Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
960/21.8T8GRD.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREÍRA LOPES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRISÃO PREVENTIVA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
FACTOS PROVADOS
FACTOS NÃO PROVADOS
CONTRADIÇÃO
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I - A contradição entre factos provados e factos não provados não integra a nulidade do nº1, alínea c) do art. 615º do CPC, já que não se trata de contradição entre os fundamentos e a decisão;

II - Verificada contradição insanável entre a matéria de facto provada e a não provada, que inviabilize a decisão jurídica do pleito, o STJ deve remeter o processo à Relação, a fim ser suprida tal contradição;

III – Estando apenas em causa o montante indemnizatório por danos não patrimoniais por prisão preventiva, fixado com recurso à equidade, a intervenção do STJ é primacialmente verificar se o quantum indemnizatório está em linha com os valores que vêm sendo atribuídas pelo Supremo em casos paralelos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o Estado Português, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de €21.592,96 a título de danos patrimoniais e a quantia de 55.200,00 euros a título de danos não patrimoniais.

Como fundamento alegou, em resumo, ter sido constituído arguido no P. nº 266/16...., e sujeito a medidas de coação de proibição de contactar, por qualquer meio e por qualquer forma, com as vítimas e testemunhas identificadas no processo, e de obrigação de permanência na habitação, num total de 276 dias, vindo a ser absolvido por acórdão de 19.12.2019, confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

O Réu Estado Português contestou, impugnando os factos alegados pelo Autor, defendendo que não se verificam os requisitos para a procedência do pedido, por não se demonstrar que o Autor tenha sido absolvido no processo por não ter praticado os factos de que era acusado, mas sim pela aplicação do princípio do in dubio pro reo, pedindo ainda a condenação daquele como litigante de má fé.

Realizado julgamento, foi proferida sentença que absolveu o Réu do pedido e condenou o Autor como litigante de má fé na multa de 10 UCs.

Irresignado com o assim decidido, o Autor interpôs recurso de apelação.

Por acórdão da Relação de Coimbra de 22 de Novembro de 2022, a apelação foi julgada procedente em parte, tendo o Estado Português sido condenado a pagar ao autor, a quantia de 27.500,00 € (vinte e sete mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais.


Deste acórdão vem interposto revista pelo Réu Estado, representado pelo Ministério Público, no qual formula as seguintes conclusões:

1ª. Com o presente recurso visa-se a impugnação do douto Acórdão recorrido nas questões seguintes: i) Nulidade do douto acórdão nos termos do art.º 615º, nº 1, al. c), do CPC; ii) O montante da indemnização fixado por danos não patrimoniais sofridos pelo Autor.

2ª. No douto acórdão recorrido, os itens da matéria de facto considerada como provada sob os nºs 21.; 22.; 27. e 28. (cfr. fls. 30 do douto acórdão), mostram estar em contradição com os últimos cinco itens dos Factos Não Provados (cfr. fls. 41 e 42).

3ª. E na fundamentação, a pág. 48, último parágrafo, do douto acórdão, motivador para a atribuição da indemnização por danos não patrimoniais ao Autor, foi considerado que “A privação da liberdade gerou no autor as consequências e constrangimentos a que se alude nos itens 21.º a 29.º e 63.º a 67.º, de que ressaltam a tristeza e angústia que sentiu, noites sem dormir, alergia causada pelo dispositivo de vigilância que determinou um episódio de urgência hospitalar e os comentários e reflexos de tal situação na comunidade em que vivia.

4ª. Assim, aquela factualidade, mencionada nas anteriores conclusões importou na fixação do quantum indemnizatório, parecendo não se alcançar como foi a mesma tida em conta:

- quando se deu como não provado que o Autor se sentiu infeliz e que viveu cabisbaixo durante o período de tempo em que vigorou a OPHVE, conforme últimos cinco itens dos Factos Não Provados, e

- em que proporção/medida é que isso contribuiu para a fixação do valor atribuído a título de indemnização por danos não patrimoniais, e/ou quais foram, afinal e em concreto, os danos que, a este nível, foram considerados e em que termos.

5ª. Assim, nesta parte, os fundamentos fácticos do douto acórdão recorrido estão em oposição com a decisão o que acarreta a sua nulidade nos termos do art.º 615º, nº1, al. c) do CPC, na medida em que enferma de nulidade a decisão a que falte clareza e precisão na indicação da matéria de facto, pois uma deficiente ou obscura alusão aos factos provados ou não provados pode afectar a compreensibilidade do acervo fáctico que se tem por relevante para sustentar a decisão da causa, comprometendo o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contendendo com o acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva.

. Termos em que, deve ser declarada a nulidade invocada para todos os efeitos legais, nomeadamente, anular-se o douto acórdão recorrido e determinar-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de modo a que possa eliminar a apontada contradição factual, inviabilizadora, em parte, da solução jurídica dada ao presente pleito.

7ª. Dispõe o artigo 496.º n.º 1, do Código Civil que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito», sendo o montante da indemnização fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º do referido diploma (ex vi do n.º 4 do citado artigo 496.º), designadamente o grau de culpabilidade do agente e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.”

8ª.O montante da indemnização por dano não patrimonial é fixado pelo juiz, segundo um critério de equidade, como resulta da primeira parte do n.º 4 do artigo 496.º, o que significa, conforme afirma a jurisprudência secundando as palavras de Pires de Lima e de Antunes Varela, «atender ao condicionalismo de cada caso concreto, com vista a alcançar a solução equilibrada e justa, havendo que ter presentes as regras da boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e a criteriosa ponderação das realidades da vida, bem como os padrões de indemnização adoptados pela jurisprudência.”

. Ora, por um lado, no douto acórdão recorrido, pelo menos de modo expresso, não se mencionam circunstâncias que aqui relevam, designadamente:

- Se o Autor recorreu a algum especialista para tratar de algum desconforto emocional, se ficou com problemas para o futuro, etc.

- Se recorreu da medida coativa que lhe foi imposta ou se pediu a sua revogação/cessação e, se sim, qual a decisão proferida. Se não o fez, isso terá de ser ponderado negativamente num cálculo indemnizatório, já que o Autor se conformou com a sua situação e tolerou que a mesma ocorresse e se mantivesse

- Não ter sido esclarecido que comentários ou que angústias com eles relacionados importunavam o Autor, se os relacionados com os factos imputados na acusação se aqueles que resultaram provados em julgamento, nomeadamente, que não procedia ao pagamento de salários aos assistentes, nem aos descontos para qualquer sistema de protecção social, que o quarto dos assistentes não tinha aquecimento nem casa de banho, etc. [cfr. factos provados sob o nº 30./8./11., a fls. 31 do douto acórdão recorrido].

10ª. Sendo que “Ao Supremo Tribunal de Justiça é legítimo apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art.  682.º, n.º 3, do CPC. E que a necessidade de ampliação da matéria de facto determina a anulação do acórdão pelo STJ e a remessa à Relação para novo julgamento, nos termos dos art.ºs 682.º, n.º 3 e 683.º, ambos do CPC.”

11ª. Acresce, por outro lado, que, atento o facto de o Autor ter estado em OPHVE, junto da família e com um regime que lhe permitiu, durante muito tempo, cuidar dos animais que possuía como forma de rendimento e, também, explorando um café “nos moldes em que o fazia antes”, conforme parte final de fls. 48 do douto acórdão e matéria de facto considerada provada, sob os nºs 18., 39., 41., 43., 44., 45., 47 e, em particular, 52., o valor fixado será de considerar elevado.

12ª.  Com efeito, não obstante a ausência de um critério uniforme nas decisões dos Tribunais Superiores na fixação de valor compensatório por danos não patrimoniais, permitimo-nos referenciar o ac. da Rel. de Coimbra, de 12.07.2022, no proc. nº4978/16.4T8VIS.C1 (relator o Senhor Juiz Desembargador Carlos Moreira – ainda não transitado em julgado -), em que o Autor esteve sujeito à medida de coação de prisão preventiva por 325 dias, tendo sido considerada adequada a compensação, por danos não patrimoniais, de € 10.000,00 (dez mil euros). Bem como, o ac. da Relação de Lisboa de 30.09.2014, no proc. n.º 2208/11.4TVLSB.L1-7, (Relator o Senhor Juiz Desembargador José Pimentel Marcos), onde se analisa uma situação do artigo 225.º, n.º 1, alínea c) do C.P.Penal, em que o Autor esteve sujeito à medida de coação de prisão preventiva por um período de dezassete meses e vinte e dois dias, tendo sido fixada uma indemnização no montante de 10.000,00 € (dez mil euros).

13ª. Se bem que no douto acórdão recorrido, a fls. 49, sejam invocados, ainda, e para comparação com outros casos e indemnizações atribuídas, os acórdãos do STJ de 11.10.2011, P. nº 1269/03.6TBPMS.L1.S1, e no P. n.º 336/14.tTBALM.L1.S2, disponíveis no respectivo sítio do Itij, o primeiro, versa sobre uma situação distinta da dos presentes autos (situação de manifesta prisão ilegal, e que não pode ter acolhimento no caso presente), e o segundo, certamente por lapso de escrita, não foi possível ser consultado, desconhecendo-se, assim, a que situação se reporta não podendo, pois, servir de guião para a douta decisão tomada.

14ª. Perante o quadro factual traçado nestes autos e os valores considerados pela jurisprudência, à luz do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, consideramos, no respeito por opinião diversa, proporcionado e adequado fixar a indemnização em valor não superior a €15.000,00 (quinze mil euros).

15ª. O douto acórdão recorrido ao julgar parcialmente procedente o recurso de Apelação e, em consequência, ao revogar a decisão da 1ª instância fez, a nosso ver e no respeito por opinião diversa, uma errada interpretação e aplicação dos normativos legais, designadamente, dos  artigos 615º, nº 1, al. c) do CPC e 8.º, n.º 3, 494º e 496º, do CC, motivo pelo qual, em nossa opinião e sempre no respeito por entendimento diferente, deve

- Declarar-se a nulidade do douto acórdão recorrido com todas as legais consequências, nomeadamente, determinar-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de modo a que possa eliminar a apontada contradição factual, inviabilizadora, em parte, da solução jurídica dada ao presente pleito.

- Ser revogado o douto acórdão recorrido e substituído por outro que considere a redução do montante da indemnização por danos não patrimoniais para valor não superior a € 15.000,00 (quinze mil euros).


Contra alegou o Recorrido pugnando pela improcedência da revista e a confirmação do acórdão recorrido.


Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Objecto do recurso:

- Nulidade do acórdão;

-Valor da indemnização.


///


Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

1. O Autor foi arguido processo criminal com o nº 266/16...., que correu termos no Tribunal da Comarca ..., Juízo Central Cível e Criminal ... - Juiz ....

2. No decorrer do inquérito daquele processo, o Autor foi submetido a interrogatório judicial em 18 de Março de 2019 e foram-lhe aplicadas as medidas de coacção de Proibição de contactar, por qualquer meio e por qualquer forma, com as vítimas e testemunhas já identificadas nos autos e de Obrigação de Permanência na Habitação com Recurso a Vigilância Electrónica, a implementar de imediato.

3. O Autor aguardou os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de Obrigação de Permanência na Habitação com Recurso a Vigilância Electrónica.

4. Naquele processo foi proferida acusação e requerida instrução bem como a alteração do estatuto coactivo, tendo a decisão instrutória mantido a medida de coacção de Obrigação de Permanência na Habitação com Recurso a Vigilância Electrónica.

5. O Autor foi pronunciado por de 2 crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º n.º 1 alíneas a) a e) e n.º 7 do Código Penal e por de 2 crimes de escravidão, p. e p. pelo art.º 159.º do Código Penal.

6. Procedeu-se à audiência de julgamento e o Autor, arguido naquele processo, foi absolvido, por Acórdão de 19 de Dezembro de 2019.

7. Tendo cessado em 19 de Dezembro de 2019, a medida de coacção, sendo o arguido restituído à liberdade.

8. O Autor esteve o privado da liberdade entre 18 de Março de 2019 e 19 de Dezembro de 2019, o correspondente a 276 dias.

9. Foi interposto recurso do acórdão proferido naquele processo, pelo assistente BB.

10. Recurso que foi admitido e apreciado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que lhe negou provimento, por acórdão de 10 de Março 2021, mantendo na integra o acórdão recorrido.

11. O Autor há longos anos que tem uma exploração de gado Ovino e a sua mulher tem outra exploração de gado ovino.

12. Sendo o próprio que sempre se ocupou do manejo do gado, bem como de todos os cuidados à exploração que possui.

13. Designadamente de pastoreio, alimentação, limpeza dos locais de parqueamento bem como de cuidados de saúde e maternidade inerentes à designada exploração.

14. Em 21-01-2019, de acordo com o Sistema Nacional de informação e registo animal, o Autor bem como a sua mulher, possuíam em conjunto 238 cabeças de gado, sendo 113 da exploração do Autor e 105, da exploração da mulher do Autor.

 15. No ano seguinte 28-01-2020, o Autor em conjunto com a mulher, possuíam 123 animais, sendo 55 da exploração do Autor e 68 da exploração da mulher do Autor.

16. Foram prestados cuidados ao rebanho por amigos e familiares do Autor.

17. Contudo e apesar de todos os esforços encetados por aqueles que o ajudavam, atenta a falta de experiência e conhecimentos específicos, não poderiam colmatar a ausência do Autor.

18. Foram sendo concedidas autorizações ao Autor para tratar do rebanho depois do relatório do veterinário Municipal e dos requerimentos apresentados posteriormente.

19. O Autor sempre foi visto na localidade e perifericamente ao local onde habita, como uma pessoa de bem, séria, honrada, honesta e bem visto por todos os que aí vivem.

20. Era igualmente bem tratado e bem reconhecido no meio profissional onde está inserido, a nível da pastorícia.

21. Aquando da comunicação da aplicação ao autor da medida de coacção privativa da liberdade, o Autor sentiu uma enorme injustiça, que se traduziu para si numa enorme revolta emocional.

22. Que lhe incutiram sentimentos de tristeza e desgosto, atenta a situação de privação de liberdade em que foi colocado.

23. A privação da liberdade que o Autor sofreu, foi logo conhecida no meio social onde habita.

24. O Autor sempre teve um grande afecto pelos seus animais, o que faz que, com a idade que tem hoje em dia, continue a árdua actividade que é a pastorícia.

25. O Autor, sempre participou em diversas feiras e festividades ligadas à pastorícia, onde exibia os seus melhores exemplares, bem como os seus rebanhos.

26. O que alimentava o ego do Autor, e que acarretava um forte sentimento de realização e felicidade.

27. Por causa da privação da liberdade, o Autor esteve noite sem dormir e chorou.

28. Viveu durante 276 dias, em razão da privação da liberdade, com um sentimento de aperto no coração, com um sentimento de infelicidade que lhe retirava a vontade de viver.

29. O dispositivo de controlo à distancia instalado no tornozelo do Autor, causavam-lhe uma alergia, que fazia inchar a perna, ao ponto de a sentir estrangulada, atento o inchaço que padecia, o que lhe causava imenso mau estar e dores corporais intensas e um enorme sofrimento, que chegou a determinar episódio de urgência hospitalar.

30. São os seguintes os factos provados relativos à prática dos factos pelo Autor, no Acórdão proferido no processo comum colectivo n.º 266/1 ...:

“4. No ano de 2005, em primeiro lugar, BB e depois CC, foram para casa dos arguidos. tendo passado a trabalhar para os mesmos na sua exploração agropecuária.

5. Nessa altura, os assistentes BB e CC encontravam-se em más condições socioeconómicas.

6. BB e CC trabalhavam para os arguidos. o primeiro apenas a guardar o rebanho; e o segundo também realizava certos trabalhos agrícolas. sem erem um horário pré-definido e sem o gozo de férias.

7. Os assistentes iniciavam o trabalho, em regra. no Verão, entre as 6h-7 h da manhã e no Inverno cerca das 8h-9 h, e no final do dia regressavam a casa, no Verão, cerca das 21 h e no Inverno cerca das 17h-l 8 h, tendo sempre um período de almoço que não era fixo, sendo que no Verão, entre as 10h-1 1 h e as 1 8 horas, não estavam com o rebanho e tinham, normalmente, esse período de descanso.

8. Os arguidos não procederam ao pagamento de quaisquer salários aos assistentes, nem procederam a descontos para qualquer sistema de proteção social.

9. Os arguidos davam aos assistentes dormida em sua casa, alimentação, roupa e suprimiam as demais despesas dos assistentes.

10. BB e CC passaram a residir com os arguidos em casa destes, e a dormir num quarto existente numa das casas pertença dos arguidos, sita junto ao café que exploram.

11. O quarto onde dormiam BB e CC não tinha aquecimento e não tinha casa-de-banho.

12. Os assistentes BB e CC viveram em casa dos arguidos ao longo de mais de onze anos.

13. BB, nascido a .../.../1943 era analfabeto, não sabendo ler nem escrever e foi trabalhar para os arguidos. na respetiva exploração agropecuária, no dia ... de fevereiro de 2005 e esteve a trabalhar para os arguidos durante 11 anos e 10 meses, dando- lhe estes alojamento, alimentação e vestuário e pagando as demais despesas, designadamente de higiene e barbeiro, um maço de tabaco por dia e, por vezes, alguns montantes, incertos, em dinheiro, nomeadamente €5, 10,00 ou 20.

14. Os arguidos nunca efetuaram descontos para a Caixa Geral de Aposentações ou para qualquer outro sistema de proteção social.

(...)

24. Na exploração agropecuária dos arguidos e a mando destes, por vezes, trabalhava com o tractor, com a motosserra ou pastoreava gado, situação que se manteve durante cerca de 12 anos, até agosto de 2017.

25. Durante esse período de tempo, o CC não recebeu qualquer salário e nunca os arguidos efetuaram descontos, a favor do CC para a Caixa Geral de Aposentações, ou para qualquer outro sistema de proteção social.

26. CC era retribuído pelos arguidos com as refeições, alojamento, vestuário, pagamento das suas despesas de higiene, barbeiro, um maço de tabaco por dia e, por vezes alguns montantes incertos em dinheiro, nomeadamente €5, €10,00 ou 20"; (artigo da contestação)

31. No Acórdão proferido no processo comum colectivo n.º 266/16...., provou-se que os ali assistentes viviam e trabalhavam para os ali arguidos, sem que tivessem qualquer remuneração em dinheiro fixa, sem horário estabelecido ou período de férias estipulado. ainda que a versão entretanto trazida ao processo pelos a li arguidos, mormente as justificações e documentos que apresentaram, aliados à demais prova produzida naquele Tribunal não tenham permitido dar como provados os factos que seriam relevantes para as imputações penais efectuadas.

32. Isto porque as declarações dos assistentes se revelaram, naquele julgamento, incongruentes, desprovidas de lógica e rigor, não tendo permitido corroborar quaisquer maus tratos, má alimentação, privação da liberdade, impossibilidade de escolha ou medo.

33. Os detentores de animais ovinos estão obrigados à identificação, registo e circulação dos animais das espécies ovinas e caprinas, encontrando-se todos os dados relativos aos animais coligidos em bases de dados que integram o SlRNA, geridos pela Direcção-Geral de Veterinária e pelo Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas, IP.

34. Entre as comunicações obrigatórias, previstas encontra-se os nascimentos, desaparecimentos, todas as movimentações que ocorram para a exploração ou a partir desta, abates e mortes.

35. Apenas a 17 de Junho de 2019, o arguido deu entrada de requerimento solicitando autorização para desempenhar a sua actividade laboral, em horário e regime considerado adequado e compatível com a medida de coacção, nos termos a fixar pelo Tribunal.

36. Em tal requerimento, o arguido, aqui Autor, invoca que, após a aplicação da medida de coacção, "contrataram um funcionário assalariado para colmatar a sua falta na exploração'', situação que se manteve até à semana anterior ao dia 17 de Junho de 2019.

37. Por despacho de 26 de Junho de 2019 foi indeferida a autorização especial de ausências para desenvolvimento da actividade laboral requerida pelos arguidos e determinada a comunicação ao veterinário municipal para adopção das medidas necessárias e urgentes para assegurar o bem estar e protecção dos animais durante o tempo que vigorasse a medida de coacção.

38. O Médico Veterinário Municipal de ... subscreveu uma comunicação ao tribunal informando das diligências por si efectuadas, no dia 28 de Junho de 2019, que veio a ser junta aos autos a 10 de Julho de 2019, dando conhecimento que os animais (cerca de 400) se encontravam a ser apascentados por uma única pessoa, que se encontravam em boa condições corporais, mas que necessitavam ser tosquiadas, e que a Câmara Municipal não tinha condições para tomar medidas para assegurar o bem-estar e a protecção.

39. Após requerimentos concretizados a 12 de Julho de 201 9 e 1 5 de Julho de 2019, os arguidos foram autorizados a proceder à tosquia dos animais no ovil de ... e a deslocarem-se a diversas propriedades com o objectivo de cortar as suas culturas de grão, centeio e aveia, destinadas a alimentar os animais, tendo apenas sido indeferida a pretensão de proceder ao maneio diário dos animais, entre as 07.00h e as 1 0.00h e as 1 7.00 e as 19.00h, como pretendido.

40. Nesse mesmo despacho foi determinado que se oficiasse à DGV informando-se que os arguidos se encontravam sujeitos à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, que não poderiam deslocar-se às suas propriedades para tomar conta dos seus rebanhos e, nessa medida, deveria existir uma fiscalização periódica aos animais e, caso fosse necessário, adoptadas medidas administrativas, nos termos do artigo 6.º-A, do Decreto-Lei n.º 64/2000, de 22 de Abril, nomeadamente medidas de carácter higiosanitário e de maneio que se mostrem adequadas para corrigir a situação de perigo para os animais que se vier a apurar, designadamente alimentação, abeberamento, alojamento dos animais e, apenas, quando estas medidas não sejam suficientes para pôr termo ao seu sofrimento dos animais, o abate dos mesmos.

41. Por despacho de 5 de Setembro de 2019 foi autorizada a deslocação dos ali arguidos, no dia l0 de Setembro, para realização da sua vacinação, controlo sanitário e desparasitação, na sequência de requerimento para o efeito.

42. Através de requerimento junto a 11 de Setembro de 2019 naquele processo, o exponente DD declarou que "desde que se encontram na actual situação coactiva, e na impossibilidade de o fazerem pessoalmente, têm contratado assalariados rurais que assegurem minimamente o manejo de tal rebanho", o que apenas naquela data deixou de ser possível, tendo-se reiterado a necessidade de deslocação do Autor e do seu filho, o ali arguido DD, ao ovil para assegurar os cuidados aos animais.

43. Nessa sequência, por decisão de 13 de Setembro de 2019 foi autorizado que os ali arguidos DD e AA, se ausentassem do local da vigilância, um pela manhã e outro pela tarde, pelo período de duas horas, para tratarem de u m rebanho de ovelhas.

44. Posteriormente, por despacho de 8 de Outubro de 2019, o Tribunal veio a autorizar cada um dos ali arguidos a deslocarem-se à sua referida propriedade, 3 horas por dia, sendo o arguido DD entre as 8h e as 11 e o Autor entre as 1 6h e as 19 h.

45. Por fim, por despacho de 30 de Outubro de 2019, o Tribunal autorizou os dois arguidos a deslocarem-se à sua referida propriedade, entre as 8h e as 12horas no período da manhã; e as 14h e as 17 h, no período da tarde. para que cuidassem dos animais.

46. Consta na fundamentação do Acórdão proferido no processo n.º 266/16...., que o arguido declarou, no âmbito daquele julgamento "que, apesar do Sr. BB dar uma ajuda, se ele não estivesse, o próprio arguido faria o trabalho, o que, aliás, tem acontecido desde que eles saíram, não tendo, desde então contratado ninguém, acrescentando que mesmo depois deste processo, com a autorização de duas horas para ele e duas para o filho, conseguem tratar de tudo''.

47. Foram concedidas autorizações aos arguidos naquele processo para assegurar o acompanhamento e tratamento do seu rebanho, que foram sendo autorizadas de forma limitada a partir de Julho de 2019 e passaram a ser de forma ampla e nos exactos termos pretendidos pelo Autor a partir de 13 de Setembro de 2019.

48. O documento junto a fls. 147 pelo Autor é uma notificação remetida à mulher do Autor para audiência prévia por o IFAP pretender a recuperação de uma quantia paga em excesso, devido ao apuramento de uma diferença entre o número de animais declarados pela proprietária dos ovinos, para obtenção de subsídios e aqueles que foram verificados na sequência de fiscalização.

49. A morte de animais na sequência de ataques de lobos e raposas, ocorrem no período nocturno e o Autor não dormia junto dos animais para os guardar dessa ameaça, nem o requereu no âmbito do referido processo comum colectivo.

50. Na semana de 14 a 20 de Dezembro de 2020, o valor semanal dos borregos foi de 4,50 euros (peso inferior a 12 kg), 3,39 euros (peso entre 22 a 28 kg) e 2,84 euros (peso superior a 28 kg).

51. Enquanto a ovelha, no mesmo período temporal e tendo por base o sistema de informação de mercados agrícolas, se encontra cotada em valores, por unidade, entre € 10 e € 20.00 e entre 50 e € 70,00.

52. Quando o Autor foi sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, manteve a residência junto do seu núcleo familiar e a sua actividade laboral de exploração de um café, nos exactos termos que o fazia anteriormente, para além de lhe ter sido concedida a possibilidade de acompanhar o seu rebanho.

53, 54 eliminados pela Relação.

55. Que aliás foram também garantidos por entidades terceiras (Veterinário Municipal e DGV), a quem o Tribunal comunicou o estatuto processual do Autor e a necessidade de salvaguardar aquele rebanho.

56. Na impossibilidade dos arguidos, foi contratado tratado pessoal para tratar dos animais, e o Autor pôde manter a prestação de alguns cuidados àqueles animais, desde Julho de 2019, e de forma ampla passou a cuidar daqueles animais pelo menos desde Setembro de 2019.

57, 58, 59, 60, 61: eliminados pela Relação.

62. Aquando da imposição da medida de coacção privativa da liberdade, o arguido viu-se privado de prestar todos os cuidados que oferecia ao seu rebanho.

63. O que denegriu a sua imagem e o seu bom nome.

64. Na medida em que passou a ser motivo de conversas, sempre com um teor depreciativo e negativo.

65. O que lhe chegou ao conhecimento e o deixou ainda mais desgostoso, triste e abatido.

66. Sentimentos que se percutiram intensamente durante todos os 276 dias que esteve privado da liberdade.

67. E que ainda hoje se percutem na sua vida na medida em que ainda não conseguiu lavar a sua imagem, na medida em que há sempre quem desconfie das suas boas intenções.

68. (…) no Acórdão proferido nos autos com o n.º 266/16...., da matéria constante da pronúncia, não se provou que:

“1. Em data não concretamente apurada, mas no início do ano de 2005, os arguidos, de comum acordo e em comunhão de esforços e de fins, decidiram recrutar indivíduos desempregados, com apoio familiar e recursos económicos inexistentes ou muito débeis, dependentes do álcool e/ou do tabaco e/ou diminuídos a nível cognitivo, a fim de prestarem trabalho para os mesmos nas quintas que exploram na localidade de ..., ..., a troco de nada mais que alojamento e alimentação precários.

2. Em concretização de tal desígnio, no ano de 2005, os arguidos abordaram BB e CC, aos quais prometeram um emprego na respetiva exploração agropecuária, em troca de um salário, acrescidos de alimentação e habitação, bem como de descontos para regime de proteção social, propostas essas aceites por BB e CC. 3. Os arguidos, relativamente ao regime laboral que prometeram a BB e CC, apenas no que diz respeito ao BB cumpriram parcialmente o acordado no primeiro mês de prestação de trabalho com o pagamento do ordenado estipulado.

4. Os arguidos, aproveitando-se da grande debilidade socio-económica e da situação de especial vulnerabilidade de BB e CC, nada mais cumpriram quanto às contraprestações devidas pela prestação da respetiva força de trabalho.

5. Os arguidos passaram a tratar BB e CC por “criados”, e obrigavam-nos a iniciar os trabalhos entre as 5h30m/6h30m, consoante fosse verão ou inverno, terminando a jornada de trabalho pelas 22h00m, sem direito a tempos de repouso, feriados ou dias festivos, mediante a atribuição de escassa alimentação e muito precárias condições de habitabilidade.

6. O quarto referido em 11. dos factos provados era onde os assistentes para além de dormirem, também residiam.

7. O local onde os arguidos colocaram BB e CC a residir não tinha qualquer isolamento contra o frio, nem as mínimas condições de higiene.

8. Os arguidos sujeitavam BB e CC a precárias e degradantes condições de saúde física e psíquica, alojamento, higiene e segurança.

9. Quando BB e CC regressavam molhados pela chuva e com frio, não tinham possibilidade sequer de se enxugar e aquecer.

10. Ao longo de todo o período de tempo em que BB e CC trabalharam para os arguidos, quando aqueles não executavam os trabalhos que lhes estavam atribuídos da forma pretendida pelos arguidos, estes intimidavam-nos e atemorizavam-nos, exigindo que trabalhassem mais e melhor, deixando BB e CC sem qualquer capacidade de reagirem.

11. BB e CC não se insurgiam, mais frequentemente contra com as descritas condições de vida e laborais, por temerem ser agredidos física e verbalmente por parte dos arguidos, como efetivamente foram por inúmeras vezes, ou ver a sua situação de vida ainda mais prejudicada.

12. Para concretizar os seus intentos, durante o período de tempo em que os assistentes viveram e sua casa, os arguidos retiveram os documentos pessoais de BB e CC, entre os quais os respetivos bilhetes de identidade/cartão de cidadão, com o propósito de evitar que se ausentassem.

13. BB combinou com os arguidos um ordenado de €200,00 (duzentos euros) por mês e descontos para a Caixa Geral de Aposentações.

14. BB recebeu o ordenado de 200 do primeiro mês.

15. Em data não concretamente apurada, mas no decurso do mês de maio de 2016, BB chateou-se com o arguido AA, tendo-lhe pedido satisfações sobre o pagamento dos ordenados que lhe devia, como o havia feito em circunstâncias anteriores, tendo o AA respondido, como respondeu nas noutras ocasiões, que era o BB quem lhe devia doze anos de renda de casa e de gastos com alimentação.

16. O arguido DD actuou nos termos descritos em 16. dos factos provados, apenas aparentando estar a ajudar o BB.

17. BB nunca viu qualquer documento relacionado com a sua conta bancária, à qual nunca teve acesso, bem assim nunca teve qualquer conhecimento do desfecho do pedido de atribuição da reforma em ....

18. O arguido DD apropriou-se e fez suas as quantias referidas em 18. dos factos provados, em prejuízo do assistente BB.

19. O referido em 20 dos factos provados acontecia por o assistente BB temer ser agredido física e verbalmente por parte dos arguidos, como efetivamente foi por inúmeras vezes, ou ver a sua situação de vida ainda mais prejudicada.

20. BB aguentou viver nas condições descritas até ser hospitalizado no dia 5 de dezembro de 2016.

21. Os arguidos, em comunhão de esforços e identidade de fins, em execução de plano previamente delineado entre ambos, agiram consciente e livremente:

i. com intenções concretizadas de recrutar, aliciar, acolher e alojar BB e CC para os sujeitarem a trabalhos excessivos e não pagos;

 ii. com intenções concretizadas de, para atingirem o referido propósito, ludibriar BB e CC através de erro em que ardilosamente os induziram, mediante promessas de integração num posto de trabalho remunerado, com regalias sociais, alimentação e em alojamento condignos, promessas que sabiam, antecipada e deliberadamente, que não iriam cumprir;

iii. aproveitando-se das débeis condições psíquicas e inexistente suporte familiar de BB e CC, razões pelas quais foram BB e CC seduzidos e aceitaram as propostas de trabalho dos arguidos; os quais retiveram os documentos de identificação, e outros, de BB e CC para que as mesmos não se ausentassem, sujeitando-os, efetivamente, a mais de 11 anos de trabalhos excessivos e em condições laborais e de vida degradantes, assim obtendo enriquecimento ilegítimo na mesma medida que causaram prejuízo patrimonial para BB e CC.

22. Mais agiram os arguidos, em comunhão de esforços e identidade de fins, em execução de plano previamente delineado entre ambos, reiterada, delibera e persistentemente ao longo de mais de onze anos, aproveitando-se de especial vulnerabilidade dos assistentes, sem qualquer respeito pela dignidade que merece qualquer ser humano, com intenções concretizadas de as reduzir à condição de meras coisas, objetos ou animais de sua pertença, ou seja, subjugaram-nos a uma completa relação de domínio imposto por meio de violência física e psíquica, receio, medo, inquietação, com abuso de autoridade derivada de ascendente económico e em função do trabalho, não tendo BB e CC qualquer poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho, apenas fornecendo os cuidados estritamente essenciais à sobrevivência necessária à continuidade o desempenho da atividade laboral.

23. Foram BB e CC constrangidos, deliberadamente pelos arguidos, a trabalhar e a viver sem o mínimo de condições de habitabilidade, higiene, saúde física e psíquica, privacidade, alimentação e trabalho, sobrecarregando-os com trabalhos excessivos, sendo maltratados física e psicologicamente pelos arguidos, por forma a subjugá-los inteiramente à sua vontade e caprichos, privando-os de toda e qualquer liberdade, nomeadamente liberdade física de movimentos, liberdade de decisão e liberdade de ação, reduzindo-os a “coisa sua” e a um estado de sujeição total, tratando-os como seres destituídos de dignidade humana.

24. Com a conduta descrita revelam os arguidos não possuir qualquer respeito para com BB e CC, enquanto pessoas e seres humanos, violando os mais elementares princípios e deveres da vida humana, bem assim da vida em sociedade.

25. Causaram, pois, as referidas condutas assumidas pelos arguidos danos irreparáveis na personalidade e na integridade física e psíquica de BB e CC.

26. Bem sabiam, os arguidos, serem as condutas que assumiram proibidas e puníveis por lei penal.

27. Agiu o arguido DD consciente e livremente, fazendo integrar no seu património o montante total de €1.330,95, à revelia do destinatário de tal pensão de reforma, bem sabendo o arguido DD que tal quantia não lhe era destinada nem lhe pertencia e que, ao atuar da forma descrita, agiu contra a vontade do seu legítimo proprietário.

28. Para o efeito, o arguido DD, por meio de meio ardiloso e aproveitando-se do facto dele não saber ler nem escrever, convenceu o BB de que trataria das burocracias necessárias e à revelia daquele, da mesma se fez co-titular, com a intenção concretizada de, mediante engano a que induziu o BB, se apropriar, como se apropriou, da pensão de reforma deste.

29. Bem sabia, o arguido DD, ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.”.

Foi julgado não provado:

- Nessa decorrência, o Autor teve logo elevadas perdas de efectivos na medida em que viu, inúmeras ovelhas e borregos a morrer atenta a falta de cuidados necessários na parição;

- Por essa razão;

- Contudo as autorizações concedidas revelaram-se aquém do necessário;

- Não conseguindo o Autor, evitar a morte de elevado número de animais, atenta a sua ausência;

- A ausência do Autor em razão da medida privativa que lhe estava imposta levou também a que os animais estivessem vulneráveis ao ataque de lobos e raposa que efectivamente sofreram, o que igualmente contribuiu para a diminuição do efectivo;

- Nesta decorrência a privação da liberdade imposta ao arguido, custou-lhe a diminuição do seu efectivo em 115 animais, que ao custo médio de 150€ por animal, representou uma perda efectiva de 17.250,00€.

- Tais perdas obrigaram o Autor a ter de ressarcir o IFAP, em razão da diferença de efectivo registada, na quantia de 802,96€, em razão do excesso de apoio recebido;

- Pela falta de assistência devida, o Autor viu ainda comidos pelas raposas, 22 borregos e 20 borregas, aquando e depois do nascimento dos mesmos, que valiam à data da venda 70,00€ o macho e 100€ a fêmea, o que perfaz um prejuízo de 3.540,00€;

- Ao ver os animais morrerem por falta dos seus cuidados, causou-lhe também sentimentos profundos de tristeza, revolta e de impotência, atento o condicionalismo da privação da liberdade a que estava adstrito;

- Sentimentos se se repercutiram igualmente sempre durante os 276 dias em que esteve privado da liberdade;

- A privação da liberdade a que esteve adstrito nesses 276 dias, acompanhada da perda de elevando número de animais pelos quais tinha carinho e estima, feriu seu ego, ao ponto de se sentir infeliz, por se ver impedido de realizar os seus actos de realização pessoal;

- chegou a recear pelo seu futuro, pelo futuro dos animais e pelo futuro da sua família;

- vivendo assim cabisbaixo durante todo esse tempo.


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Fundamentação de direito.

O Recorrente imputa ao acórdão o vício da nulidade prevista no art. 615º, nº1, alínea c) do Código de Processo Civil, por contradição entre os factos provados nos nºs 21, 22, 27 e 28 e os “últimos cinco itens dos factos não provados.”

Nos termos do art. 615º, nº1, alínea c), ex vi do art. 666º  do CPCivil, “a sentença/acórdão é nulo quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”

A nulidade aqui em causa traduz-se na oposição entre os fundamentos e a decisão, e verifica-se quando falta sintonia lógica entre a motivação e a decisão, isto é, quando existe um vício real no raciocínio do julgador, seguindo a decisão num sentido e apontando a fundamentação em sentido oposto (cf., entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 08.10.2015, P. 1143/06 (Sumários, 2015, p. 540).

A propósito desta causa de nulidade, Abrantes Geraldes e outros (Código de Processo Civil anotado, I, pag.748), observam que esta “situação, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica  quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução diferente.”

Posto isto, a contradição entre factos provados e factos não provados não integra a nulidade do nº1, alínea c) do art. 615º do CPC, já que não se trata de contradição entre os fundamentos e a decisão.

A existência de contradições na decisão sobre a matéria de facto, a verificar-se, e desde que “inviabilizem a decisão jurídica do pleito”, justificam a intervenção do Supremo, determinando a remessa dos autos ao tribunal recorrido (cf. art. 682º, nº3 do CPCivil).


Situação esta que não se verifica.


Nos pontos 21, 22, 27 e 28, a Relação deu como provado:

21. Aquando da comunicação da aplicação ao autor da medida de coacção privativa da liberdade, o Autor sentiu uma enorme injustiça, que se traduziu para si numa enorme revolta emocional.

22. Que lhe incutiram sentimentos de tristeza e desgosto, atenta a situação de privação de liberdade em que foi colocado.

27. Por causa da privação da liberdade, o Autor esteve noite sem dormir e chorou.

28. Viveu durante 276 dias, em razão da privação da liberdade, com um sentimento de aperto no coração, com um sentimento de infelicidade que lhe retirava a vontade de viver.


A matéria não provada em causa é a seguinte:

- Ao ver os animais morrerem por falta dos seus cuidados, causou-lhe também sentimentos profundos de tristeza, revolta e de impotência, atento o condicionalismo da privação da liberdade a que estava adstrito;

- Sentimentos se se repercutiram igualmente sempre durante os 276 dias em que esteve privado da liberdade;

- A privação da liberdade a que esteve adstrito nesses 276 dias, acompanhada da perda de elevando número de animais pelos quais tinha carinho e estima, feriu seu ego, ao ponto de se sentir infeliz, por se ver impedido de realizar os seus actos de realização pessoal;

- chegou a recear pelo seu futuro, pelo futuro dos animais e pelo futuro da sua família;

- vivendo assim cabisbaixo durante todo esse tempo.



Não há qualquer contradição. Uma coisa é ficar triste e revoltado por se sentir injustiçado com a aplicação de medida de coação, outra é recear pelo futuro da sua actividade profissional e pelo receio que os animais venham a morrer à míngua de alimentação. Não significa isto que o Autor não tenha sentido aqueles sentimentos, simplesmente entenderam as instâncias que não foi feita prova para julgar provada aquela factualidade.

Com o que improcedem as conclusões 1ª a 6ª do Recorrente.


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A 2ª questão prende-se com o quantum indemnizatório.

Com efeito, o Recorrente não questiona o acórdão na parte em que julgou o Recorrido credor de indemnização a título de danos não patrimoniais por ter estado sujeito a medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação com Recurso a Vigilância Electrónica, durante 276 dias, insurgindo-se apenas quanto ao montante indemnizatório: ao contrário dos €27.500,00 fixados pela Relação, entende que a indemnização não deve exceder os €15.000,00.


A Relação justificou a sua decisão nos seguintes termos:

“Cotejando os factos apurados, no que a tal concerne, designadamente os que constam dos itens 2.º a 7.º, verifica-se que o autor esteve privado da liberdade entre 18 de Março e 19 de Dezembro de 2019 (276 dias); embora a partir de Julho de 2019, tenha sido autorizado a, durante algumas horas, sair de casa para cuidar do rebanho (cf. itens 18.º e 39.º a 45.º).

A privação da liberdade gerou no autor as consequências e constrangimentos a que se alude nos itens 21.º a 29.º e 63.º a 67.º, de que ressaltam a tristeza e angústia que sentiu, noites sem dormir, alergia causada pelo dispositivo de vigilância que determinou um episódio de urgência hospitalar e os comentários e reflexos de tal situação na comunidade em que vivia.

A ter, ainda, em linha de conta, que cf. item 52.º, permaneceu na sua residência, junto da família, onde exerceu a actividade de exploração de um café, nos moldes em que o fazia antes.

Tendo em linha de conta os critérios legais aplicáveis e atentas as circunstâncias acima relatadas e que o direito à liberdade de movimentos é de primordial importância para o bem estar de qualquer pessoa (tanto que tem foros de protecção constitucional e qualquer cidadão só dela pode ser privado nos termos previstos no artigo 27.º, n.º 2 da CRP), bem como que não se trata de critérios rígidos nem de quantias pré-determinadas nem fixas, e até por comparação com outros casos e indemnizações atribuídas, designadamente, nos Acórdãos do STJ de 11/10/2011, P.nº 1269/03 e no P. nº 336/14,TBALM.L1.S1, disponíveis no sítio do Itij, julgamos ser equitativo e justo, atribuir ao autor, a este título, a quantia de € 27.500,00.

Assim, fixa-se a indemnização devida ao autor, a título de danos morais, na quantia de 27.500,00 €, o que implica, no que se refere a esta questão, a procedência, parcial, do recurso.”


Que dizer?

A indemnização em causa foi fixada segundo a equidade, como determina o art. 496º do CCivil.

O recurso à equidade significa que “o que passa a ter força especial são as razões de conveniência, de oportunidade, principalmente, de justiça concreta, em que a equidade se funda. O julgador não está, nestes casos, subordinado aos critérios normativos fixados na lei” (Pires de Lima e Antunes Varela, anotação ao art. 4º do CCivil).

Se é certo que, estando em causa o cálculo da indemnização segundo juízos de equidade, não compete ao Supremo a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, uma vez que a aplicação de tais juízos de equidade não se traduz na resolução de uma questão de direito, já lhe compete aferir dos limites e pressupostos à luz dos quais se situou o juízo equitativo expresso, na ponderação casuística da individualidade do caso concreto.

Bom como, de forma a minimizar os riscos de subjetivismo e tendo em vista uma aplicação tanto quanto possível uniforme do direito (art. 8º, nº3 do CCivil), verificar se a indemnização atribuída está em linha com os valores que vêm sendo atribuídas pelo STJ em casos paralelos. (Ac. STJ 28.02.2012, (CJ/STJ, 1, pag. 105)

No caso sub judice, a Relação entendeu equitativo compensar o Autor com a indemnização de €27.500,00 pelos 272 dias em que esteve sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica. Sem desvalorizar as consequências negativas que daqui advieram, expressas nos pontos 21 a 29 e 63 a 69, o Autor pôde continuar a viver na sua residência, junto do “seu núcleo familiar” , bem como na  exploração de um café, tal como o fazia  anteriormente, tendo-lhe sido concedida a possibilidade de acompanhar o seu rebanho.

Crê-se que a indemnização peca por algum exagero, à luz dos padrões da jurisprudência do STJ, em casos análogos, como decorre de uma rápida consulta do site do Itij:

Acórdão de 11.10.2010, P. 1268/03, indemnização €15.000,00, por 4 meses de prisão preventiva, que veio a ser julgada ilegal, por erro grosseiro.

Acórdão de 12.06.2017, P. 3346/14, indemnização de €30.000,00 por 2 meses e 7 dias de prisão ilegal, em que se deu como provado que o autor viveu “aterrorizado” no estabelecimento prisional;

O recentíssimo acórdão de 02.02.2023, P. 4978/16: indemnização de €15.000,00 por 325 de prisão preventiva que veio a ser declarada ilegal.


No caso presente, o Autor não sofreu as agruras da reclusão num estabelecimento prisional nem o estigma de ter estado preso, revelando o quadro factual apurado um sofrimento moral menos intenso do que as situações apreciadas nos acórdãos supra citados, motivo por que entendemos reduzir a compensação arbitrada pela Relação para o valor de €20.000,00.

Nesta medida, procede a revista.


Decisão.

Pelo exposto, acorda-se em conceder parcial provimento à revista e alterando o acórdão recorrido, decide-se fixar em €20.000,00 (vinte mil euros) a indemnização devida ao Autor/recorrido a título de danos não patrimoniais.

Custas por Autor e Réu na proporção de vencido.

Lisboa, 25.05.2023

Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Nuno Ataíde das Neves