Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
252/09.0PBBGC.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CONSENTIMENTO
MENOR
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CONFISSÃO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário : I - O presente recurso cinge-se à medida concreta da pena, que o arguido tem por excessiva, e que lhe foi concretamente cominada em 6 anos de prisão, em resultado da prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, do CP, com a pena de 3 a 10 anos de prisão.
II - Com a incriminação deste tipo propõe-se o legislador proteger a autodeterminação sexual, enquanto manifestação da liberdade individual, mas de um modo muito particular, não pela presença da prática de actos sexuais a coberto da extorsão ou situação análoga, mas pela pouca idade da vítima, ainda que aquela consinta, por poder prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da vítima, por lhe falhar a maturidade, o desenvolvimento intelectual capaz de poder determinar-se com liberdade, com pleno conhecimento dos efeitos do acto sexual de relevo consentido e seu alcance.
III - No caso em apreço, o arguido convenceu a vítima que estava a namorar com ela, beijando-a, apalpando-a, acariciando-a, excitando-a sexualmente, para, na culminância, enganando-a, manter relação de cópula completa, num local que escolheu, aproveitando-se da imaturidade de uma criança de 11 anos de idade, nem sequer sendo uma adolescente ou pré-adolescente, simbolizando esses actos um profundo e chocante desrespeito por aquela condição.
IV - O arguido já perfizera 21 anos de idade e essa diferença de idade devia contramotivá-lo, demovê-lo, da satisfação da sua lascívia usando uma criança, se bem que fosse ela a ter a iniciativa de com ele se encontrar a coberto da noite, do que não se pode ilacionar que era seu propósito entregar-se sexualmente ao arguido, e, a sê-lo, era irrelevante, por carecer de vontade sexualmente legitimante; despido de peso se apresenta o argumento de na raça cigana, a que ambos pertencem, o início da vida sexual se iniciar mais cedo, movendo-se num esquema de valores distintos.
V - A lei é de aplicação geral e abstracta, para todo o país, merecendo a tutela inscrita no art. 171.º, do CP, todas as crianças até aos 14 anos, não excepcionando as de qualquer raça, o que conduziria a um tratamento diferenciado, de chocante favor para o arguido, em flagrante oposição com princípios constitucionais estruturantes do Estado de Direito, particularmente o da igualdade, com tradução no art. 113.º da CRP.
VI - Considerando:
- que o arguido agiu com notável vontade criminosa, dolo directo, persistente no tempo, insistindo na consumação criminosa, envolvendo-a num manto de boas intenções;
- que o crime que praticou é grave, repugnando à consciência colectiva, que o não poupa a severa reprovação, pela prática frequente registada entre nós e não só;
- que em favor do arguido concorre a confissão dos factos, quase total;
- que é de ponderar a circunstância de ter sido da menor que, pese embora ter apenas 11 anos de idade, partiu a iniciativa de enviar ao arguido uma mensagem propondo-lhe encontrarem-se nas proximidades de um local pré-definido, de noite, para o que saltou através da janela do respectivo quarto da casa dos pais, com quem vivia, deixando-a aberta para por aí poder voltar a entrar, concretizando esse e outros dois encontros,
a pena aplicada de 6 anos de prisão merece redução para 5 anos de prisão.
VII - A suspensão é inteiramente de repudiar por não convergir o verdadeiro pressuposto material da suspensão da execução da pena, enunciado no art. 50.º, nº 1, do CP, da exigência de aquela pena de substituição responder cabalmente às exigências de prevenção geral e especial e de protecção dos bens jurídicos; em caso de suspensão, a expectativa dos cidadãos na força e vigor da lei penal para prevenir casos similares aos dos autos sairia defraudada; a pedagogia de tal pena, visando a interiorização que se pretende dos maus efeitos do crime por parte do arguido não passaria de letra morta, uma quase inutilidade, pois as anteriores condenações não o inibiram de voltar a cair na alçada da lei penal, e à falta de indícios fundantes de um juízo de prognose favorável em termos de futuro trajecto vital, não é prudente arriscar a emissão de um juízo de ressocialização em liberdade.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum sob o nº 252/09.0PBBGC, do Tribunal Judicial de Bragança , com intervenção do tribunal colectivo , foi submetido a julgamento AA, vindo , a final a ser condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança , p.e p. pelo art. 171º, nº 2, do C.Penal na pena de seis (6) anos de prisão e ainda ao pagamento a título de indemnização por danos não patrimoniais á menor através dos seus pais , como seus representantes legais no montante de 12.000,00 ( doze mil) euros, pelos danos morais que sofreu .

I. O arguido , inconformado com a condenação , interpôs recurso para este STJ , apresentando na motivação as seguintes conclusões :

O recurso é dirigido à medida concreta da pena , que se reputa exagerada .

Na fixação da medida concreta da pena importa atender , nos termos do art.º 71.º , do CP , á culpa do agente impondo uma justa retribuição , às exigências de prevenção especial , às de prevenção geral , ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade , dispondo o julgador de uma larga margem de discricionariedade , sem que a média entre os limites máximo e mínimo possam arvorar-se no critério orientador da medida da pena , como coincidiu nos autos .

O julgador terá de atender a todas circunstâncias que não fazendo parte do tipo , deponham a favor do agente , como o facto de o arguido ter confessado os factos , viver com a mãe , se encontrar a frequentar um curso de técnico de informática , contribuindo com a bolsa para o suporte das despesas com o agregado familiar , ocupar os tempos livres na companhia de vizinhos jovens que também frequentam o curso profissional , não lhe serem conhecidos hábitos alcoólicos ou de consumo de estupefacientes , não manter há muito relações com pessoas da sua etnia , as quais mantêm um estilo de vida e uma forma de estar diferente da sua e ter apoio exterior da mãe .

Arguido e ofendida são ambos de etnia cigana , sendo que as pessoas da sua raça iniciam a sua vida sexual ainda muito jovens ; a própria mãe disse ao colectivo ter sido mãe aos 13 anos , tendo o seu marido quarenta e tal .

O arguido não forçou a ofendida ao que quer que fosse , até porque não se provou que tivesse dito que , após ter conduzido a menor para a caixa da carrinha , dali não sairia sem manterem relações de sexo .

A aplicação de uma pena de 6 anos acarretará uma dessocialização do arguido tanto mais que frequentava um curso de formação subsidiado .

A cadeia é o local onde , muitas vezes , se adquirem novos vícios .

Na determinação da pena não foi levado em conta o facto de ambos serem de etnia cigana , do que resulta terem ambos valores e costumes diferentes

Existe dolo eventual e não directo , pois que este admitiu como possível ter menos idade

O crime de abuso sexual sobre criança é de perigo abstracto , na medida em que um perigo concreto para o desenvolvimento harmónico livre , físico ou psíquico , pode vir a não ter lugar , não concretizando o tribunal as consequências que daí podem resultar .

O dano , que está em causa é o livre desenvolvimento da personalidade e não o contacto sexual , pois o bem jurídico protegido é a autodeterminação sexual , mas sob forma particular : não sob a forma de condutas coactivas ou análogas , mas face a condutas de natureza sexual que , em razão da pouca idade da vítima , mesmo sem coacção podem perturbar gravemente o livre desenvolvimento da personalidade .

Os antecedentes criminais apontam para que tal não possa vir a suceder

Uma pena tão elevada como a aplicada em lugar de o aproximar da sociedade afasta-o .

A pena de prisão aplicada ao arguido , obedecendo ao princípio de que não deve exceder a medida da culpa –art.º 40.º n.º 1 , do CP -deve ser reduzida no seu “ quantum “ , aproximando-a do seu limite mínimo , nunca superior a 3 anos , suspendendo-se a sua execução

O arguido é de condição muito modesta e um jovem cujos antecedentes criminais são frutos da sua pobreza .

O arguido , em julgamento , praticamente fez uma confissão de forma integral e livre .

A pena aplicada ao arguido violou o disposto nos art.ºs 40.º n.º 2 , 70.º , 71.º e 72.º , do CP .

II . Neste STJ a Exm.ª Procuradora Geral-Adjunta é de opinião que poderá conceder –se , quando muito , que a pena sofra uma muito ligeira redução , situando –se mais próxima dos 5 anos de prisão mas sem suspensão .

III O Colectivo teve como provados os seguintes factos provados

1-Por ter nascido e … tem a menor BB apenas 11 anos de idade

2-O arguido e a ofendida são de raça cigana

3-Conhecem-se reciprocamente, pelo menos desde o período do Natal de 2008, tendo, desde então mantido regularmente conversação telefónica (através de telemóvel), falando sobre idades, identidades de pessoas conhecidas sobre namoros etc.

4-A partir da Páscoa deste ano passaram a enviar reciprocamente, mensagens através do telemóvel.

5-Em fins de Abril falaram em encontrar-se para conversas e contactos mais íntimas.

6-Na noite de 29 de Abril, a ofendida enviou uma mensagem ao arguido propondo-lhe encontrarem-se nas proximidades das instalações da igreja do Santo Condestável, nesta cidade, proposta que o arguido logo aceitou.

7-Para acorrer ao encontro, por volta das 24 horas, a menor, depois de se deitar na casa dos pais, com quem vive, fez que dormia, mas quando deixou de ouvir movimento, saltou através da janela do respectivo quarto, deixando aberta para por aí poder voltar a entrar.

8-Na sequência do que realmente ali se encontraram, tendo o arguido convidado a menor a entrar na caixa de carga da carrinha apreendida nos autos, que estava estacionada na parque de estacionamento aí existente.

9-Uma vez dentro, aí permaneceram até por volta da 5 horas da madrugada de 30/04/2009, conversando sobre intimidades e o arguido abraçou a ofendida, acariciou, através da roupa, o corpo da menor e em especial os seios e a zona genital e beijaram-se mutuamente, designadamente na boca, convencendo-se a menor que estava a namorar.

10- O mesmo encontro, no mesmo local e automóvel, com idênticas carícias e beijos ocorreram na noite imediata.

11- Na noite de 5 de Maio voltaram a encontrar-se no mesmo local e mais uma vez foram para a caixa de carga da carrinha apreendida nos autos onde retomaram os abraços, as carícias e os beijos, aproveitando então o arguido para, metendo as mãos por baixo da roupa que a menor vestia, acariciar-lhe directamente os seios, avançando logo depois, para lhe acariciar do mesmo modo a zona genital e a própria vagina, ao mesmo tempo que se ia colocando sobre ela deitando-a de costas para baixo e barriga para cima e agarrando numa das mãos da menor conduziu-lha por forma a que lhe apertasse e friccionasse o pénis, assim, provocando o desejo sexual da menor.

12-Enquanto ia praticando estes actos libidinosos sobre a menor, ao mesmo tempo que a beijava na boca e no corpo, dizia-lhe que queria manter com ela relações de cópula, ao que a menor ia resistindo.

13-Porém, o arguido ia insistindo na manutenção da cópula, beijando e acariciando as zonas erógenas da menor, foi-a desnudando, retirando-lhe os calções e as cuecas que vestia.

14-Seguidamente despiu-se também das suas próprias calças e cuecas e colocando-se sobre as pernas da menor que abriu para o efeito,

introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, penetrando-a, efectuando movimentos para cima e para baixo até que ejaculou, assim consumando a relação de cópula completa.

15-A menor que tem 11 anos de idade, ainda não tinha tido, antes disso, relações de sexo completas com qualquer homem.

16-O arguido conhecia bem a menor e sabia a sua idade real, estando bem ciente de que tinha menos de 14 anos.

17-Agiu o arguido com vontade livre e consciente, ciente de que satisfazia os seus instintos libidinosos em menor de 14 anos de idade, e ademais vencendo a vontade de que esta manifestava de que não queria ter relações sexuais naquele lugar e data e com ele.

18-Sabia bem que a sua conduta era proibida e penalmente punida.

19-O arguido foi condenado neste tribunal na pena única de 2 anos de prisão pela prática de crimes de furto qualificado.

20- Pena efectiva que cumpriu até data recente, como se disse já.

21-Pese embora estar consciente de que cometia um crime punível

com pena de prisão, não se coibiu de praticar os factos acabados de

narrar.

22-No final do acto sexual descrito disse para a menor não contar nada a ninguém, porque, se o fizesse, seria preso e condenado numa pena pesada, pois, que tinha saído há pouco tempo da prisão onde cumprira pena efectiva.

23-Sabia também, o arguido que tal comportamento lhe era proibido e punido pela lei penal.

24-Consta do relatório social do arguido que:

-Vive com a mãe numa roulote;

-tem dois irmãos a cumprir pena de prisão;

-trabalhava á jeira na construção civil esporadicamente;

-encontrava-se também a frequentar um curso de técnico de informática, pelo que, com a bolsa de estudo contribuía para as despesas do agregado;

-ocupava os tempos livres na companhia de vizinhos e jovens que também frequentavam o curso profissional, saindo á noite para bares e discotecas da cidade;

-não lhe sendo conhecidos hábitos de consumo de álcool e estupefacientes;

-desde há muitos anos que mantém poucas relações com pessoas da sua etnia, as quais, considera manterem um estilo de vida e uma forma de estar diferente do seu;

-não apresenta hábitos de trabalho e compromissos profissionais consistentes que o levem a uma ocupação estruturada do seu quotidiano;

-tem apoio no exterior da sua mãe;

25- O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:

Uma condenação em 80 dias de multa por condução sem habilitação legal, decisão com trânsito em julgado em 26/3/2004.

Uma condenação em pena de prisão efectiva de dois anos pela prática de 4 crimes de furto qualificado com trânsito em julgado em 20/4/06.

Uma condenação em 195 dias de multa por condução sem habilitação legal e desobediência, decisão com trânsito em julgado em 03/07/2007.

Uma condenação em 4 meses de prisão suspensa por um ano por condução sem habilitação legal, decisão com trânsito em julgado em 27/10/2008.

Está provado que a ofendida com os factos dados como provados sofreu desgosto que lhe afecta e afectará no futuro o seu desenvolvimento mental e psíquico.

Da contestação apenas se encontra provado que:

O arguido é de etnia cigana.

Foi a arguido ( a) quem começou a mandar mensagens ao arguido.

O arguido nunca se encontrou com a menor no café.

O arguido é de modesta condição económico-social.

IV. Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

O arguido cinge o recurso à medida concreta da pena , que tem por excessiva , e que lhe foi concretamente cominada em 6 anos de prisão em resultado da prática de um crime de abuso sexual de crianças , p. e p . pelo art.º 171.º , do CP , com a pena de 3 a 10 anos de prisão .

A menor BB nasceu em … e , como o arguido , é de raça cigana , mantendo desde o Natal de 2008 conversações telefónicas da mais diversa índole , enviando-lhe a menor na noite de 29 de Abril de 2009 uma mensagem no sentido de se encontrarem nas proximidades das instalações da igreja do Santo Condestável, na cidade de Bragança , ao que o arguido anuiu , fugindo a menor pela janela do seu quarto ,onde vivia com os pais cerca das 24 horas para corresponder ao encontro .

O arguido convidou a menor a entrar na caixa de carga da carrinha que estava estacionada na parque de estacionamento aí existente e aí permaneceram até por volta da 5 horas da madrugada de 30/04/2009 , abraçando a ofendida, que acariciou, através da roupa, em especial os seios e a zona genital , beijando-se mutuamente, designadamente na boca, convencendo-se a menor que estava a namorar.

No mesmo local e automóvel, com idênticas carícias e beijos se encontraram na noite imediata.

Na noite de 5 de Maio voltaram a encontrar-se no mesmo local e mais uma vez foram para a caixa de carga da carrinha apreendida nos autos onde retomaram os abraços, as carícias e os beijos, aproveitando então o arguido para, metendo as mãos por baixo da roupa que a menor vestia, acariciar-lhe directamente os seios, avançando logo depois, para lhe acariciar do mesmo modo a zona genital e a própria vagina, ao mesmo tempo que se ia colocando sobre ela deitando-a de costas para baixo e barriga para cima e agarrando numa das mãos da menor conduziu-lha por forma a que lhe apertasse e friccionasse o pénis, assim, provocando o desejo sexual da menor.

Enquanto ia praticando estes actos libidinosos sobre a menor, ao mesmo tempo que a beijava na boca e no corpo, dizia-lhe que queria manter com ela relações de cópula, ao que a menor ia resistindo.

Porém, o arguido ia insistindo na manutenção da cópula, beijando e acariciando as zonas erógenas da menor, foi-a desnudando, retirando-lhe os calções e as cuecas que vestia.

Seguidamente despiu-se também das suas próprias calças e cuecas e colocando-se sobre as pernas da menor que abriu para o efeito,

introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela ejaculou, assim consumando a relação de cópula completa.

A menor então com 11 anos de idade, ainda não tinha tido, antes disso, relações de sexo completas com qualquer homem.

V. Ao legislador incumbe fornecer uma directriz o mais precisa possível da pena , sobre os critérios de que deve socorrer-se na determinação concreta e sua escolha , sendo através de um esquema complementar , pela interferência de factores de vária natureza , que aquela torna transparente para o juiz a definição da verdadeira finalidade com a sua aplicação ; essa cooperação entre o juiz e o legislador na determinação da pena é jurídico-constitucionalmente vinculada , opondo-se a uma actividade discricionária .

E tal como sucede com a aplicação do direito , relevam regras de direito escritas e não escritas , elementos normativos e descritivos , actos cognitivos e puras valorações , representando o abandono definitivo do dogma da “ arte “ de julgar , da desvinculação , para se entrar na juridificação da determinação da pena , no dizer do Prof. Figueiredo dias , in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , pág. 195 .

No art.º 40.º n.º 1do CP a pena visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade , é o módulo utilitarista de que o aplicador , inscrevendo-se nele , deve partir .

A pena e a medida de segurança só tem como finalidade a prevenção , geral , como instrumento de protecção dos bens jurídicos , e especial , de reinserção social do agente , sem risco futuro de reincidência .

À culpa pede-se-lhe uma função , não de retribuição , mas de proibição do excesso , em nome do respeito da pessoa humana , pois quaisquer que sejam as exigências de prevenção nunca a medida da culpa pode ser ultrapassada ; a culpa funciona como limite máximo da moldura da pena , como “ antagonista da prevenção e a defesa da ordem jurídica o limite mínimo da moldura( Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código Penal , pág. 174) , o ponto abaixo do qual a eficácia da norma penal fica sem a desejável resposta ao nível comunitário e o sentimento de justiça reinante abalado e em crise a estabilização das expectativas comunitárias da validade da norma jurídica violada .

A protecção dos bens jurídicos dita a maior ou menor necessidade da pena na razão directa da sua gravidade , expressa, desde logo , na moldura penal abstracta que o legislador reserva para o tipo legal ; a medida da reinserção social depende da maior ou menor carência de emenda cívica , de socialização , que se for diminuta pode levar à construção do tipo complexivo punitivo sediando a pena no seu limiar mínimo .

O arguido foi condenado pela prática de crime de abuso sexual de criança menor de 14 anos , mais concretamente 11 anos , por com ela , em 5 de Maio , ter mantido relação de cópula completa , porém do antecedente , nas noites dos dias 30 de Abril e 1 de Maio , já havia praticado actos sexuais de relevo , de menor gravidade , enquadráveis na norma do n.º 1 , do art.º 171.º . do CP , estabelecendo-se uma relação de consunção entre aquela norma e a do n.º2 , esgotando-se com a punição por esta última , atenta a relação de inclusão material , o desvalor de todo o acontecimento .

Com a incriminação propõe-se o legislador proteger a autodeterminação sexual , enquanto manifestação da liberdade individual , mas de um modo muito particular , não pela presença da prática de actos sexuais a coberto da extorsão ou situação análoga , mas pela pouca idade da vítima , ainda que naquela prática consinta, por poder prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da vítima , por lhe falhar a maturidade , o desenvolvimento intelectual capaz de poder determinar –se com liberdade , responsabilidade , com pleno conhecimento dos efeitos e seu alcance do acto sexual de relevo consentido

A lei presume , presunção “ de juris et de jure “ que a criança não é livre para se decidir em termos de relacionamento sexual” ( cfr.Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal , I , pág. 541 ).

Inscreve-se o crime nos crimes de perigo abstracto , pois praticado o acto sexual de relevo , está criado o risco , a possibilidade , de lesão daquele valor a tutelar , portanto à margem da possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento físico ou psíquico do menor ter lugar , sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique arredada ( cfr. , ainda , Comentário cit. , pág. 543 ) .

Anote-se que a manutenção da cópula pelo arguido se situa nas franjas da ausência de consensualidade pois se deu como provado que foi a insistência do arguido com a vítima , vencendo a sua resistência , que conduziu à manutenção de cópula pela primeira vez com qualquer homem . Isto apesar de se não ter dado como provado que não deixaria a vítima sair dali sem manter relações de sexo , escrevendo –se , elucidativamente , na fundamentação que “ Não queremos significar que não tivesse havido força física . Só que não ficou a mesma de forma inequívoca demonstrada e concretizada “

VI. O arguido convenceu a vítima que estava a namorar com ela , beijando –a , apalpando-a acariciando –a , excitando-a sexualmente , para , na culminância , enganando-a, manter relação de cópula completa num local que escolheu , aproveitando-se da imaturidade da menor , que , no fundo , não passava de uma criança de 11 anos de idade , nem sequer sendo uma adolescente ou pré-adolescente , simbolizando esses actos um profundo e chocante desrespeito por aquela condição .

O arguido já perfizera 21 anos e essa diferença de idade devia contramotivá-lo, demovê-lo , da satisfação da sua lascívia usando uma criança , se bem que fosse ela ter a iniciativa de com ele se encontrar a coberto da noite , simulando estar a dormir para se escapulir pela janela do seu quarto dos pais, não se podendo, no entanto, ilacionar que era propósito seu entregar-se sexualmente ao arguido , e a sê-lo era irrelevante por carecer de vontade sexualmente legitimante , despido de peso se apresentando o argumento de na raça cigana , a que ambos pertencem , o início da vida sexual se iniciar mais cedo , movendo-se num esquema de valores distintos , que o Colectivo não acatou .

A lei é de aplicação geral e abstracta , para todo o país , merecendo a tutela inscrita no art.º 171.º , do CP todas as crianças até aos 14 anos não excepcionando as de qualquer raça ,o que conduziria a um tratamento diferenciado , de chocante favor para o arguido , em flagrante oposição com princípios constitucionais estruturantes do Estado de direito , particularmente o da igualdade com tradução no art.º 13.º , da CRP .

Por outro lado não está demonstrado , se é que alguma vez o foi , que entre a etnia cigana se tolere , desculpabilizando , o que abusa sexualmente de crianças , acto axiologicamente neutro , postura inconciliável , de resto , com o pedido cível indemnizatório deduzido pelos pais da vítima .

Inconciliável , ainda , o argumento com a alegação pelo arguido de que se dissociou da etnia cigana , no entanto pretendendo colher benefício desse suposto amolecimento étnico e ético do abuso sexual de crianças.

VII . Em articulação com os fins das penas e auxiliando o julgador rege o art.º 71.º , do CP , dispondo que a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção , intervindo , ainda , o tribunal a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo deponham a favor do arguido ou contra ele , exemplificativamente constando no n.º 2 , as quais concorrem para tornar mais clara a culpa e a prevenção cabida .

Ao nível da culpa sustenta o arguido ter agido com dolo eventual quanto à idade da vítima , pois “ no limite podemos deduzir que este admite como possível que esta tenha menos idade (…) “ .

O dolo eventual é a forma mais mitigada de dolo do tipo , e consiste na conformação do agente com as consequências possíveis , ( de acordo com a teoria da conformação) e não já na vontade de querer praticar um facto sabendo que infringia a lei .

A este respeito o Colectivo foi categórico em afirmar no ponto de facto n.º 16 que o arguido conhecia bem a menor e sabia a sua idade real , estando bem ciente de que tinha menos de 14 anos , ou seja que tinha 11 anos , realidade factual que este STJ recebe sem possibilidade de alteração como tribunal de revista que é ( art.º 434.º , do CPPP) arredado estando que admitisse esse elemento ao nível da possibilidade , sobre que em julgamento divergiu comparativamente com as suas declarações prestadas em interrogatório judicial , razão , com outras de pormenor , para o tribunal produzir prova , face a uma confissão não integral e sem reservas , embora dela se aproximasse .

O arguido actuou com dolo directo : quis satisfazer a sua lascívia , sabia a idade de 11 anos da vítima , e que se tratava de um acto proibido por lei , pois faz parte do conhecimento de todos que o abuso sexual de crianças é proibido

Em seu favor invoca que não tem hábitos alcoólicos e nem de consumo de estupefacientes , mas essa alegação não comporta qualquer valor atenuativo , pois não é inexorável o contrário ; é o mínimo que se pode exigir de qualquer pessoa é o de que se abstenha desses hábitos , consabidas como são as deletérias consequências de tais comportamentos , tanto individual como na sociedade , que , com elas , acaba por arcar.

O arguido , apelando à natureza de crime de perigo abstracto que lhe é imputado refuta qualquer dano real para a menor , mas que o tribunal , contrariamente , firmou em seu desfavor , e que este STJ não pode contrariar pela razão supracitada de se estar perante matéria de facto , ao dar como provada que a ofendida “ sofreu desgosto que lhe afecta e afectará no futuro o seu desenvolvimento mental e psíquico “

E o tribunal , ao dar como provado esse facto , não se dissocia da realidade , pois à luz das regras da experiência se conhece que a pessoa das crianças abusadas sexualmente não é imune ao uso abusivo do seu corpo , deixando nele traumas , lesões físicas ou e psíquicas , que , por vezes , nem o tempo sara , perdurando .

A este propósito escreve , com inteira pertinência , o juiz Paulo Guerra , in O Abuso Sexual de Menores , a pág. 39 ; “ Falar de abuso sexual é falar de maus tratos (…) a vítima do abusador sexual é ofendida no seu supremo direito à integridade física e moral , vê comprometido o seu direito a um integral desenvolvimento físico afectivo e social (…), vê-se impedida no seu absoluto direito de viver como criança , “ sem comer etapas à vida “ e sem responsabilidades , remorsos ou culpabilidades prematuras “

Por isso a sociedade alimenta crispação , reclamando pena exacerbada contra o abusador sexual , não só para afirmação da eficácia da norma penal violada , enquanto prevenção geral positiva , mas ainda em nome da intimidação de potenciais delinquentes , enquanto prevenção geral negativa

Essa exigência de prevenção , tanto geral como especial , se fazem sentir não apenas pela constatação da frequência de abusos sexuais na pessoa de crianças , como ainda pela sentida de ressocialização do arguido , que já foi condenado 3 vezes por condução ilegal de veículo , uma por desobediência e uma em pena de prisão efectiva de dois anos pela prática de 4 crimes de furto qualificado , mas essa experiência de perda de liberdade não lhe serviu de estímulo para não voltar a delinquir .

Isto apesar de , em seu ver , a vida em reclusão ser um meio criminógeno mas o que é facto é que não se fidelizou ao direito , sabendo perfeitamente que de novo seria privado de liberdade , a atentar no rogo feito à vítima , consumado o acto sexual , de o não revelar , pois lhe iria ser aplicada pena pesada de prisão .

E pese embora a pena de prisão não se posicionar no topo das medidas institucionais a aplicar ao condenado , os estudiosos desse epifenómeno não descortinaram um meio de a substituir , defendendo que nos casos mais graves , nos crimes de maior ressonância ética , os seus agentes terão de experimentar a privação da liberdade , direito fundamental , escalonado a seguir ao da vida .

A sexualidade é , para Daniel Borrilo , in Droit des Séxualités , Paris , Puf , 1998 , in Colection de Notre Droit , pág.123 , apresentada como o “ locus “ privilegiado da autonomia da vontade do ser humano , donde a compreensão da imposição na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças aos seus Estados –Membros da adopção de medidas apropriadas para protegê-las de todas as formas de abuso e de exploração –art.º 34.º n.º 1 .

O arguido agiu com notável vontade criminosa , dolo directo , persistente no tempo , insistindo na consumação criminosa, envolvendo-a num falso manto de boas intenções .

O crime que praticou é muito grave , repugnando à consciência colectiva , que o não poupa a severa reprovação , pela prática frequente registada entre nós e não só , observando Daniel Borrillo , in op. e loc . cit. , que o crime sexual representa na actualidade o paradigma do mal absoluto , sendo o seu autor um ser associal, portador de periculosidade por excelência , embora , de um ponto de vista de imputabilidade penal só cerca de 30% o não seja .

VIII . O demérito , o grau de contrariedade , de violação da lei , de ilicitude é , pois, muito intenso , desde logo porque dele partiu a escolha do local para a satisfação dos seus múltiplos actos de lascívia , conseguidos sob o enganoso convencimento de que se inscreviam em namoro, logrando vencer a resistência , a vontade da menor que não queria a cópula , levando à consequência, grave , do seu desfloramento , prevalecendo-se da muito significativa diferença de idades ( ele já com 21 anos ) , enquanto manifestação de sentimentos de pura satisfação da sua líbido ,ao nível dos seus instintos primários que podia e devia conter .

Determinante da formação da pena , para além da culpa e prevenção estão , ainda , circunstâncias que não fazendo parte do tipo , atenuam ou agravam a responsabilidade penal do agente , nos termos do art.º 71 .º , n.º 2 , do CP , as quais se mostram em conexão com a culpa ou com as necessidades de prevenção , de feição ambivalente e antinómica pois tanto podem agravar a culpa e atenuar a prevenção , como atenuando aquela e agravando a prevenção .

Em seu favor concorre a sua confissão dos factos , quase total , di-lo o acórdão recorrido , aquele ocorridos de noite entre a ambos , fora do olhar estranho , logo de evidente valia , não atenuando , contudo , a sua responsabilidade penal o facto de viver com a mãe, se encontrar a frequentar um curso de técnico de informática , contribuindo com a bolsa para o suporte das despesas com o agregado familiar , ocupar os tempos livres na companhia de vizinhos jovens que também frequentam o curso profissional , não lhe serem conhecidos hábitos alcoólicos ou de consumo de estupefacientes , não manter há muito relações com pessoas da sua etnia , as quais mantêm um estilo de vida e uma forma de estar diferente da sua e ter apoio exterior da mãe .

De ponderar , no entanto , a circunstância de ter sido a menor que , pese embora ter , apenas , a idade de 11 anos , dela partiu a iniciativa de enviar ao arguido uma mensagem propondo-lhe encontrarem-se nas proximidades de um local prédefinido , de noite , para o que saltou através da janela do respectivo quarto da casa dos pais com quem vivia , deixando aberta para por aí poder voltar a entrar, concretizando-se esse e outros dois encontros .

E , por isso , e pela confissão parcial ( quase total) a pena de prisão aplicada de 6 anos , numa moldura penal abstracta para o crime de abuso sexual de crianças , de 3 a 10 anos de prisão , estabelecido no art.º 171.º n.º 2 , do CP , merece redução a 5 ( cinco) anos .

A suspensão é inteiramente de repudiar por não convergir o verdadeiro pressuposto material da suspensão da execução da pena , enunciado no art.º 50.º n.º 1 , do CP , da exigência de aquela pena de substituição se bastar com a simples censura do facto e da ameaça da prisão responder cabalmente às exigências da prevenção geral e especial e de protecção dos bens jurídicos ; em caso de suspensão a expectativa dos cidadãos na força e vigor da lei penal para prevenir casos similares aos dos autos sairia defraudada ; a pedagogia de tal pena visando a interiorização que se pretende dos maus efeitos do crime por parte do arguido não passaria de letra morta , uma quase inutilidade , pois as anteriores condenações não o inibiram de voltar a cair na alçada da lei penal e à falta de indícios fundantes de um juízo de prognose favorável em termos de futuro trajecto vital não é prudente arriscar a emissão de um juízo de ressocialização em liberdade .

IX. Pelo exposto , concedendo-se parcial provimento ao recurso , se condena em 5 ( cinco) anos de prisão , alterando-se o acórdão recorrido.

Taxa de justiça : 6 Uc.s .

Lisboa, 23 de Junho de 2010

Armindo Monteiro (Relator)

Santos Cabral