Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
805/18.6 T8OVR-A.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
VENCIMENTO DA DÍVIDA
PRESCRIÇÃO DE CRÉDITOS
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO À REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : Às quotas de amortização do capital integrantes das prestações para amortização de contratos de financiamento aplica-se a prescrição quinquenal prevista no art.º 310º, al. e), do CCiv, ainda que se verifique o vencimento antecipado das mesmas.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM

NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



NO RECURSO DE REVISTA

INTERPOSTO NOS AUTOS DE EMBARGOS DE EXECUTADO

ENTRE

CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, SA

Exequente / Embargada / Apelante / Recorrente

CONTRA

AA

e consorte



BB


Executados / Embargantes / Apelados / Recorridos



I – Relatório


Os Executados vieram embargar a execução que lhes foi, em 19ABR2018, instaurada pela Exequente, para cobrança da quantia de 145.721,15 €, referentes ao capital e demais acréscimos ainda em dívida em diversos empréstimos do capital global de 13.679.000$00 que lhes concedeu alegando que tais empréstimos eram liquidados em prestações mensais (de capital e juros) e que sobre todas as prestações que não foram pagas (desde o momento em que cessou pagamentos até à data do vencimento da última prestação programada, e uma vez que a exequente nunca resolveu o contrato) decorreu já o prazo de cinco anos pelo que a quantia exequenda se encontra prescrita, de acordo com o disposto no art.º 310º, al. e) do CCiv.

       A Embargada, por seu turno, invocou não estarem abrangidos na al. e) do art.º 310º do CCiv as quotas de amortização de empréstimo a reembolsar em prestações mensais de capital e juros que se venceram antecipadamente em virtude de incumprimento, como foi ocaso dos autos, concluindo no sentido de que a prescrição aplicável ser a comum de 20 anos, que ainda se não completaram.

     Foi proferida sentença que, considerando que a prescrição de curto prazo prevista no art.º 310º do CCiv se aplica também a obrigações fraccionadas, como as típicas prestações de amortização de empréstimos bancários (ainda que estas se tenham antecipadamente vencido em virtude de incumprimento) e que o respectivo prazo se encontrava decorrido por inteiro, julgou os embargos procedentes.

    A Relação sufragou unânime e inteiramente o entendimento expresso na sentença de 1ª instância, confirmando integralmente a sentença.

    Inconformada, interpôs a Exequente recurso de revista excepcional, que foi admitido, concluindo, em síntese, que resolvido o contrato de mútuo com reembolso fraccionado em prestações mensais e sucessivas, que englobam capital e juros, deixa de ter aplicação a prescrição de cinco anos prevista no art.º 310º, al. e), do CCiv; e ainda que assim não fosse, só se poderiam considerar prescritas as prestações vencidas há mais de cinco anos aquém da data da liquidação (11ABR2018).

        Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.



II – Da admissibilidade e Objecto do Recurso



            O recurso mostra-se já admitido.


Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

    De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; sob pena de indeferimento do recurso.

    Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

    Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver por este Tribunal é a de saber, no caso de mútuo a reembolsar em prestações mensais e sucessivas de capital e juros, qual o prazo de prescrição aplicável quando ocorre vencimento antecipado dessas prestações e como o aplicar.



III – Os Factos


Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:


a) No exercício da sua atividade creditícia, a Exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A., celebrou com os Executados AA e mulher BB, por escritura pública de 30/01/1996, um Contrato de Mútuo com Hipoteca, no montante de 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos), nos termos dele e do respetivo documento complementar, a que corresponde a referência interna PT……………..;

b) Tal empréstimo seria amortizado nos termos, prazo e demais condições melhor consignadas naquele contrato e respetivo documento complementar;

c) Em virtude de tal contrato, a Exequente disponibilizou aos Executados, pela forma convencionada, a quantia mutuada que estes receberam nos termos contratuais, utilizaram em seu proveito e de que expressamente se confessaram devedores, obrigando-se a amortizá-lo nos termos acordados;

d) Para garantia do pagamento daquele empréstimo, dos respetivos juros até à taxa anual de 12,683%, acrescida, em caso de mora, de uma sobretaxa até 4% ao ano, a título de cláusula penal, e das despesas emergentes dos contratos (que, para efeitos de registo, se fixaram em duzentos mil escudos), constituíram os mutuários a favor da CGD, S.A., que aceitou, uma hipoteca até ao montante máximo em capital e acessórios de 7.702.450$00 sobre o prédio urbano, composto de casa de habitação de cave, rés-do-chão e primeiro andar, para habitação e logradouro, sito na Rua …., dita freguesia de …., a confrontar a norte com Rua …., do sul com …., do nascente com …. e do Poente com ……, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º …. e descrito na CRP de ….. sob o n.º …. da freguesia de ….;

e) Hipoteca que se encontra registada a favor da CGD, S.A., através da Ap. 6 de 1996/01/09 e que se mantém válida e em vigor;

f) Sucede que a partir de 30/03/2003, os mutuários deixaram de efetuar o pagamento das prestações a que se haviam vinculado através do referido contrato, tendo, assim, a Exequente CGD, S.A. o direito a considerar vencido o empréstimo e, consequentemente, exigível e em mora, todo o seu crédito;

g) Deste modo, do empréstimo concedido, encontra-se em dívida, na presente data (11/04/2018), o valor global de € 43.033,52 conforme discriminado no campo Liquidação da Obrigação no requerimento executivo, ao qual acrescem os juros moratórios vincendos, calculados sobre o capital em dívida (€ 16.409,50), à taxa de juro anual contratual de 10,785%, correspondente à taxa de 8,785% e ao acréscimo da sobretaxa de 2% prevista no n.º 1 do artigo 8.º do D.L. n.º 58/2013, de 8 de Maio, desde então e até efetivo e integral pagamento;

h) A Exequente tem, ainda, direito a haver as comissões e despesas emergentes do contrato, que entretanto se vencerem;

i) No exercício da sua atividade creditícia, a Exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A., celebrou com os Executados AA e mulher BB, por escritura pública de 15/01/1997, um Contrato de Mútuo com Hipoteca, no montante de 3.000.000$00 (três milhões de escudos), nos termos dele e do respetivo documento complementar, a que corresponde a referência interna PT….;

j) Tal empréstimo seria amortizado nos termos, prazo e demais condições melhor consignadas naquele contrato e respetivo documento complementar;

k) Em virtude de tal contrato, a Exequente disponibilizou aos Executados, pela forma convencionada, a quantia mutuada que estes receberam nos termos contratuais, utilizaram em seu proveito e de que expressamente se confessaram devedores, obrigando-se a amortizá-lo nos termos acordados;

l) Para garantia do pagamento daquele empréstimo, dos respetivos juros até à taxa anual de 11,544%, acrescida, em caso de mora, de uma sobretaxa até 4% ao ano, a título de cláusula penal, e das despesas emergentes dos contratos (que, para efeitos de registo, se fixaram em cento e vinte mil escudos), constituíram os mutuários a favor da CGD, S.A., que aceitou, uma hipoteca até ao montante máximo em capital e acessórios de 4.518.960$00 sobre o prédio urbano já identificado;

m) Hipoteca que se encontra registada a favor da CGD, S.A., através da Ap. 7 de 1996/12/04 e que se mantém válida e em vigor;

n) Sucede que a partir de 15/05/2001, os mutuários deixaram de efetuar o pagamento das prestações a que se haviam vinculado através do referido Contrato, tendo assim a Exequente CGD, S.A. o direito a considerar vencido o empréstimo e, consequentemente, exigível e em mora, todo o seu crédito;

o) Do empréstimo concedido, encontra-se em dívida, na presente data (11/04/2018), o valor global de € 34.467,10, conforme discriminado no campo Liquidação da Obrigação, no requerimento executivo, ao qual acrescem os juros moratórios vincendos, calculados sobre o capital em dívida (€ 12.254,76), à taxa juro anual contratual de 10,785%, correspondente à taxa de 8,785% e ao acréscimo da sobretaxa de 2% prevista no n.º 1 do artigo 8.º do D.L. n.º 58/2013, de 8 de Maio desde então e até efectivo e integral pagamento;

p) A Exequente tem, ainda, direito a haver as comissões, no montante de € 18,05 e despesas no montante de € 37,50 emergentes do contrato, e as que, entretanto, se vencerem;

q) No exercício da sua atividade creditícia, a Exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A., celebrou com os Executados AA e mulher BB, por documento particular de 09/06/1999, um Contrato de empréstimo, no montante de 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos), nos termos dele e do respetivo documento complementar, a que corresponde a referência interna PT ………….;

r) Tal empréstimo seria amortizado nos termos, prazo e demais condições melhor consignadas naquele contrato e respetivo documento complementar;

s) Em virtude de tal contrato, a Exequente disponibilizou aos Executados, pela forma convencionada, a quantia mutuada que estes receberam nos termos contratuais, utilizaram em seu proveito e de que expressamente se confessaram devedores, obrigando-se a amortizá-lo nos termos acordados;

t) Por escritura pública de 08./04/2002, e para garantia do pagamento daquele empréstimo, dos respetivos juros até à taxa anual de 9,544%, acrescida, em caso de mora, de uma sobretaxa até 4% ao ano, a título de cláusula penal, e das despesas emergentes dos contratos (que, para efeitos de registo, se fixaram em novecentos e noventa e sete euros e sessenta cêntimos), constituíram os mutuários a favor da CGD, S.A., que aceitou, uma hipoteca até ao montante máximo em capital e acessórios de 36.071,07 € sobre o prédio urbano já identificado;

u) Hipoteca que se encontra registada a favor da CGD, S.A., através da Ap. 4 de 2002/04/19 e que se mantém válida e em vigor;

v) Sucede que, a partir de 09/01/2001, os mutuários deixaram de efetuar o pagamento das prestações a que se haviam vinculado através do referido Contrato, tendo assim a Exequente CGD, S.A. o direito a considerar vencido o empréstimo e, consequentemente, exigível e em mora, todo o seu crédito;

w) Do empréstimo concedido, encontra-se em dívida, na presente data (11/04/2018), o valor global de € 64.169,26, conforme discriminado no campo Liquidação da Obrigação, no requerimento executivo, ao qual acrescem os juros moratórios vincendos, calculados sobre o capital em dívida (€ 21.955,90), à taxa de juro anual contratual de 10,785%, correspondente à taxa de 8,785% e ao acréscimo da sobretaxa de 2% prevista no n.º 1 do artigo 8.º do D.L. n.º 58/2013, de 8 de Maio, desde então e até efetivo e integral pagamento;

x) A Exequente tem, ainda, direito a haver as comissões, no montante de € 21,85 e despesas no montante de € 586,06, emergentes do contrato, e as que, entretanto, se vencerem;

y) No exercício da sua atividade creditícia, a Exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A., celebrou com os Executados AA e mulher BB, por documento particular de 17/05/2000, um Contrato de Mútuo, no montante de 679.000$00 (seiscentos e setenta e nove mil escudos), a que corresponde a referência interna PT….;

z) Tal empréstimo seria amortizado nos termos, prazo e demais condições melhor consignadas naquele contrato;

aa) Em virtude de tal contrato, a Exequente disponibilizou aos Executados, pela forma convencionada, a quantia mutuada que estes receberam nos termos contratuais, utilizaram em seu proveito e de que expressamente se confessaram devedores, obrigando-se a amortizá-lo nos termos acordados;

bb) Sucede que, a partir de 17/04/2003, os mutuários deixaram de efetuar o pagamento das prestações a que se haviam vinculado através do referido Contrato, tendo assim a Exequente CGD, S.A. o direito a considerar vencido o empréstimo e, consequentemente, exigível e em mora, todo o seu crédito;

cc) Do empréstimo concedido, encontra-se em dívida, na presente data (11/04/2018), o valor global de € 4.051,27, conforme discriminado no campo Liquidação da Obrigação, no requerimento executivo, ao qual acrescem os juros moratórios vincendos, calculados sobre o capital em dívida (€ 1.173,61), à taxa de juro anual contratual de 15,950%, correspondente à taxa de 13,950% e ao acréscimo da sobretaxa de 2% prevista no n.º 1 do artigo 8.º do D.L. n.º 58/2013, de 8 de Maio, desde então e até efetivo e integral pagamento;

dd) A Exequente tem, ainda, direito a haver as comissões, no montante de € 10,95 e despesas emergentes do contrato, que, entretanto, se vencerem.

ee) Pelo extinto 1.º Juízo da Comarca de ……… correram termos os autos de execução ordinária registados com o n.º 600/03.7.., em que eram partes, como exequente, a sociedade “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” e, como executados, AA  e BB;

ff) O requerimento executivo deu entrada no dia 22/04/2003 (cf. fls.29v’);

gg) No âmbito daqueles autos, os executados AA e BB foram citados pessoalmente no dia 06/05/2003;

hh) A ação executiva n.º 600/03.7… foi extinta por deserção.


IV – O Direito

Como se estabelece no artigo 310.º do Código Civil, prescrevem no prazo de cinco anos as prestações expressamente mencionadas nas suas alíneas a) a f) e, residualmente, “quaisquer outras prestações periodicamente renováveis” [alínea g)].

Prestações “periodicamente renováveis” são as que resultam de uma pluralidade de obrigações que se vão constituindo ao longo do tempo, prestações essas caracterizadas pela presença de uma nota de autonomia de cada uma delas dentro de um programa contratual em curso, em que existe uma conexão intrínseca entre as prestações e os diversos espaços temporais em que é possível seccionar a sua duração global (cf. acórdãos do STJ de 23JAN2020, proc. 4518/17.8T8LOU-A.P1.S1, e 27JAN2005, proc. 05A2695, citando RUI ALARCÃO, "Direito das Obrigações", lições policopiadas, Coimbra, 1983).

A fixação deste prazo quinquenal, por contraposição ao prazo ordinário de prescrição estabelecido no art.º 309º do CCiv., como é entendimento unânime, encontra fundamento no interesse de proteção do devedor, prevenindo que o credor, retardando a exigência de prestações periodicamente renováveis, as deixe acumular, tornando excessivamente oneroso o pagamento a cargo do devedor. Desta forma, o prazo especial de prescrição de cinco anos, previsto no artigo 310.º do Código Civil, visa proteger o devedor contra a acumulação da sua dívida, que, de dívida de prazos periódicos mais curtos ou anuidades, se transformaria em dívida de montante suscetível de o arruinar, se o pagamento pudesse ser exigido pelo credor de uma só vez, ao final de vários anos, situação que o legislador quis prevenir exigindo do credor acrescida diligência temporal na recuperação do seu crédito.

Este entendimento inspira-se no conhecido estudo, inserido nos trabalhos preparatórios do Código Civil, do Prof. VAZ SERRA sobre prescrição e caducidade publicado nos BMJ n.ºs 105 e 106 (e também em Separata do mesmo, sob o título “Prescrição Extintiva e Caducidade – estudo de direito civil português, de direito comparado e de política legislativa”). A passagem mais conhecida deste Estudo é a que consta do BMJ n.º 106, pg. 119 (pg. 322 da Separata), quando é referido que a prescrição especial quinquenal “se destina a evitar que, pela acumulação de prestações periódicas, se produza a ruína do devedor”, pois os juros podem suplantar o valor do capital; por modo que ela deve ser aplicável “sempre que se trate de prestações periódicas derivadas de uma determinada relação jurídica”.

Esta afirmação tem um alcance geral. No entanto, num breve trecho que se encontra a página 114 do BMJ n.º 106 (pg. 317 da Separata), o autor reproduz a mesma ideia a propósito das quotas de amortização, quando pagas conjuntamente com os juros correspondentes, “pois, se assim não fosse, poderia dar-se uma acumulação de quotas ruinosa para o devedor, apesar de, com a estipulação de quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso do capital e tratá-lo como juros”.

Em nota de rodapé (694) com que termina esta passagem, aquele eminente jurista dá conta da discussão em Itália sobre a aplicação do prazo especial quinquenal às quotas de amortização de uma dívida. Estas quotas são descritas como compreendendo uma fração de capital e os juros correspondentes em proporção variável, com vista à lenta amortização de uma dívida. E o que se discutia era saber se deveria aplicar-se, a cada um dos elementos que constituem a quota, o prazo de prescrição próprio, isto é, a prescrição curta ao elemento juros e a ordinária ao elemento capital. Mas esta solução não parecia aceitável, dado que implicava que se admitisse o concurso de duas prescrições diferentes sobre uma obrigação, considerada pelas partes como unitária e incindível. A favor da aplicação da prescrição especial, argumentava-se que esta se aplica quanto a todos os elementos que integram a quota, atendendo a que o plano de amortização transforma a dívida numa série de prestações em termos periódicos por um longo número de anos, capazes de produzir uma acumulação de atrasos excedente ao capital.

É, também, pacífico que num contrato de financiamento (tipicamente para aquisição ou construção de imóveis ou veículos automóveis) estamos perante um caso de obrigação fracionada ou repartida, que é única mas cujo cumprimento, normalmente por conveniência do devedor, se protela no tempo, através de sucessivas prestações, a pagar em datas diferidas, que não têm de ser regulares no tempo, até que o montante da dívida se encontre completamente pago, e não perante uma obrigação periodicamente renovável ‘stricto sensu’; no entanto se o cumprimento dessa obrigação única é efetivado em prestações fracionadas no tempo, como é o caso das prestações mensais sucessivas que constam de um plano de amortização, acordado entre as partes, compostas por uma parte de capital e outra parte pelos juros é aplicável às quotas de amortização do capital o regime da prescrição quinquenal estabelecido na al. e) do art.º 310º do CCiv.

Entendimento esse que se encontra espelhado nos acórdãos do STJ de 04MAI1993 (CJ/STJ, 2/93, 82), 27MAR2014 (189/12.6TBHRT-A.L1.S1), 29SET2016 (201/13.1TBMIR-A.C1.S1), 18OUT2018 (2483/15.5T8ENT-A.E1.S1), 06JUN2019 (902/14.7T8GMR-A.G1.S1) e 23JAN2020 (4518/17.8T8LOU-A.P1.S1), da Relação de Lisboa de 15DEZ2016 (1244/15.6T8H-A.L1-6), 27OUT2017 (2411/14.5T8OER-B.L1-6), 15FEV2018 (828/16.0T8SXL.L1-6) e 23MAI2019 (316/18.0T8PDL.L1-6), da Relação do Porto de 24MAR2014 (4273/11.5TBMTS-A.P1), da Relação de Coimbra de 26ABR2016 (525/14.0TBMGR-A.C1), 19DEZ2017 (561/16.2T8VIS-A.C1) e 12JUN2018 (17012/17.8YIPRT.C1), da Relação de Évora de 21JAN2016 (1583/14.3TBSTB-A.E1), 20OUT2016 (14073/15.8YIPRT.E1), 12ABR2018 (2483/15.5T8ENT-A.E1) e 02OUT2018 (552/17.6T8PTG-A.E1), da Relação de Guimarães de 16MAR2017 (589/15.0T8VNF-A.G1) e 08MAR2018 (1168/16.0T8GMR-A.G1). E na doutrina em Ana Filipa Morais Antunes, ‘Algumas Questões Sobre a Prescrição e a Caducidade’, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, vol. III, 2010, pgs.44-48 e Menezes Cordeiro, ‘Tratado de Direito Civil Português’, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pgs. 174-175.

Essa unanimidade só se verifica, no entanto, na medida em que o plano de amortização inicial se mantém inalterado; se, porventura, por via do seu incumprimento, ocorre antecipação do vencimento de todas as prestações esse consenso desvanece-se, entendendo uns que se continua a aplicar a prescrição de curto prazo e outros que passa a aplicar-se ao capital em dívida a prescrição ordinária.

A primeira posição vem sendo seguida pelo STJ.

No referido acórdão de 04MAI1993 ((CJ/STJ, 2/93, 82), em que estava em causa o incumprimento de um plano de amortização em prestações do capital e dos juros, considerou-se que na falta de pagamento das prestações «a  prescrição não pode pôr-se em relação às quotas em dívida como um todo, mas em relação a cada uma delas, pois o seu pagamento ficou assim escalonado» e que «o facto de vencida uma quota e não paga, se vencerem todas as posteriores, nada releva para o problema em causa, porque, nesse caso, a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização não ao todo em dívida».

No acórdãos de 27MAR2014 (189/12.6TBHRT-A.L1.S1) e  29SET2016 (201/13.1TBMIR-A.C1.S1) considerou-se que tendo sido acordado um plano de amortização com prestações mensais, iguais e sucessivas, englobando os capital e juros, são estas que são exigíveis, e não já à totalidade do capital em dívida, às quais, quer parcelar quer globalmente, se aplica a prescrição quinquenal do art.º 310º do CCiv.

O acórdão de 18OUT2018 (2483/15.5T8ENT-A.E1.S1) reiterou, para eles remetendo, a posição adoptada nos acórdãos anteriormente referidos.

No acórdão de 23JAN2020 (4518/17.8T8LOU-A.P1.S1) considera-se que a obrigação unitária, compartimentada em capital e juros, resultante do mútuo, pelo acordo de amortização celebrado, se converte em cada uma das prestações estipuladas no acordo de amortização, as quais caiem, quer globalmente quer parcelarmente, na alçada do art.º 310º do CCiv.

Já na jurisprudência das Relações encontram-se alguns arestos no sentido de que em caso de vencimento antecipado das prestações o prazo de prescrição é o prazo ordinário.

Assim o acórdão da Relação de Coimbra de 26ABR2016 (525/14.0TBMGR-A.C1) considerou que «o vencimento imediato das prestações restantes significa que o plano de pagamento escalonado anteriormente acordado deixa de estar em vigor, ocorrendo uma perda do benefício do prazo de pagamento contido em cada uma das prestações: desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros. Desfeita a ligação anteriormente contida em cada uma das prestações entre uma parcela de capital e outra a título de juros, nenhuma razão subsiste para sujeitar a dívida de capital e a dívida de juros ao mesmo prazo prescricional: os juros que se forem vencendo prescreverão no prazo de cinco anos, e o capital (…) encontrar-se-á sujeito ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos».

Pelo mesmo entendimento enveredaram os acórdãos da Relação de Guimarães de 16MAR2017 (589/15.0T8VNF-A.G1) e da Relação de Évora de 12ABR2018 (2483/15.5T8ENT-A.E1).

Por seu turno o acórdão da Relação de Coimbra de12JUN2018 (17012/17.8YIORT.C1) vai no mesmo sentido, mas considerando que ocorreu resolução do contrato, pelo que o montante reclamado já se não configura como ‘quotas de amortização, «mas antes como um dívida (global) proveniente da ‘relação de liquidação’, correspondente ao valor do capital em dívida, à data do incumprimento».

Na doutrina encontramos a mesma opinião em Menezes Cordeiro: «(…) podemos acrescentar que na eventualidade do vencimento antecipado, já não se trata de … quotas de amortização» (Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pg. 176).

A argumentação expendida na referida jurisprudência das Relações não se nos afigura fundada, nem com a virtualidade de justificar o afastamento do que tem sido a jurisprudência do STJ.

O vencimento imediato de todas as prestações por via da falta de pagamento de uma deles, nos termos do art.º 781º do CCiv, implica apenas e tão só isso mesmo: o vencimento imediato, com perda do benefício do prazo; não tem por efeito alterar a natureza da dívida, repristinando a anterior obrigação única que foi substituída por uma obrigação fracionada. O que é devido continua a ser todas as quotas de amortização individualmente consideradas e não a quantia global do capital em dívida. E o facto de as quotas de amortização deixarem nessa situação de estar ligadas ao pagamento dos juros (cf. AUJ 7/2009, DR, I, 05MAI2009), por via dessa antecipação do vencimento, não interfere, em nosso modo de ver, com o tipo de prescrição aplicável em função da natureza da obrigação, que não é alterada pelas vicissitudes do incumprimento.

Por outro lado, se é certo que se logrou um dos fundamentos da aplicação da prescrição quinquenal (o evitar a acumulação dos montantes em dívida tornando o pagamento excessivamente oneroso para o devedor) não deixa de subsistir a necessidade de uma acrescida diligência do credor na recuperação do seu crédito, tendo em vista, numa óptica do ‘favor debitoris’ imanente ao CCiv, evitando a perpetuação, com a consequente incerteza e insegurança, da situação do devedor

Relativamente ao acórdão da Relação de Coimbra de12JUN2018, que invoca a resolução do contrato e a consequente ‘relação de liquidação’ desde logo não se nos afigura que a invocada cláusula contratual (“o banco poderá considerar o presente contrato rescindido, sendo consideradas então imediatamente vencidas todas as obrigações decorrentes para o mutuário do mesmo, exigindo o cumprimento imediato de todos os valores em dívida sempre que se verifique alguma das seguintes situações: a) falta de pagamento pontual de qualquer prestação de capital, juros ou outros encargos previstos neste contrato) e o conteúdo da missiva enviada ( constatando que continua sem ser efectuado o pagamento das prestações em mora, concede-se um prazo adicional de 8 dias para que proceda à regularização da situação, findo o qual entregaremos o processo ao nosso advogado para que, de imediato e sem qualquer outra comunicação, promova o competente procedimento judicial) configure uma resolução contratual. Pelo contrário, o credor está a invocar o vencimento imediato de todas as prestações e a exigir o cumprimento do contrato; daí que na apontada missiva refira as prestações em mora.

É, aliás, usual as entidades credoras virem invocar que face ao incumprimento, rescindiram, denunciaram ou resolveram o contrato, mas em função do seu comportamento e do que vêm peticionar, é manifesto que o que estão a exigir é, ainda, o cumprimento do contrato de financiamento (com a devolução do capital mutuado, o pagamento dos juros remuneratórios e moratórios e accionando as garantias estabelecidas) e não a extinção de tal vínculo contratual

Em conclusão: às quotas de amortização do capital integrantes das prestações para amortização de contratos de financiamento aplica-se a prescrição quinquenal prevista no art.º 310º, al. e), do CCiv, ainda que se verifique o vencimento antecipado das mesmas.

Estabelecido que o prazo de prescrição aplicável é o de cinco anos, é manifesto estar o crédito exequendo prescrito.

Com efeito, tendo cessado o pagamento das prestações convencionadas em datas anteriores à instauração – -22ABR2003 - do anterior processo executivo, e sendo desnecessário analisar se tais prestações já se encontravam antecipadamente vencidas (como se alega no requerimento executivo) ou se só se venceram em 06MAI2003 aquando da citação para aquela execução (porque só nesse momento o credor comunicou ao devedor ter lançado mão da faculdade de provocar o vencimento antecipado de todas as prestações), o prazo de prescrição que estivesse a correr interrompeu-se com aquela citação em 27ABR2003 (art.º 323º, nº 2, do CCiv), começando a correr novo prazo desde 28ABR2003; e desde essa data ou desde 07MAI2003 (se fosse o caso) até à data da instauração da actual execução – 11ABR2018 – mostram-se decorridos bem mais de cinco anos, quer sobre o correspondente às quotas de amortização (art.º 310, al. e), do CCiv), quer sobre os correspondentes juros (art.º 310º, al. d), do CCiv).


V – Decisão


    Termos em que se nega a revista, confirmando o acórdão recorrido.


    Custas pela Recorrente


 Lisboa, 10 SET 2020


Rijo Ferreira (Relator)

[Com voto de conformidade dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos,

 conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com

 a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]


Abrantes Geraldes


Tomé Gomes