Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B1052
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
RESPOSTAS AOS QUESITOS
Nº do Documento: SJ20080417010527
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. Na oposição à acção executiva para pagamento de quantia certa baseada em documento escrito de reconhecimento de dívida sem indicação de causa, subscrito pelo oponente, está o oponido dispensado de provar a relação fundamental, porque a sua existência se presume até prova em contrário.
2. Incumbe ao oponente, em quadro de datio pro solutum, o onus de alegação e de prova dos factos reveladores do pagamento da quantia exequenda por via da entrega ao oponido de materiais de construção,
3. A resposta não provado a um quesito em que se perguntava sobre a realização do pagamento daqueles materiais é insusceptível de significar a prova da realização do pagamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA intentou, no dia 15 de Julho 2004, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo de forma única, contra BB e CC, a fim de haver destes a quantia de € 9 352, 46 e juros vencidos no montante de € 1 315, 75 e vincendos à taxa legal.
Estes, no dia 9 de Dezembro de 2005, deduziram oposição à referida execução, a que deram o valor de € 20 020,67 – que não foi alterado - sob a motivação de nada deverem ao exequente, por virtude de o montante por ele reclamado ser sido solvido mediante a entrega de materiais de construção civil que comercializam de valor excedente ao que lhe deviam.
O exequente, na contestação, alegou ter entregue aos oponentes, a título de empréstimo, o montante de € 37 409,84, cujo pagamento não foi efectuado, e que pagou os materiais de construção por eles referidos.
Seleccionada a matéria de facto assente e controvertida e realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 8 de Novembro de 2006, por via da qual a oposição foi julgada improcedente.
Apelaram os oponentes, e a Relação, por acórdão proferido no dia 25 de Outubro de 2007, julgou-lhes o recurso improcedente.

Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o recorrido deve aos recorrentes o valor superior ao da dívida confessada;
- os recorrentes entregaram ao recorrido, em 2002, materiais de construção de valor superior aos das dívidas confessadas;
- até ao momento nada fizeram para cobrar o valor dos referidos materiais que ascende a € 48 291,64;
- não está provado ter o exequente entregado aos oponentes o valor dos materiais de construção que deles recebeu, pelo que está em dívida o respectivo valor;
- não pode exigir-se aos recorrentes a prova do facto negativo não pagamento, por ser prova quase impossível de lograr;
- decorre da experiência da vida, da prática comercial e do dia-a-dia do comerciante médio colocado na situação concreta que jamais alguém na posição do oponente aguarda cinco anos para accionar dívida tão significativa;
- o acórdão recorrido violou os artigos 333º, 342º, 523º, 814º, 816º e 837º do Código Civil e o princípio da boa fé, ferindo a tutela legítima dos recorrentes no comportamento concludente do recorrido.

II
É a seguinte a factualidade considerada provada no acórdão recorrido:
1. Por escrito intitulado “confissão de dívida”, onde apuseram as suas assinaturas, os ora oponentes declararam constituir-se devedores para com o exequente, a quem se comprometiam a pagar a quantia de € 9 352,46 e que tal pagamento teria de ser efectuado em Dezembro de 2003 com os respectivos juros à taxa de 14%, a partir de 1 de Janeiro de 2002, que consignaram como data do início do contrato.
2. Por escrito intitulado “confissão de dívida”, onde apuseram as suas assinaturas, os ora oponentes declararam constituir-se devedores para com o exequente, a quem se comprometiam a pagar a quantia de € 9 352,46 e que tal pagamento teria de ser efectuado em Dezembro de 2004 com os respectivos juros à taxa de 14%, a partir de 1 de Janeiro de 2002, que consignaram como data do início do contrato.
3. Por escrito intitulado “confissão de dívida”, onde apuseram as suas assinaturas, os ora oponentes declararam constituir-se devedores para com o exequente, a quem se comprometiam a pagar a quantia de € 9 352,46 e que tal pagamento teria de ser efectuado em Dezembro de 2005 com os respectivos juros à taxa de 14%, a partir de 1 de Janeiro de 2002, que consignaram como data do início do contrato.
4. Por escrito intitulado “confissão de dívida”, onde apuseram as suas assinaturas, os ora oponentes declararam constituir-se devedores para com o exequente, a quem se comprometiam a pagar a quantia de € 9 352,46 e que tal pagamento teria de ser efectuado em Dezembro de 2006 com os respectivos juros à taxa de 14%, a partir de 1 de Janeiro de 2002, que consignaram como data do início do contrato.
5. O oponente entregou ao exequente os materiais de construção descriminados nas facturas n.ºs 368 e 369, ambas de 30 de Dezembro de 2002, e n.º 388, de 31 de Dezembro de 2002, no valor global de € 48 291,64.


II
A questão essencial decidenda é a de saber se deve ou não considerar-se extinto o direito de crédito que o exequente pretende fazer valer na acção executiva contra o executado-oponente.
A resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- síntese do objecto do litígio;
- estrutura do título executivo, da oposição à execução e distribuição do ónus de prova;
- estrutura das presunções judiciais;
- está ou não extinta a obrigação exequenda?


Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela síntese do objecto do litígio que envolve as partes.
O objecto do recurso determina-se por via do âmbito objecto das conclusões de alegação do recorrente (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O exequente, ora recorrido, visa com a acção executiva realizar, no confronto do executado, ora recorrente, um direito de crédito reconhecido por via de declaração unilateral em documento escrito.
Os recorrentes não põem em causa o conteúdo nem a eficácia da referida declaração documentalmente inserida.
Entendem, todavia, terem extinguido o referido direito de crédito por via de entrega de materiais de construção.
Resulta dos factos provados ter o oponente entregado ao oponido materiais de construção descriminados em facturas datadas dos dois últimos dias do ano de 2002 com o valor global de € 48 291,64.
As instâncias consideraram não terem os oponentes provado os factos consubstanciantes da datio in solutio, não cumprindo o disposto no artigo 342º, nº 2, do Código Civil, e, com base nisso, julgaram a oposição improcedente.
Os recorrentes alegam no sentido de dever ser considerada provada a extinção do direito do crédito do recorrido, fazendo apelo ao conhecimento da vida real e ao comportamento normal dos comerciantes.

2.
Prossigamos com a análise da estrutura do título executivo, da oposição à acção executiva e da distribuição do ónus de prova.
A acção executiva visa a implementação das providências adequadas à efectiva reparação do direito violado, e tem por base um título pelo qual se determinam o seu fim e limites (artigos 4º, n.º 3, e 45º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Podem servir de base à execução os documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado, ou determinável nos termos do artigo 805º do Código de Processo Civil (artigo 46º, nº 1, e alínea d), do Código de Processo Civil).
A relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efectivar por via da acção executiva.
O fundamento substantivo da acção executiva é, pois, a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração.
Ele constitui, para fins executivos, condição da acção executiva e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas, assumindo, por isso, autonomia em relação à realidade que envolve.
Estamos no caso vertente perante uma acção executiva para pagamento de quantia certa baseada em documento escrito de reconhecimento de dívida sem indicação de causa subscrito pelo oponente.
Em consequência, o oponido está dispensado de provar a relação fundamental, porque a sua existência se presume até prova em contrário (artigo 458º, nº 1, do Código Civil).
Tal reconhecimento da obrigação é de essência causal, pelo que o opoente podia provar na oposição que a obrigação em causa não existe ou estar afectada de algum vício invalidante (artigo 816º do Código de Processo Civil).
Temos, assim, que o título executivo que o recorrido deu à execução é um documento particular assinado pelo recorrente, em que este reconhece uma sua obrigação pecuniária no confronto daquele, previsto no artigo 46º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil).
A fase declarativa da oposição à execução, estruturalmente extrínseca à acção executiva, configura-se como contra-acção susceptível de se basear, conforme os casos, em fundamento de natureza substantiva ou de natureza processual.
É uma fase eventual da acção executiva que assume a estrutura de acção declarativa do tipo de contra-acção tendente a obstar aos efeitos da execução por via da afectação dos efeitos normais do título executivo, em que o executado pode invocar factos de impugnação e ou de excepção.
A idónea invocação na fase declarativa da acção executiva em análise de algum facto relativo à falta de algum dos seus pressupostos específicos implica a declaração judicial desse vício e da inadmissibilidade da acção executiva.
Mas o ónus de prova no âmbito da oposição segue o regime decorrente do artigo 342º do Código Civil.
Assim, incumbia aos recorrentes o onus de alegação e de prova dos factos reveladores de que operaram o pagamento da quantia exequenda por via da entrega ao recorrido dos referidos materiais de construção (artigo 342º, nº 2, do Código Civil).


3.
Continuemos com a análise da estrutura das presunções judiciais.
O recorrente alegou que o erro do acórdão decorre do conhecimento da vida real da impossibilidade do comportamento que lhe é imputado de entregar materiais de construção de valor superior ao da dívida exequenda e de nada tendo feito para cobrar o respectivo valor durante mais de três anos.
A este propósito, está assente que o recorrente entregou ao recorrido determinados materiais de construção, constantes de facturas datadas de 30 e de 31 de Dezembro de 2002, com o valor global de € 48 291,64.
As presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349º do Código Civil).
É seu pressuposto a existência de factos conhecidos – base da presunção – a provar, nos termos gerais, por quem deles aproveita, a partir dos quais a lei, no caso das presunções legais, ou o julgador, no que concerne às presunções judiciais, por via de juízos assentes em máximas da experiência, juízos correntes de probabilidade e princípios da lógica, inferem factos diversos – factos presumidos.
Estas ilações decorrentes de presunções judiciais só são admissíveis nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, pelo que podem ser afastadas por via de contraprova (artigos 346º e 351º do Código Civil).
Perguntou-se no quesito sétimo da base instrutória se o exequente entregou ao oponente o montante pecuniário mencionado sob II 5, e a resposta foi no sentido de não provado.
A resposta não provado a tal quesito não pode significar, tal como foi considerado nas instâncias, dever considerar-se provado o não pagamento, como teria sido se o quesito tivesse sido formulado na forma negativa, que não foi.
Este Tribunal não tem competência funcional para sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação, designadamente a envolvente de inferência ou não de factos desconhecidos a partir de factos conhecidos com base em máximas da experiência, juízos correntes de probabilidade ou princípios de lógica (artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Acresce que, tendo em conta a factualidade provada mencionada sob II 5, não revela que a Relação, ao não considerar assente que o recorrente entregou os materiais de construção ao recorrido a título cumprimento da obrigação reconhecida no mencionado documento, haja infringido as normas dos artigos 349º ou 351º do Código Civil.

4.
Atentemos agora sobre se os factos provados revelam ou não a extinção da obrigação exequenda invocada pelo recorrido no confronto dos recorrentes.
Entre as causas de extinção das obrigações além do cumprimento figura a dação em cumprimento (artigo 523º do Código Civil).
O conceito de dação em cumprimento consta do artigo 837º do Código Civil, segundo o qual, a prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento.
É o designado datio pro solutum, em que o devedor visa, com a prestação diversa da devida – dinheiro, coisa ou facto – extinguir a sua obrigação relativa à prestação dela decorrente.
Os factos provados revelam que os recorrentes entregaram ao recorrido determinados materiais de construção com valor superior ao da obrigação exequenda. Mas não revelam a que título o fizeram nem qual a vontade do recorrido a propósito dessa entrega.
Não há, ao invés do que os recorrentes alegaram, alguma presunção judicial a considerar, designadamente sobre o comportamento de quem aliena materiais de construção no âmbito da sua actividade comercial.
Além disso, não revelam os factos provados os termos do contrato celebrado entre o recorrente e o recorrido de que derivou a entrega dos mencionados materiais de construção, nem se houve ou não cumprimento da obrigação dele decorrente por parte do recorrido, a quem foram entregues.
A conclusão é, por isso, no sentido de que os factos não revelam que a entrega, pelo recorrente ao recorrido, dos aludidos materiais de construção, tenha operado a extinção da obrigação exequenda por qualquer título legítimo.

5.
Finalmente, a síntese da solução para o caso-espécie decorrente dos factos provados e da lei.

O título executivo em que a execução para pagamento de quantia certa em causa se baseia é um documento escrito de reconhecimento de dívida sem indicação de causa, subscrito pelo oponente, em relação ao qual o oponido está dispensado de provar a relação fundamental, porque a sua existência se presume até prova em contrário, e esta não ocorreu.
A resposta negativa ao quesito da base instrutória em que se perguntava se o exequente entregou ao executado o valor pecuniário dos materiais de construção não permite a conclusão no sentido de que não operou a referida entrega.
Os factos provados não revelam que a Relação tenha infringido alguma norma jurídica relativa às presunções judiciais.
Incumbia aos recorrentes a prova de que entregaram ao recorrido os materiais de construção para cumprimento da obrigação exequenda com o consentimento do último, mas não cumpriram tal ónus.
A conclusão é, por isso, no sentido de que não ocorrem, na espécie, os pressupostos de extinção da obrigação exequenda em quadro de dação em cumprimento ou a qualquer outro título, e, consequentemente, da acção executiva em causa.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 17 de Abril de 2008.

Salvador da Costa (relator)
Ferrreira de Sousa
Armindo Luis