Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2151/18.6T8VCT.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
PATERNIDADE BIOLÓGICA
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário :
I - O direito ao conhecimento da paternidade biológica (direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), decorrência dos direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, assume a natureza de direito fundamental.
II - Enquanto direito fundamental impõe que os meios legais se mostrem adequados à sua plena concretização por forma a lograr obter, eficazmente, a coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico.
III - A existência de limitação temporal ao exercício deste direito, ainda que assente num princípio de proporcionalidade de direitos/interesses conflituantes, faz desmerecer a sua essência (direito pessoalíssimo e, por natureza, imprescritível) e põe em causa o equilíbrio que pretende instituir colocando em patamar equivalente interesses/valores (focalizados na segurança jurídica do investigado e das suas relações familiares protegendo a estabilidade da mesma) que, sem poderem ser desprezados, não poderão ser equacionados e tutelados de igual forma.
IV - Qualquer limitação temporal neste âmbito, ainda que se considere de prazo razoável, constitui uma compressão da revelação da verdade biológica, que é o princípio alicerçante do regime da filiação.
V - Consequentemente, a limitação temporal ínsita no n.º 1 do art. 1817.º do CC, viola, de forma desproporcionada, os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional (violando, entre outros, dos arts. 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da CRP).
Decisão Texto Integral:



Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório

1. AA., em 11 de Junho de 2018, propôs a acção declarativa para investigação da paternidade contra BB. pedindo:

a) Seja declarada e reconhecida, nos termos do disposto no art. 204º da nossa Lei Fundamental, a inconstitucionalidade material da norma ínsita art. 1817º, nº 1 do Código Civil (ex vi art. do Código Civil ), porque violadora, entre outros, dos arts.16.º, n.º1, 18.º, n.º 2 e 26.º, n.º 1, da CRP

b) Seja reconhecido e decretado que o Autor é filho do réu BB.

c) Seja ordenado o averbamento de tal paternidade e da avoenga daí resultante ao assento de nascimento do Autor;

d) Ser o réu condenado em custas e demais acréscimos.

Alegou para o efeito e essencialmente:

- ter nascido em …. de Agosto do ano de 1968 e encontrar-se registado como filho de CC., não constando do respectivo registo a identidade de seu pai;

- ter tomado conhecimento, em Agosto de 2017, por uma amiga da família, DD., que o Réu era seu pai, facto que ao confrontar sua mãe foi por esta confirmado;

- ter realizado nesse mesmo mês um teste de ADN que, segundo lhe transmitiram, confirmou a paternidade do Réu;

- ter-lhe o Réu proposto, em Fevereiro de 2018, mediante o pagamento de € 270.000,00 e para evitar acção judicial com vista ao estabelecimento da filiação, assinar documento onde declarava que há mais de 10 anos tinha conhecimento de que o Réu era seu pai.

- ter assinado tal documento na convicção de que o mesmo não punha em causa o facto de o Réu ser seu pai.

2. Após citação, o Réu contestou impugnando a factualidade alegada quanto à pretensa paternidade, excepcionando o caso julgado e a caducidade do direito de propor a presente acção (por o autor ter completado 18 anos em 24-08-1986, tendo há muito decorrido os 10 anos previstos no artigo 1817.º, do Código Civil).

Referiu que o Autor nos últimos vinte anos o vem abordando procurando respostas quanto à sua filiação resultando o documento assinado por aquele dessas insistências por forma a evitar acções judiciais que o mesmo ameaçava propor.

Invocou ainda abuso de direito do Autor ao propor a acção por a mesma ter por finalidade razões meramente de interesse monetário e por ter intentado acção após ter subscrito o acordo e recebido a quantia de € 270.000,00.

Concluiu pela procedência das excepções ou, caso assim não se entenda, a sentença a proferir de estabelecimento de paternidade limite as consequências desse reconhecimento, excluindo os efeitos patrimoniais, designadamente os direitos sucessórios.

2. O Autor respondeu às excepções pugnando pela sua improcedência.

3. No decurso da acção, em face do falecimento do Réu, foram julgados habilitados EE., FF., GG., HH., II. e JJ..

4. Foi proferido saneador que julgou improcedente a excepção de caso julgado e relegou para final o conhecimento das excepções de caducidade e abuso de direito.

3. Realizado julgamento foi proferida sentença, que julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção, considerou prejudicado o conhecimento da excepção de abuso de direito invocada pelo Réu e absolveu os Habilitados do pedido.

4. Inconformado o Autor apelou impugnando a matéria de facto fixada pela 1ª instância.

5. O Tribunal da Relação …… julgou improcedente o recurso, mantendo a sentença.

6. Interpôs o Autor recurso de revista excepcional ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil; subsidiariamente a alínea c) - (oposição entre o acórdão ora recorrido e o proferido por este Supremo Tribunal de Justiça de 15-11-2011, no âmbito do Processo n.º 49/07…….).

Formulou as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso de revista excepcional interposto do douto acórdão da Relação …….., notificado ao recorrente a 28/09/2020, que decidiu “(...) nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida”.

II. A questão de Direito que ora se traz a juízo deste Supremo Tribunal consiste em determinar se o prazo de caducidade para a acção investigatória da paternidade, previsto no art. 1817º, nº 1 do Código Civil (ex vi art. 1873º CC) é ou não conforme à nossa Constituição.

III. A este propósito, entendeu a Relação recorrida, em síntese, que: “Mantendo-se válidos os argumentos e fundamentos desde há muito considerados e relevados em forte corrente jurisprudencial de todas as Instâncias no sentido de que a norma do artº 1817º, nºs 1 e 3, alínea c), do Código Civil – prazos para a propositura de acção de investigação de paternidade –, não enferma de inconstitucionalidade, e tendo em conta idêntico entendimento maioritária do Plenário do Tribunal Constitucional reiterado e recentemente renovado no Acórdão nº 394/2019 – que a prudência e o pragmatismo aconselham a respeitar, dada a natureza e função de tal Órgão e a sua autoridade jurisdicional nesta matéria – reafirma-se a concordância e adesão a tal tese.” (cfr. sumário do douto acórdão recorrido).

IV. No modesto entendimento do impetrante, o entendimento sufragado pela Relação a quo viola os Princípios ínsitos nos arts. 18º, nºs 2 e 3, 26º, nº 1, 36º, nºs 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa.

V. O douto acórdão recorrido – que confirmou na íntegra a decisão de primeira instância, com igual fundamento jurídico quanto à questão da inconstitucionalidade ora suscitada – manteve o desfasamento entre a verdade biológica e verdade jurídica, que se afigura inadmissível.

VI. Isto porque foi realizado, nestes autos, exame hematológico (vulgo “exame de ADN”), de fls. 59 e ss dos autos, que determinou, com 99,9999999999999% de certeza que o recorrente AA. é filho do réu-investigado BB. – v. ainda Ponto 4 dos Factos Provados da sentença de primeira instância.

VII. A prova irrefutável da paternidade do investigado, produzida nestes autos, torna injusta a manutenção de uma situação jurídica que não o respectivo vínculo.

VIII. O direito fundamental ao “desenvolvimento da personalidade", constante do artigo 26º, nº 1, da CRP significa que o pretenso filho tem o direito de investigar e determinar as suas origens, a sua família, enquanto que para o investigado, se traduz no direito de ilidir a presunção de paternidade contrária à verdade biológica.

IX. A decisão de avançar para um processo de estabelecimento judicial da ascendência, biologicamente comprovada, convoca uma reflexão prévia e profunda sobre aspetos pessoalíssimos do investigante, de ordem moral e social, não compatíveis com a existência de prazos legais para o exercício deste direito.

X. Na investigação de paternidade estão em causa interesses indisponíveis do ser humano, como seja o direito à identidade pessoal (art. 26º CRP), nele se incluindo o direito a conhecer e a ver reconhecida a sua ascendência biológica.

XI. Através da ação, o investigante acautela o seu direito à verdade biológica, de saber quem é, de onde vem, direito que é pessoalíssimo, e por isso indisponível e imprescritível.

XII. Este direito a conhecer e ver legalmente reconhecida a origem genética é essencial para a identidade e constitutivo da personalidade de cada indivíduo.

XIII. O próprio direito fundamental de constituir família (art. 36º CRP), ao impor ao legislador a previsão de meios para o estabelecimento jurídico dos vínculos de filiação - os modos de perfilhar e a ação de investigação - acaba por ser denegado, por via de lei com valor inferior (o citado art. 1817º, nº 1 CC).

XIV. Também no direito a constituir família (art. 36º, nº 1 da CRP) inclui-se o de descobrir e ver reconhecida a paternidade e a maternidade.

XV. Ademais, o art. 36º, nº 4 da Constituição proíbe a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, o seu desfavorecimento ao verem limitadas as possibilidades de estabelecimento da sua filiação mediante prova do vínculo biológico – prova essa que, no caso em apreço foi feita: o exame de ADN confirmou,

com o grau máximo de certeza possível, que o recorrente é filho do falecido réu.

XVI. Assim, o estabelecimento do prazo de caducidade de dez anos previsto no art. 817º, nº 1 CC - ou de qualquer outro - para a propositura da acção investigatória da paternidade consubstancia uma restrição desproporcionada ao direito à identidade pessoal, à verdade biológica e ao direito a constituir família.

XVII. Daí que, no humilde entendimento do recorrente, o art. 1817º nº 1 do Código Civil (ex vi art. 1873º CC), ao determinar um prazo de caducidade de dez anos da acção de paternidade, contados da maioridade do investigante, é materialmente inconstitucional por violar o disposto nos arts. 16º, 18º, nº 2 e 3, 26º nº 1, 36º, nº 1 da nossa Constituição.

XVIII. Este entendimento tem aliás sido sufragado por várias decisões deste Supremo Tribunal, como sejam, inter alia, os Acórdãos de 14/05/2019 (P. 1731/16.9T8CSC.L1.S1, 1ª Secção, relatado pelo Conselheiro Paulo Sá), de 15/02/2018 (P. 2344/5.8T8BCL.G1.S2, 6ª Secção, relatado pela Conselheira Graça Amaral), de 31/10/2017 (P. 440/12.2TBBCL.G1.S1, 1ª Secção, relatado pelo Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves) e ainda de 14/01/2014, (P. 155/12.1TBVLCA. P1.S1, 1ª Secção, relatado pelo Conselheiro Martins de Sousa), todos disponíveis em www.dgsi.pt

XIX. A favor da constitucionalidade do art. 1817º, nº 1 CC, argumenta-se com a (in)segurança do investigado e da família mas, no modesto entender do impetrante, a segurança jurídica não tem acolhimento constitucional e conflituando o direito à verdade biológica com a “tranquilidade” do suposto pai (e/ou dos herdeiros) sempre tem aquele de prevalecer sobre este, pois que se trata de um direito fundamental.

XX. O reconhecimento jurídico da relação de filiação entre investigante e investigado é aliás a única forma justa – porque conforme à verdade - de terminar com essa insegurança.

XXI. Ademais, a iniquidade das decisões de primeira e segunda instâncias é flagrante, vista à luz do caso concreto: a manutenção do prazo de caducidade significaria que o direito de acção do impetrante (nascido a 24/08/1968) teria caducado no dia 24/08/1996, mas nesta data, o prazo de caducidade era de apenas dois anos (na versão do art. 1817º, nº 1 CC então vigente, que resultou do D.L. nº496/77, de 25/11, já que o actual prazo foi introduzido pela Lei nº 14/2009, de 01/04),

XXII. Assim, na prática, o recorrente nunca dispôs de mais do que dois anos, contados da respectiva maioridade, para propor esta acção - prazo este declarado inconstitucional pelo Acórdão do T. Constitucional nº 23/2006 de 10/01/06 - ou seja, até 24/08/1988, data em inexistiam “exames de ADN” em Portugal!

XXIII. Por tudo quanto se vem de dizer, deveria a Relação a quo ter decidido que o art. 1817º, nº 1 do Código Civil, aplicável ex vi art. 1873º CC, padece de inconstitucionalidade material, não o aplicando, e consequentemente ter julgado a ação tempestiva e procedente.

XXIV. Ao não o fazer, violou o aresto revidendo as normas ínsitas nos arts. 16º, 18º, nº 2 e 3, 26º, nº 1 e 36º, nºs 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa.

XXV. Devendo o douto acórdão a quo ser revogado e substituído por outro que, considerando não precludido o direito de acção do recorrente, o reconheça como filho investigado réu BB., com as legais consequências.”.

7. Os Réus pugnaram pela improcedência do recurso.

8. Por decisão da Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3, do CPC, a revista excepcional foi admitida ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 2, alínea b), do CPC.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil, doravante CPC), impõe-se conhecer a seguinte questão:
ð Da caducidade do direito de acção

1. Os factos

1.1 Provados
1. O autor nasceu no dia …../8/1968 e foi registado como filho de CC. – documento de fls. 7 vº.
2. O autor foi emigrante em ……. desde o ano de 1991 até 2018.
3. A mãe do autor manteve com o falecido BB. relações de cópula completa nos primeiros 120 dias dos trezentos que antecederam o nascimento do autor.
4. Foi na sequência dessas relações sexuais que a mãe do autor engravidou, gestação da qual nasceu o autor.
5. O autor interpelou o falecido BB. para que este assumisse a paternidade.
6. O autor acedeu a realizar um teste de ADN e, em Novembro de 2017, foi-lhe dito que o falecido BB. era seu pai biológico.
7. Em Fevereiro de 2018 o réu propôs ao autor a subscrição do documento de fls. 8, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
8. Contra a subscrição desse documento, o autor recebeu a quantia de € 25.000,00 em cheque e a quantia de € 245.000,00 em numerário.
9. Na mesma data foi apresentada ao autor a minuta da carta junta a fls. 9 vº, que aqui se dá por reproduzida, para este copiar o respectivo teor, manuscrevê-la e datá-la, o que o autor fez.
10. O autor tem a quarta classe.
11. O falecido BB. era homem de posses e pessoa reconhecida e estimada em ……..
12. Há mais de vinte anos que o autor sabia que o falecido BB. era seu pai.
13. O documento referido no ponto 7 resultou das negociações havidas entre os advogados do autor e do réu e foi aceite pelo réu para evitar o desgaste das acções judicias que o autor ameaçava propor.
14. O autor comprometia-se, com a assinatura do referido documento e após ter recebido a quantia de € 270,00, a não intentar acção com vista ao reconhecimento da paternidade.

1.2. Não provados

- A mãe do autor sempre se escusou a revelar-lhe entidade de seu pai;

- Só no mês de Agosto de 2017, uma amiga da família revelou ao autor que seu pai era o réu BB., o que só então foi confirmado pela sua mãe;

- O autor apenas assinou os documentos referidos nos pontos 7,8 e 9 na convicção de os mesmos confirmarem ser o réu seu pai;

- Nos últimos vinte anos o autor abordou o réu procurando respostas quanto à sua filiação;

- No meio de ….. constava-se que o autor era filho do réu, rumor que se iniciou logo após ter decorrido processo de averiguação da paternidade;

- Há vinte anos o autor abordou o réu no seu estabelecimento …… dizendo que era seu filho e pedindo-lhe dinheiro pois estava com dificuldades financeiras;

- Há cerca de 15 anos, numa casa que o réu tinha no……, disse ao réu, à frente de quem lá estava, que tinha a certeza que era seu filho;

- Há 12 anos, no ..…….., no centro de …….., perante quem lá estava disse ao réu que este era seu pai e que iria ter direito ao que lhe pertencia;

- A última vez, o autor dirigiu uma carta ao réu em que reconhece que tem conhecimento que é seu filho há mais de 20 anos

2. O direito

O acórdão recorrido, na sequência do decidido na sentença, concluiu no sentido da caducidade do direito do Autor accionar os Réus por decurso do prazo de 10 anos previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil[1].

Este entendimento mostra-se alicerçado nas seguintes premissas:

- tendo o Autor nascido em 24-08-1960, atingido a maioridade legal em 24-08-1978 e instaurado a presente acção em 11-06-2018, há muito se havia esgotado (em 1988) o prazo previsto no n.º 1, do artigo 1817.º, do CC;

- não ter ficado provado (em insucesso da impugnação da decisão de facto) que apenas em Agosto de 2017 o Autor tomou conhecimento de que que o Réu era seu pai;

- ser de aplicar o artigo 1817.º, n.º 1, do CC, por não padecer de inconstitucionalidade material, conforme o entendeu o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 394/2019, de 3 de Julho, que decidiu pela constitucionalidade da referida norma.

A esta decisão contrapõe o Recorrente defendendo a inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do CC.
Os posicionamentos em confronto prendem-se, assim e apenas, com a questão da (in)constitucionalidade da norma aplicada pelo tribunal recorrido (artigo 1817.º, n.º 1, do CC), que constituiu o fundamento jurídico da decisão que declarou a caducidade do direito de acção do Autor.
Embora cientes do entendimento (maioritário) assumido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 394/19, de 03-07, o posicionamento que perfilhamos quanto à questão (expressado já no acórdão deste tribunal de 15-02-2018, proferido no Processo n.º 2344/15.8T8BCL.G1.S2)[2] não se alterou porquanto, não obstante ter sido atingido o consenso quanto à natureza do direito ao conhecimento da paternidade biológica - elegido à categoria de direito fundamental[3] - o mesmo não acontece quanto à adequação dos meios legais existentes à sua plena concretização.

1. O olhar retrospectivo da questão da limitação temporal do exercício do direito de investigar a paternidade por parte do pretenso filho indica-nos que as alterações legislativas ocorridas nesse âmbito foram, naturalmente, inspiradas pelas perspectivas político-sociais dos seus promotores e a evolução foi, sem sombra de dúvida, no sentido de representar um esforço para protecção dos direitos e interesses das pessoas envolvidas.

Atingido que foi o patamar de consenso quanto à natureza do direito ao conhecimento da paternidade biológica (enquanto direito fundamental), a questão que se passou a colocar foi a da adequação dos meios legais existentes à sua plena concretização, pelo que se mantém a discussão quanto à constitucionalidade dos entraves temporais legalmente estabelecidos por desrespeito pela suficiência de tutela que tal direito fundamental merece.

Não se dúvida de que a efectivação da tutela deste direito pressupõe obter, eficazmente, a coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico.

Tal objectivo, embora encarado pela lei como essencial na tutela a atingir, não foi levado até às suas últimas consequências que, necessariamente, radicariam num princípio de imprescritibilidade do direito de cada indivíduo investigar e conhecer as suas origens genéticas, com os efeitos daí decorrentes em termos de estabelecimento de relação de filiação (no caso, de paternidade).

O legislador de 2009, ao não seguir a tendência generalizada dos ordenamentos jurídicos que lhe são próximos, não suprimindo os limites temporais ao exercício do direito de investigar/conhecer a paternidade, mantém acesa a discussão quanto à constitucionalidade dos entraves temporais estabelecidos por desrespeito pela suficiência de tutela que tal direito fundamental merece.

2. No que toca ao prazo de dez anos de caducidade, não obstante o sentido da actual jurisprudência preponderante do Tribunal Constitucional manifestada no recente acórdão n.º 394/19[4] ao emitir juízo de não inconstitucionalidade da norma do artigo 1817º, nº 1, do CC, entendendo que o prazo aí fixado para a propositura da acção de investigação concretiza, de forma adequada e proporcional, uma indispensável harmonização entre os direitos fundamentais, quer do investigante (pessoa já adulta e formada), quer do investigado (pessoa em fase avançada do seu percurso de vida, no caso, entretanto falecido) e seus familiares[5], não dissipou as vozes dissonantes que continuam a questionar, com acuidade, as razões em que se fundamenta um tal juízo de conformação constitucional.

Continuamos, por isso, a acompanhar todos aqueles que defendem que a razoabilidade da limitação temporal, assentando num princípio de proporcionalidade de direitos e interesses conflituantes, encarada sob o prisma do investigante, faz desmerecer a natureza do seu direito (direito pessoalíssimo e, por natureza, imprescritível)[6]/[7]e põe em causa o equilíbrio que pretende instituir, pois coloca em patamar equivalente interesses/valores (focalizados na segurança jurídica do investigado e das suas relações familiares protegendo a estabilidade da mesma) que, sem poderem ser desprezados, não poderão ser equacionados e tutelados de igual forma.

Não podemos deixar de considerar que qualquer limitação temporal neste âmbito, ainda que se considere de prazo razoável, constitui uma compressão da revelação da verdade biológica, que é o princípio alicerçante do regime da filiação e, nesse sentido, os direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (onde se inclui o direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), reconhecidos constitucionalmente enquanto direitos fundamentais, não podem deixar de ganham uma dimensão, que não se compagina com a fixação de qualquer prazo condicionante da instauração de acção de paternidade ou maternidade.

Consequentemente, a limitação temporal ínsita no n.º 1 do artigo 1817.º do CC, viola, de forma desproporcionada, tais direitos fundamentais e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional (violando, entre outros, os arts. 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2 e 26.º, n.º 1, da CRP).

Assim sendo, como já considerámos na decisão deste colectivo proferida em -15-02-2018, não descurando o entendimento maioritário assumido pelo Tribunal Constitucional (decidindo no sentido da constitucionalidade da fixação do prazo de caducidade[8]) e a competência própria do mesmo neste domínio, entendemos que a perspectiva de não ser acolhido por aquele Tribunal o posicionamento que consideramos por correcto, não nos pode desautorizar de decidir pela desaplicação, ao caso concreto, do artigo 1817.º, n.º 1, do CC, porque materialmente inconstitucional[9].

Há, assim, que concluir pela tempestividade da instauração da acção e, como tal, pela improcedência da excepção de caducidade ao invés do decidido pelo tribunal a quo.

Procedem, por isso, as conclusões da revista.

III - Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista procedente e, em consequência, não aplicando o artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, porque materialmente inconstitucional, revogam o acórdão recorrido e julgam improcedente a excepção de caducidade, devendo os autos baixar ao tribunal da Relação para conhecimento da excepção de abuso de direito invocada pelo Réu e considerada pelas instâncias prejudicada face à procedência da excepção de caducidade decidida.
Custas pelos Recorridos.


Lisboa, 26 de Janeiro de 2021

Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Doravante sob a designação CC.
[2] Acessível através das Base Documentais do ITIJ.
[3]Enquanto decorrência do direito à identidade pessoal (onde se encontra incluída a identidade genética, que o artigo 26.º, n.º 3, da CRP, considera constitucionalmente relevante) e à integridade pessoal (artigo 25.º), não dissociável do direito ao desenvolvimento da personalidade e do direito ao conhecimento das próprias raízes, o direito à historicidade pessoal (quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas, culturais e genéticas de cada indivíduo).

[4] Que decidiu Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redação da Lei nº 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
[5] Acórdão deste tribunal de 24-11-2020, Processo n.º 6554/15.0T8MAI.P1.S2, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[6] Como salienta o Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro no voto de vencido ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 401/2011, a “apreciação da conveniência em determinar a identidade do seu progenitor, como elemento da sua identidade pessoal, corresponde a uma faculdade eminentemente pessoal, em que apenas pode imperar o critério do próprio filho.
[7] Guilherme de Oliveira fala no dever jurídico de perfilhar por parte do pai biológico - “Não dou relevância à liberdade de não ser considerado pai, só pelo facto de terem passado muitos anos sobre a concepção, pai e filho estão inexoravelmente ligados e tanto o princípio da verdade biológica que inspira o nosso direito da filiação quanto as noções de responsabilidade individual a que adiro não reconhecem a faculdade de o pai biológico se eximir à responsabilidade jurídica correspondente.” – “Caducidade das acções de investigação”, Lex Familiae, revista portuguesa de direito da família.

[8] A configuração feita no acórdão sobre o juízo de conciliação dos interesses em causa - comparando os benefícios, individuais e sociais, acima descritos, assegurados pelo prazo de caducidade, com os custos, essencialmente patrimoniais, sofridos pelo investigante por causa da sua inobservância, parece claro que não estamos perante uma medida legal desproporcional, e, muito menos, manifestamente desproporcional - mantêm pertinentes, as críticas tecidas pelo Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro na sua declaração de voto de vencido ao juízo de constitucionalidade proferido no acórdão n.º 401/2011 ao posicionamento que fez maioria e que assentam numa incorrecta ponderação dos valores/interesses em contraposição (tutela do interesse ao preenchimento completo dos dados de identificação pessoal e tutela de um interesse de segurança e estabilidade familiar e patrimonial do investigado) traduzida, essencialmente, quer na inconsideração da natureza dos direitos titulados pelo investigante (que não se compadece com qualquer limitação temporal para exercer a respectiva tutela dos mesmos), quer na sobrevalorização dos interesses justificadores da temporalidade do direito, atribuindo-lhes um valor constitucional que não têm (nas suas palavras: o acórdão falha rotundamente a operação de ponderação em que a decisão assenta. É assim porque sobrevaloriza indevidamente as razões de segurança jurídica, atribuindo-lhes um peso que elas constitucionalmente não têm).
[9] A admissibilidade da presente revista excepcional pressupõe que se está perante uma questão que não se encontra acabada.