Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2792/08.0TBAMD.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PRESTAÇÕES DEVIDAS
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA/ RESPONSABILIDADES PARENTAIS/ ALIMENTOS
Doutrina: - REMÉDIO MARQUES, “Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos A Menores)…”, 2000, pág. 69/70.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1878º, N.º1, 1905.º, N.º1, 2003.º, 2004.º, N.º1, 2006.º, 2008.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 1411.º, N.º2, 722.º, N.º1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 69.º.
DL N.º 314/78, DE 27/10: - ARTIGOS 150.º, 174.º, 180.º, 186.º E 188.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11-12-2009, PROCESSO N.º 110-A/2002.L1.S1;
-DE 07/12/2011, PROCESSO N.º 4231/09.0TBGMR.G1.S1;
-DE 27/9/2011, PROCESSO N.º 4393/08.3TBAMD.L1.S1.
Sumário :
I- O tribunal deve fixar  prestação alimentar a favor do menor, a suportar pelo progenitor, mesmo quando o paradeiro e condições sócio-económicas deste se desconheçam.

II - A fixação do montante da pensão alimentar a prestar pelo progenitor a filho é da exclusiva competência das instâncias.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - A Exma. Curadora de Menores junto do Tribunal da comarca da Amadora requereu, em representação do menor AA, contra os progenitores do mesmo, BB e CC, a regulação provisória do poder paternal.

         À conferência não compareceu o pai do menor, notificado editalmente para o acto.

         Após parecer da Exma. Curadora, foi proferida sentença que procedeu à regulação do poder paternal, quanto à guarda do menor e regime de visitas, mas se absteve de fixar a prestação alimentar devida pelo progenitor, por se desconhecer o paradeiro deste e, consequentemente quais são as suas condições sócio-económicas.

         Apelou o Ministério Público, pretendendo que fosse fixada uma pensão alimentar ao menor, de montante não inferior a 100,00€, mas a Relação manteve o sentenciado.

         O Ministério Público interpôs recurso de revista excepcional, que foi admitido, pela competente Formação, com fundamento na contradição de julgados quanto à questão de ser ou não de “determinar fixação de prestação alimentar a favor dos menores, a cargo do respectivo progenitor, apesar se serem desconhecidos quer o paradeiro deste quer as sua condições sociais e económicas”.

         O Recorrente conclui as suas alegações como segue.

1. - "Ainda que não se saiba da existência de rendimentos de que seja titular o progenitor - quer por desconhecimento do respectivo paradeiro, quer por desconhecimento da sua situação económica - e, bem assim, quando esta seja precária, deve a sentença impor àquele a obrigação de prestar alimentos.

2. - Com efeito, é inerente ao poder paternal o dever de prover ao sustento do filho menor, o que, além de constituir imperativo constitucional por força do que se dispõe no artigo 36° da CRP, decorre também do artigo 2009º, nº 1, c) do Código Civil.

3. - Acresce que, de outro modo, ficaria vedada a intervenção do FGADM, por falta de um dos pressupostos essenciais, ou seja, a fixação judicial do quantum de alimentos. Tal fixação deve, nesses casos, ser determinada com recurso a presunções e por critérios de equidade ".

            A decisão foi proferida em violação das normas dos arts. 1878º, 1905º e 2004º, n.º 1 do Código Civil.

            Deve dar-se sem efeito a decisão recorrida, fixando-se uma pensão alimentar a cargo do progenitor.

         Não foram apresentadas contra alegações.

   

2. - A questão a dirimir é, como já enunciada e delimitada, a de saber  se deve ser fixada  prestação alimentar a favor de menor, a suportar pelo progenitor cujo paradeiro e condições sócio-económicas se desconheçam.                                            

         3. - Mostram-se disponíveis os seguintes elemento de facto.

- AA nasceu em … de … de 2… e encontra-se registado como filho de CC e de BB.

- Os progenitores do AA não são casados entre si, nem coabitam um com o outro desde há cerca de 7 anos, tendo mantido entre si uma relação marital durante vários anos de que resultou o nascimento do AA;

- O Menor sempre viveu com a Requerida , que é solteira, coabitando ambos, o companheiro da Requerida e um filho do casal, irmão uterino do AA, num apartamento arrendado, de tipologia T2 ;

- A Requerida revela-se uma pessoa preocupada em assegurara cobertura dos cuidados básicos do AA, garantindo adequadamente a satisfação dessas necessidades com apoio efectivo do seu companheiro;

- A Requerida trabalha há cerca de 10 anos por conta de outrem numa empresa de limpezas auferindo mensalmente o vencimento mensal declarado de € 300,00;

- O companheiro da Requerida trabalha numa empresa de armação de ferro, como ferreiro, auferindo o vencimento mensal declarado de € 500,00;

- A Requerida recebe mensalmente € 104,84 de abono de família dos dois filhos;

- O agregado da Requerida despende mensalmente com renda de casa 300,00€ e quantia não concretamente apurada com consumos domésticos;

- O AA frequenta o 5º ano na Escola E.B 2-3, é um aluno regular, com hábitos de estudo, praticando futebol duas vezes por semana como actividade extra-curricular;

- O AA é uma criança calma, introspectiva e mantém uma relação próxima com o padrasto, que constitui a referência masculina na sua vida;

- Após consumada a separação entre os Requeridos o progenitor do AA não voltou a procurá-lo e nunca contribuiu para as despesas do filho;

- O AA não tem quaisquer contactos com familiares da linha paterna;

- O Requerido encontra-se em paradeiro incerto, provavelmente em França, desconhecendo-se se aí exerce alguma actividade remunerada, bem como a sua situação pessoal e económica;

- No âmbito desta acção foi decidido a título provisório confiar o AA à guarda e cuidados da Requerida, conferindo-lhe o exercício em exclusivo do poder paternal sobre o filho.

         4. - Mérito do recurso.

         4. 1. - Ponto prévio. Delimitação do objecto do recurso.

        

         Os processos de regulação do exercício de poder paternal, bem como os de fixação de alimentos devidos a menores encontram-se previstos e especialmente qualificados na Organização Tutelar de Menores (DL n.º 314/78, de 27/10) como processos tutelares cíveis de jurisdição voluntária (arts. 150º, 174º, 180º, 186º e 188º).

Estando-se, então, como se está, perante um processo de jurisdição voluntária, a admissibilidade de recurso das decisões da Relação está delimitada pelo âmbito de exclusão da previsão do n.º 2 do art. 1411º CPC.

         Vale dizer, só há lugar a recurso se a decisão não tiver sido proferida “segundo critérios de conveniência ou oportunidade”, ou seja, se emergir de critérios de legalidade estrita.

         Necessário, pois, para que o recurso de revista seja admissível, é o concurso do pressuposto de que a decisão impugnada assente num critério de legalidade e não apenas em juízos de oportunidade ou conveniência.       

A proibição estabelecida no citado n.º 2 do art. 1411º surge, assim, em harmonia com o que a mesma lei processual define como fundamento do recurso de revista – a violação da lei substantiva ou da lei do processo 722º-1 CPC).

Excluído, pois, o recurso quanto se não baseie exclusivamente na violação da lei substantiva ou da lei processual.        

         Ora,  se a questão de deverem ou não ser fixados alimentos se prende com a aplicação de um critério normativo ou de legalidade, pois que, dependendo da interpretação de preceitos legais, designadamente da concretização do conteúdo das normas dos artigos 1878º-1, 1905º-1 e 2004º-1 do Código Civil,  tem que ver com o concurso dos pressupostos ou requisitos exigidos pela lei para respectiva fixação de judicial, isto é, no caso, se, por ser desconhecida a situação económica do devedor legalmente obrigado à prestação, é legítimo, por isso, desonerá-lo dessa obrigação quando verificada a necessidade do alimentando, já quanto à fixação de uma concreta quantia, a título de pensão, se resvala para o campo de juízos casuísticos incidentes sobre as concretas necessidades e possibilidades de quem carece e de quem deve prestar os alimentos, fazendo apenas apelo a critérios de equidade (oportunidade e conveniência) para avaliar dum actual e concreto interesse do menor, tudo para além do campo da legalidade estrita e, consequentemente, já no âmbito da proibição delimitada pelos mencionados preceitos.

         Serve o expendido para concluir que está fora dos poderes deste Tribunal pronunciar-se, em sede de recurso, sobre a concreta medida dos alimentos.

         E, se lhe está subtraído o poder de sindicar a decisão sobre uma concreta quantificação da obrigação alimentar, assente em considerações de conveniência e oportunidade, por maioria ou, pelo menos, por igual razão, lhe está vedado proferir ex novo uma decisão sobre tal matéria.        

Por isso, não se conhecerá da pretensão do Recorrente quanto ao pedido de quantificação da prestação alimentar.

         4. 2. - Obrigação de alimentos. Fixação do conteúdo da obrigação.

         4. 2. 1. - Como se deixou delimitado o objecto de recurso, importa responder à questão de saber se um progenitor ausente em parte incerta e com situação económica desconhecida deve ver judicialmente reconhecida obrigação de prestar alimentos ao filho, com a fixação de um quantitativo, ou se esta deve aguardar a sua apresentação ou termo da ausência.

         A questão proposta, como mostram o processo e o próprio fundamento invocado para o recurso, tem sido objecto de decisões contraditórias, designadamente nas Instâncias.

         Este Tribunal Supremo foi já chamado a pronunciar-se sobre o assunto,  como pode ver-se na decisão invocada como acórdão-fundamento (ac. de 27/9/2011-proc. n.º 4393/08.3TBAMD.L1.S1), na qual se decidiu dever fixar-se a pensão de alimentos a favor do menor, mesmo no caso de se desconhecer o paradeiro e situação económica do progenitor.

         Embora perante situações de facto não totalmente sobreponíveis, parece adoptarem o mesmo entendimento as decisões proferidas nos acórdãos de 11-12-2009 e de 07-12-2011 (procs. 110-A/2002.L1.S1 e 4231/09.0TBGMR.G1.S1, respectivamente).

         Adiante-se, desde já, que não encontramos razões que nos levem a divergir da posição assumida no citado acórdão de 27 de Setembro, ora invocado como fundamento.     

         4. 2. 2. - Entre os direitos e deveres fundamentais, consagra a Constituição da República, em seu art. 36º-5, o direito e dever dos pais de educação e manutenção dos filhos, que não podem ser separados dos pais, a não ser que estes não cumpram os seus deveres fundamentais (n.º 6 do mesmo art.), ou seja, a restrição ao direito constitucionalmente garantido dos pais apenas é admitido, mediante decisão judicial, em casos extremos de irresponsabilidade ou  inconsideração em que o superior interesse dos filhos o exija. 

         Os termos em que a Lei Fundamental coloca a interligação dos direitos e deveres dos pais para com os filhos na sua relação com a possibilidade de estes poderem ser separados dos pais faz seguramente crer que, tal como o legislador ordinário, também o  legislador se orientou pela ideia central da defesa do interesse do filho, acolhendo o princípio, em ordem à plena realização da sua pessoa.

         Revela-o ainda o art. 69º da CRP ao impor ao Estado e à sociedade o dever de protecção das crianças, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, ou seja, o interesse dos filhos como sujeitos de direitos fundamentais.

         A lei ordinária, por sua vez, concretizando e desenvolvendo o desígnio constitucional, atribui aos pais, competindo-lhes, o poder-dever de “no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, representá-los …” – art 1878º-1 C. Civil.     

         Já o art. 2004º, dispondo sobre o modo de determinação em concreto da medida dos alimentos, cujo conteúdo está traçado no art. 2003º (o indispensável ao sustento, habitação vestuário, instrução e educação do menor), estabelece que “os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”.

         De notar, ainda, que o direito a alimentos é irrenunciável e incedível e que, embora possa deixar de ser pedidos, uma vez deduzida a respectiva pretensão, são devidos desde a data da propositura da acção (arts. 2008º-1 e 2006º C. Civil).

         4. 2. 3. - Assim passadas em revista as normas que aludem à matéria relativa ao direito a alimentos de menores e respectiva fixação, temos que, a enformá-las, está sempre presente, presidindo-lhes, o princípio da defesa do superior interesse do menor, para cuja satisfação converge o imperativo e inerente dever jurídico dos pais, só arredável perante a demonstração de absoluta incapacidade económica do devedor, designadamente por não ser titular de réditos que lhe permitam ir além das suas necessidades básicas de subsistência.    

           Apresenta-se, portanto, no campo da excepcionalidade, sempre assente na salvaguarda do estritamente necessário à subsistência, a liberação do progenitor relativamente à obrigação alimentar.

         Daí decorre, ao menos a nosso ver, que uma vez judicialmente peticionada a atribuição de alimentos e demonstradas as necessidades alimentares do filho menor, resulta incontornável o dever de proceder à fixação de uma pensão a esse título, em efectivação e concretização do direito de que goza o respectivo titular.

         Com efeito, a ausência do pai que se exime à sua responsabilidade, abandonando e desinteressando-se da sorte do filho, em manifesta violação dos direitos-deveres que sobre si impendem, não poderá aproveitar-lhe para, em sede da concretização da medida dos alimentos, se exonerar da respectiva obrigação.

         O abandono, puro e simples, com desprezo pelos direitos e deveres que a condição de progenitor encerra, não pode, sem mais, fazer-se equivaler ou justificar, do ponto de vista da tutela dos interesses em jogo, o reconhecimento da incapacidade  de acudir às necessidades alimentares do filho, sob pena de se deixar vazio de conteúdo o aludido direito-dever fundamental de educação e manutenção dos filhos, não separados dos pais.  

         Como, a este propósito escreve REMÉDIO MARQUES (“Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos A Menores)…”), 2000, pg. 69/70), os “direitos-deveres para com os menores são sempre devidos, independentemente dos seus recursos económicos e do estado de carência económica dos filhos, posto que se trata de direitos cujo exercício é obrigatório e prioritário em atenção à pessoa e aos interesses do menor”.

         E, efectivamente, o art. 2004º, preceito que, como dito, se prende apenas com a o critério de determinação da medida dos alimentos, tem como pressuposto nuclear a situação de necessidade do alimentado, que é, afinal, o interesse juridicamente protegido que confere o direito à obtenção da prestação, correspondendo a regra da proporcionalidade aí acolhida à indicação do método de cálculo a adoptar pelo julgador.        

Por isso, a falta de um dos elementos de aplicabilidade da proporcionalidade, por facto imputável ao obrigado, não será, só por si, causa de desatendimento do pedido, demonstrada que esteja a necessidade, que é fundamento do direito e que se coloca num plano superior e anterior à concreta medida das necessidades e das possibilidades a que alude o art. 2004º-1, estas sim, a cotejar, na medida dos elementos disponíveis.       

Ora, se assim é, pensa-se que o reconhecimento do direito à atribuição de alimentos só poderia resultar arredado perante a demonstração da efectiva impossibilidade do obrigado, a qual, no caso, não se verifica, desde logo, porque o progenitor, se desinteressou de contribuir para essa prova, porque, antes disso, se auto-desresponsabilizou de todo o complexo de poderes e deveres inerentes à sua condição de pai.           

         Como se ponderou no acórdão de 27/9/2011, “a essencialidade de que se reveste para o interesse do menor a prestação alimentar impõe ao tribunal que lhe confira o necessário conteúdo, não se podendo dar, e ter, por satisfeito pela constatação da falta de elementos das condições económicas do progenitor requerido, particularmente por ausência deste em parte incerta ou de colaboração sua”. 

         Tudo o convocado conduz a que o tribunal deva proceder à fixação da quantia pecuniária que, em juízo equitativo, tenha como a adequada comparticipação do pai nas despesas alimentares do menor, segundo as suas necessidades.        

A fixação impõe-se ainda, porque, reconhecida a existência da obrigação, o respectivo titular deve dela beneficiar desde a data da instauração da acção, não se afigurando legítimo impor-lhe uma renúncia a tal prestação até que o progenitor abandonante decida comparecer ou seja encontrado (arts. 2006º e 2008º cit).

         Se, quando tal acontecer, se verificar que a prestação fixada estava desfasada das reais possibilidades do devedor, aí estarão os meios que o processo, pela sua natureza de jurisdição voluntária, põe ao dispor do tribunal e das partes para encontrar a solução correctiva mais conveniente e oportuna.   

         4. 2. 4. – O expendido em 4. 1. supra tem como consequência que este Tribunal se abstenha de emitir pronúncia sobre a fixação do montante pensão alimentar, remetendo para as Instâncias a respectiva decisão.    

         4. 2. 5. - Respondendo, em síntese final, á questão colocada poderá concluir-se:

                 

 - O tribunal deve fixar  prestação alimentar a favor do menor, a suportar pelo progenitor, mesmo quando o paradeiro e condições sócio-económicas deste se desconheçam.

        

- A fixação do montante da pensão alimentar a prestar pelo progenitor a filho é da exclusiva competência das instâncias.

         5. – Decisão.

         Em conformidade com exposto, acorda-se em:

         - Conceder a revista;

         - Revogar o acórdão impugnado;

         - Determinar que, na 1ª Instância, se proceda à fixação da montante da pensão alimentar a prestar pelo Requerido no âmbito da regulação do poder paternal do menor AA; e,

         - Colocar as custas dos recursos a cargo do Requerido-recorrido.

 

         Lisboa, 15 Maio 2012

         Alves Velho (relator)

         Paulo Sá

         Garcia Calejo