Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P756
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: FALTA DO RÉU
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
AUSÊNCIA DO ARGUIDO EM PARTE INCERTA
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
DEFENSOR
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
REENVIO DO PROCESSO
Nº do Documento: SJ200304290007565
Data do Acordão: 04/29/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3 J CR VISEU
Processo no Tribunal Recurso: 163/01
Data: 05/20/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Arguida/recorrente: A (1)

1. Os Factos

No dia 26-02-01, entre as 08:00 e as 16:00, a arguida conseguiu introduzir-se nos vestuários do Serviço de Oftalmologia do Hospital de S. Teotónio, em Viseu, local de acesso reservado aos funcionários que ali trabalham. Lá dentro, puxou o "respiradouro" do armário adstrito à enfermeira B, forçando-lhe a abertura, e, assim retirou daí 23.000$00 e 10 francos suíços, que gastou em seu proveito. No fim de semana de 9 a 12 de Março, ela e o co-arguido, agindo em comunhão de esforços e propósitos, introduziram-se no Jardim Escola de Guimarães, Viseu. Para o efeito partiram o vidro de uma janela e causaram também estragos na porta das traseiras (cuja reparação importou em 15.000$00). Do interior do Jardim Escola, retiraram e levaram consigo um vídeo Goldstar, no valor de 50.000$00, uma máquina fotográfica Kodac, no valor de 25.000$00, dois comandos, um vídeo e outro de televisão, e ainda 5.000$00 em dinheiro, tudo recuperado na residência do arguido. No dia 13 de Março de 2001, entre as 16:00 e as 16:20, a arguida acedeu aos vestiários de Cirurgia 2 do Hospital de S. Teotónio, local reservado aos respectivos funcionários. Usando uma chave de fendas, forçou a abertura do armário afecto à auxiliar de acção médica C, de que retirou um telemóvel Ericson, no valor de 33.000$00, a quantia de escudos 8.000$00, que gastou, com o co-arguido, com quem vivia em comum, e, ainda, um livro de cheques, a que os dois deram o seguinte destino: logo, a arguida, pelo seu punho, no lugar da assinatura, copiando a da titular dos cheques pela constante do BI, imitou-a e preencheu os demais elementos manuscritos que constam do cheque de fls. 9 do inq.441/01, apondo-lhe a data de 12.03.2001 e ordem de pagamento de 25.000$00. De seguida, os dois arguidos deslocaram-se ao estabelecimento comercial "Astronauta", em Viseu. Conhecendo o gerente, o arguido dirigiu-se-lhe e, exibindo o cheque e o BI. da titular e dizendo que era da mãe da arguida, pediu que lho trocasse pelo valor nele aposto.

O gerente, quer porque conhecia o arguido quer pelas demais referências que os arguidos lhe deram, nomeadamente a exibição do BI da titular do cheque, acedeu. De seguida, os dois arguidos deslocaram-se ao estabelecimento comercial "Marinor", em Marzovelos, Viseu, em veículo conduzido pelo arguido. Aí, dentro do veículo, a arguida, actuando de forma idêntica, assinou e preencheu o cheque de fls. 6 do Inq. 511/01, nele apondo a ordem de pagamento da quantia de escudos 10.000$00. Depois, entrou no estabelecimento onde comprou umas meias de inverno e uns "boxers". Pediu à dona se podia pagar com um cheque da mãe, apresentado o BI. da titular da conta sacada.
Uma vez que os arguidos adquiridos, no seu conjunto, custaram apenas escudos 4.890$, a arguida em troca do cheque, para além daqueles artigos, recebeu, em moedas e notas 5.110$00.
Deslocaram-se ainda - sempre no veículo do arguido - para o estabelecimento comercial "Algodões Ideal Santa Justa", em Viseu.
Actuando de forma idêntica, a arguida procedeu à assinatura e preenchimento do cheque constante de fls. 18 do Inq. 562/01, nele inscrevendo a ordem de pagamento da quantia de 15.000$. Depois de assinar e preencher o cheque, a arguida dirigiu-se ao estabelecimento, onde foi atendida por D, chefe de loja, a quem adquiriu roupa interior para homem, no valor total de 12.000$. Por isso, ao entregar o cheque, para além de pagar as peças de roupa que adquiriu, ainda recebeu, de troco, a quantia de escudos 3.000$. Também neste estabelecimento disse que o cheque era da sua mãe e exibiu, como se fosse desta, o BI de C. Os dois arguidos dirigiram-se ainda ao centro Comercial Ecovil, em Viseu, onde entraram no estabelecimento comercial de sapataria de E.
Aí escolheram um par de sapatos de homem no valor de escudos 13.000$. Tal como as situações anteriores, a arguida, antes de entrar no estabelecimento, procedeu à assinatura e preenchimento do cheque de fls. 22 do Inq. 562/01, nele titulando a quantia de 20.000$. E foi com esse cheque que procedeu ao pagamento dos sapatos e veio ainda a receber, de troco a quantia de escudos 7000$. De igual modo, disse que o cheque era da mãe e, para dar mais credibilidade a essa afirmação, exibiu, como dela, o BI de C. Ainda no Centro Comercial Ecovil, os dois arguidos dirigiram-se à "Boutique Estrela", de F, tendo a arguida previamente procedido ao preenchimento e assinatura do cheque constante de fls. 73 do Inq. 441/01, nele titulando a quantia de escudos 10.000$. Foi com esse cheque que procedeu ao pagamento de uma saia no valor de 6.400$ e recebeu, de troco, a quantia de escudos 3.600$. Neste local, a arguida actuou confiante nos resultados anteriormente obtidos. Todos os cheques mencionados foram devolvidos pelo banco sacado aos proprietários dos estabelecimentos onde foram entregues em troca de mercadorias e dinheiro, sem pagamento, com a menção de "cheque extraviado". No dia 27.03.2001, entre as 17:00 e as 18:00, os dois arguidos deslocaram-se ao Centro de Saúde nº3, em Jugueiros, Viseu. Aí enquanto o arguido vigiava, a arguida dirigiu-se a uma dependência na cave, que serve de vestiário para as empregadas de limpeza, cuja porta se encontrava fechada, com a chave na porta e que arguida abriu para aí entrar. Essa dependência, na cave, é de acesso reservado aos funcionários do centro de Saúde, o que os arguidos bem sabiam, não tendo obtido autorização para o efeito. Das carteiras das empregadas de limpeza G e H retiraram, da primeira, um telemóvel Nokia, no valor de 30.000$ e ainda cerca de 4.000$ em dinheiro e, da segunda, todos os documentos pessoais e chaves do automóvel e da casa. A PSP veio, no dia seguinte, a recuperar a carteira desta última e do seu conteúdo só não foram recuperados o BI e duas cadernetas da CGD.
Os arguidos actuaram com o propósito de fazerem seus os cheques e demais objectos que subtraíram, bem como as quantias e objectos que receberam em troca de cheques, bem sabendo que não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade e sem a autorização dos legítimos proprietários. Sabiam também que ao entregarem os cheques como meio de pagamento, exibindo o BI. da titular da conta sacada e dizendo-a mãe da arguida, a sua conduta era idónea, como foi, a fazer crer às pessoas a quem os entregavam que deles eram legítimos portadores. Sabiam que iriam causar prejuízos patrimoniais aos comerciantes ou à titular da conta sacada. Tinham consciência de que os proventos assim alcançados constituíam benefícios injustificados. Nas circunstâncias em que actuaram em conjunto - Jardim Escola de Guimarães, preenchimento e entrega dos cinco cheques nos estabelecimentos e Centro de Saúde nº 3 em Jugueiros - fizeram-no combinados entre si, em execução de plano previamente traçado entre ambos (caso a caso) e em conjugação de esforços e intenções.
Agiram voluntária, livre e conscientemente. Conheciam o carácter proibido e punível das suas condutas.

2. A Condenação

Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 3º Juízo Criminal de Viseu (2), em 20Maio02 (3), condenou A (4), como autora de quatro crimes de furto qualificado (5), um crime continuado de falsificação de cheques e um crime continuado de burla, nas penas parcelares, respectivamente, de 8 meses de prisão, 8 meses de prisão, 2 anos e 4 meses de prisão, 8 meses de prisão, 2 anos de prisão e 6 meses de prisão, e, pelo respectivo concurso criminoso (6), na pena conjunta de quatro anos e meio de prisão:
Os factos (Hospital de Viseu - vestiários de Oftalmologia) integram os elementos tipo objectivo do crime de furto qualificado pela al. e) do nº1 do artigo 204º. Com efeito, tratava-se de compartimento dotado de porta fechada, de acesso reservado ao pessoal, especificamente destinados a guardar a roupa e objectos pessoais dos funcionários do hospital durante as horas de serviço.
Os factos (Jardim Escola de Guimarães), introdução em estabelecimento de ensino, através de uma janela, depois de para o efeito ter sido partido o respectivo vidro, integram os elementos do tipo objectivo do crime de furto qualificado pela al. e) do nº 1 do art. 204º. Os factos (Hospital de Viseu - vestiários de Medicina 2.) integram também os elementos tipo objectivo do crime de furto qualificado pela al. e) do nº 1 do art. 204º, pois se tratou, mais uma vez, de compartimento dotado de porta fechada, de acesso reservado apenas ao pessoal, especificamente destinados a vestiário dos funcionários do hospital. O furto dos cheques não pode ser valorado autonomamente, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, uma vez que já foram considerados enquanto parte do todo constituído pela carteira onde se encontravam. No que concerne aos factos (preenchimento dos cinco cheques e sua utilização), vêm qualificados como integrando os crimes de falsificação e os crimes de burla, em concurso efectivo, mas, relativamente ao crime de burla de que foi vítima I (Marinor"), esta desistiu da queixa. Comete o crime de falsificação de documento "quem, com intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou obter alcançar para si ou para terceiro benefício ilegítimo...fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outrem para elaborar documento falso". Trata-se de um crime de perigo abstracto, uma vez que o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador (Comentário Conimbricense ao Código Penal, anotação ao art. 256º). No caso, os módulos dos cheques emitidos eram genuínos, uma vez que emitidos por quem de direito. No entanto, tais módulos dos cheques encontravam-se ilegitimamente na posse dos arguidos, uma vez que não eram seus donos nem titulares da conta a que os cheques diziam respeito, nem tão-pouco estavam autorizados, pelo titular, a deles fazer uso, uma vez que tinham sido subtraídos contra sua vontade. Os arguidos não "fabricaram" os ditos módulos. Mas abusaram da assinatura do legítimo titular, preenchendo os cheques, escrevendo o nome dele, como se se tratasse o próprio. Preencheram os módulos de cheques como se fossem o titular da conta a que respeitavam, imitando a sua assinatura. Trata-se de falsidade material, uma vez que foram feitas as assinaturas do titular da conta por quem não o era, por forma que não corresponde à verdade.
Não se trata de uma declaração inserida no documento contrária à verdade, mas sim na inclusão de uma "assinatura" que não corresponde, de todo em todo à pessoa a quem é suposto pertencer.
E é relativa a títulos de crédito, cheques, que constituem documentos transmissíveis por endosso. No caso, a introdução, com intuito de conseguir benefícios a que sabiam não ter direito, da "assinatura" de uma outra pessoa, a suposta sacadora do cheque, para além do montante a pagar pelo banco sacado, preenche todos os referidos elementos descritivos do tipo. Comete o crime de burla quem, através de astúcia provoque erro ou engano a outrem, levando-o através desse erro a que pratique actos que causem prejuízo patrimonial à vítima ou a terceiro. Trata-se de um crime material ou de resultado (crime de dano) que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro e em que o bem jurídico protegido consiste no património globalmente considerado (Comentário Conimbricense, anotação ao art. 217ª). Para certos autores - Fernanda Palma e Rui Carlos Pereira, R.F.D.L., vol. XXXV, 1994 - trata-se de um crime complexo que comporta um triplo nexo de causalidade. Outros autores falam mesmo num quádruplo nexo de causalidade - entre os vários elementos referidos, referidos no tipo José António Barreiros e Beleza dos Santos. Já para A. M.Almeida Costa, no Comentário Conimbricense, p.293, tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de actos tendentes à diminuição do seu património ou de terceiro e depois entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo, sem que haja necessidade de recorrer à figura de "sub-nexos causais". Assim decomponham-se ou não os nexos causais, o que releva é que exista o nexo de causalidade adequada entre o acto astucioso do agente e o acto de disposição da vítima e que esse acto de disposição causem efectivo prejuízo no património alheio. A «astúcia» merece uma consideração muito atenta, a quem procurar compreender a essência do ilícito típico da burla no Código de 1982/95. Sem astúcia não pode haver burla, nem sequer na forma tentada. A astúcia é elemento objectivo do tipo.
Não basta que a atitude psicológica do agente seja astuciosa: a conduta exterior deverá revelar astúcia, para efeito do preenchimento do tipo. Isto resulta de a astúcia ser referida, no art. 217º, ao modo de ser objectivo da acção. A astúcia equivale a «manha» ou «ardil». Requer, na sugestiva linguagem de Nelson Hungria o enredo subtil, a trapaça, a mistificação, o embuste. A exigência da astúcia restringe assim o âmbito da incriminação.
Como observou Eduardo Correia, nas sessões da Comissão Revisora, não basta qualquer engano, é necessário que tenha sido provocado. Como resulta da simples leitura do tipo tem que haver relação de causa/efeito, entre a astúcia e o erro, entre o erro e a prática de factos pela própria vítima e entre esses actos da vítima e o prejuízo. Ora, no caso, os arguidos actuaram não só engenhosa como fraudulentamente, induzindo em erro as pessoas a quem entregaram os cheques, dizendo que lhes tinham sido entregues pela respectiva titular, que diziam ser a mãe da arguida. Por outro lado, para dar consistência e credibilidade àquela afirmação, exibiam o BI da verdadeira titular da conta para "conferência da assinatura" com a falsificada. Assim, com a sua conduta, criaram toda uma "mise-en-scéne" com vista a convencerem as vítimas de que o cheque reunia todos os elementos de segurança que levariam ao respectivo pagamento, assim as induzindo em erro e convencendo a entregar-lhes não só as mercadorias como ainda o "troco" correspondente à diferença entre o valor dos cheques e o das mercadorias.
Acresce, em termos de causalidade adequada, que, tratando-se de pequenas compras no comércio tradicional, onde a confiança constitui factor de muito peso, o cheque entregue pelo legítimo portador constitui um meio de pagamento seguro, com a garantia dada pelo regime jurídico do cheque em geral. Assim entende-se que também se mostram verificados os elementos descritivos deste tipo de crime em relação à utilização de quatro cheques (e não cinco, pois que, em relação à utilização de quatro cheques (e não cinco, pois que, em relação à "Marinor", houve desistência). A questão do concurso de infracções, no que concerne especificamente aos crimes de falsificação e burla, suscitou várias dúvidas na jurisprudência, ainda que o entendimento claramente majoritário fosse o do concurso real de infracções (STJ 19.02.92, DR 09.04.1992). Os factos (Centro de Saúde nº 3) integram os elementos tipo objectivo do crime de furto qualificado pela al. f) do nº 1 do art. 204º. Com efeito a arguida, com a finalidade de subtrair bens alheios, introduziu-se, sem autorização em compartimento fechado do Centro de Saúde, de acesso reservado aos respectivos funcionários de limpeza. Relativamente ao tipo subjectivo dos crimes referenciados, os arguidos actuaram com dolo directo, tal como é definido pelo art. 14º, nº, 1, do CP. Com efeito, desde o início, representando os factos ilícitos em todos os seus contornos (elemento intelectual do dolo), actuaram com intuito conseguir o resultado de cada um dor crimes (elemento volitivo do dolo).

Os dois crimes praticados no Hospital de S. Teotónio, respectivamente nos serviços de Oftalmologia e Cirurgia 2, foram praticados apenas pela arguida (o primeiro vinha-lhe imputado só a ela e em relação ao segundo não se provou que o arguido nele tenha tomado parte), pelo que só a ela podem ser imputados.
Todos os restantes crimes - Jardim Escola de Guimarães, Centro de Saúde nº 3, falsificação e utilização dos cheques - foram praticados por ambos os arguidos. No caso, ainda que o arguido não tenha preenchido nenhum dos cheques e tenha entrado apenas em duas lojas onde os cheques foram entregues fraudulentamente, manteve-se sempre na companhia da arguida, deslocando-a no seu automóvel às várias lojas, em duas das quais entrou na sua companhia. Os arguidos decidiram praticar os factos em conjunto, actuaram em conjunto, tiraram ambos proveito dos mesmos repartindo entre ambos os seus resultados.
Por outro lado, no conjunto da actuação dos arguidos assume aspecto muito relevante o facto de serem dois, dando assim maior credibilidade à sua actuação. Ambos os arguidos tomaram parte, de forma essencialmente homogénea, na execução dos factos e ambos quiseram obter os resultados alcançados. Em todas as circunstâncias concretas da sua actuação eles actuaram concertadamente, ainda que nem todos os factos tenham sido praticados por ambos.
A conduta de cada um, naquelas circunstâncias de tempo e lugar foi idónea a conduzir ao resultado típico, sendo certo que a conduta de cada um isoladamente não o teria produzido. Assim, dado que os arguidos actuaram sob um desígnio comum, tendo ambos praticado actos relevantes, em termos de causalidade adequada, para o resultado final pretendido, que ambos quiseram e aceitaram, tendo actuado em conjunto para conseguirem um resultado que isoladamente não conseguiram, entende-se que ambos são co-autores dos crimes. Aliás, ainda que se entendesse que o arguido não é co-autor do crime de falsificação, sempre o seria do uso dos cheques falsificados.
Dado que todos os cheques foram utilizados na mesma tarde, de forma semelhante, levanta-se a questão de saber se estamos perante 5 crimes de falsificação e 4 de burla (pois que em relação a um destes houve desistência) ou um crime de falsificação e outro de burla na forma continuada. Como ensina Eduardo Correia, Direito Criminal, II vol., 202, quando diversas condutas violam o mesmo tipo de crime, o número de crimes define-se pelo número de resoluções, sendo o critério temporal fundamental para se apurar se existiu uma ou mais resoluções a presidir aos vários actos. O crime continuado pressupõe precisamente a existência de diversas resoluções, mas todas tomadas dentro de um quadro exterior que facilita de forma considerável o renovar das sucessivas resoluções. Como escreve Eduardo Correia, Teoria do Concurso, p.207, "aquilo que na continuação criminosa arrasta o agente para a reiteração é precisamente o facto de, com a primeira conduta, se amolecerem e relaxarem as reacções morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam".

Trata-se de uma situação em que existe uma disposição favorável das coisas, na medida em que mais ou menos arrasta e tenta o agente para o delito, diminuindo a liberdade de determinação do agente e, portanto, a intensidade da censura que se lhe pode dirigir, por não ter agido de outra maneira - cfr. ob. cit., 224. Por outro lado, na procura de casos/padrão de situações exteriores que facilitam de forma acentuada a tomada de novas resoluções, subsumíveis ao crime continuado, refere-se precisamente à circunstância em que "o agente é arrastado e solicitado para a prática das actividades sucessivas através de um certo estado de coisas criado pela primeira conduta ou por ele utilizado com sucesso"-cfr. ob. cit, p. 208.
Escreve mais uma vez Eduardo Correia, Concurso, 246: "quando um delinquente se encontra de novo ante uma determinada situação que, convidando à realização de um certo crime, já uma vez foi por ele aproveitada com êxito, há-de, sem dúvida, sentir-se fortemente solicitado a reiterar a sua conduta criminosa e só muito dificilmente se manterá no caminho direito".

Ora no caso, os arguidos praticaram cinco actos de falsificação numa mesma tarde.
E a forma de actuação foi sempre idêntica: tendo o livro de cheques na sua posse, foram utilizando os sucessivos módulos sempre da mesma forma. Teve sempre por pressuposto o facto terem na sua posse o livro de cheques previamente furtado. O facto de terem na sua posse o meio (livro de cheques), obtido de forma ilegítima, colocando-os desde logo à margem da lei, condicionou de forma acentuada as sucessivas resoluções do arguido - acabou por existir o aproveitamento continuo de uma situação ilícita na qual o arguido se colocou com a apropriação do livro de cheques. Assim sendo, o crime praticado sempre o mesmo e de forma idêntica, no quadro de uma situação exterior que facilitou de forma acentuada as resoluções subsequentes, tudo numa mesma tarde, seguindo-se os actos uns aos outros, entende-se que estamos perante um caso de crime continuado. O mesmo se diga em relação aos crimes de burla. Determinação da medida concreta da pena. As penas abstractas aplicáveis aos crimes cometidos são de prisão de 2 a 8 anos (assalto ao Jardim Escola da Guimarães), de prisão até 5 anos ou multa (vestiários de oftalmologia e Cirurgia 2 do Hospital e Centro de Saúde nº3), de prisão de 1 a 5 anos ou multa de 60 a 600 dias (falsificação na forma continuada) e de prisão até 3 anos ou multa (crime de burla).
A pena há-de ser eficaz por forma a proteger o bem jurídico violado servindo como elemento dissuasor da prática de novos crimes, constituindo a retribuição justa do mal praticado, dando satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade. Para além de dever contribuir, na medida do possível para a reinserção social, do delinquente. Assim, a culpa é já não "o critério e medida da pena", mas apenas o seu "limite".
Ambos os arguidos incorrem em outros crimes que prevêem apenas a pena de prisão, pelo que não faria sentido aplicar prisão a uns e multa a outros. Além de que, tendo em atenção as necessidades de protecção dos bens jurídicos, a gravidade dos factos, o número de crimes, entende-se que no caso a multa não satisfaz de forma adequada as finalidades da pena, designadamente a protecção dos bens jurídicos em questão e a prevenção e novos crimes, pelo que será aplicada pena de prisão. No que toca aos crimes de falsificação e burla, apesar da co-autoria, dado que foi a arguida, que preencheu os cheques com o seu punho e teve uma actuação mais consistente na entrega dos cheques como meio de pagamento, tendo por outro lado em atenção que o arguido colaborou na descoberta dos factos (para além de ter assumido a sua responsabilidade em audiência e ter manifestado arrependimento), entende-se que se justifica diferenciar as penas impostas aos dois arguidos. O cúmulo jurídico de penas incluirá as penas aplicadas à arguida no processo comum singular 134/01.4GCTND do Tribunal de Tondela, por imposição do comando do art. 78º do C.Penal, uma vez que os factos agora em apreço são anteriores à condenação ali proferida.
Não constitui obstáculo ao cúmulo o facto de a pena ali aplicada ter ficado suspensa na sua execução. Com efeito, a condenação na pena unitária constitui a única forma de dar integral cumprimento ao comando do nº 1 e nº 2 do art. 78º do C.Penal, que mandam efectuar o cúmulo colocando como única condição que o crime seja anterior à condenação anterior (que em princípio deveria ter englobado todas as infracções praticadas até então), não fazendo a lei qualquer ressalva em relação à pena suspensa. Na determinação da pena unitária, haverá que considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tendo a pena aplicável, como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes pelos quais o arguido foi condenado, enquanto o limite é determinado pela pena parcelar mais elevada entre as concretamente aplicadas, acrescendo que tal pena nunca pode exceder o máximo legal da penalidade. Nos termos do art. 50º do C. Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão não superior a 3 anos de prisão se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Para além do pressuposto formal (pena inferior a 3 anos de prisão), a lei exige um pressuposto de ordem material, ou seja, a verificação, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido no futuro. Ora, no caso, tendo em atenção o tempo decorrido desde a anterior condenação, que o arguido se mostra arrependido, o reduzido valor dos prejuízos causados e a vontade do arguido de os reparar e sobretudo o facto de o arguido se vir mantendo afastado do factor que terá estado na génese dos factos, a toxicodependência, e perspectivas de enquadramento numa actividade profissional estável, afigura-se legítimo fazer o mencionado juízo de prognose favorável no sentido de que a ameaça da pena bastará para afastar o arguido de novas infracções, satisfazendo, do mesmo passo, as demais finalidades da pena.
No entanto, a suspensão será condicionada à reparação dos prejuízos dos crimes praticados.

3. O Recurso

3.1 Inconformada, a arguida (7) recorreu em 20Dez02 (8) ao Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a anulação do julgamento ou a anulação do acórdão «no que concerne ao cúmulo jurídico» ou, ainda, a redução e a suspensão da pena conjunta:
O tribunal a quo, oficiosamente, tomou conhecimento de que a arguida se tinha ausentado da morada por ela indicada, para parte incerta, pelo que deveria ter agido em conformidade, nomeadamente quando das notificações que houvesse de realizar. Tendo perfeito conhecimento de que a arguida não seria encontrada na morada que declarou como sendo a sua quando prestou termo de identidade e residência e que, consequentemente, não receberia naquela morada a notificação do despacho que designou o dia para a audiência de julgamento. O tribunal a quo não tomou as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência da arguida em julgamento, nem sequer realizou todas as diligências necessárias para garantir que a arguida fosse regularmente notificada da data em que tal julgamento se realizaria. Nem sequer ordenou, como devia, a execução de qualquer diligência para assegurar a presença arguida na audiência de julgamento. O tribunal não está, em nosso entender apenas sujeito à lei, strictu senso, antes terá e deverá actuar respeitando os mais elementares da boa fé, o que, salvo melhor entendimento, não ocorreu no presente caso, A presença da arguida é, a todos os títulos, indispensável à descoberta material da verdade e, consequentemente, à boa decisão da causa. O tribunal devia accionar os mecanismos previstos legalmente para a regular notificação da mesma, designadamente os previstos no artigo 313º, nº 3, primeira parte, do CPP, e, na impossibilidade de realizar a notificação nesses termos, então dever-se-ia proceder em conformidade com o disposto no artigo 335º do mesmo diploma, e notificar editalmente a arguida da data da audiência de julgamento.
Assim, nunca poderia o tribunal a quo actuar, como fez, nos termos do disposto no artigo 333º, nº1, do CPP, dado que a arguida não se poderia considerar regularmente notificada da data da audiência de julgamento. Tal actuação é violadora dos direitos e garantias de defesa da ora recorrente, dado que, desta forma, se impediu a presença da arguida na audiência de julgamento.
Ao actuar como actou, o tribunal a quo sabia que a arguida não iria receber qualquer notificação e "forçou" a realização da audiência de discussão e julgamento sem a presença da arguida. Foi violado o disposto no art. 332º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Consequentemente, resulta do exposto que a realização da audiência de julgamento sem a presença obrigatória da arguida constitui nulidade insanável, nos termos e com os efeitos no disposto na alínea c) do art. 119 do Código de Processo Penal. Doutro modo, a acta da audiência de julgamento não contém o despacho que determinou que ele se realizasse sem a presença da arguida, nem, consequentemente, ali consta qualquer fundamentação para que tal acontecesse, nem muito menos constam quais as diligências que o tribunal a quo tomou ou mandou realizar para que, pelo menos, se tentasse que a arguida comparecesse naquele julgamento.
A acta da audiência de julgamento constitui prova plena e insubstituível do que se passou na audiência de julgamento, pelo que a não transcrição na acta de audiência de julgamento do despacho que determinou que ele se realizasse sem a presença da arguida, constitui igualmente nulidade, que prejudica todos os actos posteriores ao acto inquinado, designadamente, o acórdão condenatório. Por outro lado, o acórdão recorrido enferma de uma outra nulidade, dado que procedeu à alteração não substancial dos factos da acusação sem, possibilitar à arguida que se pronunciasse sobre essa alteração. Não estando a arguida em julgamento, nunca poderá a mesma pronunciar-se acerca de qualquer alteração substancial ou não da matéria constante da acusação e muito menos requerer ou apresentar outros meios de prova no âmbito de tal alteração. Em julgamento realizado na ausência da arguida, nunca, e em caso algum, se poderá dar efectivo cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Sem cumprir o disposto naquele preceito legal, o acórdão valora, para efeitos de fixação da medida da pena, certos factos que não constam da acusação. Verifica-se, igualmente, nulidade processual insanável, quando, em sede de acórdão condenatório, o tribunal a quo entende realizar o cúmulo jurídico de penas, em caso de concurso de crimes, sem obedecer à tramitação processual consagrada no artigo 471º e seguintes do CPP.
Não cumpridas as formalidades do artigo 472º do Cód. Proc. Penal, designadamente, sem realizar qualquer audiência, sem estar presente o defensor da arguida, nem o Ministério Público, tal acto - cúmulo jurídico - é nulo. Pelo que, sendo a pena aplicada determinada por tal cúmulo jurídico, também a própria pena é nula, devendo tal nulidade ser declarada por este tribunal superior e, consequentemente, ordenada a libertação imediata da arguida.
A determinação da pena tem como critério determinante e informador a culpa do agente. No caso, à aqui recorrente foi aplicada uma pena que ultrapassa em muito a medida da sua efectiva culpabilidade. Efectivamente, o tribunal a quo, no mesmo processo e no mesmo crime, utilizou critérios distintos para determinar a culpabilidade dos diversos agentes envolvidos. Nos termos e para os efeitos da determinação da culpabilidade dos agentes, impõe-se, que o tribunal - ao determinar uma pena que considera adequada e suficiente para aquele que é o principal mentor e executor de um crime - tenha que respeitar e aplicar o princípio da proporcionalidade e, consequentemente, determine aos restantes participantes no mesmo crime, as respectivas penas segundo o respectivo grau de efectiva culpabilidade. Por outro lado, ao determinar a execução da pena de prisão, o tribunal não valorou nenhum dos critérios legais a que está vinculado nesta matéria, cingindo-se apenas a presumir a culpabilidade da ora recorrente e à anterior conduta da agente, desconsiderando os restantes factores relevantes para determinar a natureza da pena a aplicar, designadamente, a personalidade, as condições de vida do agente e, principalmente, as circunstâncias em que foi praticado o delito.

3.2. O Ministério Público (9), na sua resposta de 24Jan03, pronunciou-se pela manutenção integral do acórdão recorrido:
Advoga a arguida que o tribunal recorrido, ao proceder à sua notificação para julgamento por carta simples na morada por ela indicada no T.I.R., apesar de ser já então do seu conhecimento que a arguida de ausentara para parte incerta, assim procurando legitimar o julgamento na sua ausência, violou o disposto no art. 332º, nº 1, do CPP e cometeu a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c) do CPP, a impor a anulação do julgamento efectuado. Ou seja, em seu entender, e apesar de a arguida não ter vindo aos autos indicar a sua nova morada, o tribunal não estava legitimado a notificá-la por carta simples na morada por ela indicada no T.I.R que prestou, nem a julgá-la na sua ausência, pois já tinha conhecimento da sua ausência para parte incerta, pelo que os trâmites a seguir eram os apontados no art. 335º do CPP. Ora, a arguida labora em manifesto equívoco: a arguida foi regularmente notificada por carta simples remetida para a morada por ela indicada, pois não tendo ela comunicado nos autos qualquer alteração dessa morada, é dessa forma que a lei impõe a sua notificação, como decorre da conjugação do estatuído nos arts. 196º, nsº 2 e 3, al. c) e 313º nº 3, 2ª parte, do CPP; e a realização do julgamento na sua ausência está legitimada por força do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 196º, nº 3, al. d) e 333º, do CPP. Alega a arguida, aqui com razão, que da acta de audiência não consta o despacho que determinou que a audiência se realizasse na sua ausência nem a respectiva fundamentação, dela constando apenas o requerimento do Ministério Público nesse sentido e a não oposição da defensora da arguida a tal requerimento. A questão, aqui, está em saber qual a consequência de tal omissão.
Sem pôr em causa que aquele despacho foi efectivamente proferido, entende a arguida, na esteira do ensinamento de Maia Gonçalves (anotação ao art. 362º do seu Código de Processo Penal Anotado), que tal omissão integra a nulidade prevista na al. d) do nº 2 do art. 120º, do CPP e terá como consequência a anulação do próprio julgamento efectuado. Não nos parece que essa omissão integre a invocada nulidade, pois ela não constitui omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade. Como quer que seja, vale aqui a conhecida regra de que das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. Ora, não estando a "nulidade" em causa coberta por despacho judicial, parece claro que dela não cabia recurso mas reclamação, pelo que nesta parte deve ser rejeitado o recurso da arguida, por manifesta improcedência, nos termos do art. 420º, nº 1, do CPP.
Finalmente, dir-se-à que a omissão na acta do despacho que determinou que a audiência se realizasse na ausência da arguida constitui mera irregularidade nos termos do art. 123º do CPP, já sanada, pois não foi arguida no prazo previsto no nº 1 desse preceito. Certo é também que o presidente do tribunal colectivo já procedeu à reparação da aludida irregularidade, como se colhe do despacho de fls. 407 dos autos, o que sempre tornaria inútil o conhecimento do recurso nessa parte. Alega ainda a arguida que no acórdão sob recurso se deram como provados factos que não constavam da acusação, constituindo alteração não substancial desta, e que não obstante no decurso da audiência se ter dado cumprimento ao estatuído no art. 358º do CP.Penal, tal é irrelevante em relação a ela, pois não tendo estado presente na audiência não poderia ter sido efectuada qualquer alteração que a pudesse afectar, já que tal alteração não lhe poderia ser comunicada, pelo que também por esta via o acórdão recorrido enferma de nulidade (a arguida não especifica qual seja essa nulidade, mas parece óbvio que na lógica do seu raciocínio ela só pode ser a prevista no art. 379º, nº 1, al. b) do C.P.Penal). Afigura-se-nos porém, que também aqui não assiste à arguida razão nenhuma: resultando do disposto nos arts. 196º, nº 3, al. d) e 333º, nº 6 (na parte em que remete para o nº 4 do artigo seguinte) do CPP que em caso de julgamento na ausência do arguido, nos termos do art. 333º do CPP, este é representado, para todos os eleitos possíveis, pelo defensor, parece óbvio que também para a efectivação das comunicações previstas nos arts. 358º e 359º do CPP o arguido ausente é representado pelo defensor. Atento o exposto, e em conclusão, diremos que as alterações em audiência dos factos descritos na acusação não tinham que ser comunicadas pessoalmente à arguida ausente, bastando que o fossem, como foram, à sua defensora, que aí a representava, não podendo, por isso, a omissão daquela comunicação, no caso em apreço integrar a nulidade cominada no art. 379º, nº 1 al. b) do CPP. Sustenta ainda a arguida que, ao efectuar o cúmulo jurídico das penas que lhe foram aplicadas sem designar dia para a audiência prevista no art. 472º do CPP e sem cumprir o formalismo aí previsto, o tribunal recorrido cometeu uma nulidade insanável (não especificando qual), pelo que será também nula "a própria pena aplicada à arguida". Esta tese é absolutamente disparatada. Com efeito, e como decorre à evidência das disposições conjugadas dos arts. 78º, nº 2, do CP e 472º do CPP, a realização de audiência com a exclusiva finalidade de efectivação de cúmulo jurídico de penas só se impõe quando todos os crimes em concurso tiverem sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado. Ora, no caso dos autos só a condenação proferida por Tondela transitara já em julgado, não a deste processo, pelo que a situação é recondutível ao n.º 1 e não ao n.º 2 do art. 78º, do CP, ou seja, havia que efectuar o cúmulo jurídico das penas em concurso no próprio acórdão condenatório proferido nestes autos, tal como veio a suceder, não em momento posterior. Assim, nenhuma nulidade se mostra nesta parte cometida. Advoga subsidiariamente a arguida uma redução sensível das penas parcelares e da pena única em que foi condenada, com a suspensão da execução desta, invocando para tanto que foi o co-arguido J e não ela o principal mentor e executor dos crimes por cuja prática foram ambos condenados, bem como a sua personalidade, as suas condições de vida e as circunstâncias em que os crimes foram cometidos.
Sobre esta matéria há que dizer, desde logo, que a arguida sustenta a sua pretensão em circunstâncias que não constam nem foram dadas como provadas no acórdão recorrido. E se a seu favor nada mais se provou além do que consta de tal acórdão foi por exclusiva responsabilidade dela, que se ausentou para parte incerta, não mais "dando cavaco" ao tribunal e desrespeitando grosseira e repetidamente as obrigações decorrentes das medidas de coacção que lhe haviam sido impostas. Assim sendo, parece-nos ser clara a inviabilidade da pretensão da arguida: no acórdão recorrido, para determinação concreta das penas a aplicar à arguida, fez-se cuidada ponderação das circunstâncias enunciadas no art. 71º do CP que depunham a favor da arguida e contra ela e de que o tribunal tinha conhecimento; e, vistas as circunstâncias dadas como provadas e ponderadas no douto acórdão recorrido, há-de convir-se que as penas parcelares feitas corresponder aos crimes cometidos pela arguida se pecam é por defeito e não por excesso, o mesmo se podendo dizer da pena única fixada. Pena esta que, vista a sua medida, não pode obviamente ser suspensa na sua execução, por não permitir o normativo que estabelece os pressupostos dessa suspendo (art. 50º do CP).

4. A REGULARIDADE DO JULGAMENTO

4.1 Quando constituída arguida, a ora recorrente ficou sujeita «a termo de identidade e residência lavrado no processo» (art. 196.1 do Código de Processo Penal). E, «para o efeito de ser notificada por via postal simples, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 113º», indicou a sua residência. E, logo, a ela foi dado conhecimento - como do termo ficou a constar - «da obrigação de comparecer perante a autoridade competente (...) sempre que (...) para tal fosse devidamente notificada» (nº3.a), de que «as posteriores notificações lhe seriam feitas por via postal simples para a morada indicada» (nº 3.c) e, ainda, «de que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitimaria a sua representação por defensor em todos os actos processuais aos quais tivesse o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do art. 333º» (nº3.d).
4.2. Ora, a arguida, embora regularmente notificada («por via postal simples para a morada indicada» no termo de residência), «não esteve presente na hora designada para o início da audiência».
4.3. Impor-se-ia, por isso, que o presidente do tribunal tomasse «as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência» (art.333.1), que, porém, as não tomou «em virtude de a arguida se ter ausentado para parte incerta depois de ter prestado TIR» (cfr. o acórdão recorrido, a fls. 246/247), não tendo feito, entretanto, nenhuma das apresentações periódicas a que estava obrigada (v. fls.294).
4.4. A ausência da arguida «em parte incerta» justificava, pois, que - por inúteis (10) - se não tomassem, como não tomaram, as «medidas necessárias para obter a sua comparência».
4.5. E daí que a audiência, não tendo o tribunal «considerado absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a (...) presença da arguida desde o seu início» (art.333.1), pudesse - sem necessidade de despacho explícito nesse sentido - começar logo (como, efectivamente, começou), com a inquirição «das pessoas presentes» (nº 2): «Procedeu-se a julgamento na ausência da arguida, sendo representada para todos os efeitos pelo seu defensor, em virtude de se ter ausentado para parte incerta, depois de ter prestado TIR, tendo sido notificada para o julgamento no endereço indicado nesse mesmo TIR» (cfr. acórdão recorrido, fls. 246/247).
4.6. A arguida, aliás, «mantinha o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência» (art. 333.3), se entretanto se apresentasse.
4.7. Além de que o seu defensor nomeado poderia ter requerido - mas não requereu (pois ignoraria, como o tribunal, onde a arguida se encontrasse) - que ela «fosse ouvida na segunda data designada pelo juiz ao abrigo 312-2» (art.333.3).
4.8. Aliás, a arguida só viria a apresentar-se em juízo em 02Dez02 (cerca de seis meses e meio depois da condenação), quando já sobre ela pendiam mandados de captura para execução da medida de coacção, entretanto decretada, de prisão preventiva.
4.9. A audiência de julgamento «na ausência da arguida regularmente notificada» obedeceu pois, estritamente, ao ritual, pressupostos e condicionalismos legalmente determinados, não enfermando, por isso, de «nulidade» (designadamente a «nulidade insanável» cominada pelo art. 119.c para a «ausência do arguido nos casos em que a lei exigir e, no caso, não exigia a respectiva comparência»).

5. A REGULARIDADE DO ACÓRDÃO (I)

5.1 Tendo-se deparado, no decurso da audiência, com «uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação», o presidente do tribunal colectivo - como lhe impunha o art. 358.1 do Código de Processo Penal - «comunicou a alteração à arguida na pessoa do seu defensor» e só por que ela o não requereu (decerto porque dele não carecia) lhe não concedeu «tempo para a corresponde preparação da defesa»: «Durante a audiência foi comunicada aos arguidos alteração não substancial dos factos da acusação (..), mas os arguidos prescindiram de prazo para apresentar outros meios de prova no âmbito da alteração» (cfr. acórdão recorrido, a fls.247).
5.2. É certo que essa notificação não foi feita, pessoalmente, à arguida. Mas não teria que o ser. Por um lado, «as notificações do arguido podem ser feitas ao seu defensor» (art. 113º.9). E, por outro, porque o incumprimento por parte da arguida das obrigações por ela assumidas quando como tal constituída «legitimava a sua representação por defensor em todos os actos processuais incluindo «a audiência na sua ausência» nos quais tivesse o direito ou o dever de estar presente» (art. 196º3.d).
5.3. Não tem, pois, um mínimo de cabimento a afirmação da recorrente de que «em julgamento realizado na ausência da arguida, nunca, e em caso algum, se poderá dar efectivo cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal».

6. A REGULARIDADE DO ACÓRDÃO (II)

6.1. Também é totalmente descabida a afirmação da recorrente de que «se verificou nulidade processual insanável quando, em sede de acórdão condenatório, o tribunal a quo entendeu realizar o cúmulo jurídico de penas, em caso de concurso de crimes, sem obedecer à tramitação processual consagrada no artigo 471º e seguintes do Código de Processo Penal».
6.2. No caso, fazia parte do objecto do processo a unificação das penas decorrentes para a arguida quer da sua condenação nos autos quer («por imposição do comando do art. 78º do C.Penal») da condenação que, entretanto, ela sofrera, com trânsito em julgado, no processo comum singular 134/01.4GCTND do Tribunal de Tondela («uma vez que os factos agora em apreço são anteriores à condenação ali proferida»). (11). Daí que a respectiva temática pudesse ter sido discutida na própria audiência de julgamento, designadamente nas alegações orais (art. 360º e 361º) e por ocasião da apreciação, pelo tribunal, da «questão da determinação da pena» (art. 369º).

6.3. O processado específico p. pelo art. 472º, tem a ver com as situações - que não é, obviamente, a dos autos - em que o «conhecimento do concurso» é «superveniente» ao trânsito em julgado das várias condenações correspondente ao mesmo concurso criminoso.

7. A DETERMINAÇÃO DA PENAS

7.1. Sustenta a recorrente que o tribunal recorrido, «ao determinar a execução da pena de prisão, não valorou nenhum dos critérios legais a que está vinculado nesta matéria, cingindo-se apenas a presumir a culpabilidade da ora recorrente e à anterior conduta da agente, desconsiderando os restantes factores relevantes para determinar a natureza da pena a aplicar, designadamente a personalidade, as condições de vida do agente e, principalmente, as circunstâncias em que foi praticado o delito».

7.2. «Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente (..), considerando, nomeadamente, a «intensidade do dolo», os «sentimentos manifestados», os «fins ou motivos que o determinaram», as «condições pessoais do agente» e a sua «situação económica» (art.71.2).
7.3. Mas, no caso, o elenco dos factos provados é completamente omisso quanto, pelo menos, aos «fins ou motivos que determinaram» a arguida, às «condições pessoais da agente» e á sua «situação económica», sendo certo que ao «furto qualificado tentado» de 23Mai01, em Tondela, presidira - segundo a respectiva sentença - «o propósito de obter algum dinheiro, designadamente para aquisição de produtos de natureza estupefaciente que, à data, consumia».
7.4 Com efeito, o tribunal a quo - logo que «das deliberações e votações realizadas nos termos do artigo 368º do CPP resultou que à arguida devia ser aplicada uma pena» (art369.1 CPP) - desprezou, ante a ausência de produção de prova a respeito da sua «condição pessoal» e «condições sócio-económicas» e, ainda, dos «fins ou motivos que a determinaram», a (impreterível) «necessidade» de «prova suplementar para determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar» (art.369.2), designadamente «perícia sobre a sua personalidade», «relatório social» ou «informação dos serviços de reinserção social» (arts. 369º .1 e 370º).
7.5. Em suma, e apesar de nenhuma prova ter sido oferecida/produzida nesse fito, revelando-se «necessária» (pois que, não o tendo produzido, «nada» se ficou a saber a respeito da «condição pessoal» e das «condições sócio-económicas» da arguida e dos «fins ou motivos que a determinaram», um dos factores a que a lei manda atender «na determinação concreta da pena»), o tribunal a quo escusou-se a tomar a iniciativa da sua produção (art.s 340º.1 e 2 e 369º.2).

8. CONCLUSÃO

Se a «insuficiência para a decisão de direito da matéria de facto provada» (art. 410º.2.a do CPP) - vício que, resultando do texto da decisão recorrida, é oficiosamente cognoscível (assento 7/95 de 19Out95, DR I-A 28Dez95 e BMJ 450-72) - inviabilizar (como aqui) a «decisão da causa», o tribunal de recurso terá que se decidir pelo reenvio do processo para novo julgamento, de facto, relativamente à questão (de facto) das «condições pessoais dos agentes e da sua situação económica» e, de direito, relativamente ao reflexo dessas «condição» e «situação» na medida concreta da pena.

9. DECISÃO

Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em audiência:
a) nega as «nulidades» apontadas pela cidadã A ao seu julgamento, cuja regularidade confirma (audiência na ausência;
comunicação à arguida da alteração não substancial dos factos; o conhecimento superveniente do concurso);
b) mas, por insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, reenvia o processo para novo julgamento (pelo tribunal colectivo do juízo criminal de Viseu a que, à excepção do 3º, vier a tocar em redistribuição) relativamente (tão somente) às questões (de facto) das «condições pessoais» e «situação económica» da arguida e dos «fins ou motivos que a determinaram» e, bem entendido, à questão (de direito) do reflexo dessa «condição», «situação», «fins» e «motivos» na medida concreta das respectivas penas parcelares e conjunta.

Lisboa, 29 de Abril de 2003
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Simas Santos (com declaração que anexo)
Santos Carvalho.
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(1) Preventivamente presa desde 2Dez02.
(2) Juízes Belmiro Andrade, Manuel Almeida Cabral e Leonor Vasconcelos Esteves.
(3) Data em que o tribunal, depois de ler o acórdão perante «todas as pessoas convocadas», mandou passar mandados de detenção contra a arguida «a fim de a mesma ser notificada do acórdão» fls.276).
(4) Julgada «na sua ausência, com registo de prova, sendo representada para todos os efeitos pelo defensor» (fls. 222 e 407): «Procedeu-se a julgamento na ausência da arguida, sendo representada para todos os efeitos pelo seu defensor, em virtude de se ter ausentado para parte incerta, depois de ter prestado TIR, tendo sido notificada para o julgamento no endereço indicado nesse mesmo TIR» (acórdão de fls. 246/247). Aliás, a arguida não fizera, entretanto nenhuma das apresentações periódicas a que estava obrigada (fls. 294). Se bem que se tenha apresentado - depois de determinada a sua prisão preventiva - em 02Dez02 (data em que, finalmente, veio a ser notificada do acórdão - fls. 302).
(5) «Furtos nos vestuários de Oftalmologia e de Cirurgia II do Hospital de S. Teotónio, no Jardim Escola de Guimarães e no Centro de Saúde nº 3, falsificação de cinco cheques; entrega de quatro cheques para pagamento de mercadoria ou recebimento de troco».
(6) Inclusivo de mais um crime de furto qualificado tentado [tentativa, em 23Mai01, de subtracção de um cofre portátil com 200 contos, «com o propósito de obter algum dinheiro, designadamente para aquisição de produtos de natureza estupefaciente que, à data, consumia»] e de outro de ofensa à integridade física [um «empurrão» contra a ofendida, quando esta a surpreendeu em pleno acto], punidos, em 03Dez01, com as penas de 18 meses de prisão e de 6 meses de prisão, respectivamente (sentença 134/01.4GCTND do 2º Juízo de Tondela, transitada em julgado no dia 21Jan02-fls. 428 e ss.).
(7) Adv. João Lopes Bernardo (fls.305).
(8) Com a multa correspondente à prática do acto nº 3 dia útil posterior ao último dia do prazo (fls.393).
(9) Proc. Vítor Pereira Pinto.
(10) Sendo certo que «não é ilícito realizar no processo actos inúteis» (arts. 4º do Código de Processo Penal e 137º do Código de Processo Civil).
(11) « Sabendo-se que a pena vai ser efectivamente aplicada não é a pena parcelar, mas a pena conjunta, torna-se claro que só relativamente a esta tem sentido pôr a questão da sua substituição». Daí que, quanto ás penas parcelares, «a pena de prisão não deva, em princípio, ser substituída por uma pena não detentiva». Mas, se - como aqui - o tiver sido, «torna-se evidente que para efeito de formação da pena conjunta relevará a medida da prisão concretamente determinada» (ainda que «porventura tenha sido substituída»). E, só depois de «determinada a pena conjunta», é que, «sendo de prisão», «o tribunal decidirá se ela pode ser legalmente e deve político-criminalmente ser substituída por pena não detentiva» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, §§ 409 e 419).
Donde que a provisoriedade da substituição das penas parcelares obste, de si, à invocação, contra a unificação destas, do «trânsito em julgado» da «substituição» eventualmente operada em alguma das condenações avulsas. E assim porque tal «substituição» deve entender-se, sempre, resolutivamente condicionada ao «conhecimento superveniente do concurso» (STJ 13Fev03, 4097/02-5, Carmona da Mota - Pereira Madeira - Simas Santos).
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DECLARAÇÃO DE VOTO

Concordo inteiramente com o decidido no douto acórdão que antecede, salvo quanto à consequência extraída, da verificação do vício do art. 410º. nº 2, al. a) do CPP.
A meu ver impunha-se a anulação do acórdão e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (art. 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal. O reenvio tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida. Ora, no caso, trata-se de prova suplementar, ainda não produzida e em relação à qual o tribunal recorrido ainda não assumiu posição.

Lisboa, 29 de Abril de 2003
Simas Santos.