Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2072/06. 5TBAVR.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
SINAL
MORA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - No contrato-promessa de compra e venda, o sinal consiste na coisa ou quantia pecuniária que o promitente-comprador entrega ao promitente-vendedor e que normalmente desempenha a dupla função de confirmar o contrato, dando para o exterior uma prova ou sinal da sua celebração e existência, ao mesmo tempo que antecipa a entrega parcial ou total do preço convencionado para o futuro contrato de compra e venda.
II - Apesar da mora em que se constituiu a Ré promitente-vendedora, se a A. manteve interesse no negócio prometido, que acabou por se efectivar nas condições convencionadas, subsistindo, pois, o contrato-promessa, mantiveram-se as obrigações dele decorrentes, funcionando o sinal (no montante total de 106.243€) como mera antecipação do preço devido, que a mora não desqualifica.
III - Apesar dos cerca de 15 meses que, por culpa da R., se atrasou o cumprimento do contrato-promessa, não existe enriquecimento sem causa desta à custa da A., pois a Ré utilizou normalmente a parte do preço recebido, que lhe pertencia, e que a A. sempre teria de despender se queria, como quis, realizar a compra e venda definitiva. A referida deslocação patrimonial não está obviamente carecida de causa, porque a encontra no contrato-promessa em questão e que foi cumprido. Tal causa nunca deixou de existir, não obstante a mora, e produziu os seus efeitos normais.
Decisão Texto Integral:

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro,
AA,
intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra
BB Construções Limitada,
pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 15.602.54€, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos em consequência do atraso na celebração da escritura pública de compra e venda em relação à data prevista no respectivo contrato-promessa.
Alegou muito resumidamente::
- Em 13/9/2002, a A. e a Ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda pelo qual a Ré se obrigou a vender à A. e esta a comprar-lhe, um apartamento do tipo T3 no 00º andar direito e uma garagem na cave do edifício designado por “Edifício ...”, construído no lote 10 da denominada “Urbanização ... ”, na Rua do mesmo nome, em Verdemilho;
- O preço convencionado foi de 124.700€;
- Em 20/9/2002, a A. e a Ré acordaram num aditamento ao dito contrato, pelo qual, atentas algumas alterações pretendidas pela A. o preço global foi acrescido de 52.373.25€;
- Nos termos da cláusula 2ª do aludido contrato ficou consignado que se previa a realização da escritura de compra e venda “até 31 de Outubro de 2003”;
- E foi na perspectiva e na convicção de que o andar objecto do negócio estaria concluído e lhe seria efectivamente entregue em 31/10/2003, que a A., celebrou o contrato-promessa em causa;
-Na sequência do referido contrato e respectivo aditamento, a A. nessa convicção, entregou à Ré, como sinal (e seu reforço) e princípio de pagamento a quantia global de 106.234.94 €;
- Por culpa da Ré a escritura só veio a realizar-se em 20/1/2005;
-Ora, com os atrasos na conclusão da fracção e na celebração da escritura pública a A. teve de continuar a pagar a renda da casa onde vivia, no que despendeu 3.750.00€, sofreu um acréscimo de despesas em deslocações no valor de 1.890.00€, gastou com tais deslocações escusadas cerca de 125 horas, o que deve ser compensado com a quantia não inferior a 2.017,50 e, por se ter de deslocar ao Centro Integrado de Formação de Professores, em Aveiro, percorreu de automóvel mais 853,2 Km e perdeu tempo, o que deve ser ressarcido com as importâncias de 298,62 € e 148,42 €, respectivamente;
-Por outro lado, quando a A. entregou à Ré, a título de sinal e princípio de pagamento a soma total de 106.243,94 €, fê-lo, na pressuposição de que a fracção lhe seria entregue e vendida até 31/10/2003, pelo que, tendo ocorrido um atraso de cerca de 15 meses a A. deixou de auferir os frutos civis que tal quantia lhe poderia proporcionar, no valor que computa em 7.498.00€, quantia com a qual a Ré se enriqueceu à sua custa.
Contestou a Ré e replicou a A.
Saneado o processo, fixada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória procedeu-se a julgamento.
Proferida a sentença final foi a acção julgada parcialmente procedente, condenando-se a Ré a pagar à A. a quantia global de 7.422,02 €, relativa aos encargos suportados pela A. com a renda da casa, acréscimo de Km percorridos e tempo gasto, por causa da mora da Ré.
Porém, não se atribuiu à A. qualquer indemnização relativa aos frutos civis da quantia entregue a título de sinal e princípio de pagamento, com os quais a Ré, alegadamente, se teria enriquecido à custa da A.
Recorreram quer a A. quer a Ré, mas ambas sem êxito, porquanto a Relação, julgando improcedentes ambas as apelações, confirmam a sentença recorrida.
Inconformada, é agora a A. que vem recorrer para este S.T.J.


Conclusões
Apresentadas tempestivas alegações, formulou a recorrente as seguintes conclusões:
1 – A utilização pela Ré de 60% do preço da venda prometida – ou seja 106.243,24€ - ao longo dos 15 meses que, por sua culpa exclusiva, tardou o cumprimento do contrato-promessa, em relação ao prazo convencionado, traduz-se num enriquecimento ilegítimo da Ré à custa da recorrente.
2 – Efectivamente, durante mais 15 meses do que o prazo acordado, a recorrida financiou-se com o referido dinheiro, embolsando o valor dos respectivos frutos civis.
3 – A douta sentença recorrida deveria, pois, ter condenado a recorrida a pagar à recorrente o valor dos mencionados frutos civis.
4 – Apesar de se ter entendido que a prova produzida não permite apurar, com rigor, o valor do enriquecimento da recorrida, sempre tal valor deveria ter sido fixado pelo acórdão recorrido, por recurso às regras da equidade.
5 – E, se assim não se entendesse, sempre a liquidação do valor do enriquecimento deveria ser remetido para execução de sentença.
6 – O acórdão recorrido violou o disposto nos Art.ºs 473, 479 e 798 do C.C.,
Na sua resposta defende a recorrida a confirmação do decidido pela Relação.


Os Factos
Entre a inúmera factualidade provada, interessa apenas considerar aquela que é relevante para a decisão do recurso e que é a seguinte:
- No dia 13/9/2002 a A. e Ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda, prometendo esta vender àquela um apartamento do tipo T3 no 4º andar direito de uma garagem na cave do edifício designado por “Edifício ...”, construído no lote 10 da denominada “Urbanização ...” – Verdemilho – Aveiro;
- O preço convencionado foi o de 124.700 €;
- Em 20/9/2002 as partes acordaram num aditamento ao dito contrato, dado certas alterações pretendidas pela A., elevando o preço convencionado em mais 52.373.25 €;
- Nos termos desse aditamento, o sinal e princípio de pagamento foi reforçado em 25.812.27€, que a A. se obrigou a pagar no dia 31/3/2003 e 26.560.98€ a pagar no dia 30/6/2003;
- Na sequência do acordado no contrato-promessa e respectivo aditamento a A. entregou à Ré, a título de sinal (e seu reforço) e princípio de pagamento as quantias seguintes:
- Em 13/9/2002 – 53.121,97€,
- Em 31/3/2003 – 748,72€ e 25.812,27€
- Em 28/6/2003 – 26.560.98€.
- A A. autorgou o contrato-promessa e respectivo aditamento na convicção de que o andar objecto do negócio estaria concluído e que a fracção lhe seria entregue até 31/10/2003 (cfr. Resposta conjunta aos quesitos 1ª a 5ª);
- A experiência da Ré na área da construção permitia-lhe calcular com grande aproximação, o tempo de construção de um imóvel e da respectiva legalização, tendo em conta os meios que, em cada caso, afecta a tais fins.
(cof. Respostas aos quesitos 6º e 7º);
- À data da celebração do contrato o edifício de que faz parte o apartamento prometido vender à A. encontrava-se já com a estrutura concluída, o que facilitava a previsão da data em que a venda prometida podia ser efectuada.
(cof. Resposta ao quesito 8º).
- Porém, a escritura de compra e venda só veio a ser realizada em 20/1/2005.
- Entre 31/10/2003 e 20/1/2005, a Ré dispôs da quantia de 106.243,94€, que a A. lhe entregou como sinal (e reforço do sinal), correspondente a 60% do preço total do apartamento.
No mais, dão-se aqui por reproduzidos os restantes factos provados.


Fundamentação.
Está definitivamente julgado que a Ré, ao não celebrar a escritura de compra e venda até 31/10/2003, incorreu em mora a partir dessa data.
A questão aqui a decidir é apenas a de saber se a utilização pela Ré dos 106.234,94€ que a A. lhe entregou a título de sinal e princípio de pagamento, no âmbito do contrato-promessa que ambas outorgaram, durante o período da mora, (de 31/10/2003 a 20/1/2005 – data da outorga da escritura), não se traduzirá num enriquecimento ilegítimo da Ré à custa da A/recorrente, e por conseguinte, se deve a Ré restituir à A., os proveitos (correspondentes aos frutos civis) que esse dinheiro produziu.
As instâncias já responderam com acerto a tal questão, mas a A. insiste, com a mesma argumentação, ter direito a ser compensada dos frutos civis que a quantia entregue à Ré como sinal e princípio de pagamento, produziria durante o período da mora.
Não lhe assiste qualquer razão.
Como se sabe, no contrato-promessa de compra e venda, o sinal consiste na coisa ou quantia pecuniária (como é o caso concreto) que o promitente comprador entrega ao promitente vendedor e que normalmente desempenha a dupla função de confirmar o contrato, dando para o exterior uma prova ou sinal (signum) da sua celebração e existência, ao mesmo tempo que antecipa a entrega parcial ou total do preço convencionado para o futuro contrato de compra e venda (cof. Calvão da Silva – Sinal e Contrato-Promessa).
Aliás, tratando-se de contrato-promessa de compra e venda, presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço (Art.º 441 do C.C.).
Portanto, o sinal com as características referidas, tem natureza inequivocamente confirmatória, como é a regra geral e se deve sempre presumir, a menos que da vontade das partes resulte claramente a sua natureza penitencial, porque dirigida a sancionar a faculdade de retractação unilateral de uma ou de ambas as partes.
De tal carácter confirmatório resulta, desde logo, que a importância entregue há-de ser imputada na prestação devida ou restituída quando tal não for possível (Art.º 422º nº1 do C.C.).
Ora, na situação em lide, apesar da mora em que se constituiu a Ré, a A. manteve interesse no negócio prometido, que acabou por se efectivar nas condições convencionadas e por isso, subsistindo o contrato-promessa, mantiveram-se as obrigações dele decorrentes, designadamente a obrigação da Ré de outorgar a escritura de compra e venda..
No que aqui interessa, manteve-se plenamente justificada e válida a parte da contra--prestação devida pela A. pela compra futura da fracção, e que esta entregou à Ré a título de sinal e princípio de pagamento.
Quer dizer, apesar da mora em que incorreu a Ré, nunca esta esteve constituída na obrigação de devolver à A. o sinal passado.
Tal sinal, mantendo-se válido o contrato-promessa à luz do qual foi entregue, representa parte do preço da futura venda, que veio a concretizar-se, pelo que sempre pertenceu à Ré e como tal foi imputado no preço da compra e venda.
Consequentemente a Ré podia dele dispor como melhor entendesse, sem ter de dar satisfações à A e sem que da utilização desse dinheiro pudesse resultar para a A. qualquer prejuízo imputável à mora da Ré, e muito menos qualquer enriquecimento ilegítimo desta à custa da A.
Trata-se, como se disse, de mera antecipação do preço devido, que a mora não desqualifica, desde que a A. permaneceu interessada na realização do negócio prometido, cujo preço sempre teria de pagar.
É claro que a A. podia ter perdido o interesse na prestação da Ré, face à mora, como podia ter convertido essa mora em incumprimento definitivo.
Só então podia pedir a restituição do sinal em dobro.
Não o tendo feito, porque manifestamente manteve interesse no negócio prometido, subsistiu o contrato-promessa, que foi cumprido, mantendo, portanto, o sinal, a sua dupla função já assinalada.
E não tem melhor sorte a acção se se perspectivar a situação em termos de enriquecimento sem causa, como pretende a A.
De facto, a obrigação de restituir fundada no enriquecimento à custa alheia depende da verificação cumulativa dos seguintes três requisitos:
- que se verifique um enriquecimento de alguém;
- que esse enriquecimento careça de causa justificativa e que tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
Por isso, a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente e, de modo especial, tem por objecto o que for indevidamente recebido, ou não for recebido, por virtude de causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (Art.ºs 473 e 479 do C.C.).
Ora, no caso concreto, não há qualquer enriquecimento da Ré à custa da A., nem esta empobreceu.
A quantia entregue a título de sinal teve, como se viu, carácter confirmatório e além disso correspondeu ao pagamento antecipado do preço (no caso, de parte do preço) convencionado para venda prometida, que veio a efectivar-se.
A Ré recebeu tal prestação parcial da A. com toda a legitimidade, e essa legitimidade manteve-se, apesar da mora, atento o interesse da A. na concretização do negócio prometido.
Por conseguinte a Ré utilizou normalmente a parte do preço recebido, que lhe pertencia, sem que daí resultasse qualquer enriquecimento abusivo à custa da A., que sempre teria de despender aquela quantia se queria, como quis, realizar a compra e venda definitiva.
Por outro lado, a referida deslocação patrimonial não está obviamente carecida de causa, porque a encontra no contrato-promessa em questão e que foi cumprido.
Tal causa nunca deixou de existir, não obstante a mora, e produziu os seus efeitos normais.
Seguramente não estamos perante a figura do enriquecimento sem causa por não se verificarem os respectivos requisitos.
Improcedem, por conseguinte, todas as conclusões:
Decisão.
Termos em que acordam neste S.T.J. em negar revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 7 de Maio de 2009

Moreira Alves (relator)
Alves Velho
Moreira Camilo