Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2183/15.6T8OAZ-A.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
CLÁUSULA CONTRATUAL
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 05/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL –DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS / SOLIDARIEDADE ENTRE DEVEDORES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO / PRAZO DA PRESTAÇÃO.
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS / VENCIMENTO IMEDIATO DE DÍVIDAS.
Doutrina:
-A. Varela e P. de Lima, Código Civil, Anotado, I, p. 1529;
-A. Varela, Direito das Obrigações, Vol. II, 5ª ed., p. 55;
-Baptista Machado, RLJ 117º-233;
-Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 344;
-Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 418;
-Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6.ª ed., 2010, p. 547.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 512.º, N.º 1, 518.º, 779.º E 782.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 91.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 31-05-2012, PROCESSO N.º 3671/09.9TBPTM-A.E1.S2;
- DE 12-06-2012, PROCESSO N.º 14/06.7TBCMG.G1.S1;
- DE 16-04-2013, PROCESSO N.º 2449/08.1TBFAF.G1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


- DE 09-02-2017, PROCESSO N.º 59/14.3T8BGC-A.G1.
Sumário :
1. A solidariedade (passiva) de uma obrigação faculta ao credor o direito de exigir de cada um dos devedores, por si só, a prestação integral (art. 512º, nº 1, do CC), mas dessa garantia concedida ao credor, destinada a assegurar maior eficácia ao seu direito, não decorre, necessariamente, em relação a qualquer um dos co-devedores, a perda do benefício do prazo convencionado, em que a regra é o seu estabelecimento a favor do devedor (art. 779º do CC).
2. E daí que o legislador tenha preceituado, supletivamente, que «a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor» (art. 782º do CC), sem distinguir/excluir os solidariamente responsáveis, pelo que, não obstante não ser lícito ao devedor solidário demandado opor o benefício da divisão (art. 518º do CC), a solidariedade da obrigação, por si só, não confere ao credor o direito de declarar o vencimento imediato da dívida ainda existente perante o co-obrigado a quem não se estenda a causa que determine a perda do benefício do prazo quanto a outro.
3. Não se apurando a vontade real do declarante, a declaração deve valer com o sentido que um declaratário normal (medianamente instruído, diligente e sagaz), colocado na posição do declaratário efectivo, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, atendendo a todas as circunstâncias do caso concreto, que aquele teria tomado em conta, e demais elementos que contribuam para o conhecimento da vontade real do declarante (a finalidade visada pelo negócio, o percurso das negociações entabuladas e as circunstâncias antecedentes ou contemporâneas da celebração do negócio, os usos e os costumes por esta recebidos, e o teor literal do negócio).
4. Com tais pressupostos, a cláusula (prévia e unilateralmente elaborada pelo banco e subscrita sem prévia negociação individual) de um contrato de mútuo com hipoteca em que consta (nomeadamente) «…Assiste ainda à “IC” o direito de pôr termo ao contrato e exigir o integral reembolso daquilo que lhe for devido por força do mesmo, se o “Mutuário” … se tornar insolvente» não permite afirmar que os outorgantes, contra o supletivamente estatuído, pretenderam, clara e seguramente, reconhecer ao banco o direito de poder pôr termo ao contrato e exigir de qualquer dos ex-cônjuges mutuários a integral satisfação das prestações vincendas, uma vez declarada a insolvência da ex-mulher do executado (cf. art. 91º do CIRE), sem qualquer repercussão na garantia real que onerava o imóvel, dado que este, na partilha subsequente ao divórcio daqueles, foi adjudicado apenas ao executado, que assumiu a dívida em questão e cumpriu pontualmente o contrato.
Decisão Texto Integral:

                                                                                             

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           


Banco AA moveu execução a BB para obter deste o pagamento das quantias de € 42.428,89 e de € 14.426,09, acrescidas de juros e de sobretaxa moratória, que disse serem-lhe por ele devidas, em virtude dos contratos de mútuo com hipoteca celebrados em 17-07-2007 com o mesmo e a sua então mulher e de esta ter sido declarada insolvente em 8-01-2014.
O executado veio opor-se, alegando, em suma, que, na sequência da dissolução por divórcio de 22-09-2009 do casamento que manteve com a também mutuária CC, o imóvel que tinha sido a casa de morada de família foi adjudicado ao embargante, que assumiu o inerente passivo e sempre cumpriu pontualmente as suas obrigações para com a embargada atinentes ao invocado crédito hipotecário. Assim, sustentou que a insolvência da sua ex-mulher não lhe pode ser oposta e que, tendo procurado solucionar todas as questões suscitadas junto da agência bancária da embargada, esta actuou com violação dos ditames da boa-fé e com abuso de direito.

Foi proferida sentença, julgando procedente a oposição e determinando a extinção da execução.

A Relação julgou improcedente a apelação interposta pela exequente e confirmou a sentença.

Inconformada, a exequente interpôs revista excepcional desse acórdão, admitida pela competente Formação, cujo objecto delimitou com conclusões em que suscita a questão de saber se, mediante a cláusula 16ª (ponto 3) dos contratos dados à execução, interpretada de acordo com o critério da impressão do destinatário, os contraentes convencionaram estender ao co-obrigado ora executado a perda do benefício do prazo advinda da declaração de insolvência da mutuária sua ex-mulher (art. 91º do CIRE), assim afastando o regime supletivo consagrado no art. 782º do CC.

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Importa apreciar e decidir a questão enunciada, para o que releva, em suma e com maior saliência, a seguinte factualidade:
a) - Em 17-07-2007, a exequente celebrou com o executado e a então mulher deste dois contratos de mútuo mediante os quais lhes emprestou e entregou as quantias de, respectivamente, € 50.000 de 17.000€, que os mutuários se obrigaram a restituir em 360 prestações mensais e sucessivas, com juros e sobretaxa que convencionaram, tendo sido constituída hipoteca sobre o imóvel identificado no título para garantia dos empréstimos.

b) - Da cláusula XVI de tais contratos consta (nomeadamente): «…Assiste ainda à “IC” o direito de pôr termo ao contrato e exigir o integral reembolso daquilo que lhe for devido por força do mesmo, se o “Mutuário” deixar de cumprir qualquer obrigação contratual, ou se se verificar qualquer das situações previstas no art. 780º do Código Civil, designadamente se o “Mutuário” se tornar insolvente ou se, por causa que lhe seja imputável, diminuírem as garantias do crédito ora concedido».
c) - Em 22-09-2009, foi dissolvido por divórcio o aludido casamento, data em que também foi efectuada partilha dos bens comuns do ex-casal, tendo a fracção autónoma destinada a habitação sobre que fora constituída a mencionada hipoteca sido adjudicada ao executado e este assumido a responsabilidade pela satisfação do crédito da ora exequente.
d) - Em 8-01-2014, foi declarada a insolvência da ex-mulher do executado, no âmbito de cujo processo a exequente reclamou os créditos emergentes dos aludidos contratos.
e) - Em 21-01-2014, a exequente informou o executado de que todas as quantias depositadas na instituição e de que fosse co-titular ficariam indisponíveis e, em 10-02-2014, o executado solicitou àquela esclarecimentos sobre essa impossibilidade de movimentação.
f) - Em 5.05.2014, a exequente informou o executado que «a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente», pelo que considerava vencidas as responsabilidades emergentes de tais contratos.
 g) - Em 16-04-2015, a exequente comunicou ao executado para proceder ao pagamento das quantias totais de € 45.174,36 e de € 15.358,33.

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Neste recurso, a essência da controvérsia reside no alcance que a referida declaração de insolvência da mutuária CC acarretou em relação ao co-mutuário e ora executado, perante o teor do clausulado supra mencionado na al. b).
Como se viu, o executado defendeu-se da pretensão executiva, dizendo que a insolvência da sua ex-mulher, CC, não lhe pode ser oposta porque o imóvel hipotecado lhe foi adjudicado, tendo assumido o passivo inerente ao crédito invocado, e sempre cumpriu pontualmente as suas obrigações para com a embargada.
Por sua vez, a exequente sustentou que: por um lado, sendo qualquer um dos seus co-devedores solidariamente responsável pela integralidade da dívida (indivisível), «a declaração de insolvência de qualquer um dos mutuários» determinou o vencimento imediato da mesma em relação a ambos, já que essa declaração manifesta a existência de uma quebra de confiança que justifica o direito de exigir o imediato pagamento da dívida; e, por outro, o referido clausulado, de acordo com o critério da impressão do destinatário, deve ser interpretado de modo a considerar-se que as partes afastaram o regime legal supletivo plasmado no art. 782º do CC, convencionando que a perda do benefício do prazo se estenderia ao co-obrigado ora executado, não declarado insolvente.
Vejamos.
A recorrente sustenta, em primeira linha, que a declaração da insolvência de um dos mutuários determinou o vencimento imediato da respectiva obrigação em relação a ambos porque qualquer deles é solidariamente responsável pela integralidade da dívida.
O art. 91º do CIRE, citado pela recorrente, sob a epígrafe “Vencimento imediato de dívidas”, prevê no seu enunciado que a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente (não subordinadas a uma condição suspensiva) ([1]). Portanto, a insolvência jurídica do devedor, decretada no respectivo processo, faz desencadear, ope legis, o vencimento automático de todas as dívidas.
Mas, o citado art. 782º prescreve que «a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia».
É certo que a solidariedade (passiva) da obrigação faculta ao credor o direito de exigir de cada um dos devedores, por si só, a prestação integral (art. 512º, nº 1, do CC). Contudo, dessa virtualidade inerente à natureza da obrigação não decorre, necessariamente, o efeito pretendido no recurso quanto à perda do benefício do prazo convencionado em favor do devedor.
Realmente, estamos perante dois planos distintos, com efeitos jurídicos também díspares: um, o de uma garantia concedida ao credor, destinada a assegurar maior eficácia ao seu direito, que pode ser exercido integralmente contra qualquer um dos co-devedores; outro, o do chamado tempo do cumprimento ou prazo da prestação, em que a regra é o seu estabelecimento a favor do devedor (art. 779º do CC).
E daí que o legislador tenha estatuído a regra – ainda que supletiva, como diremos – de que «a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor», sem distinguir/excluir os solidariamente responsáveis: não obstante não ser lícito ao devedor solidário demandado opor o benefício da divisão (art. 518º do CC), a solidariedade da obrigação, por si só, não implica a perda do benefício do prazo para o co-obrigado relativamente ao qual não se estenda a causa que determine tal perda quanto a outro.
A exequente reclamou do executado as prestações ainda em dívida nos empréstimos concedidos ao mesmo e à sua ex-mulher, fundando essa sua pretensão apenas na insolvência desta co-mutuária para considerar vencidas todas aquelas prestações, face ao disposto no art. 91º do CIRE.
Ora, como vimos, em princípio, por força do disposto no citado art. 782º, a insolvência de um dos mutuários não comunica a sanção da perda do benefício do prazo ao outro mutuário, ainda que responsável solidário, mas não insolvente, pelo que, ao abrigo da lei, o credor não tem o direito de declarar o vencimento imediato da dívida ainda existente àquela data perante este co-mutuário, desde que, evidentemente, não se verifique também quanto a ele causa determinante dessa perda ([2]).
Por conseguinte, a exequente/recorrente não dispunha de fundamento legal para considerar vencidas todas as prestações ainda em dívida e interpelar o executado para o respectivo pagamento, como o fez [cf. alínea g) supra], ou, muito menos, para exigir em acção executiva o respectivo pagamento com esse fundamento.
Assim, improcede esta sua linha de argumentação.

É consensualmente admitido que o disciplinado no citado art. 782º cede em face de convenção que arrede, claramente, o respectivo regime legal, que, por isso, assume natureza supletiva (art. 405º, nº 1, do CC).
Todavia, adiantamos já, não tem bom fundamento a segunda via em que se estriba a recorrente ao considerar que as partes afastaram o regime legal supletivo plasmado naquele normativo, convencionando que a perda do benefício do prazo se estenderia ao co-obrigado ora executado, apesar de não declarado insolvente.
Concordamos com o essencial do raciocínio exposto pela Relação quando entendeu que a interpretação da cláusula em que a recorrente procura arrimo, considerando o seu teor literal (art. 238º do CC), o critério objectivista (art. 236º nº 1 do CC) e o critério do maior equilíbrio das prestações (art. 237º do CC), não permite o alcance que a mesma propõe, ou seja, que os contraentes teriam estipulado a perda do benefício do prazo em relação aos dois mutuários pela insolvência de um deles.
Realmente, a cláusula aludida no recurso não expressa, com segurança bastante, a vontade de os contraentes estipularem que, perante a verificação de uma situação com os contornos da aqui em apreço, também o co-obrigado ora executado perderia o benefício do prazo convencionado, ou seja, o benefício de cumprir diferida e escalonadamente (em prestações) a obrigação a que se encontrava adstrito.
E assim é pelas razões que passamos a sintetizar.
Sendo incontroverso que nestes autos nada se apurou, factualmente, sobre qual tenha sido a vontade real comum dos pactuantes subjacente à emissão da questionada declaração negocial, cabe averiguar se na decisão recorrida foram respeitados os critérios normativos consagrados na lei (arts. 236º a 238º do CC), como parâmetros para a pertinente actividade interpretativa, por se tratar de matéria de direito, sujeita à fiscalização deste Tribunal de revista ([3]).
Como ponderou o acórdão desta Secção de 09-05-2006 ([4]), «a fixação do sentido da declaração negocial, quando não seja conhecida a vontade real dos outorgantes, envolve já um juízo sobre matéria de direito, o qual pode ser objecto de censura pelo Supremo Tribunal, em recurso de revista». «Apurar a vontade hipotética, virtual ou conjectural pode caber no âmbito da revista por envolver um juízo sobre matéria de direito (…) Este último elemento passa por um exercício de interpretação do contrato, seguindo a teoria da impressão do destinatário (…), mas tendo em atenção a letra do negócio (há que haver um mínimo de correspondência com o texto (…), as circunstancias em que foi celebrado, o tempo e o lugar, o fim visado e o tipo negocial (cf. Dr. Luís Carvalho Fernandes, "Teoria Geral do Direito Civil", II, 344)».
Assim, a assimilação e aquisição do conteúdo das declarações negociais vertidas num contrato implicam uma tarefa ou actividade intelectiva sujeita a regras e critérios de exegese delineados nos citados normativos e, em especial, naquele art. 236º do CC. De tais critérios resulta que aquisição do sentido da declaração implica a sua averiguação pela ordem seguinte: 1º a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário; 2º o conhecimento da vontade real do outro contraente; 3º o sentido normal da declaração.
Na verdade, não se apurando a vontade real do declarante ou o conhecimento da vontade real do outro contraente, a declaração deve valer com o sentido que um declaratário normal (medianamente instruído, diligente e sagaz), colocado na posição do declaratário efectivo, possa deduzir do comportamento do declarante, atendendo a todas as circunstâncias do caso concreto, que aquele teria tomado em conta, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele ([5]).
Contudo, tratando-se de negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (como estipula o art. 238º), ou seja, para que possa valer, o sentido “atribuído pelo declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a declaração ([6]).
Acompanhamos, pois, a feliz síntese do Acórdão deste Tribunal de 12/6/2012 ([7]):
«As regras constantes dos arts. 236.º a 238.º do CC constituem directrizes que visam vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela actividade interpretativa, e o que basicamente se retira do art. 236.º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). No entanto, a lei não se basta com o sentido realmente compreendido pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratário).
Em termos práticos, o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição do declaratário real.
Se não se afigurar viável chegar a um resultado suficientemente claro sobre a interpretação do negócio jurídico, pois tanto a 1.ª como a 2.ª instâncias, raciocinando sobre os mesmos dados de facto e aplicando-lhes idênticas regras de direito, tiraram consequências opostas - sendo certo que de nenhuma delas se pode dizer, com segurança, não ter captado o sentido objectivo correspondente à impressão do destinatário - há que lançar mão do art. 237.º do CC, que dispõe para os casos duvidosos([8]).
Por fim, registam-se duas breves notas:
Na interpretação de um contrato, «deve buscar-se não apenas o sentido das declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, mas procurar-se o sentido juridicamente relevante daquele contexto, atendendo, em especial, à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a celebração do contrato ou são contemporâneas das mesmas, às negociações entabuladas pelas partes e às finalidades por elas prosseguidas, ao próprio tipo negocial, à lei, aos usos e costumes, e à posição assumida pelas partes na concretização do negócio» ([9]).
E o conceito de declaratário normal supõe, por um lado, a capacidade para apreender o conteúdo da declaração, e, por outro, a diligência média para captar todos os demais elementos que, para além daquele conteúdo, contribuam para o conhecimento da vontade real do declarante, entre os quais: a finalidade visada pelo negócio; o percurso das negociações entabuladas e as circunstâncias antecedentes ou contemporâneas da celebração do negócio; os usos e os costumes por esta recebidos; e, naturalmente, o teor literal do negócio.
Balizados os termos da interpretação da declaração contratual, perante a matéria assumida pela decisão recorrida como provada neste processo, quanto à questionada estipulação e ao seu enquadramento fáctico, cumpre determinar o sentido juridicamente relevante da declaração negocial que no caso ajuizado a exequente e o executado (e a sua ex-mulher) produziram, em conformidade com as expostas directrizes consagradas na lei.
Como se retira do acima explanado, como regra, a insolvência de um dos mutuários não comunicaria a sanção da perda do benefício do prazo ao outro mutuário.
Por outro lado, a perda pelo devedor do benefício do prazo em relação às prestações ainda em dívida e a consequente exigibilidade do seu cumprimento imediato justificam-se com a quebra da relação de confiança – o que a própria recorrente evoca – em que assenta o plano de pagamento calendarizado, mas que é inerente à verificação de uma qualquer das faltas legalmente previstas como causais daquela quebra: insolvência do devedor, diminuição, por causa imputável ao devedor, das garantias do crédito, ou falta de realização de uma ou mais prestações (arts. 780º e 781º do CC).
Ora, no caso dos autos, estaria em questão o afastamento da analisada regra legal supletiva numa situação em que não só não ocorreu falta de cumprimento por parte do mutuário executado como tudo indica que foi a exequente quem o recusou [cf. al e) supra]. Acresce que a dita insolvência foi decretada depois de dissolvido o casamento da co-mutuária com o executado e de efectuada a partilha dos bens comuns do ex-casal, no âmbito da qual a fracção autónoma onerada com a garantia real de que gozava o crédito da exequente tinha sido adjudicada ao executado, que também assumira a responsabilidade pela satisfação de tal crédito. Por isso, a insolvência da co-mutuária não acarretou a diminuição substancial das garantias do crédito da exequente, designadamente em nada buliu com a garantia real de que o mesmo gozava, na medida em que aquela não era já titular de qualquer direito relativo ao bem onerado e, por isso, o mesmo não foi objecto de apreensão no processo em que a insolvência foi decretada.
O acórdão do TRG de 9-02-2017 (P. 59/14.3T8BGC-A.G1), que fundamentou a admissão desta revista excepcional, defrontou-se com a bem diferente situação decorrente de uma declaração de insolvência que recaiu sobre um dos obrigados que era, simultaneamente, titular de quota-parte da propriedade do imóvel hipotecado como garantia do crédito da aí exequente, a qual, por isso, fora apreendida no processo de insolvência. Esse circunstancialismo autorizou aquele Tribunal a concluir: «se a quota-parte do imóvel dado de garantia pertença do devedor insolvente foi apreendida para a massa insolvente é claro que a garantia que o credor tinha ficou diminuída, pois ficando o prédio “fracionado” a respectiva venda será mais difícil e menos rentável, sendo certo que conforme resulta do documento proveniente da Conservatória de registo predial existem outros credores com ónus registados sobre a mesma quota parte».
Estamos, pois, perante um caso com contornos nada semelhantes aos do decidido naquele outro processo da Relação de Guimarães, uma vez que, aqui, a garantia inerente à hipoteca permaneceu incólume, não sendo, sequer, ponderável a quebra da relação de confiança como fundamento do direito que a exequente aqui pretendeu exercer: à luz das regras da boa-fé ([10]), nada nos autos justifica, em relação ao executado, a perda da confiança em que assentara o acordo de pagamento diferido e escalonado no tempo e, por isso, a perda do benefício do prazo quanto a todas as prestações futuras.
Assim sendo, a pretensão da recorrente só assumiria um qualquer significado perceptível se se pudesse afirmar que os outorgantes do questionado pacto, contra o que normalmente sucede, pretenderam, clara e seguramente, reconhecer o direito de aquela poder pôr termo ao contrato e exigir de qualquer dos mutuários a integral satisfação das prestações vincendas, uma vez declarada a insolvência de um deles, ainda que esta se não repercutisse na garantia real do crédito.
Ora, um tal resultado interpretativo, para além de não colher qualquer sentido perante a apontada razão de ser do explanado complexo normativo, também não teria um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso: a declaração escrita, para mais aposta num típico contrato de adesão – com cláusulas prévia e unilateralmente elaboradas e subscritas sem prévia negociação individual –, está muito longe de ser idónea a tal putativo reconhecimento, dado que no atinente a esse tema previa apenas a hipótese de «o “Mutuário” se tornar insolvente».

Por conseguinte, improcede o recurso.
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Síntese conclusiva:
1. A solidariedade (passiva) de uma obrigação faculta ao credor o direito de exigir de cada um dos devedores, por si só, a prestação integral (art. 512º, nº 1, do CC), mas dessa garantia concedida ao credor, destinada a assegurar maior eficácia ao seu direito, não decorre, necessariamente, em relação a qualquer um dos co-devedores, a perda do benefício do prazo convencionado, em que a regra é o seu estabelecimento a favor do devedor (art. 779º do CC).
2. E daí que o legislador tenha preceituado, supletivamente, que «a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor» (art. 782º do CC), sem distinguir/excluir os solidariamente responsáveis, pelo que, não obstante não ser lícito ao devedor solidário demandado opor o benefício da divisão (art. 518º do CC), a solidariedade da obrigação, por si só, não confere ao credor o direito de declarar o vencimento imediato da dívida ainda existente perante o co-obrigado a quem não se estenda a causa que determine a perda do benefício do prazo quanto a outro.
3. Não se apurando a vontade real do declarante, a declaração deve valer com o sentido que um declaratário normal (medianamente instruído, diligente e sagaz), colocado na posição do declaratário efectivo, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, atendendo a todas as circunstâncias do caso concreto, que aquele teria tomado em conta, e demais elementos que contribuam para o conhecimento da vontade real do declarante (a finalidade visada pelo negócio, o percurso das negociações entabuladas e as circunstâncias antecedentes ou contemporâneas da celebração do negócio, os usos e os costumes por esta recebidos, e o teor literal do negócio).
4. Com tais pressupostos, a cláusula (prévia e unilateralmente elaborada pelo banco e subscrita sem prévia negociação individual) de um contrato de mútuo com hipoteca em que consta (nomeadamente) «…Assiste ainda à “IC” o direito de pôr termo ao contrato e exigir o integral reembolso daquilo que lhe for devido por força do mesmo, se o “Mutuário” … se tornar insolvente» não permite afirmar que os outorgantes, contra o supletivamente estatuído, pretenderam, clara e seguramente, reconhecer ao banco o direito de poder pôr termo ao contrato e exigir de qualquer dos ex-cônjuges mutuários a integral satisfação das prestações vincendas, uma vez declarada a insolvência da ex-mulher do executado (cf. art. 91º do CIRE), sem qualquer repercussão na garantia real que onerava o imóvel, dado que este, na partilha subsequente ao divórcio daqueles, foi adjudicado apenas ao executado, que assumiu a dívida em questão e cumpriu pontualmente o contrato.
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Decisão:
Nos termos expostos, negando a revista, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.          


Lisboa, 16/5/2018


Alexandre Reis

Lima Gonçalves

Cabral Tavares


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[1] Aliás, também o art. 780º do CC prescreve que, «Estabelecido o prazo a favor do devedor, pode o credor, não obstante, exigir o cumprimento imediato da obrigação, se o devedor se tornar insolvente, (…) ou se, por causa imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito».
[2] Sobre esta matéria, esclareceu A. Varela, in D. Obrigações, Vol. II, 5ª ed., p. 55: «A perda do beneficio do prazo, nos termos previstos pelo artigo 780.º, pode resultar da insolvência de um só dos devedores, quando eles forem vários, ou ser devida a facto imputável também só a um ou alguns deles. Quando assim for, mesmo que a dívida seja solidária, a sanção aplicável ao devedor directamente em causa não se estende aos outros co-obrigados. Essa seria a solução imposta pelos princípios fundamentais da solidariedade, em matéria de meios pessoais de defesa. Mas o artigo 782.º não hesitou em consagrá-la aberta e directamente, dizendo que a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor.».
[3] Como é sabido, o STJ é, organicamente, um Tribunal de revista, pelo que, fora dos casos previstos na lei, apenas conhece de matéria de direito (art. 46º da LOSJ), sendo a sua competência para a cognoscibilidade, em matéria de recurso (de revista), circunscrita a questões de direito (arts. 674º, nº 3, e 682º, nº 2, do CPC) e não abarcando a matéria de facto nem as provas em que assentou a decisão que a fixou.
[4] P. 06A1003.
[5] Os resumidos critérios consagram a vulgarmente denominada teoria da impressão do declaratário (Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 418), segundo a qual «objectivo da lei é, em tese geral, o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir» (A. Varela e P. de Lima, em CC, Anot., I, p. 1529.

[6] Esse sentido sem correspondência mínima no texto pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (art. 238º nº 2).
[7] P. 14/06.7TBCMG.G1.S1.
[8] Também o Acórdão deste Tribunal de 31-05-2012 (3671/09.9TBPTM-A.E1.S2) concluiu: «Tratando-se de negócio formal, a declaração há-de valer com o sentido nela objectivado, apreensível por um destinatário medianamente sagaz e diligente, mas dotado das informações de que o destinatário real efectivamente tivesse, desde que tal sentido tenha um mínimo de correspondência no texto (excepto se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade)»

[9] Acórdão desta Secção de 16-04-2013 (2449/08.1TBFAF.G1.S1), citando Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6.ª ed., 2010, p. 547.
[10] É sobejamente reconhecido que a boa-fé, pela qual as partes devem pautar a sua conduta, consubstancia um princípio subjacente a todas as fases da vida do contrato: nos seus preliminares e formação, na sua integração, na sua alteração e no seu cumprimento (arts. 227º, 239º, 437º e 762º do CC), sendo que, se a violação desse princípio for manifesta, é ilegítimo o exercício do direito contratualmente assegurado (art. 334º CC). A razão de ser de as partes deverem adoptar comportamentos conformes às regras da boa-fé está na tutela da confiança e da expectativa criada entre as partes em todo o percurso negocial, mesmo antes de ter surgido qualquer contrato, ou seja, tanto na fase tendente à celebração do contrato, como na da sua conclusão e execução: «Toda a conduta, todo o agir ou interagir comunicativo, além de carrear uma pretensão de verdade ou de autenticidade (de fidelidade à própria identidade pessoal) desperta nos outros expectativas quanto à futura conduta do agente» e «todo o agir comunicativo implica uma auto-vinculação (uma exigência de fidelidade à pretensão que lhe é inerente), na medida em que desperta nos outros determinadas expectativas quanto a uma conduta futura. Mas esta auto-vinculação não tem que ter em todos os casos a mesma força» (Baptista Machado, in RLJ 117º-233).