Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B660
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
EXECUÇÃO
LIVRANÇA
FALSIDADE
ASSINATURA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200506160006602
Data do Acordão: 06/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5129/03
Data: 10/07/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : Embargada pelo executado a execução de livrança, com fundamento na falsidade da assinatura do título que lhe é imputada, incumbe ao exequente o ónus da prova da veracidade da mesma (artigos 374, n.º 2, e 343, n.º 1, do Código Civil).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. "A", por apenso à execução n.º 11/00 da 1.ª Secção da actual 13.ª Vara Cível de Lisboa, que lhe move o Banco B, S.A., a que sucedeu o Banco ..., S.A., com sede no Porto, deduziu embargos de executado, em 5 de Julho de 2000, alegando a falsidade da assinatura aposta como sendo a sua na posição de (segunda) subscritora da livrança dada à execução - no valor de 5.410.437$00, também subscrita em primeiro lugar por C, como se vê do original a fls. 36 -, carecendo esta, por conseguinte, de força executiva contra ela.

Está separada do marido - o primeiro subscritor do título, também executado (fls. 5/7) - desde Setembro de 1991, pendendo a partir de Setembro de 1999 acção de divórcio litigioso no Tribunal de Família e de Menores de Cascais, e desconhece ademais a relação cambiária em apreço.

Junta fotocópia do Bilhete de Identidade com a sua assinatura, que diz não coincidir com a que lhe é atribuída, requerendo desde logo exame grafológico.

2. O banco exequente contestou por impugnação, no sentido da genuinidade da assinatura (fls. 15/27), e veio na fase do saneador a ser elaborada a especificação e o questionário, dando-se na única alínea A) daquela como assente que o banco é portador da livrança exequenda, e versando o único quesito sobre a questão de saber se a «assinatura que consta em segundo lugar, logo abaixo da assinatura de C, na livrança de fls. 5 dos autos de execução é do punho da embargante».

Procedeu-se à colheita de autógrafos com vista ao exame grafológico no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, o qual resultou inconcludente «em termos de probabilidade - lê-se no relatório respectivo (fls. 35) - quanto à autoria da assinatura suspeita enviada para exame, pelos motivos indicados na(s) alínea(s) a)».

Segue-se efectivamente um conjunto de 5 alíneas com textos pré-elaborados, rezando a seleccionada alínea a) o seguinte:

«a) A assinatura suspeita é pouco extensa e encontra-se traçada de forma ilegível, parcialmente filiforme, incaracterística e com formas pouco definidas, não permitindo observar características susceptíveis de identificar o seu autor.»

3. Prosseguindo o processo a legal tramitação, o quesito há pouco transcrito resultou não provado em julgamento, sem reclamações, e foi proferida sentença final que, considerando não haver o banco logrado a prova da autenticidade da assinatura, julgou os embargos procedentes, declarando extinta a execução quanto à embargante (fls. 59/60).

Apelou o embargado, sem sucesso, tendo a Relação de Lisboa negado provimento ao recurso com desenvolvida fundamentação, confirmando integralmente a sentença.

4. Do acórdão neste sentido proferido, em 7 de Outubro de 2003, traz o banco embargado a presente revista, reproduzindo substancialmente o texto da alegação de apelação, e repetindo à letra as respectivas conclusões, que seguidamente se transcrevem:

4.1. «A embargante faz repousar a sua recusa de pagar na alegação de que a assinatura que consta na letra dada a juízo é uma falsificação grosseira da sua própria assinatura;

4.2. «Quer se entenda serem os embargos uma acção em que a embargante é autora ou, antes, como uma contestação em que a embargante é contestante sempre os factos articulados, atento o preceituado no artigo 516.° do Código de Processo Civil, terão de ser provados pela embargante/aceitante A;

4.3. «Trata-se, acresce ainda, de factos que nada têm a ver com uma qualquer fraqueza intrínseca do título executivo - aqui uma letra - dado à execução;

4.4. «O título é entregue já preenchido ao banco portador pelo que, salvo se o recebeu sabendo que o mesmo estava afectado de nulidades intrínsecas as mesmas não lhe podem ser opostas porquanto as relações entre o banco portador, aqui embargado, desenvolvem-se no domínio das relações imediatas;

4.5. «Ao decidir-se, como se decidiu na douta sentença recorrida, foram violados os artigos 516.° do Código de Processo Civil e 16.° e 17.º ambos da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.»

5. Contra-alega a embargante, pronunciando-se fundadamente no sentido da confirmação do acórdão recorrido.

E o objecto da revista, considerando as conclusões que vêm de se extractar, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste, por conseguinte, na questão da repartição do ónus da prova acerca da autoria da assinatura da livrança imputada à embargante.
II
1. A Relação cingiu-se à decisão de facto da 1.ª instância, cujo teor conhecemos do intróito, para a qual, não impugnada e devendo aqui manter-se inalterada, também se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713 do Código de Processo Civil.

1.1. Nessa base resolveu o acórdão sob recurso a questão que constitui objecto da revista no mesmo sentido em que decidira a 13.ª Vara Cível, concluindo incumbir ao exequente embargado o ónus probatório da genuinidade da assinatura impugnada pela embargante, desenvolvendo, aliás, a questão, dentro do direito aplicável, em elevado nível de ponderação teorética, à luz de reputadas fontes doutrinárias e de jurisprudência representativa deste Supremo Tribunal, de forma a suscitar inteira concordância, quanto à decisão propriamente dita e sua motivação, em que com a devida vénia nos louvamos, na óptica do n.º 5 do artigo 713.º, sem embargo do que adiante se acrescentará.

1.2. Em resumo, pondera com efeito a Relação de Lisboa, citando autorizada doutrina, que «o processo de oposição à execução é, no fundo e na essência, um processo de declaração tendente a verificar se o direito de crédito, expresso formalmente e abstractamente no título executivo na realidade existe» (J. Alberto dos Reis (1) ).

E, assim sendo, «deduzidos os embargos, o que se vai discutir não é a pretensão do executado, pela simples razão de que o executado não traz qualquer pretensão a juízo - a pretensão examinanda, pelo tribunal, será a do exequente assente no título executivo, como meio de demonstração que também é» (Castro Mendes (2) .).

Nestes termos, o embargante ao impugnar como sua a assinatura aposta no título, «impugna directamente o direito do exequente à acção executiva», consubstanciado no título.

Compreende-se por isso que, «posta em causa a validade do título executivo», incumba ao embargado a prova do «facto constitutivo do seu direito» (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil) ou seja, «que o título é válido e a relação jurídica material que lhe deu causa corresponde à realidade dos factos», o que no caso sub iudicio especificamente se polariza na prova da autenticidade da assinatura.

E neste sentido dispõe justamente o artigo 374.º, n.º 2, que, impugnada «a veracidade da assinatura» pela «parte contra quem o documento é apresentado», «incumbe à parte que apresentar o documento - isto é, ao banco exequente embargado - a prova da sua veracidade».

3. Do entendimento exposto dissente o recorrente visado, objectando que o ónus probatório em exame impende ao invés sobre a embargante recorrida.

Desde logo, porque «uma petição de embargos mais não é, em termos jurídico--processuais, do que uma petição», pelo que «o ónus da prova pertence ao autor, ou seja, a embargante».

E a admitir-se, inclusivamente, que se trata «antes de uma contestação da acção executiva», nesse caso estar-se-ia «perante matéria de excepção», pertencendo também nesta tónica à embargante o ónus de excepcionar e de provar as excepções.

3.1. Por nossa parte observamos, em primeiro lugar, que a chave da solução do recorrente se reconduz em derradeiro termo à «regra, cardinal, do processo civil - a que faz explícito apelo no ponto 7. do corpo da alegação -, de acordo com a qual o ónus da prova recai sobre quem alega».

É, todavia, incontroverso, salvo o devido respeito, que não existe em direito processual civil português um semelhante princípio.

O aforismo «quem alega prova», implicando que o ónus probatório se deduziria do ónus de alegação, não tem qualquer correspondência na ordem normativa, que é justamente no sentido inverso (3) .

«Não é a parte que nega os factos invocados pela contraparte - pondera-se doutrinariamente - que está onerada com a prova de que esses factos não são verdadeiros, pelo que da falta ou insuficiência dessa prova não podem resultar para ela quaisquer desvantagens.» (4)

3.2. Por outro lado, a repartição do ónus da prova nos embargos é função da natureza deste processo e, sobretudo, da posição substantiva das partes que a Relação de Lisboa analisou, como vimos, rigorosamente.

Pois bem. Desde logo, o meio de oposição por embargos de executado é um processo de «natureza declaratória». Mas visa «directamente os fins da execução», e a sua «índole meramente instrumental e auxiliar» desta imprime-lhe, por conseguinte, «configuração e regime em vários aspectos diverso do módulo normal dos processos declaratórios», que desaconselha toda a «aplicação desprevenida de institutos próprios do processo declaratório, sem as necessárias cautelas e restrições» (5) .

Neste conspecto, a oposição por embargos não se apresenta como «um elemento intrínseco» da acção executiva «e integrante do título», mas como mera «contra-acção através da qual se pode pôr em causa a execução (6) ..

Não se conclua, porém, da sua «real fisionomia de contra-acção», sublinha o autor que estamos a citar, «que na oposição à execução haja alteração das regras do ónus da prova e que ao executado caiba esse ónus para casos em que lhe não coubesse em acção declaratória».

«Quando o título executivo se não revista de força probatória legal», como é o nosso caso - sendo certo, observa o mestre de Coimbra (7)., que «não há coincidência entre força probatória e força executiva ou exequibilidade», concedendo a lei «força executiva a títulos que não possuem força probatória legal» -, «não é ao executado que compete a prova negativa dos factos constitutivos do direito, mas sim ao exequente a prova da sua existência».

E, não sofrendo alteração a regra do ónus da prova, tem plena aplicação nos presentes embargos a regra do artigo 374, n.º 2, do Código Civil, que faz impender sobre o banco autor a prova da veracidade da assinatura da livrança, como bem se decidiu na Relação de Lisboa.

Neste sentido é a jurisprudência constante dos tribunais superiores, bem ilustrada na ampla recensão trazida ao processo pela embargante na contra-alegação da apelação.

Dir-se-ia, inclusivamente, que o procedimento não deixa de revestir estrutural e funcionalmente a feição de uma acção de declaração negativa, conducente à mesma repartição do ónus probatório por força do artigo 343, n.º 1.

Como já se escreveu, assim se conciliam «os dois interesses em antagonismo: o interesse do credor à pronta realização do seu direito», através de um procedimento executivo fundado na simples «aparência da existência ou da exigibilidade» do mesmo; e as exigências da justiça», o interesse do devedor em «evitar o prosseguimento duma execução irregular ou injusta, ou de assegurar a tutela dos seus direitos» (8)..

4. E, no plano das exigências de justiça, uma derradeira observação justamente não pode deixar de se registar.

Sustenta o banco recorrente no corpo da sua alegação que a questão se coloca inclusivamente a montante do ónus probatório aqui discutido. Mesmo que se entenda que este não impende sobre a embargante, sempre a esta cumpriria o «ónus de traçar a sua letra de forma que seja susceptível de ser examinada», sob pena de incorrer em «falta de cooperação com o tribunal».

Ora, resulta do relatório do exame pericial que a letra foi «traçada de forma ilegível», impossibilitando o órgão encarregado de a estudar de levar a cabo a sua tarefa.

Trata-se a todas as luzes de uma imputação injusta, que deveria ter sido omitida.

Basta considerar os elementos a propósito intencionalmente descritos no intróito para concluir que o recorrente procedeu a uma leitura parcelar da comunicação do Laboratório de Polícia Científica, daí colhendo um sentido deformado do texto.

A embargante foi chamada a exarar autógrafos, sendo a sua assinatura ilegível, como tantas assinaturas, tal a que consta da livrança, e isso não obstou a que o Laboratório efectuasse o exame que no caso foi realizado.
III
Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo embargado recorrente (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 16 de Junho de 2005
Lucas Coelho,
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) Processo de Execução, vol. I, pág. 59.
(2) A Causa de Pedir na Acção Executiva, «Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa», vol. XVIII, pág. 205
(3) Cfr. neste sentido o acórdão deste Supremo Tribunal, de 22 de Janeiro de 2004, na revista n.º 1815/03, 2.ª Secção; e, com mais desenvolvimento, Artur Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil (4.º Volume), coligidas e publicadas por J. Simões Patrício/J. Formosinho Sanches/Jorge Ponce de Leão e revistas pelo Professor, Atlântida, Coimbra, s/d, págs. 123/124.
(4) Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex, Lisboa, 1995, pág. 218
(5) .Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex, Lisboa, 1995, pág. 218.
(6) Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, págs. 44/45, com aplauso do acórdão sob recurso
(7) A Acção Executiva Singular, pág. 37
(8) Anselmo de Castro, uma vez mais, A Acção Executiva Singular, págs. 274/275