcedência do pedido formulado[2]. E para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes (sujeitos), e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir, e a questão resolvida pelo juiz, identificada por estes mesmos elementos. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito[3]. E é por isto mesmo, que já não o são os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos[4]  de que as partes se socorrem quando se apresentam a demandar ou a contradizer, para fazerem valer ou naufragar a causa posta à apreciação do tribunal __ embora seja conveniente que o faça, para que a sentença/acórdão, vença e convença as partes[5] . É de salientar ainda que, de entre a questões essenciais a resolver, não constitui nulidade o não conhecimento daquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela decisão de outra.

Ora no caso a questão da admissibilidade da revista não foi tratada no Acórdão sob reclamação nem tinha de o ser, porquanto a questão não foi colocada nas contra-alegações como uma questão da admissibilidade da revista, mas sim como um argumento para sustentar a improcedência do recurso.

O relator, admitiu a revista e considerou que nada obstava ao seu conhecimento.

Quanto ao argumento de que a revista deveria improceder quanto à questão da ilegitimidade substantiva, por no entender dos recorridos se verificar uma situação de dupla, como se disse supra o tribunal não tem que se pronunciar especificamente sobre os argumentos aduzidos pelas partes e no caso a falta de fundamento de tal argumento era tão patente e inequívoca, que era despiciendo fazer-lhe qualquer referência. Aliás só por absurdo ou por grosseira ironia se pode defender a existência duma situação de dupla conforme num caso como o dos autos em que a decisão da 1ª instância é revogada pela Relação e os fundamentos de uma e outra decisão são absolutamente diferentes. Apreciar especificamente os argumentos dos recorridos, seria contribuir, para legitimar este tipo de procedimentos, inadmissíveis perante qualquer Tribunal e muito mais perante o Supremo Tribunal…!  

A resposta ao infundado daquele argumento foi dada pela decisão do colectivo e resulta de forma clara da respectiva fundamentação.

Quanto à alegada nulidade processual por violação do contraditório, em virtude da decisão constituir uma “decisão surpresa”, o absurdo de tal alegação ainda supera a da precedente nulidade do acórdão!

Na verdade, a questão da legitimidade substantiva foi suscitada pelos RR. na 1ª instância, na apelação que foi interposta da sentença. Foi objecto de apreciação pela Relação, que não acolheu os argumentos dos RR., e que por isso, insistiram em submeter tal assunto à apreciação deste Tribunal, constituindo um dos fundamentos da revista, pelo que só por mera chicana processual, se poderá dizer que os reclamantes não puderam contraditar. Quanto à decisão jurídica, em concreto, pode admitir-se que os AA. não a tivessem previsto. Porém isso é da sua exclusiva responsabilidade, uma vez que os factos e os documentos existentes nos autos, para além de consentirem tal desfecho, impunham-no e isso não podia ser ignorado pelos AA., que bem sabiam os termos em que haviam contratado. Por outro lado o Tribunal não está sujeito às «alegações da partes, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito» aos factos que constam do processo e de que não esteja impedido de conhecer.


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Apesar da roupagem, é indisfarçável a falta de fundamento legal do requerimento acabado de apreciar. Por essa razão justifica-se a condenação do reclamante em taxa sancionatória excepcional, que se fixa em 4 ucs (art.º 531º do CPC).

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Concluindo

Pelo exposto acorda-se em negar provimento à reclamação.

Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 2 Ucs.

Notifique.

Lisboa, em 11 de março de 2021.

José Manuel Bernardo Domingos (relator)

António Abrantes Geraldes

Manuel Tomé Gomes

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[1] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 142-143 nota 5 e 53 e segs.; J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 247 nota 5 e 228 nota 2.
[2] J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.
[3] Vd. Ac. do STJ de 09-07-1982: B.M.J. 319 pág. 199.
[4] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 49 e segs.; J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.; J. Lebre de Freitas e outros, Cód. Proc. Civil Anot, Vol. 2, Coimbra Editora – 2001, págs. 645-646 nota 2. No sentido de que os motivos, argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos não figuram entre as questões a apreciar no art.º 660º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, como jurisprudência unânime, pode ver-se, de entre muitos exemplos, p. ex., RT 61º-134, 68º-190, 77º-147, 78º-172, 89º-456, 90º-219 citados apud Abílio Neto Cód. Proc. Civil Anot. 8.ª Ed. (1987), págs. 514-515 nota 5, em anotação ao art.º 668º. Vd. ainda, v. g., Ac. do STJ de 01-06-1973: B.M.J. 228 pág. 136; Ac. do STJ de 06-01-1977: B.M.J. 263 pág. 187. 
[5] Vd. . Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.