Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1659
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PROVA POR CONFISSÃO
PROVA POR DOCUMENTOS PARTICULARES
PROVA TESTEMUNHAL
PROVA PLENA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
MORA DO DEVEDOR
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ20070531016597
Data do Acordão: 05/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. A decisão da matéria de facto baseada em documentos particulares insusceptíveis de produzir prova plena e em depoimentos não confessórios excede o âmbito do recurso de revista.
2. O exame crítico das provas a que se reporta o n.º 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil limita-se praticamente à consideração, na sentença ou no acórdão, dos factos omitidos na selecção da matéria de facto provados por confissão, acordo das partes ou documentos com força probatória plena.
3. Omitindo o credor da prestação do serviço de estudo técnico culposamente a obrigação de pagamento atempado do respectivo preço, deve ser condenado a satisfazê-lo ao concernente credor, acrescido da indemnização pelo atraso correspondente aos juros de mora.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA intentou, no dia 11 de Julho de 2001 contra BB SA, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 5 985 753$ e juros vincendos, com fundamento na falta de pagamento de 5 000 000$, parte do preço relativo a serviço consubstanciado num estudo técnico referente ao sector têxtil de Castanheira de Pêra, a pagar no prazo de 60 dias, contado de 25 de Junho de 1998, prestados no âmbito de um contrato de prestação de serviços entre ambos celebrado.
Em contestação, a ré impugnou a factualidade alegada pela autora, afirmando não ter sido ela quem encomendou o referido estudo, ter sido usada como estrutura societária de suporte ao arranque da sociedade SDR-Ribeira de Pêra SA, e que foi esta quem procedeu à encomenda, ser, por isso, parte ilegítima.
Replicou a autora, pugnando pela improcedência da matéria excepcionada pela ré e pedindo a condenação desta como litigante de má-fé no pagamento de multa e indemnização em montante a fixar pelo Tribunal.
Foi concedido à ré, por despacho proferido pelos serviços de segurança social proferido no dia 9 de Novembro de 2001, o apoio judiciário nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de pagamento de honorários a advogado escolhido.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 10 de Janeiro de 2006. por via da qual a ré foi absolvida do pedido e se declarou a não indiciação da litigância de má fé. Apelou a autora, impugnando também a decisão da matéria de facto, e a Relação, por acórdão proferido no dia 14 de Dezembro de 2006, depois de alterar aquela decisão, condenou a apelada a pagar ao apelante a quantia de € 24 939,89 e juros.

Interpôs a apelada recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- resulta da prova testemunhal que a recorrente não celebrou o contrato de prestação de serviços, e que o mesmo foi celebrado entre o recorrido e o Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas, por intermédio de Marília e do presidente do Município de Castanheira de Pera;
- foi a sociedade irregular SDR Ribeira de Pêra SA e não a recorrente quem pagou 4 950 000$ ao recorrido;
- a Relação não teve em conta o depoimento das testemunhas nem os documentos juntos pela recorrente que, só por si, comprovam a veracidade dos factos que alegou;
- a Relação decidiu do modo como o fez por não ter valorado a realidade factual, omitindo que não foram apresentadas provas cabais que fundamentassem a posição do recorrido, tal como não fez uma correcta interpretação de alguns factos;
- a Relação não podia ter alterado a matéria de dada como provada em primeira instância, devendo manter-se a sentença, por não ser nula nem inválida;
- a Relação não aplicou devidamente a lei aos factos, nem fundamentou correctamente a decisão proferida, violando o nº 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil.

Respondeu o recorrido, em síntese de conclusão:
- o recurso não é admissível, porque a recorrente só pôs em causa a decisão da matéria de facto, sem identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
- o recurso é manifestamente improcedente porque inadmissível, pelo que deve ser liminarmente rejeitado, nos termos do artigo 690º-A, nº 1 do Código de Processo Civil;
- o recorrido apenas contratou com a recorrente, que lhe encomendou os serviços que prestou;
- não está provado ter o contrato sido celebrado entre o recorrido e o Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas;
- a decisão da matéria de facto foi legalmente alterada pela Relação porque a prova documental a testemunhal revelam ser a recorrente devedora da quantia peticionada;
- a acórdão recorrido não esta afectado de qualquer erro ou omissão na apreciação das provas.

II
É a seguinte a factualidade declarada assente no acórdão recorrido:
1. O autor é uma instituição de utilidade pública, sem fins lucrativos que tem como objectivos o aumento da competitividade das empresas dos sectores abrangidos, através da organização de estruturas técnicas e tecnológicas de apoio e promoção às indústrias têxtil e do vestuário nacionais.
2. No exercício das respectivas actividades, o autor realizou e prestou à ré um estudo técnico referente ao sector têxtil de Castanheira de Pêra, discriminado na factura nº 285/98, emitida no dia 25 de Junho de 1998, no montante de 9 945.000$.
3. A ré não reclamou do preço nem da qualidade dos serviços prestados pelo autor, tendo-os considerados conformes com o por si encomendado.
4. Os serviços prestados à ré deveriam ser pagos 60 dias após a data da emissão da factura, mas só em 31 de Dezembro de 1999 veio a ser efectuado um pagamento no valor de 4 945 000$.
5. A ré foi utilizada como estrutura societária de suporte ao arranque e implementação da SDR - Ribeirapera SA, dando à mesma apoio em termos administrativos.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se deve ou não manter-se a condenação da recorrente a pagar à recorrida a quantia de € 24 939,89 e juros.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão da Relação e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente e pelo recorrido, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- pressupostos do conhecimento da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça;
- pode ou não este Tribunal sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação?
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e o recorrido;
- infringiu ou não a Relação as regras relativas à fundamentação do acórdão?
- os factos provados são ou não susceptíveis de fundar juridicamente a decisão de direito proferida pela Relação?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise dos pressupostos do conhecimento da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, pode sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
Em consequência, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.

2.
Atentemos agora na sub-questão de saber se este Tribunal tem ou não competência funcional para sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação.
A recorrente põe em causa no recurso de revista a decisão da Relação de alteração da matéria de facto, sob o fundamento de não ter sido ela a outorgar no contrato de prestação de serviço celebrado com o recorrido.
A Relação alterou a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, essencialmente a que resultou da resposta aos quesitos primeiro, segundo e quinto e de outros quesitos conexos.
Para tanto, baseou-se, por um lado, em documentos particulares que, pela sua estrutura e fim, são insusceptíveis de implicar a produção de prova plena (artigos 363º, nºs 1 e 2, 374º, nº 1 e 376º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
E, por outro, na apreciação de uma pluralidade de depoimentos produzidos no processo que haviam sido gravados.
Assim, a Relação apreciou e alterou a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, no que concerne às respostas a vários quesitos.
Com o efeito, aos quesitos primeiro e quinto foi respondido, respectivamente, provado e não provado e, na decorrência da resposta ao quesito primeiro, foram alteradas as respostas aos quesitos segundo, terceiro e quarto.
Conforme decorre do acórdão recorrido, a referida alteração da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da primeira instância baseou-se em prova de livre apreciação judicial (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Em consequência, dada a limitação da competência funcional deste Tribunal no conhecimento da matéria de facto, não pode sindicar a decisão que foi proferida pela Relação e que a recorrente impugnou no recurso.

3.
Vejamos agora a natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e o recorrido.
A lei caracteriza o contrato de prestação de serviço como aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (artigo 1154º do Código Civil).
Ao referido contrato são aplicáveis, sob adaptação, as regras concernentes ao contrato de mandato (artigo 1156º do Código Civil).
Resulta dos factos provados que as partes celebraram um contrato de prestação de serviço, do qual resultou para o recorrido a obrigação de realizar determinado estudo sobre o sector têxtil de Castanheira de Pêra e para a recorrente a obrigação de pagar o preço convencionado.

4.
Atentemos agora sobre se a Relação infringiu ou não as regras relativas à fundamentação do acórdão.
Alegou a recorrente que a Relação não fundamentou correctamente a decisão proferida, violando o nº 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil.
A lei expressa, com efeito, que na fundamentação da sentença ou do acórdão, deve o juiz ou o colectivo de juízes como é o caso da Relação, tomar em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer (artigos 659º, n.º 3, 713º, n.º 2, e 726º do Código de Processo Civil).
O exame crítico das provas a que este normativo se reporta não tem o sentido que a mesma expressão tem no n.º 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil, porque nesta última situação, e não naquela, está implicada a própria decisão da matéria de facto.
Como é plena a força probatória da confissão, do acordo das partes e dos documentos em causa, o exame crítico das provas a que se refere o n.º 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil limita-se praticamente à operação do juiz ou do colectivo de juízes de registar e considerar os factos cobertos por aqueles meios de prova.
Ao invés do que a recorrente refere, não se vislumbra que Relação tenha desconsiderado algum dos factos provados por via da prova plena a que alude o n.º 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil.
Em consequência não tem apoio legal a alegação de falta de fundamentação do acórdão por referência ao disposto no naquele normativo, ou a qualquer outro.

5.
Vejamos agora a sub-questão de saber se os factos provados justificam legalmente a decisão de mérito da Relação.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos, ou seja, a prestação debitória deve ser realizada de acordo com o estipulado quanto ao tempo, ao modo e ao lugar respectivos (artigos 406º, nº 1 e 762º, nº 1 e 763º do Código Civil).
Enquanto o recorrido cumpriu a sua obrigação de prestação do serviço convencionado, a recorrente apenas pagou àquela parte do respectivo preço, deixando de pagar o restante no prazo acordado.
Como a recorrente não demonstrou o contrário, importa concluir que a sua omissão de pagamento da referida parte do preço é culposa (artigos 350º, nº 2 e 799º, nº 1, do Código Civil).
Assim, está a recorrente na situação de mora e, consequentemente, deve indemnizar o recorrido pelo atraso de cumprimento por valor correspondente ao dos juros de mora (artigos 804º e 805º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código Civil).
A conclusão é, por isso, no sentido de que os factos provados são susceptíveis de fundar juridicamente a decisão de direito proferida pela Relação.

6.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Este Tribunal não tem competência funcional para sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação.
O recorrido e a recorrente celebraram um contrato de prestação de serviço, em relação ao qual o primeiro cumpriu a sua obrigação de realização do serviço, mas outro tanto não sucedeu em relação a última quanto à sua prestação integral de pagamento do preço.
Como a recorrente se constituiu na situação de mora, deve ser condenada no pagamento do preço em falta acrescido da indemnização por referência aos juros de mora à taxa legal.
A Relação aplicou correctamente a lei aos factos provados e não infringiu o disposto no nº 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil.


Improcede, por isso, o recurso.
Vencida é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como a recorrente beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, tendo em conta o disposto nos artigos 15º, alínea a), 37º, nº 1 e 54º, nºs 1 a 3, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que seja condenado no pagamento das referidas custas.
O Advogado ..., porque à recorrente também foi o concedido o apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários ao advogado escolhido, tem direito a perceber honorários pagos pelo erário público relativos ao instrumento do recurso de revista que subscreveu (artigos 3º, nº 1, 15º, alínea c) e 48º, nº 1, da Lei nº 30-E/, 2000, de 20 de Dezembro).
Tendo em conta o valor da acção, tem o referido causídico direito perceber do sucessor do Cofre Geral dos Tribunais, a quantia de € 192 (artigos 12º, nº 1, do Código Civil e nº 2.4.1 da Portaria nº 150/2002, de 19 de Fevereiro).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e fixam-se os honorários devidos pelo sucessor do Cofre Geral dos Tribunais ao advogado ...... no montante de cento e noventa e dois euros.

Lisboa, 31 de Maio de 2007.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis