Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S052
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
OBRAS EM TELHADOS
Nº do Documento: SJ200704180000524
Data do Acordão: 04/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A realização de obras em telhados só obriga à adopção de medidas de protecção contra quedas em altura quando os mesmos, pela sua inclinação, natureza ou estado de conservação, ou por efeito de condições atmosféricas, ofereçam um efectivo perigo de queda.
2. Subir a um telhado, para estudar a forma como devia ser realizado o trabalho de substituir as placas de fibra transparente que constituíam a cobertura da clarabóia da caixa de escadas do prédio, não é um trabalho que, só por si, implique a adopção de medidas de segurança contra quedas em altura.
3. O facto do trabalhador ter caído sobre a clarabóia que se partiu e de seguida sobre o patamar das escadas do último piso do prédio, não permite concluir pela necessidade da adopção de medidas de segurança.
4. Para determinar essa necessidade, o que releva é o juízo de prognose que devia ser feito antes do trabalhador subir ao telhado.
5. A negligência grosseira corresponde em termos clássicos à culpa grave, a qual pressupõe a omissão pelo agente de um dever de cuidado que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria deixado de observar, ou seja, pressupõe um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil e indesculpável, mas voluntária, embora não intencional. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Na presente acção emergente de acidente de trabalho, a ré Companhia de Seguros Empresa-A foi condenada a pagar ao autor/sinistrado AA a pensão anual e vitalícia de 4.769,93 euros, com início em 14.10.2003 e as quantias de 3.058,64, 3.299,04 e 12,00 euros, a título, respectivamente, de indemnização por incapacidade temporária, de subsídio de elevada incapacidade e de despesas com transportes.

A ré recorreu, arguindo a nulidade da sentença, por alegada oposição entre os fundamentos e a oposição e impugnando a decisão de mérito, por entender que o acidente havia resultado exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, por inobservância das mais elementares regras de segurança, mas o Tribunal da Relação do Porto desatendeu a nulidade e confirmou a decisão.

Mantendo o seu inconformismo, a ré interpôs o presente recurso de revista, tendo concluído as respectivas alegações da seguinte forma:

A – O tribunal a quo alicerça toda a decisão e consequente condenação da recorrente, no singelo facto – premissa – de ter ficado provado que, no momento do acidente, o sinistrado ainda não se encontrava na fase de execução dos trabalhos, mas tão só e apenas na fase dos actos meramente preparatórios relativamente ao início da execução dos trabalhos, pelo que, segundo regras de experiência comum, não é necessário que estejam já previamente instalados dispositivos de segurança.
B – Nem a lei o faz, nem a realidade da vida – de que o julgador nunca pode afastar-se – permite qualquer distinção entre "actos preparatórios" e "início dos trabalhos", pois que, para quem os executa, tudo é trabalho.
C – E tantas são as hipóteses possíveis – repete-se, tanto é trabalho para o operário assentar tijolo como varrer ou limpar a plataforma onde aquele vai ser aplicado – que a sua enumeração seria, de todo, inviável e supérflua.
D – Ainda que se concedesse a possibilidade de destrinça entre execução dos trabalhos e actos meramente preparatórios, é manifesto que tal não é suficiente para se obter o enquadramento legal indispensável à condenação que se proferiu, porquanto as regras de segurança têm necessariamente de ser observadas em qualquer momento dos trabalhos, sob pena das disposições legais que as consagram serem pura letra morta e desprovida de qualquer utilidade e significado.
E – Se a lei impõe que, sempre que haja risco de queda, devem ser adoptadas os meios de segurança – cinto ou arnês de segurança, tábuas de rojo, escadas de telhador, redes de suspensão, etc. – adequados, tal exigência genérica e abstracta impõe-se sempre que se verifique o risco, qualquer que seja a função que se esteja a desempenhar.
F – O facto de o sinistrado estar apenas a realizar o estudo prévio do local de trabalho não pode justificar a demonstrada e comprovada ausência de qualquer medida de segurança, até porque, no caso concreto, o sinistrado optou por realizar esse estudo em cima do telhado, mais precisamente por cima das telhas que cobriam a clarabóia e que necessitavam de ser substituídas.
G – É este o entendimento que claramente resulta do preceituado nas normas de carácter geral relativas à segurança no trabalho e, sobretudo, da alínea g) do art.3.° do D.L. n.º 441/91, de 14 de Novembro, onde se define uma nova abordagem do conceito de prevenção dos riscos profissionais.
H – Assim, para efectuar o estudo prévio do local de trabalho, em cima do telhado, o sinistrado tinha obrigatoriamente de ter instalado os adequados dispositivos de segurança, para evitar a queda, fosse pela utilização de uma adequada plataforma de trabalho, de escadas de telhador, tábuas de rojo ou cinto de segurança, o que não ocorreu.
I – Para efectuar o estudo prévio do local, que mais não é do que parte do trabalho, em segurança, o sinistrado não necessitava – como se inculca na decisão em crise – de montar todos os meios de segurança disponíveis, mas, tão só e apenas, aqueles que se mostrassem adequados à realização do estudo do local de trabalho, em cima do telhado.
J – A realidade dos próprios autos evidencia, sem mais, o nexo causal entre o acidente e a inobservância das aludidas normas de segurança, por parte do sinistrado, como causa geradora do acidente em apreço, a qual só ficaria afastada se o facto, de todo em todo, nada tiver a ver com o dano, dentro de juízos de previsibilidade e segundo critérios da experiência comum – neste sentido Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", 1970, pág. 659.
K – É, pois, à luz deste enquadramento – senso prático, realidades do quotidiano, juízos de probabilidade – que deverá ser ponderada a factualidade dada como assente nos presentes autos em ordem a proferir-se a competente decisão da causa.
L – Provados os factos constantes dos pontos n.os 1, 2, e 7 a 9, outra conclusão se não pode retirar que não seja a de que, se autor tivesse utilizado o cinto de segurança ou tivesse montado uma adequada plataforma sobre a parte do telhado que cobria a clarabóia, sempre evitaria a queda ou pelo menos reduziria o impacto da mesma, quer fosse porque se desequilibrou, quer fosse porque tombou sobre as placas.
M – Dúvidas não restam de que o acidente dos autos ocorreu por inquestionável falta de condições de segurança, decorrentes de negligência grosseira do sinistrado.
O – O acidente verificou-se quando o sinistrado se encontrava no telhado, mais concretamente em cima das telhas que cobriam clarabóia – uma vez que foi desse local que veio a cair (facto n.° 7 da matéria assente) – evidenciando um absoluto desprezo pelo perigo, numa atitude tão temerária como desnecessária, até porque não tinha qualquer necessidade de se colocar sobre aquelas, para efectuar o estudo prévio do local, podendo fazê-lo perfeitamente pela restante área do telhado que estava implantado sobre a laje do prédio e que, portanto, para a hipótese de desequilíbrio ou queda sempre ampararia o sinistrado.
P – O sinistrado era um profissional competente e com reconhecida experiência no seu ramo de actividade, em razão do que lhe bastava observar interiormente a cobertura – telhado e caixilho de madeira envidraçado –, para verificar e constatar que esta estrutura não possuía a menor resistência.
Q – Por outro lado, como impunha a mais elementar prudência, logo no início da análise do local, o sinistrado deveria ter montado um andaime ou plataforma de trabalho, sob a clarabóia, de modo a poder aceder às telhas pelo interior e, bem assim, a proteger o eventual risco de queda.
R – Ou, em alternativa, caso pretendesse efectuar o estudo do cima das telhas que cobriam a clarabóia deveria ter, previamente, instalado uma rede de protecção sob as telhas de lusalite, a qual, em caso de ruptura daquelas (telhas), sempre evitaria a sua queda desamparada do telhado, o que também não efectuou (facto n.º 9 da matéria assente).
S – O sinistrado sabia, perfeitamente – até por se tratar de facto do conhecimento geral e específico da sua profissão – que a débil resistência que as telhas ofereciam ao peso implicava a adopção de medidas particulares de protecção, tais como plataformas de trabalho, escadas de telhador, tábuas de rojo, redes de suspensão ou em alternativa, com a utilização do cinto de segurança ou arnês que, na hipótese de perda de equilíbrio ou rompimento das telhas, o suspenderia, impedindo a sua queda no solo.
T – Sendo o sinistrado obrigado a movimentar-se a uma altura de cerca de 10 metros – como acontecia na parte do telhado constituída por telhas de fibra transparente – era absolutamente indispensável que usasse o cinto de segurança, o que, na altura, efectivamente não acontecia – facto n.º 8 da matéria assente – em clara infracção ao disposto nos artigos 44.º e 45.° do Regulamento do Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo Decreto n.º 41.821, de 11/8/58, e no n.º 1 do anexo II do D.L. n.º 155/95, de 1 de Julho, conjugado com o art.º 11.° da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril.
U – Assim, só por manifesta incúria, com absoluto desprezo pelo perigo, é que um trabalhador qualificado e experiente – como era o sinistrado – efectua um trabalho a grande altura, em condições de equilíbrio mais que precário, sem previamente se munir do cinto de segurança ou sem antes ter montado uma adequada plataforma de trabalho.
V – Do exposto resulta, assim, que o acidente ficou a dever-se, em exclusivo, a negligência grosseira do sinistrado, por inobservância das mais elementares normas e regras de segurança, o que é conducente à descaracterização do acidente, enquanto sinistro laboral, nos termos do disposto no art.º 7.°, n.º 1, al. b), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.
X – Alias, tendo em consideração a sua qualidade de entidade patronal, uma vez que o sinistrado se fazia acompanhar de um seu trabalhador, constata-se que o mesmo violou igualmente o disposto no n.º 1 e as alíneas a) e c) do n.º 2) do art.º 6.° da Directiva 89/391/CEE, de 12 de Junho de 1982, e o art.º 8.° do D.L. n.º 441/91 , de 14/11, que impõe à entidade patronal o dever e a obrigação de tomar as medidas necessárias à defesa da segurança e da saúde dos trabalhadores, incluindo as actividades de prevenção dos riscos profissionais, de informação e de formação dos seus trabalhadores.
W – As regras de segurança – ainda que mínimas – têm necessariamente de ser observadas em qualquer momento dos trabalhos, sejam eles actos preparatórios ou verdadeiros actos de execução dos trabalhos, sob pena de as disposições legais que as consagram se reduzirem a letra morta e desprovida de qualquer utilidade e significado.
Z – Daí que, a decisão sub judice, ao ignorar o condicionalismo antes enunciado, fez não só uma errada interpretação dos factos apurados, como incorrecta e ilegítima aplicação das normas legais, designadamente do art.º 7.°, n.º 1, al. b), da Lei n.º 100/97 de 13/9, 659.° e 664.° do C.P.C. e demais disposições legais supra citadas, o que tudo consubstancia um vício de erro de julgamento, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que, interpretando e aplicando devidamente as mencionadas disposições legais, julgue a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição da Recorrente do pedido.

O recorrido contra-alegou, pugnando pela confirmação do julgado e, neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no mesmo sentido, em parecer a que a ré respondeu.

Colhidos os vistos dos juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos que, sem qualquer impugnação, foram dados como provados nas instâncias são os seguintes:
1) No dia 5 de Dezembro de 2002, cerca das 11 horas, num prédio sito na rua Tenente Coronel Dias Pereira, n.° ... em Braga, quando se encontra em cima do telhado desse prédio, o autor caiu sobre as escadas do último andar, de uma altura de cerca de 10 metros, magoando-se na coxa esquerda e na cabeça. [A) dos factos assentes].
2) Na caixa de escadas do último andar do prédio, o telhado de cobertura era plano e era feito com telhas de fibra transparente, para permitir a entrada de luz natural na zona das escadas, existindo por debaixo dessas telhas e ao nível da placa de tecto do último andar, um caixilho de madeira envidraçado, também destinado a deixar passar a luz natural [B) dos factos assentes].
3) O A. havia sido incumbido de proceder à substituição de telhas ou placas de lusalite existentes nesse telhado [C) dos factos assentes].
4) Antes de iniciar os trabalhos referidos em 3), o A. subiu ao telhado do prédio através de uma abertura existente no tecto, a fim de estudar a melhor maneira de os efectuar em segurança, tendo para o efeito lavado consigo uma caixa de ferramentas (resposta aos quesitos 1.º e 2.º da base instrutória).
5) Depois de feito esse estudo, desceu do telhado pela aludida abertura, pois constatou que teria de construir e instalar uma prancha debaixo da clarabóia para executar o trabalho (resposta ao quesito 3.º da base instrutória).
6) Quando já se encontrava no último piso do prédio, o A. voltou a subir ao telhado. para ir buscar um martelo que tinha deixado no telhado, uma vez que necessitava do mesmo para construir a prancha (resposta aos quesitos 4.º e 5.º da base instrutória).
7) Após ter subido, o A. tombou sobre as placas que cobriam a clarabóia, partindo-as, tendo, de seguida, ocorrido a queda referida em 1) (resposta aos quesitos 6.º e 7.º da base instrutória).
8) Quando ocorreu o acidente, o A. não utilizava cinto de segurança, nem tábuas de rojo (resposta ao quesito 19.º da base instrutória).
9) Antes do acidente, o A. não havia montado um andaime ou plataforma de trabalho sob a clarabóia, nem havia instalado uma rede de protecção sob as telhas de lusalite (resposta aos quesitos 20.º e 21.º da base instrutória).
10) O evento referido em 1) provocou no A., directa e necessariamente, fractura têmporo--parietal esquerda, hematoma subdural agudo têmporo-parietal direito, com algum efeito de massa sobre estruturas adjacentes, foco de contusão hemorrágico talâmico direito, hematoma extradural parietal esquerdo, lesão fracturária ao nível da região médio-diafisária do rádio e fractura arrancamento da cabeça do peróno esquerdo [D) dos factos assentes].
11) Nesse mesmo dia, o A. foi transportado para o Hospital de São Marcos, em Braga, onde foi submetido a tratamento cirúrgico para drenagem do hematoma sub-dural e colocação de sensores da PIC, tendo posteriormente passado a ser seguido pelos serviços médicos da Ré, em tratamentos do foro ortopédico, neurológico e psiquiátrico [E) dos factos assentes].
12) As lesões descritas em 10) determinaram para o A. um período de incapacidade temporária absoluta, desde a data do acidente até 11-02-2003, e um período de incapacidade temporária parcial de 60%, entre 12.02.2003 e 13.10.2003, data da alta (resposta ao quesito 8.º da base instrutória).
13) Essas lesões determinaram, ainda, para o A. uma incapacidade permanente parcial de 43,69%, desde 13.10.2003, data da alta, com incapacidade para o exercício da sua profissão habitual (resposta ao quesito 11.º da base instrutória).
14) O A. não dispõe de conhecimentos técnicos ou científicos que lhe permitam iniciar o exercício de outra profissão distinta da de operário da construção civil (resposta ao quesito 13.º da base instrutória).
15) À data referida em 1), o A. trabalhava por conta própria, como trolha, mediante a retribuição de € 611,53 x 12 meses/ano [F) dos factos assentes],
16) O A. nasceu no dia 10 de Fevereiro de 1951, é casado e tem dois filhos nascidos a 30.03.1984 e a 25.09.1981, respectivamente [G) dos factos assentes e resposta ao quesito 14.º da base instrutória].
17) O A. deslocou-se a tribunal, por determinação deste, em 26.05.2003, 13.10.2003, 15.06.2004 e em 27.09.2004 (resposta ao quesito 16.º da base instrutória).
18) Por contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 1910/326619/19, em vigor à data referida em 1), a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho ocorridos com o A. encontrava-se transferida para a R., pela retribuição referida em 15) [H) dos factos assentes].

3. O direito
Como resulta das conclusões formuladas pela recorrente, o objecto do recurso restringe-se à questão de saber se o acidente ocorreu por violação das regras de segurança e por negligência grosseira do sinistrado e se, por via disso, deve ser descaracterizado como tal, ao abrigo do disposto no art.º 7.º da Lei n.º 100/97.

Como decorre da matéria de facto, o sinistrado era um trabalhador independente (facto n.º 15) e, como tal, a Lei n.º 100/97, de 13/2, não lhe é directamente aplicável, uma vez que o seu âmbito de aplicação é restrito aos trabalhadores por conta de outrem, considerando-se como tal os que estejam vinculados por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado e os praticantes, aprendizes, estagiários e demais situações que devem considerar-se de formação prática e, ainda, os que considerando-se na dependência económica da pessoa servida, prestem, em conjunto ou isoladamente, determinado serviço” (art.º 2.º da Lei n.º 100/97).

No que toca aos trabalhadores independentes, ou seja, os que exerçam uma actividade por conta própria, a Lei n.º 100/97 limita-se a dizer que devem efectuar um seguro que garanta as prestações nela previstas, nos termos que vierem a ser definidos em diploma próprio (art.º 3.º da Lei n.º 100/97).

E, dando satisfação ao estipulado no art.º 3.º da Lei n.º 100/97, o legislador fez publicar o Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, que veio regulamentar o seguro obrigatório de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes, previsto no referido art.º 3.º da Lei n.º 100/97. E, segundo esse Decreto-Lei, todos os trabalhadores independentes (excepto aqueles cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar) são obrigados a efectuar um seguro de acidentes de trabalho que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares (art.º 1.º), regendo-se esse seguro, com as devidas adaptações, pelas disposições da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, salvo as especificações contidas no mencionado decreto-lei.

No caso em apreço, o autor tinha celebrado com a ré um contrato de seguro de acidentes de trabalho, como trabalhador independente e, regendo-se esse contrato pela Lei n.º 100/97, é à luz desta Lei (uma vez que as especificações contidas no Decreto-Lei n.º 159/99 aqui não relevam) que o objecto do recurso terá de ser apreciado.

Ora, segundo o art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, não dá direito a reparação o acidente: a) que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei; b) que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, ou for independente da vontade do sinistrado, ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado da vítima, consentir na prestação; d) que provier da caso de força maior, considerando-se como tal apenas o que for devido a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho, nem se produza ao executar o serviço expressamente ordenado pela entidade empregadora em condições de perigo evidente.

A recorrente considera que o acidente sub judice não dá direito a reparação, pois, segundo ela, o mesmo teria resultado exclusivamente da conduta negligentemente grosseira do sinistrado, por inobservância das mais elementares regras de segurança. Vejamos se lhe assiste razão, começando por recordar o circunstancialismo em que o acidente ocorreu.

Como decorre dos factos dados como provados, o autor foi incumbido de substituir as telhas de fibra transparente que constituíam a clarabóia da caixa das escadas do prédio sito no n.º ... da Rua Tenente Coronel Dias Pereira, na cidade de Braga. Antes de iniciar o referido trabalho, subiu ao telhado do prédio, acompanhado de um empregado, através de uma abertura existente no tecto, a fim de estudar a melhor maneira de o efectuar com segurança, tendo levado consigo, para esse efeito, uma caixa de ferramentas. Feito o estudo, constatou que teria de construir e instalar uma prancha debaixo da clarabóia para executar o trabalho. Desceu, então do telhado, pela aludida abertura e quando já se encontrava no último piso do prédio, voltou a subir ao telhado, para ir buscar um martelo que tinha deixado no telhado e do qual ia precisar para construir a prancha. Após ter subido, tombou sobre as placas da clarabóia, partindo-as, o que originou a sua queda sobre as escadas do último andar, de uma altura de cerca de 10 metros. Aquando da queda, o autor não utilizava cinto de segurança, nem tábuas de rojo e o autor não tinha montado nenhum andaime ou plataforma de trabalho sob a clarabóia, nem havia instalado rede de protecção.

Perante a factualidade referida, na 1.ª e na 2.ª instâncias entendeu-se que não tinha havido violação das regras de segurança por parte do sinistrado, uma vez que o acidente ocorreu, não no decurso dos trabalhos propriamente ditos, mas numa fase de estudo prévio com vista a identificar, além do mais, os riscos a que o trabalhador na sua execução ficará sujeito e, consequentemente, as medidas de segurança que seria necessário adoptar. E entendeu-se, também, que não havia elementos para concluir que o acidente havia resultado da negligência grosseira do sinistrado, uma vez que a ré não tinha logrado provar o que esse respeito tinha alegado, ou seja, que o acidente tinha ocorrido pelo facto do sinistrado caminhar temerariamente sobre as placas da clarabóia, evidenciando dessa forma um absoluto desprezo pelo perigo.

A ré discorda do entendimento referido, alegando ter havido negligência grosseira do sinistrado, uma vez que o acidente ocorreu quando ele se encontrava em cima das telhas que cobriam a clarabóia e alegando que os actos preparatórios também são actos de trabalho, relativamente aos quais haverá que cumprir as normas de segurança. Segundo a ré, o sinistrado, antes de subir ao telhado, devia ter adoptado um dispositivo contra quedas em altura (plataforma de trabalho, escadas de telhador, tábuas de rojo, cinto de segurança ou rede de protecção) que lhe permitisse realizar o estudo prévio em segurança. Não o tendo feito, violou o disposto no art.º 3.º, al. g), do Decreto-Lei n.º 441/91, de 14/11, nos artigos 44.º e 45.º do Regulamento do Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo Decreto n.º 41.821, de 11/8/1958 e no n.º 1 do anexo II do Decreto-Lei n.º 115/95, de 1/7, conjugado com o art.º 11.º da Portaria n.º 101/96, de 3/4.

Entendemos, porém, que a argumentação da ré não merece acolhimento.

No que toca à negligência grosseira por parte do sinistrado, a sua falta de razão é manifesta, uma vez que, nos termos da lei, só há negligência grosseira quando o sinistrado tiver adoptado um “comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto de omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão” (art.º 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/4). Como se disse no recente acórdão deste tribunal de 14.2.2007 (2), a negligência grosseira corresponde, na terminologia clássica, à culpa grave, a qual pressupõe a omissão pelo agente de um dever de cuidado que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria deixado de observar. A negligência grosseira corresponde, pois, ao conceito que a doutrina e jurisprudência haviam construído acerca da “falta grave e indesculpável da vítima” contida na Base VI, n.º 1, al. b), da anterior lei dos acidentes de trabalho, a Lei n.º 2.127, de 3/8/1965, que consensualmente era entendida como um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil e indesculpável, mas voluntária, embora não intencional.

Ora, como bem se decidiu nas instâncias, a factualidade dada como provada não permite qualificar de temerária a conduta do autor. De facto, acrescentamos nós, subir a um telhado não constitui sempre um acto de grande perigo. Tal só acontecerá quando o telhado apresentar forte inclinação, quando a sua estrutura for demasiado frágil ou quando as condições meteorológicas forem naturalmente adversas, sendo certo que, no caso sub judice, nada foi alegado ou dado como provado a tal respeito.

Deste modo, o facto de o autor ter subido ao telhado, para ir buscar o martelo que, momentos antes, lá tinha deixado ficar, sem usar cinto de segurança, tábuas de rojo ou outro meio de protecção contra quedas em altura, não constitui em si uma temeridade e muito menos uma temeridade em alto e relevante grau. Para que se pudesse concluir nesse sentido era necessário alegar e provar que as condições do telhado ou as condições meteorológicas impunham o uso de um adequado meio de protecção contra quedas em altura, ónus que sobre a ré recaía, uma vez que a negligência grosseira constitui um facto impeditivo do direito do autor à reparação pelo acidente sofrido (art.º 342.º, n.º 2, do C.C.).

Aliás, relativamente à negligência grosseira, importa referir que a ré limitou-se a alegar que o acidente tinha ocorrido pelo facto do sinistrado ter pisado uma das telhas de lusalite (art. 19.º da contestação), mas, como resulta da resposta dada ao quesito 17.º, o facto em causa foi dado como não provado, não fazendo, por isso, qualquer sentido, que ela venha agora afirmar, nas alegações do recurso, que o acidente ocorreu quando o sinistrado se encontrava em cima das telhas da clarabóia.

Por sua vez no que toca à violação das normas de segurança, estamos de acordo com a ré quando alega que os trabalhos preparatórios já são trabalho, estando, por isso, também sujeitos às normas de segurança prescritas na lei. A questão está em saber se o autor, para efectuar o estudo prévio que foi fazer acima do telhado, era obrigado a implementar algumas das medidas previstas na lei contra quedas em altura. E, desconhecendo-se as características do telhado e as condições meteorológicas, não é possível concluir que o estudo prévio que o autor foi fazer acima do telhado justificasse a adopção de qualquer medida de protecção, atenta a natural simplicidade e brevidade do mesmo.

É óbvio que o autor não teria dado a queda que deu, se utilizasse cinto de segurança ou se tivesse instalado uma plataforma de trabalho por debaixo da clarabóia, mas a questão não se pode colocar nestes termos. A questão a resolver coloca-se antes da queda e consiste em saber se o trabalho que o autor estava a efectuar exigia a adopção de medidas de protecção contra quedas em altura e, como já foi dito, não se provou matéria de facto suficiente para se concluir nesse sentido.

E nem se diga, como alega a recorrente, que o sinistrado estava obrigado a usar cinto de segurança, por força do disposto nos artigos 44.º e 45.º (3), aprovado pelo Decreto n.º 41.821, de 11/8/1958, uma vez que as medidas de protecção previstas naqueles artigos dizem respeito a obras a realizar nos telhados, o que não era o caso dos autos (recorde-se que a obra a realizar pelo autor – a substituição das placas da clarabóia – ainda não tinha começado) e a sua adopção só é obrigatória quando os telhados “ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas”, desconhecendo-se se tal acontecia com o telhado em questão.

E o mesmo se diga relativamente ao disposto no art.º 11.º da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, que a recorrente também invoca. Nos termos do n.º 1 do citado artigo “[s]empre que haja risco de quedas em altura, devem ser tomadas medidas de protecção colectiva adequadas e eficazes ou, na impossibilidade destas, de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil” e nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “[q]uando, por razões técnicas, as medidas de protecção colectiva forem inviáveis ou ineficazes, devem ser adoptadas medidas complementares de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável”.

Na verdade, como resulta do normativo em questão e tal como resulta, aliás, do disposto nos artigos 44.º e 45º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, a adopção de medidas de protecção contra quedas em altura só é obrigatória quando os trabalhos a realizar impliquem um efectivo risco de queda em altura, o que naturalmente dependerá, antes de mais, da natureza do trabalho a efectuar. E, no caso dos telhados, da natureza, estrutura e estado da superfície dos mesmos.

Ora, repetindo o que já foi dito, não está provado que o telhado em questão apresentasse perigo de queda em altura, a não ser, evidententemente, na zona da clarabóia, uma vez que nessa zona não havia placa de tecto, mas um simples caixilho de madeira envidraçado (facto n.º 2) e a cobertura era composta por placas de fibra transparente cuja resistência, como é sabido (facto notório) é bastante diminuta. A questão que se poderia colocar era se o autor não devia ter adoptado medidas de protecção que obstassem a que ela caísse pela zona da clarabóia, mas atento o tipo de trabalho que foi fazer ao telhado entendemos que tal não era necessário, uma vez que o trabalho em causa era um trabalho de mera observação (estudo prévio) que não implicava um efectivo risco de queda.

É verdade que o sinistrado acabou por cair sobre a clarabóia, mas isso não significa que, a priori, existisse um efectivo risco de queda. A queda acabou por acontecer por razões que se desconhecem, mas, em boa verdade e face à matéria de facto dada como provada, não havia motivos para razoavelmente prever que ela pudesse acontecer e, para efeitos de ajuizar se o sinistrado devia ou não ter adoptado medidas de segurança, é este juízo de prognose que releva e não o juízo feito a posteriori.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar a revista e manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Abril de 2007

Sousa Peixoto (Relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol
-------------------------------------------------------------------------------
(1) - Relator: Sousa Peixoto (R.º 180); Adjuntos: Sousa Grandão e Pinto Hespanhol.
(2) - Proferido no processo n.º 3545/06, da 4.ª Secção, de que foi relator o Conselheiro Sousa Grandão.
(3) - Os artigos referidos têm o seguinte teor:
“Art. 44.º - No trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo.
§ 1.º As plataformas terão a largura mínima de 0,40 m e serão suportadas com toda a segurança. As escadas de telhador e as tábuas de rojo serão fixadas solidamente.
§ 2.º Se as soluções indicadas no corpo do artigo não forem praticáveis, os operários utilizarão cintos de segurança providos de cordas que lhes permitam prender-se a um ponto resistente da construção.
Art. 45.º Nos telhados de fraca resistência e nos envidraçados usar-se-á das prevenções necessárias para que os trabalhos decorram sem perigo e os operários não se apoiem inadvertidamente sobre pontos frágeis.”
- O Regulamento em questão foi tacitamente revogado pelo Decreto-Lei n.º 155/95, de 1/7, mas as suas normas técnicas foram mantidas em vigor em tudo o que não contrariasse o disposto naquele D.L. (art.º 18.º do Decreto-Lei citado).