Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01S383
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VICTOR MESQUITA
Descritores: PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
INQUÉRITO PRELIMINAR
CADUCIDADE DA ACÇÃO DISCIPLINAR
PRAZO DE CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ200202280003834
Data do Acordão: 02/28/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2548/00
Data: 10/11/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR TRAB - CONTRAT INDIV TRAB.
Legislação Nacional: LCT69 ARTIGO 31 N1.
LCCT89 ARTIGO 10 N11 N12.
Sumário : I - Quando o procedimento disciplinar tem de ser precedido de um inquérito ou processo de averiguações porque se desconhecem as circunstâncias essenciais determinantes para a sua instauração não se poderá ter em conta o prazo de 60 dias referido no n. 1 do art.º 31 da LCT.
II - Aquele inquérito ou processo de averiguações não assume as características do processo prévio de inquérito a que se reporta o n. 12 do art.º 10 da LCCT, ficando afastada, assim, a aplicação deste normativo.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

A, maquinista técnico da C.P. veio intentar acção declarativa emergente de contrato de trabalho, sob a forma comum ordinária, contra C.P. Caminhos de Ferros Portugueses, E.P., pedindo que o processo disciplinar contra ele instaurado seja declarado nulo, ou, quando assim não se entenda, seja anulada a sanção disciplinar de despedimento que lhe foi aplicada, por inexistência de justa causa, revogando-se a mesma com as legais consequências, por violação do artigo 31º, n.º 1, do DL 49408, de 24 de Novembro de 1969, dos artigos 9º, nsº. 1 e 2, e 10, ns.º 11 e 12, do DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, e dos princípios constitucionais da legalidade e da igualdade , das garantias de defesa do arguido e do Estado de Direito Democrático consagrado na C.R., condenando-se a Ré a reintegrar o Autor, com todas as legais consequências, reconstituindo a sua categoria profissional nos mesmos termos em que estaria se não tivesse sido despedido com alegada justa causa, pagando-lhe as remunerações vencidas e vincendas até à reintegração, acrescidas de juros de mora à taxa legal, sendo aquelas no montante de 2722958 escudos e ainda em indemnização cível pelos danos morais e materiais sofridos pelo Autor em consequência directa e necessária das lesões verificadas no acidente no montante de 1500000 escudos, acrescidos também de juros à taxa legal desde a data do acidente, sendo 1400000 escudos a título de danos morais e 100000 escudos de danos materiais.

A Ré apresentou contestação, nela assinalando que o processo disciplinar, por força do qual o Autor foi despedido está isento de qualquer vício, é manifesta a existência de justa causa de despedimento, não tendo o Autor direito a haver da Ré quaisquer importâncias.
Refere que no dia 8 de Novembro de 1997, cerca das 18h45, quando o Autor conduzia o comboio regional n. 5806 chocou frontalmente com o comboio inter-regional n. 981, ao Km 326,275, do troço Tunes-Lagos, da linha do Algarve, que este choque foi exclusivamente motivado pela conduta do Autor que, violando sucessivamente as regras de circulação que lhe eram impostas ocupou indevidamente o troço da linha destinado ao comboio inter-regional n. 981, que neste choque a máquina do comboio n. 5806 (conduzido pelo Autor) desfez a cabine de condução do comboio n. 981, matando o seu maquinista e um passageiro que viajava na carruagem de 1.ª classe deste comboio, de seguida as carruagens do comboio n.º 5806 comprimiram a carruagem de 1.ª classe contra a respectiva máquina, provocando a morte de dois dos seus ocupantes, resultando ainda do acidente 14 feridos ligeiros e danos materiais que ascendem a mais de um milhão de contos.
Pede a improcedência da acção e sua absolvição do pedido.

Ao Autor veio, entretanto, ser concedido o apoio judiciário na modalidade por ele solicitada de dispensa total de preparos e de pagamento de custas (decisão de fls. 208).
Veio ser proferido saneador-sentença (fls. 208 a 213) em que se julgou parcialmente procedente a acção, declarando-se ilícito o despedimento do Autor e condenando-se a Ré a reintegrar aquele e a pagar-lhe as retribuições vencidas entre os 30 dias anteriores à propositura da acção, absolvendo a Ré do demais pedido.
Não se conformando com esta sentença dela interpôs a Ré recurso, de apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão de fls. 255 a 265 o T.R.L. decidiu julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Ré, e, em consequência, revogar parcialmente o saneador que deve ser substituído, em parte, por outro que considere não verificada "in casu" a caducidade do procedimento disciplinar, com organização da especificação/questionário por forma a neles se incluírem os factos que determinaram a aplicação ao Autor da sanção de despedimento.
Inconformado com este acórdão dele interpôs o Autor o presente recurso de revista.

Tendo apresentado alegações formula as seguintes conclusões:
A) O inquérito mandado instaurar pela Ré, em 10 de Novembro de 1997, e concluído em 8 de Janeiro de 1998 destinava-se também a fundamentar eventual nota de culpa, como aconteceu.
B) Os prazos referidos nos artigos 31º, n.º 1, da LCT, e 10ª, n.º 12, da LCCT encontram-se largamente excedidos.
C) Pelo que deve ser declarada a caducidade do procedimento disciplinar.
D) O acórdão recorrido violou as citadas disposições legais.
Pede seja considerado procedente o recurso, revogando-se o acórdão recorrido, julgando-se verificada a caducidade do procedimento disciplinar, tal como decidido na 1.ª instância.
A recorrida apresentou contra-alegações, pugnando seja negado provimento ao recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.
A Exma. Magistrada do Ministério Público emite parecer no sentido de a revista dever ser negada.
Colhidos os "vistos" legais cumpre apreciar e decidir
As instâncias deram como assentes os seguintes factos:

a) O Autor entrou ao serviço da Ré em 19 de Novembro de 1974, prestando o seu trabalho sob as ordens e direcção desta.
b) Tinha a categoria profissional de maquinista técnico desde 1981 e auferia, ultimamente, a retribuição mensal de 141199 escudos, 14845 escudos de diuturnidades, 25416 escudos de subsídio de escala, 7330 escudos de prémio de condução e 900 escudos/dia de subsídio de refeição (doc. de fls. 195 a 199).
c) No dia 8 de Novembro de 1997 o comboio regional n.º 5806 conduzido pelo Autor e o comboio inter-regional n.º 981 chocaram frontalmente ao Km 326,275 da Linha do Algarve (troço Tunes-Lagoa).
d) Em 10 de Novembro de 1997 o Director Geral de Gestão de Infraestruturas da Ré mandou instaurar inquérito para apurar as causas e definir as responsabilidades do choque referido.
E) Este inquérito ficou concluído em 8 de Janeiro de 1998.
f) Analisado o inquérito o Conselho de Gerência da Ré deliberou, em 22 de Janeiro de 1998, instaurar processo disciplinar ao Autor com intenção de despedimento, e, por despacho de 2 de Fevereiro de 1998 do Director Geral do Serviço de Transportes foi nomeado o respectivo instrutor (docs. de fls. 144 e 145).
g) No âmbito deste processo disciplinar foi deduzida em 19 de Fevereiro de 1998 a nota de culpa junta a fls. 150, de que o Autor tomou conhecimento em 20 de Fevereiro de 1998 (doc. de fls. 151), à qual o Autor respondeu nos termos que constam de fls. 156 a 165.
h) Por deliberação do Conselho de Gerência da Ré, de 30 de Julho de 1998, foi aplicada ao Autor a sanção disciplinar de despedimento.
i) Esta deliberação foi comunicada ao Autor por carta, registada, digo, datada de 5 de Agosto de 1998, subscrita pelo Director de Pessoal e Assuntos Sociais da Ré, contendo cópia integral da mesma enviada em 10 de Agosto de 1998, que o Autor recebeu em 11 de Agosto de 1998 (docs. de fls. 21 a 25).
Esta factualidade, assente pelas instâncias, é aceite por este STJ, dado que não se vislumbra fundamento legal para sua alteração.
Decorre, entre outros, dos artigos 690º, n.º 1, e 684º, n.º 3, do CPC, "ex vi" do disposto no artigo 726º do CPC, e é entendimento corrente da doutrina e da jurisprudência, que as conclusões das alegações delimitam o objecto do recurso.
À luz das conclusões do recorrente a única questão que se coloca é a de saber se deve ou não ser declarada a caducidade do procedimento disciplinar.
Como já se viu, as instâncias adoptaram, a este respeito, opiniões diferentes.
Enquanto na sentença da 1.ª instância se entendeu que o procedimento disciplinar se mostrava prescrito, estando, em consequência, extinta a responsabilidade civil do Autor, o acórdão da R.L. considerou que "in casu" não se verificava a caducidade do procedimento disciplinar, e, por isso, ordenou a elaboração da especificação e do questionário.
Independentemente de saber se o prazo de 60 dias previsto no n.º 1 do artigo 31º do RJCIT, aprovado pelo Dec-Lei n.º 49408, de 24 de Novembro, configura um prazo de prescrição ou antes de caducidade, que espelha, aliás, a controvérsia existente na doutrina, importa antes averiguar se ao caso "sub judice" é aplicável o n. 12 do artigo 10 do RJCIT, conforme posição assumida na sentença da 1.º instância, ou, pelo contrário, o n. 11 do mesmo artigo 10, como foi o entendimento sufragado no acórdão recorrido, tendo também afinado por este mesmo diapasão o parecer da Exma. Magistrada do Ministério Público.
Sustenta o recorrente que o inquérito mandado instaurar pela Ré, em 10 de Novembro de 1997, e concluído em 8 de Janeiro de 1998 se destinava também a fundamentar eventual nota de culpa.
Estabelece o n.º 1 do artigo 31º da LCT que o procedimento disciplinar deve exercer-se nos 60 dias subsequentes aquele em que a entidade patronal ou o superior hierárquico com competência disciplinar teve conhecimento da infracção.
Preceitua, por sua vez, o n. 11 do artigo 10 do RJCCT que a comunicação da nota de culpa ao trabalhador suspende o decurso do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 31º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Dec-Lei n.º 49408, de 24 de Novembro de 1969.
E refere o n.º 12 deste mesmo artigo 10º que igual suspensão decorre da instauração de processo prévio de inquérito, desde que, mostrando-se este necessário para fundamentar a nota de culpa, seja iniciado e conduzido de forma diligente, não mediando mais de 30 dias entre a suspeita da existência de comportamentos irregulares e o início do inquérito, nem entre a sua conclusão e a notificação da nota de culpa.
A sentença da 1.ª instância e o recorrente defendem que os prazos referidos nos artigos 31, n. 1, da LCT, e 10, n. 12, da LCCT, se encontram largamente excedidos.
Cabe, todavia, perguntar, como bem se observou no acórdão recorrido: "Será que o inquérito a que aludem as alíneas d) e e) da matéria de facto que vem dada como provada da 1.ª instância era para fundamentar qualquer nota de culpa?"
A resposta que se deu, e que agora também se dá, "só pode ser negativa".
Nele se deixou dito "é que se era para fundamentar qualquer nota de culpa, então já tinha que se aceitar, previamente, como dado adquirido, a inexistência de culpa de alguém na ocorrência do acidente, e que, além disso, esse alguém já estivesse presumivelmente identificado como arguido".
Depois de, a este respeito, citou abundante jurisprudência, e de analisar detalhada e minuciosamente a questão, acentua-se no mesmo acórdão que "este inquérito não assume, nem podia assumir as características do inquérito a que alude o n. 12 do artigo 10 da LCCT, com vista à fundamentação de qualquer nota de culpa, teve sim um papel muito mais abrangente na determinação das causas do acidente e de eventuais responsabilidades de pessoas que ainda não podiam presumivelmente ser consideradas arguidas", que na presente hipótese não é aplicável o n. 12 do artigo 10 da L. Desp. porque o processo de inquérito e seu aditamento não tiveram qualquer finalidade direccionada a fundamentar uma nota de culpa, mas apenas o estabelecimento dos factos, para os vários possíveis efeitos; está-se, pois, em face não de um tipo de inquérito indispensável para fundamentar uma nota de culpa, mas sim de uma averiguação plurifuncional de factos e responsabilidades.

E acrescenta-se "tanto assim é que, quando se dá início àquele inquérito ainda não se sabia, nem se podia saber, se alguém ia ser constituído como arguido, em consequência de actuação culposa que fosse determinante, em termos de causalidade adequada na produção do acidente; basta pensar numa hipótese, sempre possível, da ocorrência de uma avaria técnica ou mecânica que tivesse sido a única causa determinante no desenrolar do acidente".
Por pertinente e relevante para a questão em apreço não podemos olvidar o que sobre a mesma refere Maria Manuela da Silva (- O Tempo no Processo Disciplinar - Alguns Aspectos Critérios - 1998 - pág. 206):
"Também com a instauração deste processo prévio se interrompe o decurso do prazo de caducidade (artigo 10º, n.º 12, L.D.), desde que este acto se torne necessário para fundamentar a nota de culpa, mas uma ressalva tem de ser feita; com efeito, quando a lei vem estabelecer que o procedimento disciplinar seja exercido num determinado espaço de tempo após a infracção ou o seu conhecimento pela entidade patronal, nem pressupõe que nesse momento, a entidade patronal deva conhecer, não só a infracção, mas também o seu autor, bem como as circunstâncias essenciais do enquadramento da infracção; o mesmo acontecerá nos casos em que o processo prévio de inquérito é instaurado somente para fundamentar melhor a nota de culpa (artigo 10º, n.º 12, L.D.), pressupondo-se todo o demais conhecido. Diferente é a situação quando o procedimento disciplinar tem de ser precedido de um inquérito ou de um processo de averiguação porque se desconhecem as circunstâncias essenciais determinantes para a instauração do procedimento disciplinar; neste caso não poderá contar o prazo de caducidade, na medida em que o empregador desconhece o autor da infracção ou as circunstâncias consideradas essenciais para perfeito enquadramento da infracção.
É o que acontece no caso "sub judice".
Na verdade, e como bem se sublinha no douto parecer da Exma. Magistrada do M.P. "em 10 de Novembro de 1997, data em que foi mandado instaurar o inquérito, a Ré desconhecia não só a infracção, como também o seu autor, daí que o referido inquérito não assuma as características do processo prévio de inquérito a que se reporta o n.º 12 do artigo 10º da LCT, ficando, assim, afastada a aplicação deste normativo ao caso concreto, antes e ainda na previsão do n. 11 do artigo 10 da LCT.
Está provado que a Ré só tomou conhecimento dos comportamentos infraccionais imputados ao Autor em 8 de Janeiro de 1998, data em que soube das conclusões do inquérito instaurado em 10 de Novembro de 1997.
Consequentemente, é somente a partir de 8 de Janeiro de 1998 que se inicia o prazo de 60 dias previsto no n.º 1 do artigo 31º da LCT, interrompendo-se este prazo com a notificação da nota de culpa ao arguido.
O Autor tomou conhecimento da nota de culpa em 20 de Fevereiro de 1998.
Assim sendo, ainda não se mostrava decorrido o prazo de 60 dias previsto no n.º 1 daquele artigo 31º, não ocorrendo, deste modo, a caducidade do exercício da acção disciplinar.
Improcedem as conclusões das alegações do recorrente, não se mostrando violadas as disposições legais invocadas.
Não merece, pois, qualquer censura o douto acórdão recorrido, que aplicou correctamente a lei aos factos.

Termos em que se decide negar a revista.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2002.
Victor Mesquita,
Azambuja da Fonseca,
Diniz Nunes.