Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S043
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO PEREIRA
Descritores: DESPEDIMENTO SEM JUSTA CAUSA
ÓNUS DA PROVA
CORREIO ELECTRÓNICO
DIREITOS FUNDAMENTAIS
RESERVA DA VIDA PRIVADA
PROIBIÇÃO DE PROVA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
QUANTUM INDEMNIZATÓRIO
Nº do Documento: SJ200707050000434
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I – No regime do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27-08, e apesar de nele não constar norma idêntica à da parte final do art. 12.º, n.º 4 da revogada LCCT, incumbe ao empregador o ónus da prova dos factos integradores da justa causa, por serem constitutivos do direito do empregador ao despedimento do trabalhador ou, na perspectiva processual da acção de impugnação de despedimento, impeditivos do direito indemnizatório ou à reintegração que o trabalhador nela acciona (art. 342.º, n.º 2 do CC).
II – O art. 21.º, n.º 1 do CT garante o direito à reserva e à confidencialidade relativamente a mensagens pessoais e à informação não profissional que o trabalhador receba, consulte ou envie através de correio electrónico, pelo que o empregador não pode aceder ao conteúdo de tais mensagens ou informação, mesmo quando esteja em causa investigar e provar uma eventual infracção disciplinar.
III – Não são apenas as comunicações relativas à vida familiar, afectiva, sexual, saúde, convicções políticas e religiosas do trabalhador mencionadas no art. 16.º, n.º 2 do CT que revestem a natureza de comunicações de índole pessoal, nos termos e para os efeitos do art. 21.º do mesmo código.
IV – Não é pela simples circunstância de os intervenientes se referirem a aspectos da empresa que a comunicação assume desde logo natureza profissional, bem como não é o facto de os meios informáticos pertencerem ao empregador que afasta a natureza privada da mensagem e legitima este a aceder ao seu conteúdo.
V – A definição da natureza particular da mensagem obtém-se por contraposição à natureza profissional da comunicação, relevando para tal, antes de mais, a vontade dos intervenientes da comunicação ao postularem, de forma expressa ou implícita, a natureza profissional ou privada das mensagens que trocam.
VI - Reveste natureza pessoal uma mensagem enviada via e-mail por uma secretária de direcção a uma amiga e colega de trabalho para um endereço electrónico interno afecto à Divisão de Após Venda (a quem esta colega acede para ver e processar as mensagens enviadas, tendo conhecimento da necessária password e podendo alterá-la, embora a revele a funcionários que a substituam na sua ausência), durante o horário de trabalho e a partir do seu posto de trabalho, utilizando um computador pertencente ao empregador, mensagem na qual a emitente dá conhecimento à destinatária de que vira o Vice-Presidente, o Adjunto da Administração e o Director da Divisão de Após Venda da empresa numa reunião a que estivera presente e faz considerações, em tom intimista e jocoso, sobre essa reunião e tais pessoas.
VII - A falta da referência prévia, expressa e formal da “pessoalidade” da mensagem não afasta a tutela prevista no art. 21.º, n.º 1 do CT.
VIII – Não tendo o empregador regulado a utilização do correio electrónico para fins pessoais conforme possibilita o n.º 2 do art. 21.º do CT, o envio da referida mensagem não integra infracção disciplinar.
IX – Tendo o Director da Divisão de Após Venda acedido à pasta de correio electrónico, ainda que de boa fé por estar de férias a destinatária da mensagem em causa, e tendo lido esta, a natureza pessoal do seu conteúdo e a inerente confidencialidade impunham-lhe que desistisse da leitura da mensagem logo que se apercebesse dessa natureza e, em qualquer caso, que não divulgasse esse conteúdo a terceiros.
X – A tutela legal e constitucional da confidencialidade da mensagem pessoal (arts. 34.º, n.º 1, 32.º, n.º 8 e 18.º da CRP, 194.º, n.ºs 2 e 3 do CP e 21.º do CT) e a consequente nulidade da prova obtida com base na mesma, impede que o envio da mensagem com aquele conteúdo possa constituir o objecto de processo disciplinar instaurado com vista ao despedimento da trabalhadora, acarretando a ilicitude do despedimento nos termos do art. 429.º, n.º 3 do CT.
XI – É adequada a indemnização de € 5.000,00 para compensar a trabalhadora (com um nível de vida acima da média) que, em consequência deste despedimento, passou a sentir-se insegura na vida, dorme mal, sente-se deprimida e ofendida na sua dignidade, necessitando de acompanhamento médico.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I – A autora AA instaurou no Tribunal do Trabalho de Viana do Castelo acção de impugnação de despedimento contra a ré Empresa-A pedindo que seja declarada a ilicitude do seu despedimento e a Ré condenada a) a pagar-lhe a quantia de € 1.600,54, bem como as retribuições que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão do Tribunal; b) a pagar-lhe a quantia de € 25.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais; c) a reintegrar a Autora no seu posto de trabalho, se não optar, entretanto pela indemnização por antiguidade; d) a pagar a quantia de € 500,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na reintegração da Autora; e) a pagar os juros à taxa legal, desde a citação.
Alegou, para tal, em síntese:
Foi admitida ao serviço da Ré, no dia 22.6.1987, para desempenhar as funções de secretária de direcção.
Na sequência de processo disciplinar, foi despedida com invocação de justa causa, por ter enviado um email para uma colega e amiga, com o teor que consta dos autos.
Não teve qualquer intenção de ofender quem quer que fosse quando redigiu aquela mensagem.
Não se verifica justa causa, pelo que o despedimento foi ilícito.

A Ré contestou, alegando a justa causa para despedir a Autora e concluindo pela improcedência da acção.
Invocou para tal, em síntese, que a actuação da A. assumiu particular gravosidade na medida em que pôs em causa a imagem da empresa; que ela expediu o dito e-mail utilizando um instrumento da empresa, durante o seu horário de trabalho e para um endereço não pessoal; que essa mensagem podia ser visionada por muitos outros trabalhadores; os comentários constantes da mensagem eram extremamente desagradáveis e inconvenientes para quadros superiores da empresa; essa mensagem não pode ser considerada de natureza pessoal; esse comportamento viola os deveres que sobre ela recaíam como trabalhadora, nomeadamente o dever de respeito.

Saneada, instruída e discutida a causa, foi proferida sentença a julgar a acção procedente e a condenar a Ré:
a) a reconhecer a ilicitude do despedimento da Autora e em consequência a reintegrá-la no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade;
b) a pagar-lhe a quantia de € 22.830,00 de remunerações vencidas até à data da sentença e as que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão;
c) a pagar-lhe a quantia de € 25.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais;
d) a pagar-lhe a quantia de € 500,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na reintegração da Autora, nos termos do art. 829º-A do CC.
Foi ainda a R. condenada no pagamento de juros, à taxa legal, até efectivo pagamento.

Apelou a R., tendo a Relação do Porto confirmado a sentença.

II – Novamente inconformada, interpôs a R. a presente revista, com as seguintes conclusões:
1ª. Antes de mais, convém não esquecer que o Código do Trabalho importou para o domínio do Direito do trabalho, de forma expressa, o instituto civil da boa fé, fazendo-o a três níveis: nos preliminares da formação contratual (art. 93.°), ao nível da execução do contrato de trabalho (art. 119.°), em sede de negociação colectiva (art. 547.°) e de resolução de conflitos colectivos (art. 582.°). O instituto civil da boa fé, bem como as figuras parcelares que o informam [v.g., a culpa in contrahendo (art. 227.° do Código Civil), o abuso do direito (art. 334.° do Código Civil) e a boa fé na execução dos contratos (art. 798.° do Código Civil)] perpassa todo o regime instituído no Código do Trabalho, sendo determinante para a interpretação e aplicação do regime nele instituído.
2ª. Isto posto, a invocação pelo trabalhador do direito à confidencialidade como forma de justificar o cumprimento defeituoso do contrato constitui, consequentemente, uma hipótese típica de «abuso do direito» (art. 334.° do Código Civil), enquanto figura parcelar concretizadora do instituto civil da boa fé, que , no que tange à boa fé na execução dos contratos, se encontra actualmente positivado no art. 119.° do Código do Trabalho.
3ª. Existe justa causa de despedimento quando, perante a ocorrência de uma determinada infracção disciplinar, dela resulte uma crise contratual de tal forma grave que deixe de ser exigível ao empregador a manutenção do trabalhador ao seu serviço, nomeadamente em casos de perda da relação de confiança. Nestes casos, justifica-se a aplicação da mais grave de todas as sanções disciplinares de que a entidade patronal pode dispor.
4ª. O paradigma da justa causa centra-se num comportamento do trabalhador, ocorrido no local e tempo de trabalho, que configure uma infracção disciplinar de tal forma grave que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral. Ainda assim, convém lembrar que a justa causa não se cinge a comportamentos ocorridos exclusivamente no local e tempo do trabalho, sendo admissível o seu apuramento mesmo quando estejam em causa comportamentos que integram a intimidade da vida privada do trabalhador: assim sucede perante factos e circunstâncias que sejam susceptíveis de pôr em causa o bom-nome ou a honorabilidade da empresa, quando a relação de confiança entre as partes seja defraudada e, em todo o caso, perante comportamentos ilícitos e culposos do trabalhador que, pela sua gravidade, sejam susceptíveis de tornar praticamente inviável a subsistência da relação laboral, pelos reflexos causados no serviço e no ambiente de trabalho.
5ª. No caso vertente, tendo ficado provado que a mensagem da Autora foi remetida para um endereço electrónico que não pertencia a ninguém em particular, mas sim à Divisão de Após Venda da Toyota, e que - não obstante ser necessária uma password para se ter acesso a tal endereço - a dita palavra passe podia ser utilizada por vários funcionários da referida Divisão, maxime pelo respectivo Director, é legítimo concluir-se que o acesso a tal endereço e às mensagens para ele remetidas, em especial por parte do Director da aludida Divisão, era absolutamente livre, não necessitando do consentimento dos respectivos remetentes, designadamente do da Autora. Tratando-se de um endereço geral da empresa, não se descortina qualquer previsão normativa específica, legal ou contratual, que inviabilize o acesso a tal endereço por parte do Director da Divisão em apreço. Por outro lado, o acesso a tal endereço impunha-se por imperativos de racionalidade, razoabilidade e à luz de critérios de normalidade social - é evidente que o Director daquela Divisão não só tem o direito, como o dever, de consultar as mensagens que são expedidas para o endereço geral da Divisão que o mesmo coordena, tanto mais que se trata da única caixa de correio electrónica de acesso geral e a sua secretária se encontrava, à altura, de férias.
6ª. Por isso mesmo, o douto acórdão ora recorrido conclui que "as mensagens «privadas» «caídas» nesse endereço perdem muito do seu carácter privado, não podendo (...) a Autora, ter a razoável expectativa de privacidade, de que a dita mensagem apenas será lida pela destinatária. Aliás, tratando-se de um endereço geral da empresa, a mensagem nele caída "poderá ser equiparado a um postal ilustrado enviado pelo correio e que (...) como não está fechado, toda a gente pode lê-lo, nem que seja casual ou acidentalmente. E é precisamente esta «porta» meia aberta que não permite integrar a conduta da divulgação da mensagem no art. 194º n.º 3 do C. Penal”.
7ª. Aliás, os próprios Senhores Juízes Desembargadores subscritores do acórdão fizeram questão de sublinhar as suas "dúvidas quanto ao carácter privado da mensagem, atento o seu teor. Na verdade, tal mensagem não fala da vida privada da Autora ou da sua amiga. O seu conteúdo versa algo que passou numa reunião da Ré em que a Autora esteve presente (...) e que a Autora achou por bem «ridicularizar»”.

NO QUE RESPEITA À JUSTA CAUSA:
8ª. No caso vertente, a Autora desempenhava o cargo de Secretária pessoal da Direcção da ora Recorrente, isto é, de assessoria de cargo directivo. Trata-se, indubitavelmente e por razões manifestas, de um cargo que requer uma particular relação de confiança entre as partes, em especial entre o assessor e o assessorado.
9ª. Convém lembrar que, não obstante a visão unitária de trabalhador subordinado decorrente do art. 10.º do Código do Trabalho, cabe aos tribunais, casuisticamente, averiguar as diferenças e os diversos graus existentes e decidir em conformidade, nomeadamente para efeitos de apuramento e concretização do conceito de justa causa. Ora, quando se faz apelo, no n.º 2 do art. 396.° do Código do Trabalho, para efeitos de apreciação da justa causa, "ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes", obviamente que se manda atender também ao grau de subordinação jurídica e aos níveis de responsabilidade e exigência associados ao trabalhador em causa, bem como à relação de confiança exigível na relação laboral em causa.
10ª. No caso vertente a aludida relação de confiança foi quebrada na sequência da mensagem remetida pela Autora, mensagem essa que criou um embaraço tal que torna inviável, à luz de critérios de normalidade social, a convivência laboral entre a Autora e os seus superiores hierárquicos, em particular os visados na referida mensagem.
11ª. A dita mensagem - "(...) Ontem estive ao lado do teu querido, ou seja mais propriamente à beira do .... Sentei-me sem saber ao lado de quem e durante a prelecção sobre filosofia japonesa (que para estes gajos por acaso não é japonês mas sim chinês) pensei que devia estar sentada ao lado de algum yuppie cá da empresa de tal forma ele estava empertigado na cadeira. Quando resolvi olhar-lhe para a tromba é que vi que era o nosso querido futuro boss. Que giro! Ao lado está o ... Gente fina é outra coisa! Quanto à prelecção sobre o Toyota Way, só faltou no fim o ... levantar-se e cantar aquela do Frank Sinatra - I did it myyyyyyyyyyyy WWWWWAY." (sublinhado nosso) - visa «ridicularizar» a prelecção do Vice-Presidente da Toyota Motor Marketing Europe - Sr. HH - e toda a Direcção da Ré, particularmente o seu Vice-Presidente (o «...», ie, um dos «gajos» que segundo a Autora confunde «japonês» com «chinês») e o Adjunto da Administração - Eng.º BB - neto do Presidente do Conselho de Administração (Sr. CC) e filho do Vice-Presidente (o «..» das «trombas», nas palavras da Autora).
12ª. Conhecida que foi (licitamente) a mensagem da A., o grau de confiança necessário à subsistência da relação laboral esfumou-se, o ambiente de trabalho entre esta e os respectivos superiores hierárquicos tornou-se insuportável e a imagem da empresa perante o concedente TOYOT A correu o risco de ser afectada.
13ª. Deixou, enfim, de ser exigível à R. manter o contrato de trabalho da Autora, pelo que, nos termos conjugados dos números 1, 2 e 3 do art. 396.° do Código do Trabalho, existe justa causa de despedimento, sendo lícito o despedimento decidido pelo empregador.
14ª. Consequentemente, mostra-se uma verdadeira violência a condenação da ora recorrente a reintegrar a Autora no seu posto de trabalho dando-lhe novamente acesso a um endereço de e-mail, a documentos confidenciais e a todo um leque de tarefas de responsabilidade e a pagar-lhe as remunerações que, desde o despedimento, deixou de auferir.
15ª. Isto já para não falar da atribuição de uma indemnização no valor de € 25.000,00 a título de ressarcimento por supostos danos morais, a qual assume contornos de escândalo quando comparada com aquele que é o padrão de indemnizações atribuídas, por exemplo, em processos de acidentes de trabalho de onde resultou a morte do trabalhador.
16ª. Nestes termos, a decisão sub censura, ao pronunciar-se em sentido contrário – considerando que o comportamento da ora Recorrida, sumariamente elencado supra e assumido pela mesma, não constitui justa causa de despedimento, não levando em consideração a violação, nomeadamente, dos deveres ínsitos nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do art. 121° e do n.º 2 do art. 123°, ambos do Código do Trabalho, com referência ao disposto nos n° (s) 1 e 2 do art. 396° do mesmo Código do Trabalho – violou a lei.
Pede que seja concedida a revista.

A recorrida contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

No seu douto Parecer, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo pronunciou-se no sentido de ser negada a revista.
A ele respondeu a R. que manteve a posição da alegação de recurso.

III – Colhidos os vistos, cumpre decidir.
As instâncias deram como provados os seguintes factos, que aqui se aceitam por não haver fundamento legal para os alterar:
1. A Autora foi admitida ao serviço da Ré no dia 22.6.87, data a partir da qual passou a desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de secretária de direcção, as quais, consistem, nomeadamente, em assessorar um director de divisão, marcando reuniões, gerindo a respectiva agenda, recebendo e transmitindo comunicações, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, e mediante retribuição.
2. Até fins de Janeiro de 2002, o local de trabalho da Autora manteve-se na sede social da Ré.
3. A partir de Fevereiro de 2002, a Autora, no quadro de uma cedência ocasional, passou a trabalhar em Viana do Castelo, onde se manteve até Dezembro de 2003, data em que regressou à sede da Ré, passando a estar integrada na Divisão de Marketing e Vendas - Serviços de Comunicações, Meios e Relações Públicas.
4. A Autora sempre foi considerada pela Ré como uma trabalhadora zelosa, disponível para o desempenho das funções que lhe eram atribuídas, merecendo a maior consideração e apreço por parte dos seus superiores hierárquicos, e da própria administração da Ré.
5. A Ré por carta datada de 19.3.04 procedeu à suspensão preventiva da Autora sem perda de retribuição, informando-a de que lhe havia sido instaurado procedimento disciplinar, tendo em conta um e-mail por esta enviado para o endereço electrónico interno DAV/Pecas ...@ ....
6. Na sequência do que, por carta registada com aviso de recepção datada de 15.4.04, foi enviada à Autora nota de culpa, na qual lhe era imputada, como infracção disciplinar, o envio, durante o seu horário de trabalho e utilizando o computador da empresa, de um e-mail para o endereço electrónico interno DAV/pecas ....@ ... com o seguinte teor: «Oi fofinha, estás bem? Novidades? Ontem estive ao lado do teu querido, ou seja mais propriamente à beira do .... Sentei-me sem saber ao lado de quem e durante a prelecção sobre filosofia japonesa (que para estes gajos por acaso não é japonês mas sim chinês) pensei que devia estar sentada ao lado de algum yuppie cá da empresa de tal forma ele estava empertigado na cadeira. Quando resolvi olhar-lhe para a tromba é que vi que era o nosso querido futuro boss. Que giro! Ao lado está o ...Gente fina é outra coisa! Quanto à prelecção sobre o Toyota Way, só faltou no fim o ... levantar-se e cantar aquela do Frank Sinatra – I did it myyyyyyy wwwwwway. Bjs.
7. Nessa nota de culpa foi comunicado à Autora a intenção da Ré de proceder ao seu despedimento.
8. Por carta registada com aviso de recepção datada de 26.5.04, a Ré enviou à Autora a decisão do processo disciplinar, na qual procedia ao seu despedimento por justa causa, por se terem provado os factos constantes da nota de culpa.
9. À data do despedimento, a Autora auferia a quantia de €1.522,00, a título de vencimento, e € 3,74, a título de subsídio de alimentação por cada dia útil de trabalho.
10. A Autora, efectivamente, no dia 16.3.04, cerca das 14.06 horas, dentro do horário de trabalho, usando computador pertencente à Ré e a partir do seu posto de trabalho sito na Divisão de Marketing e Vendas, enviou o e-mail referido em 6, para o endereço electrónico interno ali citado.
11. Esse e-mail tinha como destinatária a Sra. Dra. DD, secretária do Sr. Eng. EE, director da Divisão de Após Venda Toyota, a qual é amiga de há longa data da Autora.
12. O endereço electrónico DAV/Pecas ...@ .... está afecto à Divisão de Após Venda Toyota, sendo dirigidas para o referido endereço todas as mensagens que se destinem a essa divisão.
13. Por regra, é a Sra. Dra. DD quem acede a esse endereço electrónico, para ver e processar as mensagens enviadas, sendo ela quem tem conhecimento privilegiado da necessária password, podendo alterá-la a qualquer momento.
14. Em todo o caso, a Sra. Dra. DD, também por regra, revela a password de acesso àquele endereço electrónico a funcionários que a tenham que substituir na sua ausência, em particular à Sra. Dra. FF.
15. No dia 16.3.04, o Director da Divisão de Após Venda da Ré, por se encontrar ausente por motivo de férias a sua secretária e pretender verificar a correspondência recebida no DAV/pecas ...@ ...., e após se ter informado da password necessária junto de um dos funcionários que dela poderiam ter conhecimento em virtude do que fica dito em 13, acedeu àquele endereço electrónico e leu a mensagem referida em 6, tendo dela dado conhecimento ao Vice Presidente do Conselho de Administração da Ré (Sr. Eng. GG).
16. A prelecção a que a Autora faz referência no seu e-mail consistia numa conferência a que havia sido especialmente convidada a assistir, sob o tema «Toyota Way» do Vice Presidente da Toyota Motor Marketing Europe (TMME) – Sr. HH.
17. O «....» a que aí se refere è o Adjunto da Administração (Sr. CC) e filho do Vice Presidente.
18. O «...» aí referido é o citado Vice Presidente - Sr. Eng. GG.
19. Com o despedimento, a Autora passou a sentir-se insegura na vida, dorme mal, sente-se deprimida e ofendida na sua dignidade, necessitando de acompanhamento médico.

IV – A R. despediu a A., com invocação de justa causa, por esta ter enviado a uma sua colega de trabalho um e.mail, que foi lido por um superior hierárquico desta e cujo conteúdo foi tido como violador, por parte da A., de deveres laborais.
A A. impugnou judicialmente o despedimento, na presente acção, tendo a sentença entendido, em síntese, que a R. não podia ter tomado conhecimento do conteúdo do e.mail ou dele se ter aproveitado em sede de processo disciplinar, sendo que, por isso, não podia sancionar disciplinarmente a A. com base nesse conteúdo, sendo, por outro lado, que também não se demonstra que o simples envio do e.mail consubstancie infracção disciplinar.
Mais entendeu que, em qualquer caso, a infracção, a existir, não tinha virtualidade para ditar o despedimento.
Daí que o tenha julgado ilícito, com a procedência da acção.

Já o acórdão recorrido entendeu que o conteúdo do e.mail era ofensivo para os superiores hierárquicos da A., nele referenciados, tendo esta violado o dever da alínea a) do art.º 121º do Código do Trabalho.
Mas entendeu que a infracção disciplinar não revestiu gravidade tal que justificasse o despedimento.
E, assim, tendo dado como não verificada a invocada justa causa, confirmou a sentença.

Na revista, a R. volta a defender a existência de justa causa de despedimento, pelas razões que deixou sintetizadas, nas conclusões, com a consequente improcedência da acção.
Entende ainda que, em qualquer caso, é excessiva a indemnização de 25.000,00 €.

São, pois, estas as questões que, levadas às conclusões, constituem objecto do recurso (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC).

Cumpre conhecer, sendo de referir, desde já, que, na pesquisa jurídica a que se procedeu, foram ponderados, além de vários outros trabalhos, os doutos Pareceres juntos pelas partes às suas alegações e contra-alegações da apelação (1).
Atenta a data do comportamento imputado à A. que serviu de fundamento ao despedimento, é aplicável ao caso o Código do Trabalho (CT), conforme o disposto nos art.ºs 3º, n.º 1 e 8º, n.º 1 da Lei n.º 99/2003, de 27.08, e como, aliás, foi entendido pelas instâncias, com a concordância das partes.
As instâncias fizeram acertadas considerações gerais sobre a figura da justa causa de despedimento, para as quais remetemos.
Limitar-nos-emos aqui a sintetizar noções essenciais.
Como resulta do disposto no n.º 1 do art.º 396º do CT, a noção de justa causa de despedimento exige a verificação cumulativa de 2 requisitos:
- um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, violador de deveres de conduta ou de valores inerentes à disciplina laboral, grave em si mesmo e nas suas consequências;
- que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral.
Sendo que, no n.º 3 desse art.º, se indicam, exemplificativamente, comportamentos integradores da noção de justa causa.
E existe a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação laboral quando ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral
Nas palavras de Monteiro Fernandes (2), “não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença - fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo (...). Basicamente, preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiem tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo”.
Ou como refere noutro passo, “a cessação do contrato, imputada a falta disciplinar, só é legítima quando tal falta gere uma situação de impossibilidade de subsistência da relação laboral, ou seja, quando a crise disciplinar determine uma crise contratual irremediável, não havendo espaço para o uso de providência de índole conservatória” (3).
É também de reter que, na apreciação da gravidade da culpa e das suas consequências, deve recorrer-se ao entendimento do “bonus pater familias”, isto é, de um “empregador razoável”, segundo critérios objectivos e razoáveis, em face ao condicionalismo concreto.
Sendo que, conforme o n.º 2 do art.º 396º, “para apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes”.
É ainda de lembrar que, não obstante não haver, no Código do Trabalho, norma idêntica à da parte final do n.º 4 do art.º 12º da revogada LCCT, segundo a qual cabia à entidade empregadora, na acção de impugnação judicial do despedimento, a prova dos factos constantes da decisão de despedimento , isto é, integradores da respectiva justa causa (4), entendemos que é de manter o mesmo entendimento, face à estrutura e princípios basicamente idênticos que regem os termos do processo disciplinar e a dita acção de impugnação, no CT, e aos princípios gerais do ónus da prova, constantes do Código Civil.
Lembremos, designadamente, que cabe ao empregador a imputação dos factos integrantes da justa causa de despedimento, a descrever na nota de culpa e a dar como assentes na decisão final do processo disciplinar (art.ºs 411º, n.º 1 e 415º, n.ºs 2 e 3 do CT), e que, nos termos do n.º 3 do seu art.º 435º, “na acção de impugnação do despedimento, o empregador apenas pode invocar factos e fundamentos constantes da decisão de despedimento comunicada ao trabalhador”.
Neste quadro, pode afirmar-se que os factos integradores da justa causa são constitutivos do direito do empregador ao despedimento do trabalhador ou, na perspectiva processual da dita acção de impugnação, impeditivos do direito à reintegração ou do direito indemnizatório que o trabalhador nela acciona, com base numa alegada ilicitude do despedimento, e como tal a provar por ele empregador (art.º 342º, n.º 2 do CC) (5).

Está em causa saber se o envio do e.mail pela A., melhor até, se o conteúdo dele, integra ou não justa causa de despedimento, o que passa, além do mais, pela interpretação do regime legal que tutela o correio electrónico.
As novas tecnologias da informação invadiram a vida das nossas sociedades, incluindo o mundo laboral, trazendo consigo uma vasta gama de benefícios na área da informação e da comunicação, mas também riscos e perigos vários, nomeadamente no que respeita aos direitos da personalidade.
Instrumentos indispensáveis à inovação e crescimento das economias, o seu advento, implantação e enorme crescimento ditaram o aparecimento de normas legais reguladoras de vários dos seus aspectos e, certamente, imporão a crescente implantação de outras, face a especificidades próprias, em relação ao regime legal geral, cuja regulamentação em relação a muitos desses pontos se mostra inadequada, insuficiente ou de difícil concretização.
Disso nos dão conta a doutrina e a jurisprudência nacionais e estrangeiras.

No caso que nos ocupa, estão em causa aspectos que se ligam à tutela dos direitos de personalidade de trabalhadores e empregadores, nomeadamente da defesa da sua privacidade e da confidencialidade das suas mensagens, e bem assim da sua integridade moral e direito ao bom nome.
Ora, a esse respeito, importa reter as seguintes normas:
O n.º 1 do art.º 34º da Constituição da República Portuguesa estabelece, em sede de direitos, liberdades e garantias pessoais, que “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”.
Estabelecendo, por sua vez, o n.º 4 desse art.º que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.
Sendo ainda de atender ao art.º 18º da Constituição que, no que aqui interessa, preceitua:
“1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Em harmonia com o princípio do n.º 1 do art.º 34º e com a norma do n.º 1 do art.º 26º, segundo o qual, no que aqui interessa, “a todos são reconhecidos os direitos .... à reserva da intimidade da vida privada e familiar ...”, veio o art.º 21º do Código do Trabalho dispor assim:
“1. O trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso à informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico.
2. O disposto no número anterior não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico” (6).
A interpretação deste preceito, com a eventual compatibilização dos aludidos direitos do trabalhador com os direitos do empregador e fixação dos limites de uns e outros não se mostra tarefa fácil.
Afigura-se-nos útil, por isso, pela novidade da regulamentação legal e pela ausência de jurisprudência nacional publicada sobre o tema, referir algumas das posições perfilhadas na doutrina.
Em anotação a esse art.º, pode ler-se no “Código do Trabalho Anotado” de Pedro Romano Martinez e outros (7):
«Afirma-se como princípio geral o de que são proscritas ao empregador intrusões ao conteúdo das mensagens de natureza não profissional que o trabalhador envie, receba ou consulte a partir ou no local de trabalho, independentemente da forma que as mesmas revistam. Assim, tanto é protegida a confidencialidade das tradicionais cartas missivas, como a das informações enviadas ou recebidas através da utilização de tecnologias de informação e de comunicação, nomeadamente do correio electrónico. No mesmo sentido, os sítios da internet que hajam sido consultados pelo trabalhador e as informações por ele recolhidas gozam da protecção do presente artigo, bem como as comunicações telefónicas que haja realizado a partir do local de trabalho.
Neste contexto, retira-se do preceito sob anotação que o empregador ou quem o represente não pode aceder a mensagens de natureza pessoal que constem da caixa de correio electrónico do trabalhador. A visualização de tais mensagens, que apenas se justifica em casos esporádicos, deve ser feita na presença do trabalhador ou de quem o represente e deve limitar-se à visualização do endereço do destinatário ou remetente da mensagem, do assunto, data e hora do envio. O controlo do correio electrónico da empresa deve realizar-se de forma aleatória e não persecutória e ter como finalidade a promoção da segurança do sistema e a sua performance. No mesmo sentido, o empregador não deve controlar os sítios da internet que hajam sido consultados pelos trabalhadores. Em regra, o controlo dos acessos à internet deve ser feito de forma não individualizada e global e não persecutória. Na mesma linha argumentativa, conclui-se que é vedado ao empregador, com recurso às centrais telefónicas, aceder a comunicações ou promover a utilização de dispositivos de escuta, armazenamento, intercepção e vigilância das mesmas.
O n.º 2 do preceito visa repor um justo equilíbrio entre a tutela do direito à confidencialidade de que goza o trabalhador, por um lado, e a liberdade de gestão empresarial, no polo oposto. A reserva da intimidade da vida privada do trabalhador não prejudica a possibilidade de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação e das tecnologias de informação e de comunicação manuseados na empresa, nomeadamente através da imposição de limites, tempos de utilização, acessos ou sítios vedados aos trabalhadores. O preceito em causa não estabelece a forma pela qual tais regras devem ser concebidas e comunicadas. Também neste caso (à semelhança do disposto no n.º 3 do preceito anterior) vigora o princípio do consensualismo: qualquer meio utilizado será lícito, desde que se revele adequado para que se torne possível o seu conhecimento por parte dos trabalhadores da empresa. Admite-se, porém, que o regulamento da empresa se afigure o meio por excelência a adoptar para o efeito» (Fim de transcrição).

Júlio Gomes aborda a problemática dos direitos de personalidade dos trabalhadores e do uso de meios informáticos na empresa (correio electrónico e internet), em “Direito do Trabalho”, I, “Relações Individuais de Trabalho”, 2007, nomeadamente a págs. 367 a 385.
Alerta para os riscos e perigos, para os trabalhadores e também para os empregadores, da utilização dos meios informáticos na empresa e refere a necessidade de conciliar a defesa dos direitos à reserva e confidencialidade do trabalhador com direitos também eles fundamentais do empregador, como o direito à propriedade privada e à liberdade de iniciativa e de empresa, que justificam medidas de controlo por parte do empregador, medidas que, além de necessárias, hão-de ser proporcionais e adequadas.
Faz depois uma abordagem da situação doutrinária e jurisprudencial em vários países, após o que refere que é aconselhável a elaboração do que designa por “carta das tecnologias da informação”, ao menos nas empresas de certa dimensão, em que se definam, com precisão as modalidades de utilização autorizadas dos sistemas de informação e de comunicação da empresa, mormente a Internet e o correio electrónico, estabelecendo, designadamente, se proíbe tal utilização para conexões pessoais ou se as admite e em que termos.
E, neste domínio, escreve, a dado passo:
«Quanto ao correio electrónico parece oportuno que a obrigação de distinguir correctamente correio pessoal e profissional conste do regulamento interno da empresa, obrigando-se o trabalhador a não qualificar informações profissionais como pessoais e vice-versa. A empresa deve poder presumir que não é pessoal todo o correio que o trabalhador não tenha expressamente qualificado como tal. Devem prever-se mecanismos para situações de ausência dos trabalhadores – férias e sobretudo suspensões do contrato por doença e licenças – em que pode ser necessário, sob pena de informações importantes não poderem ser recebidas em tempo útil, aceder ao correio electrónico: convém que os trabalhadores interessados sejam previamente alertados para essa possibilidade e, preferencialmente, tenham dado o seu consentimento prévio. Afora os casos de ausência do interessado, deve prever-se que a abertura excepcional do correio electrónico de um trabalhador, quando motivada por fortes indícios de violação das regras de utilização dos meios informáticos, e mesmo que referida a correio não classificado como pessoal, seja feita na presença do próprio interessado e de um representante dos trabalhadores» (Fim de transcrição).
Mais adiante, abordando o art.º 21º do CT, escreve, de alguma forma sintetizando a sua posição:
«O direito de reserva e confidencialidade é garantido ao trabalhador relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal que envie e receba, bem como relativamente ao acesso a informação de carácter não profissional que consulte (o que abrange a navegação na Internet). Por seu turno, o n.º 2 estabelece que o disposto no n.º 1, “não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico”.
Parece-nos resultar deste último preceito que o empregador pode, entre nós, e como já dissemos, proibir, por exemplo, e ressalvados casos excepcionais, o uso de correio electrónico para fins pessoais; como pode atribuir a cada trabalhador dois endereços, um para uso pessoal e outro para uso profissional; pode, igualmente, proibir, aos trabalhadores o acesso à Internet ou permiti-lo com certos condicionalismos (só a certas horas, por um certo período de tempo diário ou semanal, com proibição de acesso a certos sites ou portais). Relativamente ao n.º 1, sublinhe-se que o direito de reserva apenas está garantido quanto às mensagens de natureza pessoal: o preceito não dispensa, pois, a delicada distinção entre mensagens de natureza pessoal e profissional. Os mesmos princípios se aplicam, aliás, a todo o tipo de correspondência: se durante o período de férias do trabalhador, se recebe na empresa um carta, de um cliente, fornecedor, ou das Finanças, endereçada ao “responsável pelo sector de vendas X” ou ao “director dos serviços de contabilidade”, mesmo que a designação das funções exercidas pelo trabalhador venha seguida do seu nome, parece-nos que o empregador poderá abri-la, sobretudo se tiver razões para pensar que se impõe responder com alguma urgência. A questão que se coloca é, quanto a nós, a de saber se o empregador podia legitimamente acreditar que a mensagem tinha natureza profissional e se havia uma justificação para que não fosse o trabalhador a responder-lhe (porque, por exemplo, o mesmo se encontrava suspenso preventivamente, ausente em parte incerta ou, talvez até, simplesmente, porque o seu contrato de trabalho a termo caducaria em breve, para dar alguns exemplos). Transpondo esta ideia para o correio electrónico, parece-nos que o empregador poderá abrir as mensagens que pode legitimamente acreditar que não são pessoais. Tal será o caso, designadamente, se não tiver autorizado o uso do correio electrónico para fins pessoais (se do contexto da mensagem não resultar, apesar disso, que é efectivamente pessoal – seja porque foi mesmo qualificada como tal pelo trabalhador, seja porque tal resulta do assunto ou, porventura, do remetente ou do destinatário que é, por exemplo, a mulher do trabalhador) ou se tiver criado dois endereços, um para utilização profissional e outro para uso pessoal, relativamente àquele. Parece já impor-se maior cautela quando o empregador autorize o uso “promíscuo” do correio electrónico» (Fim de transcrição).

Joana Vasconcelos, também citada na sentença, escreve, por seu turno (8) :
"Pode o empregador ler os e-mails pessoais do trabalhador?
"Não, em caso algum. A nossa lei garante, sem mais, o direito à reserva e à confidencialidade de quaisquer mensagens de natureza pessoal – cartas, faxes, correio electrónico, sms, telefonemas, etc. – que o trabalhador envie ou receba no local de trabalho, ainda que utilizando meios de comunicação pertencentes ao empregador.
As mesmas reservas e confidencialidade são asseguradas relativamente a informação não profissional que o trabalhador receba ou consulte – por ex., via Internet – no local de trabalho.
Esta garantia não cede nem nas situações em que a recepção ou envio de mensagens, ou o acesso a informação não profissional contrarie regras definidas pelo empregador quanto à utilização de meios de comunicação e de tecnologias de informação, e constitua infracção disciplinar. Quando tal suceda, o empregador pode controlar, por ex., o remetente ou o destinatário de mensagens de correio electrónico e o seu assunto, de modo a aferir o seu carácter pessoal, mas nunca o seu conteúdo, tal como pode verificar quais os sites a que trabalhador acedeu, mas não o conteúdo da pesquisa efectuada ou da informação neles obtida.(. . .)
(…) Pode o empregador proibir a utilização do correio electrónico da empresa para mensagens pessoais?"
Sim. O empregador pode, em geral, estabelecer regras quanto à utilização de meios de comunicação – telefone, fax; telemóvel; correio electrónico - e de tecnologias de informação – ligações à Internet pertencentes à empresa, designadamente proibindo ou restringindo a sua utilização para fins pessoais dos trabalhadores a quem são atribuídos. O desrespeito de tais regras pelo trabalhador constitui infracção disciplinar.
A existência de tais regras - e, sobretudo, o controlo do seu respeito pelos trabalhadores - não afecta, em caso algum, o direito à reserva e à confidencialidade que a nossa lei garante relativamente a mensagens pessoais e à informação não profissional que o trabalhador receba, consulte ou envie, designadamente através de correio electrónico. Mais exactamente, o empregador não pode aceder ao conteúdo de tais mensagens ou de tal informação, nem mesmo Quando esteja em causa investigar e provar a eventual infracção disciplinar decorrente do incumprimento de tais regras de utilização”.

E Amadeu Guerra (9), cuja posição também vem transcrita na sentença, escreve:
“A verdade é que, tal como defendemos, também a letra do art.º 21 afasta a possibilidade de a entidade empregadora ter acesso ao conteúdo de mensagens de natureza pessoal, não se vislumbrando que haja qualquer disposição legal que – mesmo no âmbito de processo disciplinar em curso (v.g. por desconfiança de revelação de segredos comerciais) – permita perscrutar o referido conteúdo. Por isso, a única via para o acesso ao conteúdo passa pelo consentimento do trabalhador."

Feitas estas considerações doutrinárias de enquadramento, passemos a analisar o caso dos autos:
O e.mail foi enviado pela autora, durante o seu horário de trabalho, à sua colega de trabalho e amiga de longa data, a Dr.ª DD, utilizando computador pertencente à ré e a partir do seu posto de trabalho, sito na Divisão de Marketing e Vendas, para o endereço electrónico interno DAV/Pecas ..@....
Este endereço está afecto à Divisão de Após Venda da Toyota, sendo para ele dirigidas todas as mensagens que se destinem a essa divisão.
Por regra, é a Drª DD quem acede a esse endereço electrónico, para ver e processar as mensagens enviadas, sendo ela quem tem conhecimento privilegiado da necessária password, podendo alterá-la a qualquer momento.
Em todo o caso, a Dr.ª DD, também por regra, revela a password de acesso àquele endereço electrónico a funcionários que a tenham que substituir na sua ausência, em particular à Sr.ª Dr.ª FF.
No dia 16/3/2004, o Director da Divisão de Após Venda da R., por a Dr.ª DD se encontrar ausente por motivo de férias e pretender verificar a correspondência recebida no DAV/Pecas ...@..., e após se ter informado da password necessária junto de um dos funcionários que dela poderiam ter conhecimento, acedeu àquele endereço electrónico e leu a dita mensagem, tendo dela dado conhecimento ao Vice-Presidente do Conselho de Administração da R. (Sr. Eng.º GG).
A prelecção a que a A. faz referência no seu e-mail consistia numa conferência a que havia sido especialmente convidada a assistir, sob o tema "Toyota Way", do Vice-Presidente da Toyota Motor Marketing Europe (TMME) - Sr. HH.
O "..." a que aí se refere é o Adjunto da Administração – Sr. Eng.º BB – neto do Presidente do Conselho de Administração (Sr. CC) e filho do Vice-Presidente.
O "..." aí referido é o citado Vice-Presidente - Sr. Eng.º GG.

Este o quadro factual a atender.
E, perante ele, e à semelhança do que fez a sentença, há que qualificar a mensagem enviada pelo e.mail como de natureza pessoal (ou privada) – não profissional, portanto – e, como tal, submetida, em princípio, à previsão do art.º 21º do CT.
Na verdade, tratou-se, como o teor do mail revela claramente, de uma vulgar comunicação entre 2 amigas, destinada, provavelmente, a abrir um diálogo entre ambas, não fora a ausência da destinatária (por motivo de férias), em que não se veicula ou se pede ou está em causa qualquer informação de serviço ou outro aspecto que se ligue à execução de qualquer das prestações inerentes à execução do contrato de trabalho, por parte quer da autora, quer da destinatária, Dr.ª DD, ou qualquer assunto atinente ao processo produtivo ou comercial da empresa.
No e.mail, a autora dá conhecimento à Dr.ª DD que vira o Vice-Presidente, o Adjunto da Administração e o Director da Divisão de Após Venda da ré numa reunião a que estivera presente e faz considerações, em tom intimista e jocoso, sobre essa reunião e tais pessoas.
E, como se disse na sentença, não são apenas as comunicações relativas à vida familiar, afectiva, sexual, saúde, convicções políticas e religiosas do trabalhador, e mencionadas no art.º 16º, n.º 2 do CT (10), que revestem a natureza da comunicações de natureza pessoal, nos termos e para os efeitos do art.º 21º.
Como aí se referiu, a definição de natureza particular da mensagem obtém-se por contraposição à natureza profissional da comunicação, relevando, para tal, antes de mais, a vontade dos intervenientes da comunicação, ao postularem, de forma expressa ou implícita, a natureza profissional ou privada das mensagens que trocam.
O art.º 21º do CT situa-se no âmbito da tutela da confidencialidade do conteúdo das mensagens de natureza pessoal, enquanto que o art.º 16 visou uma finalidade distinta, a de estabelecer os limites que se impõem a ambas as partes quanto à possibilidade de recolha e divulgação de informações, no âmbito da relação laboral, v.g., aquando do início dessa relação.
E não é pela circunstância dos intervenientes se referirem a aspectos da empresa que, por essa simples razão, a comunicação assume desde logo um carácter profissional, legitimando a sua intercepção pelo empregador.
E de igual modo, como os autores defendem, de forma pacífica, não é o facto de os meios informáticos pertencerem ao empregador que afasta a natureza privada da mensagem e o legitima a aceder ao seu conteúdo

Podemos assentar, assim, que a mensagem enviada por e.mail tem natureza pessoal, sendo, por outro lado, que nenhum dos dados de facto apurados permite concluir que a autora tenha tido a intenção de lhe retirar o carácter reservado, confidencial que lhe quis atribuir, alargando-o ao conhecimento de terceiros, que não a Dr.ª DD, nomeadamente a outros colegas de trabalho ou a elementos de órgãos sociais da R..
Repete-se que o mail tinha como destinatária a Dr.ª DD, amiga de longa data da autora e que era quem, em regra, acedia ao respectivo endereço electrónico e tinha conhecimento privilegiado da password de acesso necessária, podendo alterá--la a qualquer momento, embora, em todo o caso e, em regra, a revelasse a funcionários que a tinham que substituir, na sua ausência, em particular a Dr.ª FF.
E foi devido à ausência da Drª DD, por estar de férias, que o Director da Divisão do Após Venda da R., Eng.º EE obteve a password necessária e acedeu ao mail, nos termos referidos no facto 15.
Ora, no quadro factual apurado, é lícito crer – nada havendo em sentido diverso – que a autora desconhecia essa ausência da colega e que, por isso, esta não ia aceder, de imediato, ao mail e, como era previsível, por ser pessoal e face ao seu teor, “apagá-lo”, após o ler.
E, assim, não vemos, a este título, qualquer obstáculo à protecção da confidencialidade da mensagem pessoal da autora.

Como resulta do n.º 2 do art.º 26º do CT e tem sido sublinhado pela doutrina (11) - que, aliás, já o entendia antes – o empregador pode, senão proibir, em absoluto, o uso do correio electrónico pelos seus trabalhadores para fins privados, seguramente impor limites a esse uso, v.g. estabelecendo tempos de utilização, temas e endereços vedados, etc..
No caso, não vem provado que a ré tenha usado da faculdade prevista no n.º 2 desse art.º, regulando a utilização do correio electrónico para fins privados ou pessoais dos seus trabalhadores.
O que, como sublinhou a sentença, exclui a possibilidade de se concluir pela verificação de infracção disciplinar pela A., a esse título, por eventual envio do mail fora das condições permitidas pela R..
Sendo que, como vimos, cabia a esta a alegação e prova dos respectivos factos, como integradores de uma possível justa causa de despedimento.
Diga-se, aliás, que a própria posição da ré, no processo disciplinar e na presente acção, não foi no sentido de que fosse vedada tal utilização.
Ela insurgiu-se e continua a insurgir-se sim e tão-somente contra o conteúdo da mensagem, que tem como desrespeitosa dos superiores hierárquicos nela mencionados.

Como já dissemos, estamos perante uma mensagem pessoal expedida pela autora para uma amiga mas para um endereço profissional da ré, a que a amiga tinha acesso, através da necessária password, sendo, porém, que outras pessoas, v.g. quem a substituía nas ausências (designadamente, em férias), a ele podiam aceder.
Nesse contexto, e porque não está demonstrado que o e.mail viesse marcado com qualquer referência formal que revelasse a sua natureza pessoal, admite-se, sem rebuço, que “representante” da ré pudesse aceder ao mesmo, convencido que se tratava de mensagem profissional, referente a assuntos da empresa.
Mas, no caso, esse facto não é, a nosso ver, de molde a retirar a sua natureza pessoal e a consequente tutela de confidencialidade que os preceitos citados, v.g. o n.º 1 do art.º 21º, lhe atribui.
Não o consente os termos amplos e não restritivos em que esse preceito se exprime (“o trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal ... – o sublinhado é nosso).
Na verdade, nada no preceito parece revelar que a falta de marca prévia , expressa e formal, da “pessoalidade” da mensagem, afaste a tutela aí prevista.
A nosso ver, acontece é que essa confidencialidade há-de operar, pela própria natureza das coisas, em momento e termos diversos, sem prejudicar o trabalhador.
Tendo alguém da ré (no caso, o Director de Divisão do Após Venda), mesmo que de boa fé, acedido ao mail, a natureza pessoal deste e a sua inerente confidencialidade, impunham-lhe que desistisse da leitura do seu conteúdo logo que se apercebesse dessa natureza e, em qualquer caso, que não divulgasse esse conteúdo a terceiros.
Essa obrigação legal resulta, tanto quanto entendemos, da própria natureza e finalidade da tutela constitucional e ordinária.
Relembremos que o n.º 1 do art.º 34º da Constituição tutela como direito pessoal o sigilo da correspondência e de outros meios de comunicação privada, estabelecendo que são invioláveis, o que significa que a lei só os pode restringir nos casos expressamente previstos na Constituição, e com as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (n.º 2 do seu art.º 18º).
Ora, não vislumbramos norma constitucional nem norma ordinária emitida ao seu abrigo que, no caso em apreço, retire a tutela da confidencialidade à mensagem pessoal enviada pela A..
E o próprio art.º 194º, n.ºs 2 e 3 do Cód. Penal confirma a acima apontada obrigação legal, ao incriminar quem, no que respeita a telecomunicações que não lhe sejam dirigidas, e sem consentimento, se intrometa no seu conteúdo, ou dele tome conhecimento ou divulgue o respectivo conteúdo (12) (13).
E, assim, a apontada tutela impedia, como bem sublinhou a sentença, que o envio da mensagem, ou melhor até, que o envio da mensagem com aquele conteúdo pudessem constituir o tema ou objecto do processo disciplinar, com base no conhecimento que dela teve o Eng. EE e subsequente divulgação por ele feita, dando conhecimento ao Vice Presidente do Conselho de Administração da R..
Revela-o também o disposto no art.ºs 32º, nº 8 da Constituição, ao estabelecer, em sede de garantias em processo criminal, que “são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na correspondência ou nas telecomunicações” (14).
Nesse sentido, veja-se o ac. n.º 241/02 do Tribunal Constitucional, de 29.05.2002, no DR, II, de 23.7.2002, pág. 12825, que julgou inconstitucional a norma da al. b) do n.º 3 do art.º 559º do CPC, por infracção ao disposto nos arts. 26º, n.º 1 e 34º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, quando interpretada no sentido de que, em processo laboral, podem ser pedidas por despacho judicial, aos operadores de telecomunicações informações relativas aos dados de tráfego e à facturação detalhada de linha telefónica instalada na morada de uma parte, sem que enferme de nulidade a prova obtida com a utilização dos documentos que veiculam aquelas informações.
E pode ler-se, a propósito, no seu sumário:
«I. O sigilo das telecomunicações, garantido nos termos do art. 34º, n.º 1 da Constituição, abrange não só o conteúdo das telecomunicações, mas também o “tráfego” como tal (espécie, hora, duração, intensidade de utilização).
II. A proibição de ingerência nas telecomunicações, para além de vedar a escuta, intercepção ou vigilância de chamadas, abrange, igualmente, os elementos de informação com elas conexionados, designadamente os elementos técnicos que acompanham qualquer mensagem de correio electrónico e que permitem, em conjunto, proceder à identificação do computador do qual partiu a mensagem, mas não já a autoria da própria mensagem.
(...)
VI. Quando é a própria inviolabilidade das telecomunicações que está em causa, nunca a dispensa de confidencialidade poderia justificar a ordem de prestação de informações constantes dos sistemas informáticos de operadores de telecomunicações, maxime em processo de natureza cível.
VII. A infracção à proibição constitucional de ingerências nas telecomunicações há-de ter nos processos cíveis e em matéria de prova a mesma sanção radical prevista na Constituição em sede de “garantias do processo criminal: a nulidade» (15).
Só assim se garante uma efectiva tutela da confidencialidade ou se minimizam os inconvenientes de uma sua violação, mormente se tal violação se repercutir em matérias ligadas a aspectos sancionatórios, como é o caso do processo disciplinar.

Do exposto resulta que o Director de Divisão de Após Venda da ré, pessoa estranha à comunicação de natureza pessoal feita pela A. à sua amiga Dr.ª DD, mesmo que a ela tivesse acedido de boa fé, não podia tê-la divulgado, inclusive a outro elemento dos corpos sociais da R., nem esta podia, com base nessa divulgação, instaurar o processo disciplinar contra a A. e que veio a culminar no despedimento desta, com invocação de justa causa.
Tratou-se de uma divulgação ilícita pelo referido Director e do recurso pela R. a prova nula, por isso inatendível.
E, por isso, a violação, assim feita, da confidencialidade da mensagem, torna inaproveitável, inatendível o envio e conteúdo da mensagem como fundamento da justa causa de despedimento.
O que leva a concluir pela ilicitude do despedimento, nos termos do art.º 429º, n.º 3 do Cód. do Trabalho, com as inerentes consequências, e dita a improcedência da revista, salvo no que respeita ao pedido de indemnização por danos morais, mais concretamente quanto ao montante arbitrado pelas instâncias, que a R. impugna, por o considerar excessivo.

No quadro apontado, é manifesto que não colhe a alegação feita pela recorrente na conclusão 2ª da revista de que a invocação pela A. do direito à confidencialidade como forma de justificar o cumprimento defeituoso do contrato de trabalho integra uma situação de abuso de direito, figura prevista no art.º 334º do CC.
Na verdade, tendo-se concluído pela inatendibilidade do envio e conteúdo do e.mail, por violação da tutela da confidencialidade, não há, obviamente, que entrar na análise desse conteúdo nem que apurar se esse conteúdo é violador de normas e deveres laborais e se traduz, por isso, um incumprimento contratual ou um cumprimento defeituoso.

Há que abordar agora a última questão em aberto, suscitada pela recorrente: a de saber se é ou não excessivo o montante de 25.000,00 €, arbitrado à A., a título de indemnização por danos não patrimoniais resultantes desse despedimento (16).
Dispõe o n.º 1 do art.º 496º do Cód. Civil que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
E o seu n.º 3 preceitua que “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º”, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
No caso, apurou-se, com interesse:
A A. sempre foi considerada pela Ré como uma trabalhadora zelosa, disponível para o desempenho das funções que lhe eram atribuídas, merecendo a maior consideração e apreço por parte dos seus superiores hierárquicos, e da própria administração da R..
O despedimento foi comunicado à A. por carta registada datada de 26.5.2004.
Com o despedimento, a A. passou a sentir-se insegura na vida, dorme mal, sente-se deprimida e ofendida na sua dignidade, necessitando de acompanhamento médico.

Há ainda que ter em conta o grau acentuado de culpabilidade da R. na aplicação do despedimento, como resulta do que foi dito acima, a propósito da ilicitude dessa sanção.
É de ponderar também, como se consignou na sentença, que, sendo facto notório que a R. se insere num grupo económico dos mais prestigiados do país, é de considerar elevada a sua situação económica.
E, também como referiu a sentença, face ao salário auferido pela A., é lícito concluir que tem um nível de vida acima da média.

É neste quadro que há que fixar a indemnização.
E é de reconhecer que os danos morais acima descritos, sofridos pela A., são gravosos.
Entendemos, contudo, que a indemnização arbitrada se mostra excessiva, face aos padrões valorativos que têm sido seguidos nesta Secção Social.
Embora tais danos se mostrem gravosos e como tal merecedores da tutela ressarcitória, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 496º do CC – aspecto este que, aliás, não vem questionado no recurso – e tendo ditado a necessidade de acompanhamento médico à A.(não estando, porém, apurados melhores dados quanto a esse acompanhamento, nomeadamente, os termos e frequência com que ocorreu ou tem ocorrido), o certo é que não se vislumbram elementos que permitam concluir por uma gravidade tal que justifique a indemnização arbitrada.
Assim, tudo visto, entendemos que é de arbitrar à A. a indemnização por danos morais de 5.000,00 €.

V – Assim, acorda-se em conceder parcialmente a revista, condenando-se a R. a pagar à A. a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais.
No mais, confirma-se o douto acórdão recorrido.
Custas da revista e nas instâncias a cargo de A. e R., na proporção do respectivo decaimento.

Lisboa, 5 de Julho de 2007
Mário Pereira (Relator)
Sousa Peixoto
Maria Laura Leonardo
-----------------------------------------------------------------
(1) - A R. apelante juntou, a fls. 348 a 410, Parecer subscrito pelo prof. Pedro Romano Martinez e pelo Assistente Guilherme Machado Dray, enquanto que a A. juntou, a fls. 429 a 491, Parecer da Mestre em Direito, Sónia de Carvalho.
(2) - In “Manual do Direito do Trabalho”, 12ª ed., pág. 557.
(3) - Ob. cit., pág. 575.
(4) - Preceituava esse n.º 4: “Na acção de impugnação judicial do despedimento, a entidade empregadora apenas pode invocar factos constantes da decisão referida nos n.ºs 8 a 10 do artigo 10º, competindo-lhe a prova dos mesmos” (o sublinhado é nosso).
(5) - Veja-se, neste sentido, entre outros, o acórdão deste STJ, 4ª Secção, de 16.11.2005, na Revista n.º 255/05.
(6) - É de lembrar ainda que, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 194º do Código Penal, quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicação ou dele tomar conhecimento, ou divulgar o conteúdo de telecomunicações que não lhe sejam dirigidas incorre na pena de prisão até 1 ano ou na pena de multa até 240 dias.
(7) - 5ª Edição, págs. 129 e 130.
(8) - “O Contrato de Trabalho. 100 Questões”, 2004, págs. 91 a 93.
(9) - “A Privacidade no Local de Trabalho – As Novas Tecnologias e o Controlo dos Trabalhadores Através de Sistemas Automatizados. As Alterações do Código do Trabalho”, pág. 392.
(10) - Dispõe o referido art.º 16º: “1. O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida privada. 2. O direito à reserva da vida da intimidade da privada abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas”.
(11) - Vejam-se, por exemplo, Romano Martinez, Júlio Gomes e Joana Vasconcelos, acima citados.
(12) - Dispõe o referido art.º 194º:”1. Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimentos, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2. Na mesma pena incorre quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicação ou dele tomar conhecimento. 3. Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias”.
(13) - Sobre a reserva pelo destinatário de cartas-missivas confidenciais e sobre o uso pelo destinatário de cartas-missivas não confidenciais, vejam-se, respectivamente, os art.ºs 75º e 76º e o art.º 78º do Cód. Civil.
(14) - Lembre-se que o n.º 4 do art.º 34º da Constituição permite a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal.
(15) - Insere-se na linha desta asserção, a al. b) do n.º 3 do art.º 519º do Cód. de Proc. Civil, segundo o qual é legítima a recusa das pessoas, sejam ou não partes na causa, em colaborar na descoberta da verdade se a respectiva obediência importar intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações (sublinhado nosso).
(16) - A R. não impugna na revista o direito da A. a tal indemnização, prevista no art.º 436º, n.º 1, a) do CT, concluído que seja – como aconteceu – que não se verificou a justa causa de despedimento.