Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98A1250
Nº Convencional: JSTJ00035819
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
RELAÇÃO DE TRABALHO
Nº do Documento: SJ199902090012501
Data do Acordão: 02/09/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 745/98
Data: 07/09/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR JUDIC - CONFLITOS / ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional: CPC95 ARTIGO 105 N1 ARTIGO 234-A N1.
LOTJ87 ARTIGO 64 B.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1978/06/06 IN BMJ N278 PAG122.
ACÓRDÃO STJ PROC77385 DE 1989/02/28.
ACÓRDÃO STJ DE 1990/02/20 IN BMJ N394 PAG453.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/10/20 IN AD ANOXXXIII N386 PAG227.
ACÓRDÃO STJ PROC4356 DE 1996/06/20.
ACÓRDÃO RL DE 1972/06/16 IN BMJ N304 PAG304.
ACÓRDÃO RL DE 1989/01/17 IN CJ ANOXIV TI PAG111.
Sumário : I - A competência do tribunal é determinada e aferida pelos termos em que a acção é estruturada pelo autor.
II - Para efeitos do disposto na alínea b) do artigo 64 da Lei 38/87, de 23 de Dezembro (LOTJ), não é decisiva a circunstância de a relação laboral se encontrar extinta, pois pode haver questões que, embora surgidas após a ocorrência dessa extinção, se devem considerar abrangidas pela previsão da primeira parte daquela norma.
III - Na determinação do sentido e alcance da primeira parte da alínea b) do artigo 64 da LOTJ, o que verdadeiramente releva, para a determinação da razão de ser da norma, é que o direito que se pretenda ver tutelado através do exercício do direito de acção judicial contra o empregador provenha da violação de obrigações que para estes resultem de uma relação jurídico-laboral, mormente do contrato de trabalho - esteja, ou não, extinta a relação de trabalho subordinado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A intentou, nos Juízos de competência especializada cível do Tribunal da Comarca de Matosinhos (6º Juízo), acção ordinária contra B, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 6826212 escudos, acrescida de juros de mora vencidos no montante de 1592782 escudos e juros de mora vincendos, à taxa legal até integral reembolso.
Contestando, a Ré, para além de se defender por impugnação, deduziu, designadamente, a excepção de incompetência absoluta, sustentando que a questão respeitava a relação de trabalho entre ela e o Autor.
Na resposta, o demandante rebateu a matéria da excepção.
No despacho saneador, foi, todavia, tal excepção julgada procedente, pelo que, com o fundamento de não ser o Tribunal cível, mas sim o Tribunal de Trabalho, o competente, declarou-se a incompetência do tribunal cível para a apreciação da causa, em consequência do que se absolveu a Ré da instância.
Inconformado, o Autor agravou de tal despacho, tendo o Tribunal da Relação, por acórdão de 09-07-98, dado provimento ao recurso, pelo que revogou a decisão recorrida, declarando competente em razão da matéria para o conhecimento da causa o 6º Juízo de competência especializada cível da Comarca de Matosinhos.
É deste acórdão que a Ré, insatisfeita com o decidido, agravou para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo oferecido, ao alegar, as seguintes conclusões:
1. A cessão do crédito existente no caso em apreço só se verificou depois da resolução do contrato de trabalho existente entre a Recorrente e o Recorrido. E um contrato de trabalho em todas as suas vertentes e "nuances" só pode ser apreciado pelos Tribunais do Trabalho.
2. E entre as duas situações verificadas existe uma relação, ou seja, um verdadeiro nexo, como é fácil de ver;
3. Mas se não existisse um crédito por resolução de um contrato de trabalho não se poderia sequer pôr a hipótese de ele poder vir a ser cedido, como o foi e manter-se na esfera dos Tribunais do Trabalho.
4. E assim, o caso "sub judice" e dado todo o circunstancialismo verificado para a sua apreciação e solução, cai na alçada dos Tribunais do Trabalho.
5. É que isso resulta necessariamente dos factos verificados e da aplicação das disposições legais conjugadas dos artigos 66º e 67º do Código de Processo Civil e da alínea b) do artigo 64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro.
6. E para se ver que assim tem sido entendido, basta ver e analisar alguns dos Acórdãos proferidos pelos Tribunais Superiores e citados nas peças processuais constantes desta acção.
7. Daí resulta que o venerando Tribunal da Relação do Porto não interpretou correctamente a lei aplicável aos factos verificados.
8. Em síntese de todo o exposto resulta que em razão da matéria e no caso dos autos, é competente o Tribunal do Trabalho.

Atento o que a agravante termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido, e considerado competente em razão da matéria o Tribunal do Trabalho.
Contra-alegando, o agravado pede a manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
São os seguintes os factos relevantes, constantes da petição inicial:
- No dia 17 de Janeiro de 1994, Autor e Ré celebraram um acordo de rescisão do contrato individual de trabalho existente entre ambos.
- Segundo tal acordo a Ré obrigou-se a pagar ao Autor, a título de indemnização, a quantia de 9338283 escudos, tendo-se estipulado que a forma de pagamento seria a seguinte:
a) Uma prestação de 219979$00, em Janeiro de 1994, que a Ré pagou.
b) Cessão parcial a favor do Autor do crédito da Ré sobre a sociedade C no valor de 9118304 escudos.
- Para tal, foi celebrado, em 4 de Fevereiro de 1994, um contrato de cessão de crédito em que foram outorgantes a referida sociedade..., o aqui Autor e a aqui Ré - cfr. doc. de fls. 7 e 8.
- Por tal contrato, a ora Ré cedeu ao aqui Autor o crédito que tinha em relação à ..., no montante de 9118304 escudos, cessão que a C aceitou e de que se considerou notificada.
- O referido crédito era titulado, quase exclusivamente, por cheques devolvidos por falta de provisão no valor de 2292092 escudos e aceites vencidos e a vencer no valor de 6727993 escudos e 50 centavos.
- O Autor obteve o pagamento da quantia de 2292092 escudos titulada pelos referidos cheques.
- Em 9 de Fevereiro de 1994 foi celebrado entre a Ré (como primeira outorgante) e o Autor (enquanto segundo outorgante) um "Aditamento ao Acordo de Rescisão do Contrato Individual de Trabalho entre B e ..., do qual constava a seguinte cláusula: "(...) se a cobrança da dívida não for possível, quer total, quer parcialmente, depois de goradas todas as diligências feitas pelo segundo outorgante, a primeira outorgante assume o compromisso de liquidar a este o que ainda não estiver pago a título de indemnização pela cessação do seu contrato de trabalho" - cfr. doc. de fls. 16.
- Por sentença proferida em 9 de Setembro de 1966, foi decretada a falência de ... - cfr. fls. 18;
- Através de carta de 21-12-94, o Autor comunicou à Ré que a firma ... "não cumpre nem parece vir a ter possibilidade de cumprir, já que, ao que consta, cessou a actividade", motivo por que solicitou à Ré que apresentasse um plano de pagamento da quantia que ainda lhe era devida - cfr. doc. de fls. 19.
- Através de carta de 10 de Janeiro de 1995, a Ré informou o Autor de que, em face das dificuldades de tesouraria e de liquidez da empresa, não tem possibilidade de, para já, lhe pagar "a importância que consta do contrato de cessão de créditos da C". Mais informa que, não obstante a insistência por ela feita no sentido da cobrança das dívidas da ..., esta, até à data, nada lhe pagou, constando que já cessou a sua actividade. Motivo por que considera tratar-se de um "crédito incobrável" - cfr. doc. de fls. 20.
III
1 - A questão que importa decidir no presente agravo consiste em saber se o tribunal competente, em razão da matéria, para o conhecimento da causa é o Tribunal de Trabalho, como sustenta o recorrente, ou se é o Tribunal cível, como se concluiu na decisão sob recurso, e tal como é defendido pelo recorrido nas suas contra-alegações.
Estabelece o artigo 64º, na sua alínea b), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, aplicável ao caso sub judice):
Compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível:
(...)
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.
Na interpretação a que procedeu da primeira parte da reproduzida alínea b), o Tribunal a quo afastou a aplicação desta norma, considerando que a mesma não abrange os casos em que a relação laboral já se encontra extinta. Seria esse o caso em apreço, pelo que, segundo aquela interpretação, a questão não emergiria de relação de trabalho subordinado.
Escreve-se, com efeito, no acórdão recorrido, o seguinte:
Ora, segundo a interpretação que reputamos mais correcta deste preceito legal, compete aos Tribunais de Trabalho conhecer, em matéria cível, de todos os litígios que surjam durante a vigência da relação laboral e que com ela apresentem íntima conexão, bem como dos que emirjam dos preliminares ou da formação do contrato de trabalho.
Donde se conclui, pois, que não se atribui competência aos Tribunais de Trabalho para conhecer dos litígios respeitantes às relações que surjam entre as partes após a extinção dessa relação de trabalho subordinado, ainda que esta possa ter sido a causa remota ou indirecta daqueles.
2 - Este entendimento encontra importante apoio jurisprudencial.
Assim, depois de se afirmar que "a competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor, tendo em conta os termos em que a acção foi proposta", pode ler-se no sumário do Acórdão deste STJ de 20-10-93 ( ) In "Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo", Ano XXXIII, nº 386, pág. 227.), o seguinte:
Tendo o contrato de trabalho cessado por caducidade, com a reforma do trabalhador, o pedido de pensões de reforma formulado por este não é uma questão emergente da relação de trabalho, mas sim uma questão conexa com ela"
Mais se escreve no texto do referido acórdão, com particular atinência à economia da questão ora em apreço:
É a estruturação da causa, apresentada pela parte que toma a iniciativa do recurso ao tribunal, que fixa o único tema decisivo para efeitos de competência em razão da matéria.
(...).
Flui da petição inicial, com a maior clareza, que o pedido formulado é o do pagamento de pensões de reforma pela ré, sendo a causa de pedir o indevido desconto nelas efectuado pela ré, para a qual o A. trabalhou subordinadamente.
Com a reforma do A. extinguiu-se o contrato de trabalho por caducidade (...).
Não se trata de questão emergente de relação de trabalho.
Trata-se antes de questão conexa com aquela.
Assim, não se trata de questão da competência do Tribunal de Trabalho, porquanto não cabe nos parâmetros das alíneas b) e o) do artigo 64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
No mesmo sentido, poderá mencionar-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 17-01-89 ( In "Colectânea de Jurisprudência", Ano XIV, tomo I, pág. 111.), em cujo sumário se lê o seguinte:
A autonomização dos Tribunais do Trabalho deriva das especificidades sociais das relações jurídico-laborais e não da especificidade do seu regime jurídico.
Por isso cabe ao tribunal comum, e não ao Tribunal do Trabalho, decidir as questões que surjam entre o trabalhador e a entidade patronal depois da extinção da relação laboral.
A partir da interpretação a que se procede da aludida alínea b) do artigo 64º da LOTJ, pondera-se no acórdão em referência:
Por esta norma atribui-se à competência especializada dos tribunais do trabalho todas as decisões sobre litígios que surjam durante a vigência dessa relação e que com ela sejam, por algum modo, conexos (...).
Não se vê, porém, onde o referido preceito atribua aos Tribunais de Trabalho competência para conhecerem dos litígios respeitantes às relações que surjam entre as partes após a extinção dessa relação de trabalho subordinado, ainda que esta possa ter sido a causa indirecta e remota daquelas.
Após o que, citando-se a lição de Menezes Cordeiro ( ) In "Da situação jurídico-laboral, perspectivas dogmáticas do Direito do Trabalho", separata da R.O.A.),a propósito da "especialização do trabalho", o discurso argumentativo do Acórdão em referência prossegue do seguinte modo:
Isto porque a "especialização do trabalho não apresenta quaisquer especialidades em face das outras prestações obrigacionais. As suas especialidades são sociais e derivam do entendimento de a força de trabalho ser a única mercadoria que os trabalhadores possuem, que tem que ser colocada no mercado para garantir a sobrevivência do seu titular.
Mas quando essa situação cessa pela extinção da relação de trabalho - as questões que posteriormente possam surgir devem ser dirimidas em tribunal comum, uma vez que já não se está perante situações de cariz social que justifiquem a autonomização daquela jurisdição.
É por esta razão que a al. b) do artigo 64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais não abrange, nem na sua letra nem no seu espírito, as questões que surgem posteriormente à extinção da relação de trabalho, as quais, por isso, ficam abrangidas pela competência do tribunal comum.
3 - Mas, dito isto, cumpre reconhecer também a existência de jurisprudência que, de forma diversa, interpretou o preceituado na referida norma da alínea b) do artigo 64º da LOTJ, fazendo-o de modo a admitir a competência dos tribunais de trabalho para o conhecimento de questões que, apesar de já se encontrar extinta a relação de trabalho subordinado, foram, expressa ou implicitamente, consideradas como emergentes dessa relação.
É o caso do Acórdão da Relação de Lisboa de 16-06-72 ( ) In Boletim do Ministério da Justiça nº 304, pág. 304.) ou dos Acórdãos do STJ de 28-02-89, processo nº 77385, e de 20-06-96, processo nº 4356.
Escreve-se no primeiro:
A acção em que o patrão pede ao ex-empregado a restituição dos salários que a mais lhe pagou por erro, invocando o princípio do enriquecimento sem causa, é da competência dos tribunais do trabalho e não dos tribunais comuns.
No sumário do Acórdão do STJ de 28-02-89, pode ler-se o seguinte:
É competente o Tribunal do Trabalho, na vigência do artigo 66º da Lei 82/77, de 6/12 ( ) Tratava-se da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais que, por estar em vigor à data da propositura da acção, era aplicável.), para conhecer do saldo ou resultado final da liquidação de créditos emergentes do contrato de trabalho que as partes fizeram cessar, não obstante o aludido saldo ter sido apurado e fixado em contrato de transacção.
Enfim, não atribuindo relevo, para efeitos de se aferir da competência material dos Tribunais de Trabalho, à circunstância de a relação de trabalho subordinado estar extinta, escreveu-se no citado Acórdão de 20-06-96:
(...) Diga-se que o facto de os juros terem sido debitados quando o Autor já não trabalhava para o Réu não é pormenor que releve na determinação da competência do tribunal, sabido que os tribunais de trabalho são chamados a dirimir litígios que têm a ver com relações laborais entretanto extintas.
4 - Quid juris, tendo presente a falta de uniformidade das soluções jurisprudenciais acerca da questão em apreço?
Importará começar por referir que se acompanha o entendimento expendido por Manuel de Andrade ( ) In "Nocões Elementares de Processo Civil", I, reedição de 1979, pág. 91.), segundo o qual a competência do tribunal há-de ser determinada tendo em conta os termos em que a acção for proposta. Autor que, depois de, sobre o problema, citar um processualista italiano, comentou que ele exprimia a ideia tradicional de que a competência se determinava pelo pedido do Autor.
Trata-se, aliás, de entendimento seguido em numerosos Acórdãos ( ) Cfr., v. g., os Acórdãos do STJ de 20-02-90, no BMJ nº 394, pág. 453, de 27-06-89, no BMJ nº 388, pág. 464, e de 06-06-78, in BMJ nº 278, pág. 122.). Como se pode ler no citado Acórdão deste STJ de 6 de Junho de 1978, "a estruturação da causa, apresentada pela parte que toma a iniciativa do recurso ao tribunal, é que, na verdade, fixa o único tema decisivo para efeitos de competência em razão da matéria".
Que assim é confirma-o o disposto nos artigos 105º, nº 1, e 234º-A, nº 1, ambos do CPC, ao permitir ao juiz, quando for evidente a incompetência absoluta, o indeferimento liminar da petição inicial, nos processos em que haja despacho liminar, aferindo-se, assim, tal competência pelos termos da petição.
4.1. " Entrando agora directamente na apreciação do dissídio, e sem prejuízo do respeito que nos merece o entendimento contrário, considera-se não ser decisiva a circunstância de a relação laboral se encontrar extinta. É que tal não obsta a que se considere poder haver questões que, surgidas, embora, após a ocorrência dessa extinção, se devem considerar abrangidas pela previsão da primeira parte da alínea b) do artigo 64º da Lei nº 38/87, sendo, pois, de subsumir ao segmento literal "questões emergentes de relações de trabalho subordinado", em consequência do que será, então, de atribuir ao tribunal de trabalho competência para as julgar.
Hipotize-se, a título de simples exemplo, o caso da extinção de um contrato de trabalho a termo, em que o trabalhador, com salários por receber, acordou com o empregador um prazo para este lhe pagar. Apesar de o contrato em causa estar extinto, se, decorrido o aludido prazo, o empregador não cumprir o acordado, será competente o tribunal de trabalho para julgar a acção que o trabalhador vier a intentar para receber o montante devido a título de salários. Isto porque a questão emerge de relação de trabalho subordinado.
4.2. - O problema é, assim, como sempre se disse, um problema de interpretação da lei, mais concretamente, do sintagma "questão emergente de relação de trabalho subordinado", constante da norma da alínea b) do referido artigo 64º.
4.2.1. - Razão para, em síntese, recordar os princípios fundamentais a que a mesma deve obedecer, após o que se procederá à sua aplicação ao caso sub judice.
O artigo 9º do Código Civil prescreve, sobre a interpretação da lei que:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel de Andrade, "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis", págs. 21 a 26).
Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (Pires de Lima e Antunes Varela, "Noções Fundamentais do Direito Civil", vol, 2º, 5ª edição pág. 130).
Quer dizer, o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, págs, 187 e segs., uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Ou, como diz Oliveira Ascensão, in "O Direito, Introdução e Teoria Geral", Lisboa, 1978, pág. 350, "a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito".
Como escreveu Francesco Ferrara, "Interpretação e Aplicação das Leis", tradução de Manuel de Andrade, 3ª edição, Coimbra, 1978, págs. 127 e segs. e 138 e segs., para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios.
Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equivocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo.
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o "lugar sistemático" que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.
O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar".
4.2.2. - Na determinação do sentido e alcance da primeira parte da alínea b) do referido artigo 64º, o que verdadeiramente releva, para a determinação da razão de ser da norma, é que o direito que se pretenda ver tutelado através do exercício do direito de acção judicial contra o empregador provenha (seja emergente) da violação de obrigações que para este resultem de uma relação jurídico-laboral, mormente do contrato de trabalho - esteja, ou não, extinta a relação de trabalho subordinado. Se for esse o caso, será competente, em razão da matéria, o tribunal de trabalho.
Mas é manifesto não ser isso o que acontece no caso sub judice.
Com efeito, no caso dos presentes autos, o Autor fundamenta a sua pretensão, não na violação de uma obrigação laboral da Ré, mas sim no não cumprimento, por esta, do acordo de rescisão que firmaram em 17-01-94, com a alteração introduzida em 9 de Fevereiro de 1994, tendo presente a obrigação assumida pela Ré na sequência do contrato de cessão de crédito feito em 4 de Fevereiro de 1994.
É certo que, na sua origem, o crédito alegado pelo Autor corresponde a uma indemnização resultante da rescisão do contrato individual de trabalho que existiu entre ele e a Ré. Mas essa mera ligação genética não confere à questão dos presentes autos a natureza de uma questão emergente de relações de trabalho subordinado.
O que verdadeiramente se discute - e importará decidir - é, além do mais, se o Autor efectuou - e viu goradas - todas as diligências para a cobrança do crédito cedido - cfr. a cláusula 3ª do "Aditamento ao Acordo" de fls. 16. Isto é, importará apurar se estão reunidos os requisitos constantes da cláusula segundo a qual a Ré assumiu o cumprimento da obrigação no caso de o crédito cedido se tornar incobrável.
Aliás, o montante do pedido do A. é diferente da quantia que a Ré se obrigou a pagar-lhe a título de indemnização. Isto porque, do montante de 9338283 escudos, o Autor foi pago de uma primeira prestação de 219979 escudos e, segundo alega (artigo 9º da petição inicial), obteve também, por conta do crédito cedido, o pagamento da importância de 2292092 escudos, titulada por cheques devolvidos por falta de provisão - cfr. artigos 2º, 3º e 6º da petição inicial, não impugnados pela Ré (artigo 15º da contestação).
Trata-se de vicissitudes completamente à margem de qualquer relação de trabalho subordinado, posto que relacionadas com a execução do contrato de cessão de crédito, em virtude do qual a Recorrente veio a assumir uma obrigação nova e autónoma, qual seja a de pagar ao Autor o correspondente à parte incobrável do crédito cedido.
Assiste, pois, neste aspecto, razão ao acórdão recorrido, quando ali se escreve que foi "com base nesta nova obrigação assumida pela ré, em função do contrato de cessão de crédito outorgado depois da extinção do contrato de trabalho, que foi deduzido o pedido do autor, reclamando aquilo que não conseguiu receber do devedor cedido".
Daí que, como já se disse, aferindo-se a competência do Tribunal pelos termos em que a acção é configurada pelo Autor, a competência para dela conhecer cabe ao Tribunal cível, o qual também é competente, nos termos do artigo 96º, nº 1, do CPC, para conhecer de questões, ainda que de natureza laboral, suscitadas pela Ré, como meio de defesa ( ) Cfr. o Acórdão do STJ de 6 de Junho de 1978, já citado.).
Em face do exposto, conclui-se que não se verifica a situação prevista na referida alínea b) do artigo 64º da LOTJ - ou qualquer outra que pudesse determinar a atribuição de competência ao tribunal de trabalho -, pelo que é competente o tribunal cível, mais precisamente, o 6º Juízo de competência especializada cível do Tribunal da Comarca de Matosinhos.
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas a cargo da agravante.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1999.
Garcia Marques,
Ferreira Ramos,
José Saraiva.