Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9039/20.9T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANO MORTE
UNIÃO DE FACTO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DIREITO A ALIMENTOS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
PAGAMENTO ANTECIPADO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PROVA
FACTOS CONCLUSIVOS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDER A REVISTA DOS AUTORES;
NEGAR A REVISTA DA RÉ
Sumário :
I.Julgando-se provado que “Nos primeiros dias de setembro 2015, seguramente antes de 11 de setembro de 2015 (…)”, tal não configura um juízo de valor a impor a eliminação do facto.

II. A indemnização coberta pelo art.495 nº3 CC não se reconduz à prestação de alimentos a partir de uma obrigação de natureza familiar, pelo que os critérios de aferição divergem dos positivados para o direito dos alimentos, e para o cálculo indemnizatório serão convocadas as normas dos arts.564 e 566 nº3 do CC onde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.4) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita.

III. Sendo a indemnização pelo dano patrimonial futuro feita em capital, o recebimento imediato da totalidade da indemnização não implica uma automática dedução ao mesmo.

IV.Os danos não patrimoniais, arbitrados com apelo à equidade, devem ser dignamente compensados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.- Os Autores - AA e BB - instauraram acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus:

- VIA DIRECTA – COMPANHIA DE SEGUROS, SA.

- CC

- DD.

Alegaram, em resumo:

Em 11.09.2017, quando conduzia um motociclo a velocidade reduzida, na sua via de trânsito, EE foi embatido por um veículo ligeiro de passageiros que surgiu repentinamente do seu lado direito, sem aviso de qualquer espécie e desrespeitando o sinal de stop existente na respetiva via de trânsito.

A Ré CC conduzia então tal veículo ligeiro, o qual era propriedade do R. DD e encontrava-se segurado na R. Via Directa.

EE faleceu em virtude daquele embate, sendo que ele tinha à data 39 anos de idade e vivia em união de facto há vários anos com a A. BB, a qual estava então grávida do A. AA e vivia dos rendimentos de EE, sendo que os AA. sofreram e sofrem com o óbito de EE.

O motociclo ficou completamente inutilizado com o acidente de viação em causa.

Pediram a condenação dos Réus a pagarem solidariamente aos Autores:

- €100.000,00, a título de perda do direito à vida,

- €710.000,00, quanto a danos patrimoniais futuros ou perda da capacidade de ganho,

- €50.000,00, relativamente a danos não patrimoniais devidos à A. BB,

- €50.000,00, no que respeita a danos não patrimoniais sofridos pelo A. AA

- €5.000,00, a título de danos patrimoniais,

tudo acrescido de juros legais vencidos e vincendos à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

1.2. Os Réus contestaram defendendo-se, em síntese, por excepção, ao arguirem a ilegitimidade passiva dos Réus CC e DD, e por impugnação.

1.3.- No saneador julgou-se procedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva e absolveu-se da instância os Réus CC e DD

1.4.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu

condenar a Ré Seguradora:

“- (…) a pagar aos Autores a quantia total de € 415 000,00 (90 000+ 325 000) (quatrocentos e quinze mil euros), a título de dano morte e danos patrimoniais pela morte do seu companheiro e pai, respectivamente, a que acrescem juros de mora à taxa legal desde a presente decisão até efectivo e integral pagamento.

- (…) a pagar a cada um dos autores, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 40.000 (quarenta mil euros), a que acrescem juros de mora à taxa legal desde a presente decisão até efectivo e integral pagamento;

- (…) no pagamento do valor comercial do veículo sinistrado do falecido que se vier a determinar em liquidação ulterior de danos”.

1.5. – Autores e Ré recorreram de apelação e a Relação de Lisboa, por acórdão de 2/3/2023 julgando improcedente o recurso das AA. e parcialmente procedente o recurso da R. Seguradora, condenou a Ré Seguradora a pagar:

- Aos AA. BB e AA a quantia de 100.000€ (cem mil euros) pelo dano morte em si mesmo, quanto ao falecido EE;

-Ao A. AA a quantia de 50.000€ (cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais por si sofridos;

À A. BB a quantia de 50.000€ (cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais por si sofridos;

Ao A. AA a quantia 90,000€ (noventa mil euros) a título de danos não patrimoniais futuros;

À A. BB a quantia 165,600€ (cento e sessenta e cinco mil e seiscentos euros) a título de danos não patrimoniais futuros;

Mantendo no mais, quanto ao motociclo sinistrado e a juros moratórios, a decisão recorrida nos seus precisos termos.

As custas do recurso dos AA., na vertente de custas de parte, são suportadas pelos próprios AA., sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido.

As custas do recurso da R. Seguradora, na vertente de custas de parte, são suportadas por AA. e R. Seguradora na proporção de 11% e 89%, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido aos AA.

1.6. Os Autores recorreram de revista, com as seguintes conclusões:

1.- Partimos de dois pressupostos: de que – em sede de recurso de revista – a matéria de facto provada e não provada não pode ser beliscada e de que os A. A. a aceitam na íntegra, como provada e não provada.

2.- Tentamos chamar a atenção para as contradições que decorrem do teor de dois textos jurisprudenciais mobilizados pelas decisões tomadas na primeira instância e agora pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Trata-se do acórdão nº 1893/14.0... do S. T. J. de 19 de Outubro de 2016 citado pela Sentença de 30 de Junho de 2022 (fls. 21, §s 9º e 10º) e do acórdão nº 253/17.5... datado de 27 de Setembro de 2022 citado no Acórdão agora recorrido (fls. 49).

3- As duas decisões proferidas no procedimento em que nos inserimos servem-se destes dois textos jurisprudenciais para fundamentarem as suas, respectivas, deduções de 1,5% nos valores indemnizatórios, sem cuidarem de saber que estes mesmos valores indemnizatórios – sejam eles quais forem – jamais poderão vir a ser pagos de uma vez só e na íntegra; ou seja, jamais poderão vir a cumprir o requisito essencial, o cerne em que se fundam, precisamente, quer as decisões emitidas, quer aqueles Acórdãos mobilizados.

4. - E isto porquê? Porque a recorrida seguradora tem vindo a pagar em prestações e por conta os valores em que foi já condenada. Ou seja – é condição sine qua non para que aquela dedução de 1,5% se consume que o pagamento indemnizatório aconteça integralmente e de uma vez só. Quem o afirma, inequivocamente, são os textos jurisprudenciais citados, todos eles. Ora, a recorrida tem vindo a pagar tais valores, em prestações espaçadas de alguns meses (onze).

5.- A recorrida pagou € 35.000,00 em 24 de Novembro de 2021 (doc. 1) e pagou € 95.000,00 em 5 de Outubro de 2022 (doc. 2); não se sabendo quando voltará a pagar a próxima ou próximas.

6. - Quer-nos parecer que – objectivamente – estes argumentos para dedução daqueles 1,5% aos valores indemnizatórios caem, inevitavelmente, pela base.

7.- Por outro lado, aqueles mesmos dois Acórdãos superiores mobilizados pelas decisões proferidas em 30/06/2022 e em 03/03/2023 emitem opiniões radicalmente opostas: a primeira decisão jurisprudencial superior refuta a dedução dos putativos 10%, enquanto a segunda a defende, paradoxalmente.

8.- Ou seja – no interior deste longo procedimento, decisões superiores existem que se conflituam frontalmente no que toca à fundamentação daquela putativa dedução dos 10%, decidida, agora, pelo Acórdão recorrido.

9.- Esta contradição é frontal e evidencia a fragilidade, a vulnerabilidade, a subjectividade, a volatilidade da argumentação expendida.Seja como for, a decisão que se impugna assenta num pressuposto que é - objectivamente – erróneo: os pagamentos indemnizatórios efectuados e/ou a efectuar pela seguradora não foram e não poderão ser jamais integrais e de uma vez só.

10. – Tamanhas contradições e tão grosseiras inverdades fundamentam a intenção dos A. A. em recorrer do Acórdão proferido, neste particular: não aceitam qualquer dedução – nem 1,5%, nem 10% - aos valores indemnizatórios, uma vez que não está cumprido o pressuposto fáctico essencial que passa pelo pagamento integral e de uma vez só.

11- Reforça esta força recursiva, a circunstância de a recorrida ter protestado anexar aos autos ou uma forma de caução ou outra de garantia integral dos valores em que havia sido condenada, não o tendo feito. Veja-se o seu requerimento recursivo, pelo que a recorrida ludibriou não só o Tribunal como as partes, mormente os Autores.

12. – Por último, dir-se-á que são volúveis os argumentos pretensamente economicistas expendidos pelo Acórdão recorrido quando divaga subjectivamente acerca das taxas de juro antigas e novas, acerca das taxas inflacionistas antigas e recentes, acerca dos timings que são claramente muito falíveis. Quando o Acórdão opta pelo valor de 10% a abater aos valores indemnizatórios fá-lo de uma forma – evidentemente – subjectiva, não fundada e aleatória; como tal se impugna.

13.- Em suma – os A.A. aceitam a matéria considerada provada e não provada, os AA A. aceitam os valores atribuídos quer ao valor morte (€ 100.000,00), quer aos valores fixados como danos não patrimoniais a cada um dos A. A. (€ 50.000,00 a mãe e filho). Só não aceitam que aos valores indemnizatórios sejam abatidas quaisquer percentagens, nem 1,5%, nem 10%, uma vez que – factualmente e jurisprudencialmente – não existem fundamentos nem jurídicos, nem factuais para tal.

14.- Como tal, deve o Acórdão recorrido ser revogado na parte em que decidiu abater as percentagens – parcial de 1,5% e global de 10% - aos valores indemnizatórios sentenciados.

1.7. A Ré recorreu e revista, com as seguintes conclusões:

1- Em momento processual algum a A. BB cumpriu o ónus de alegar que a sua relação de união de facto com o falecido EE, já durava, à data do óbito deste, há mais de 2 anos;

2- As expressões utilizadas a tal respeito na petição inicial “alguns anos” e “vários anos” por serem vagas e conterem conceitos indeterminados (quantos anos? completos ou incompletos?), permitem considerar-se como legítimo e aceitável que no perímetro lógico do conteúdo de cada uma delas caibam períodos como, por exemplo um ano e 11 meses;

3- Em momento processual algum a A. BB cumpriu o ónus de provar que a sua relação de união de facto com o falecido EE, já durava, à data do óbito deste, há mais de 2 anos.

4- Pelo contrário, o que a A. BB disse no depoimento de parte que prestou e é nos autos incontornável e indesmentível, foi que ““conheci-o em 2015 através de um amigo comum. E começámos a falar. Eu voltei para a ... e começámos a corresponder-nos por mensagem. … E por causa dele decidiu parar de estudar na .... E escolhi Portugal. E vim em setembro de 2015… para começar a viver com ele. …”, o que significa que a A. não foi capaz de concretizar em que dia de setembro de 2015 é que começou a viver com o EE.

5- À míngua da prova que a tal título (duração da união de facto há mais de dois anos) competia à A. fazer nos autos, e que manifestamente a mesma não fez, recorreram os Exmos. Desembargadores, ao que denominam de “regras da experiência comum” para concluírem (?), de forma manifestamente especulativa e meramente conclusiva e objetivamente à medida, dos interesses processuais da A. BB, (em jeito de colmatação oficiosa da falta de cumprimento dos supra referidos ónus de alegação e de prova por parte da A.) pela seguinte redação para o facto provado nº 9: “nos primeiros dias de setembro, seguramente antes de 11 de setembro de 2015…”

6- O que fez ao arrepio do facto de que nunca a A. BB alegou nos autos, e muito menos comprovou que tal relação começou “nos primeiros dias de setembro, seguramente antes de 11 de setembro de 2015…”, bem antes pelo contrário, e ao arrepio de outras regras, também decorrentes da experiência comum, como aquelas segundo as quais, um momento tão importante na vida de uma pessoa, como o é o exato dia em que a mesma inicia uma união de facto com outra, fica indelevelmente registada na memória de quem a que a vive, da qual pelos anos vindouros a mesma não se esquece, e fica registada documentalmente em fotografias e mensagens (atos tão banais e tão simples de fazer já à data em que ocorreu, e de enviar usando um simples telemóvel), apesar do que a A. BB não conseguiu alegá-la e dizê-la (essa exata data) e demonstrá-la (as fotos e as mensagens) em qualquer sede dos autos!...

7- … Omissões estas quanto ao esforço de alegação e de prova por parte da A. BB, que só por si, deveriam ter determinado os Exmos. Desembargadores, em sede de apreciação crítica da prova produzida e do cumprimento (ou não), das regras de distribuição do ónus da prova a tirar como consequência que a A. nem sequer cumpriu o “minus” do que quanto à exata data de início da sua união de facto com o EE lhe competia demonstrar!

Sem conceder

8- A expressão “primeiros dias” contida na formulação dada pelo acórdão ora sob recurso ao facto provado nº 9, sendo indeterminada na sua formulação consubstancia um mero juízo de valor, e não uma exata datação de um facto e, para além disso, configura manifesta ambiguidade, razão pela qual não pode a mesma servir de fundamentação fáctica à conclusão (imprescindível para o sucesso da pretensão da A.) de que a união de facto entre esta e o EE já durava desde antes de 11 de setembro de 2015.

9- O advérbio “seguramente” aí também utilizado, para além de também não ter conteúdo fáctico, não tem sustentação em qualquer dos argumentos aduzidos no douto acórdão ora sob recurso, para efeitos de determinação da efetiva data de início da união de facto “sub judice”.

10-O facto nº 9 dado por provado, na redação que lhe é dada pelo acórdão recorrido se mostra constitucionalmente inquinado por meros juízos de valor, ou conceitos indeterminados, não podendo por isso servir de base ou fundamento a decisão que condene a Ré ora recorrente.

11-Ao ter redigido como redigiu o facto provado 9, o douto acórdão sob recurso não analisou criticamente a prova produzida, e a não produzida, nem retirou da mesma as ilações lógicas que devia ter tirado, bem antes pelo contrário, assim não tendo fundamentado corretamente tal decisão quanto aos factos;

12-Nessa medida o douto acórdão sob recurso, não só violou o disposto no artº 607, nº 4 do Código de Processo Civil, como, por outro lado, é nulo nos termos do disposto no artº 615, nº 1, als.b) e c), do referido diploma legal

13-Para além disso, e ainda quanto à redação que deu ao facto provado nº 9, o douto acórdão sob recurso não teve em conta, e nessa medida violou as regras de distribuição do ónus de alegação e também as de prova, ónus esses que competiam à A. BB e que a mesma manifestamente não cumpriu, e por isso, o douto acórdão sob recurso também viola o disposto nos artºs. 552, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil, e 342, nº 1 do Código Civil, regras essas que os Senhores Desembargadores deviam ter acautelado.

14-Mais viola o douto acórdão recorrido o disposto no artº 1º, nº 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio.

15-Em consequência de tudo o exposto deve, em sede de revista, ser proferido acórdão, que absolva a Ré ora recorrente de todos os pedidos formulados pela A. BB, em seu nome próprio.

16-Os valores arbitrados para ressarcimento dos danos sofridos pelo menor AA, em consequência da morte de seu pai, são muito exagerados, violando o critério e o modo como os mesmos foram calculados o disposto no artº 566, nº3 do Código Civil, devendo ser reduzidos nos seguintes termos:

a)- €.40.000 correspondentes ao valor aritmético de €34.846 (€5.807,53 x 1/3 x 18 (anos) arredondado por razões de equidade;

b)- montante a liquidar em momento posterior, mais precisamente logo que o mesmo perfaça 18 anos de idade, mas somente se então se mostrarem reunidas as condições e pressupostos que ao mesmo reconheçam o direito a alimentos a ser-lhe devido por seu pai caso o mesmo então estivesse vivo, mas somente até aos 25 anos, solução esta que respeita duplamente a Lei, nomeadamente aquela que, no que concerne à fixação do dano futuro, determina que o julgador deite mão da equidade para tal efeito.

17 - Ao assim não ter decidido a douta sentença proferida violou o disposto no artº 566. nº 3 do Código Civil.

Sem conceder,

18 - Para o caso de vir a ser entendido, no que se não concede, que também à Autora BB, seria devida, em conjunto com o menor, uma indemnização a título de danos patrimoniais pela morte do seu companheiro, o cômputo da indemnização devida à autora e filho menor nunca deveria ser superior a € 100.663,85 (rendimento anual liquido de € 5.807,53 x 2/3 x 39 anos, considerando a idade do falecido e a esperança média de vida de 78 anos para os homens = € 150.995,78 – 1/3 por antecipação do pagamento da indemnização de uma só vez)

19 - Ao assim não ter decidido o douto acórdão proferido violou o disposto no artº 566. nº 3 do Código Civil.

20 - No que concerne à compensação pelos danos de natureza não patrimonial, aceita a Ré ora recorrente que, sendo o A. menor o único titular do direito a ser compensado por tais danos, deve e mesma ser fixada em €80.000, a arbitrar ao mesmo para compensação da perda do direito à vida do seu progenitor, e o de €20.000 para compensação do seu dano não patrimonial próprio;

21 - Ao assim não ter decidido o douto acórdão proferido violou o disposto no artº 566. nº 3 do Código Civil.

22- Caso viesse a ser decidido que a A. BB tivesse direito a receber qualquer quantia a título de compensação pelo dano morte do EE, e por danos de natureza não patrimonial pela mesma diretamente sofridos em resultado do dito óbito, no que se não concede, o montante de €80.000 a arbitrar para compensação do dano de perda do direito à vida por parte do EE, deveria ser repartido em partes iguais entre a A. BB e o A. menor AA, e àquela arbitrado a título de compensação pelo seu próprio sofrimento o montante de €20.000.

23- Ao assim não ter decidido o douto acórdão proferido violou o disposto no artº 566. nº 3 do Código Civil.

Os Autores contra-alegaram no sentido da improcedência do recurso da Ré.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – Delimitação do objecto do recurso

As questões submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões, e que serão analisadas por ordem lógica, são as seguintes:

A. Na revista dos Autores:

A dedução na quantificação do dano patrimonial futuro.

B. Na revista da Ré:

A nulidade do acórdão;

A prova da união de facto- O facto descrito no ponto 9.- violação do art.607 nº4 CPC;

A quantificação dos danos.

2.2.- Os factos provados

1. No dia 11 de setembro de 2017, por volta das 19h 30 mts EE, nascido a ...de agosto de 1978, circulava pela Av. ...no sentido descendente S...- C..., conduzindo o motociclo de matrícula ..-..-EE, Suzuki GSX 1000;

2. Circulava pelo lado direito da sua faixa de rodagem quando, junto ao n.º 204, entroncamento com a Rua ..., o veículo ..-QQ-.., propriedade de DD, conduzido por CC se atravessou à sua frente, vindo a Rua ...;

3. A quem circulava na rua ..., como fazia a Ré CC, ao chegar ao entroncamento, apresentava-se um sinal de STOP (B2);

4. Ao aperceber-se de que o veículo QQ avançava na sua direção, não tendo imobilizado o seu veículo no sinal de STOP, o falecido EE travou não conseguindo ainda assim evitar a ocorrência do embate entre o seu motociclo e o veículo QQ;

5. Do embate resultou a morte de EE, ainda no local do acidente, pelas 20h e 53 minutos;

6. Por causa do referido acidente e subsequente falecido de EE foi levantado auto de notícia que deu origem ao NUIPC 276/17.4... do âmbito do qual foi proferido o despacho de fls. 34 v. e ss. que aqui se dá por integralmente reproduzido;

7. À data do acidente o EE tinha 39 anos de idade;

8. A Autora BB é ... de nacionalidade, veio para Portugal fazer Erasmus tendo conhecido o EE e se apaixonado;

9. Nos primeiros dias de setembro 2015, seguramente antes de 11 de setembro de 2015, BB e EE passaram a viver na mesma casa, em ..., partilhando a mesma cama e mesa, como se fossem marido e mulher, sendo que foram viver para a casa de ... no Verão de 2016;

10. Fruto do relacionamento entre a Autora BB e o falecido EE foi concebido o Autor AA;

11. À data do acidente a Autora BB encontrava-se grávida, tendo o menor AA nascido em ... de fevereiro de 2018;

12. O EE era alegre, jovial e bem-disposto;

13. Trabalhava na área do teatro, representação e comunicação;

14. À data do acidente o veículo ..-QQ-.. tinha a sua responsabilidade civil transferida para a Ré Via Directa S.A. através de contrato de seguro titulado pela apólice ...76;

15. À data do acidente o falecido EE era o sustento do seu agregado familiar com a Autora BB, sendo que esta, por vezes, recebia quantias monetárias, de montante não apurado, de familiares seus residentes na República ...;

16. O EE auferia mensalmente cerca de 1.000€, provenientes das funções que desempenhava no ..., de extras de festas de aniversários e aulas na escola de atores I...;

17. A família da Autora BB reside na ..., tendo cá apenas amigos e a família do EE;

18. À data do acidente a Autora BB e o falecido EE viviam uma história de amor, tendo iniciado um projeto de vida em comum;

19. Viviam um momento de grande felicidade com a gravidez da Autora;

20. A Autora sofreu de forma atroz com a perda do EE e ainda hoje vive a angústia dessa perda;

21. À dor e angústia da perda do seu companheiro juntou-se a angústia de saber que o seu filho nunca conhecerá o pai;

22. A circunstância de a Autora se encontrar num país que não é o seu e longe da sua família agravaram o seu sofrimento;

23. Porque a Autora BB e o EE não eram casados e o EE já havia falecido quando o AA nasceu houve necessidade que corresse termos um processo de averiguação oficiosa da paternidade que correu termos com o n.º 2535/18.0...;

24. Por sentença de 25.09.2019 foi reconhecido e declarado que AA é filho de EE;

25. A paternidade de AA, como sendo filho de EE encontra-se averbada no assento de nascimento do Autor AA, pelo averbamento n.º ... de 2019.11....;

26. O motociclo em que circulava o falecido EE no dia do acidente ficou inutilizado;

2.3.- Os factos não provados

a) Que minutos antes da morte EE tivesse telefonado para a companheira perguntando-lhe o que queria para o jantar de ambos;

b) Que instantes antes tivesse sido visto parado à beira da estrada a colher flores para oferecer à Autora BB;

c) Que com exceção da mãe do falecido EE, este e a Autora BB partilhassem amigos e familiares;

d) que à data do acidente o motociclo do falecido EE tivesse o valor comercial de €5000,00.

2.4. A nulidade do acórdão

A Ré revistante arguiu a nulidade do acórdão, com fundamento no art.615 nº1 b) e c) CPC, alegando que o facto nº 9, dado por provado, na redação que lhe é conferida pelo acórdão recorrido mostra-se constitucionalmente inquinado por meros juízos de valor, ou conceitos indeterminados, não podendo por isso servir de base ou fundamento a decisão que condene a Ré, e, nessa medida, a Relação ao dar tal redacção não analisou criticamente a prova produzida, e a não produzida, nem retirou da mesma as ilações lógicas que devia ter tirado, bem antes pelo contrário, assim não tendo fundamentado corretamente tal decisão quanto aos factos.

Como desde há muito se vem afirmando, as nulidades da sentença ou acórdão, taxativamente previstas no art.615 nº1 CPC, reconduzem-se a erros de actividade ou de construção da própria sentença ou acórdão, e não podem ser confundidos com erros de julgamento ( de facto e/ou de direito).

Verifica-se que a Recorrente para justificar a pretensa nulidade convoca, afinal, o erro de julgamento de facto, o que tanto basta para a inanidade da pretensão.

Porque o acórdão apresenta uma larga e aprofundada exposição sobre a valoração da prova que levou a dar como provado o facto descrito no ponto 9, não faz qualquer sentido imputar nulidade por falta de fundamentação.

Por outro lado, também carece de fundamento a nulidade plasmada no art.615 nº1 c) CPC, pois o acórdão não é ininteligível devido a qualquer ambiguidade, de tal forma que a própria recorrente o compreendeu perfeitamente.

Improcede a nulidade do acórdão.

2.5. A prova da união de facto - O facto descrito no ponto 9.- violação do art.607 nº4 CPC

A Ré/recorrente alega que a expressão “primeiros dias” contida na formulação dada pelo acórdão recorrido ao facto provado nº 9, sendo indeterminada na sua formulação consubstancia um mero juízo de valor, e não uma exata datação de um facto, e o advérbio “seguramente” aí utilizado, para além de também não ter conteúdo fáctico, não tem sustentação em qualquer dos argumentos aduzidos no douto acórdão ora sob recurso, para efeitos de determinação da efetiva data de início da união de facto.

Por isso, o facto nº 9 dado por provado, na redação que lhe é dada pelo acórdão recorrido mostra-se constitucionalmente inquinado por meros juízos de valor, ou conceitos indeterminados, não podendo por isso servir de base ou fundamento a decisão que condene a Ré ora recorrente.

A Relação deu como provado o seguinte facto:

“9. Nos primeiros dias de setembro 2015, seguramente antes de 11 de setembro de 2015, BB e EE passaram a viver na mesma casa, em ..., partilhando a mesma cama e mesa, como se fossem marido e mulher, sendo que foram viver para a casa de ... no Verão de 2016”.

O art.646 nº4 do anterior CPC estabelecia os limites de validade e atendibilidade das respostas à base instrutória, contendendo com as normas jurídicas do direito probatório e postulava a polémica distinção entre “questão de facto” e “questão de direito”, entendendo-se que nuns casos poderiam constituir matéria de direito e noutros matéria de facto.

Neste sentido, escreveu ANTUNES VARELA - “Há que distinguir nesses juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de facto) entre aqueles cuja emissão ou formulação se há-de apoiar em simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, do homem comum e aqueles que, pelo contrário, na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador.” E continua - “Os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto... Os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei (…) - para concluir que - “Se, porém, algum dos juízos de valor sobre factos (ou seja, sobre matéria de facto) for indevidamente incluído no questionário, a resposta do colectivo a esses quesitos não deve ser tida por não escrita, por aplicação do disposto no nº 4 do art. 646 do CPC, visto não se tratar de verdadeiras questões de direito” (RLJ ano 122, pág. 220).

A jurisprudência adoptou este critério, sustentando que se o apuramento de determinada realidade se efectua à margem da aplicação da lei, tratando-se apenas de averiguar factos cuja existência não depende da correcta interpretação a dar a qualquer norma jurídica, estaremos perante o domínio da matéria de facto E quando o mesmo termo é usado na linguagem jurídica e na linguagem comum, deve entender-se que foi empregue no sentido comum. De resto, também parte da jurisprudência admitia que as respostas a quesitos conclusivos não se podem dar por não escritas, por não se tratar de uma questão de direito e apenas esta é abrangida pela sanção do art.646 nº4 do CPC.

O actual CPC/2013 determina, nos termos do art.607 nº3 e 4 CPC, que a sentença deve discriminar os factos ( julgados provados e não provados) e também aqui alguma jurisprudência continua a seguir o critério de que não são factos as conclusões ou juízos valorativos, pelo que, nestas situações, a consequência deve ser a eliminação ( cf., por todos, Ac STJ de 28/9/2017 ( proc. nº 809/10), em www dgsi.pt – “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”.

No entanto, como já se afirmou no Ac STJ de 9/11/2022, do aqui relator (proc nº 9/17), em www dgsi) “a problemática da proibição dos factos conclusivos, tributária de uma concepção dicotómica artificial, tem vindo a ser abandonada por ausência de justificação actual, pois o facto como objecto de prova não pode ser separado do direito, enquanto facto juridicamente relevante, com características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse mesmo facto (…)”.

Ora, neste contexto, é por demais evidente que o facto descrito em 9 não enferma do vício apontado.

A Ré verdadeiramente o que pretende é impugnar o julgamento de facto como provado, de tal forma que chega a socorrer-se do depoimento da Autora BB (que transcreve parcialmente). No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito e não julga de facto, a não ser em situações excepcionais, conforme impõe o art.46 da Lei nº62/2013 de 26/8 (“Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece da matéria de direito” ), e se positiva expressamente nos arts..662 nº4, 674 nº3, e 682 nº2 CPC.Por isso, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça está limitada aos casos previstos no art.674 nº3 ( 2ª parte) e 682 nº3 CPC, ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ( isto é, violação das regras direito probatório material) , reenvio do processo para ampliação dos factos ( devido ao vício da insuficiência ) ou contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica.

Daqui resulta que o Supremo Tribunal de Justiça não pode interferir no juízo que a Relação faz com base na reapreciação dos meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como os depoimentos testemunhais, documentos sem força probatória plena ou uso de presunções judiciais.

2.6. – O dano patrimonial futuro

A Recorrente questionou a comprovação da união de facto entre a Autora e o falecido EE, mas fê-lo no pressuposto da invalidação do facto julgado provado descrito no ponto 9.

Demonstrando-se que “Nos primeiros dias de setembro 2015, seguramente antes de 11 de setembro de 2015, BB e EE passaram a viver na mesma casa, em ..., partilhando a mesma cama e mesa, como se fossem marido e mulher, sendo que foram viver para a casa de ... no Verão de 2016” está claramente comprovada a situação de união de facto, nos termos do art.1 nº2 da Lei nº 7/2001 de 11/5.

O art.495 do CC atribui a indemnização por danos patrimoniais a terceiros em caso de morte ou lesão corporal, nomeadamente – “Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos do lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural” ( nº3 ).

Quanto à incidência subjectiva da titularidade do direito pelo dano de perda de alimentos, o nº3 do art.495 delimita duas categorias:

A primeira abrange não só as pessoas que, no momento da lesão, podiam exigir alimentos ao lesado, mas também aqueles que só mais tarde viriam a ter esse direito, se o lesado fosse vivo, o que nos remete para o elenco do art.2009. Como refere ANTUNES VARELA, “se a necessidade de alimentos, embora futura for previsível, nenhuma razão há para que o tribunal não aplique a doutrina geral do nº2 do art.564, e mesmo que a necessidade futura não seja previsível, também não há razão para isentar o lesante da obrigação de indemnizar a pessoa carecida de alimentos do prejuízo que para ele advém da falta da pessoa lesada “ ( Das obrigações em Geral, vol.I, 9ª ed., pág.647 );

A segunda categoria de terceiros reporta-se às pessoas a quem o lesado prestava alimentos no cumprimento de uma obrigação natural, ou seja, “quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça “ ( art.402 do CC ).

Coloca-se a questão de saber se, para efeitos do disposto no art.495 nº3, o direito de indemnização pela perda de alimentos pressupõe, como facto constitutivo, apenas a comprovação da qualidade do sujeito de que depende a possibilidade legal do exercício de alimentos ou também do requisito cumulativo da efectiva necessidade dos mesmos.

Como correctamente se salientou no acórdão recorrido, a Jurisprudência tem entendido, a este propósito, bastar tão somente a comprovação da qualidade do sujeito, pois, a não ser assim, o direito de indemnização estaria sempre dependente do reconhecimento prévio do direito a alimentos e, por outro lado, o que está em causa é a indemnização do dano patrimonial pela perda dos mesmos, em consequência do falecimento do lesado.

O acórdão recorrido arbitrou à Autora BB o valor de € 165.600,00 e ao Autor AA o montante de € 90.000,00, a título de dano patrimonial futuro pela privação do direito a alimentos.

Tais valores foram quantificados com base na equidade (art.566 nº3 CC ) para a qual se levou em conta uma percentagem em termos de dedução, devido à disponibilidade imediata e da totalidade do montante indemnizatório.

Diz o acórdão:

“Nestes termos, quanto à concreta indemnização por danos patrimoniais futuros, relativamente ao A. AA, tendo em conta que o mesmo beneficiaria de 1/3 do referido rendimento de 12.000€ anuais, ou seja, 4.000€/ano, (12.000€:3), durante 25 anos da sua formação escolar e profissional e deduzindo ao resultado assim obtido 10%, correspondente à disponibilidade imediata e total do dinheiro, conclui-se que a indemnização por danos patrimoniais futuros deve ser fixada em €90.000[(4.000€x25) - (4.000€x25x0,1)].

(…)

Quanto à A. BB, conforme referido, a esperança de vida do falecido EE era de 78 anos e o mesmo tinha 39 anos aquando do seu óbito, pelo que se esperava que ele vivesse mais 39 anos (78-39) após o fatídico dia, pelo que a indemnização pelos respetivos danos patrimoniais futuros deve respeitar àqueles 39 anos.

Desses 39 anos, 25 anos coincidiriam com a formação universitária e profissional do A. AA e os restantes 14 anos diriam respeito a período em que o agregado familiar em causa seria previsivelmente constituído tão-só pelo falecido EE e pela sua companheira, aqui A. BB.

Quanto àquele período de 25 anos, a A. BB beneficiaria previsivelmente de 1/3 do rendimento do EE, isto é, 4.000€/ano (12.000€:3), ao passo que nos restantes 14 anos beneficiaria estimativamente de 1/2 daquele rendimento, ou seja, 6.000€/ano(12.000€:2).

Feita a respetiva liquidação, levando em conta a apontada dedução de 10%, conclui-se que relativamente à A. BB a indemnização por danos patrimoniais futuros deve ser fixada em 165,600€ - [(4.000€x25) -(4.000€x25x0,1)] + [(6.000€x14) - (6.000€x14x0,1)]”.

Os Autores pedem a revogação do acórdão na parte em que decidiu abater as percentagens – parcial de 1,5% e global de 10% - aos valores indemnizatórios sentenciados, com a alegação de que não há fundamento legal.

Por sua vez, a Ré impugna os valores arbitrados, pedindo (tal como o fizera já na apelação) que quanto ao Autor AA se fixe em € 40.000,00 até perfazer 18 anos de idade e liquidando-se posteriormente o rendimento necessário para os alimentos até aos 25 anos de idade.

Em primeiro lugar, importa acentuar que a indemnização coberta pelo art.495 nº3 CC não se reconduz à prestação de alimentos a partir de uma obrigação de natureza familiar, pelo que os critérios de aferição divergem dos positivados para o direito dos alimentos (cf., por ex., 14/10/2010 ( proc nº 845/06), em www dgsi ).

Depois, para o cálculo indemnizatório serão convocadas as normas dos arts.564 e 566 nº3 do CC onde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.4) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita.

O direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, verdadeira law in action, com o imprescindível recurso ao “pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida.

Reportado especificamente à quantificação da indemnização através de juízos de equidade, LARENZ afirma que se exige do juiz a formulação de “juízos de valor”, devendo orientar-se “em primeiro lugar por casos singulares e sua apreciação na jurisprudência, mas seguindo para além disso, a sua própria intuição axiológica” (Metodologia da Ciência do Direito, pág.335).

Considerando a factualidade apurada ( cf pontos 7 a 13, 15 a 25) os valores estimados pela Relação mostram-se prudentes, tendo em conta a finalidade da indemnização e o juízo concreto de equidade ( que se acolhe) está justificado, e como se decidiu no Ac STJ de 19/10/2021 ( proc nº 098/16), em www gsi ) – “O juízo prudencial e casuístico de equidade firmado nas instâncias deve, por regra, ser mantido, salvo se o julgador não se tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade”.

Para o juízo de equidade, o acórdão procedeu previamente à dedução de 10% com o argumento de que os lesados recebem de uma só vez e, portanto, ficarem com a disponibilidade imediata da totalidade do dinheiro.

A jurisprudência tem considerado que o recebimento imediato da totalidade da indemnização, ou seja, o cumprimento integral da prestação de uma vez só, confere ao lesado a rentabilização do capital, por forma a que se mostre esgotado no final do respectivo período. Na base deste entendimento está o princípio da proibição do enriquecimento injustificado quando a indemnização pelo dano futuro continuado é feita em capital, e não em renda, pois ela concretiza-se num montante único calculado em função da medida e duração previsível do dano futuro, em que o capital, correspondente àquele que aplicado financeiramente gere um rendimento, se esgote no final do período, sabido que a lei não prevê a possibilidade de revisão da indemnização sob a forma de capital.

Os Autores argumentam, além do mais, não estar verificada a condição de recebimento de uma vez só para operar tal dedução, mas a objecção não procede visto que a indemnização (arbitrada no acórdão recorrido) foi fixada em capital e não em renda.

Esta questão convoca, em tese geral, o princípio da proibição do enriquecimento em sede de responsabilidade civil, que vem sendo objecto de críticas, argumentando, em síntese, por exemplo, que não pode ser erigido neste âmbito como princípio geral porque não aplicável à indemnização por danos não patrimoniais, a eventual vantagem ou o enriquecimento do lesado não provém do facto gerador da responsabilidade civil, mas da própria indemnização, ou seja, sendo o enriquecimento o efeito do cumprimento da indemnização não deverá concorrer para o cálculo do dano, o enriquecimento do lesado não precede o cálculo da obrigação de indemnizar, é posterior ao cumprimento, o enriquecimento pode nem sequer ocorrer, e não deve ser o lesado a assumir o risco da não verificação futura da vantagem restituindo de imediato ao lesante ( aquando do pagamento da indemnização ) um enriquecimento que não se sabe se ocorrerá ( cf., neste sentido, MARIA DE LURDES PEREIRA, Direito da Responsabilidade Civil, 2022, pág.513 e segs. ).

Contudo, a jurisprudência do Supremo tem vindo a considerar adequada, em face da conjuntura financeira actual, uma dedução de 10% (cf., por ex., Ac STJ de 19/5/2020 ( proc nº 3907/17), Ac STJ de 30/3/2017 ( proc nº 2233/10), em www dgsi.pt ) e foi este o critério seguido no acórdão recorrido.

Importa, no entanto, ter presente, como se afirma no Ac STJ de 25/5/2017 ( proc nº 8689/10), em www dgsi, que – “A regra ou princípio geral segundo a qual o benefício da antecipação deve descontar-se na indemnização arbitrada pelo dano patrimonial futuro deve ser adequada às circunstâncias do caso concreto, podendo nomeadamente tal benefício ser eliminado ou apagado perante a existência provável de um particular agravamento ou especial onerosidade dos danos patrimoniais futuros expectáveis que importa compensar com recurso a critérios de equidade”.

Parece que na situação em análise não se justifica operar tal dedução, mesmo como tópico adjutor da equidade, dada a finalidade da indemnização, sabido que as necessidades patrimoniais de uma criança não são as mesmas ao longo do tempo, seguramente maiores com o decurso da idade, pelo que a extensão dos danos patrimoniais futuros para cada um dois Autores será evolutiva, sendo flutuantes as condições financeiras de mercado.

Considerando a factualidade apurada, estima-se, em equidade, o valor dos danos patrimoniais futuros, para o Autor AA em € 100.000,00 e para a Autora BB em € 180.000,00, actualizados nesta data.

2.8.- O dano pela perda do direito à vida ou “dano morte”

O acórdão recorrido quantificou o chamado dano morte em € 100.000,00.

Os Autores aceitam-no, mas a Ré Seguradora impugna-o, considerando-o exagerado, reclamando o valor de € 80.000,00.

Não está em causa a ressarcibilidade do dano não patrimonial constituído pela perda do direito à vida (art.496 nº3 CC), que é o mais importante dos direitos fundamentais e o dano morte, no plano dos interesses da ordem jurídica, o prejuízo supremo.

A jurisprudência portuguesa, sobretudo a partir de meados da década de 90 ( do século passado) deu um salto qualitativo, aumentando progressivamente a indemnização pela perda do direito à vida, como se resumiu no Ac do STJ de 17/2/2002 ( www dgsi.pt/jstj ), com indicação de diversas decisões. Como critério adjuvante para a determinação equitativa do dano, a jurisprudência passou a socorrer-se da Resolução do Conselho de Ministros sobre o caso do acidente de Entre-os Rios de 4/3/2001, segundo o parecer do Provedor de Justiça ( Diário da República, n.º 96, 2ª série, de 24 de Abril de 2001 - resumo, parte VIII, páginas 7142 ). Funcionando então o acidente de Entre-os-Rios como uma espécie de “precedente” ou “premissa endoxal”, não pode deixar de se entender hoje a posterior evolução do custo de vida, os aumentos dos prémios de seguros, e sobretudo o princípio da dignidade da compensação dos danos.

Se já em 2013 a jurisprudência passou a atribuir valores que oscilam entre € 50.000,00 e € 80.000,00, chegando a atingir € 100.000,00 para vítimas jovens ( cf., por ex., Ac STJ de 29/10/2013 ( proc. nº 62/10.2TBVZL ), Ac STJ de 18/12/2013 ( proc. nº 1749/06.0TBSTS), em www dgsi.pt ), a posterior evolução e o princípio da actualidade reclamam claramente valores superiores.

Sendo assim e partindo destes valores de referência, é evidente que o valor arbitrado de € 100.000,00 não se mostra exagerado, justificando-se hoje uma quantificação mais elevada.

2.9.- Os danos não patrimoniais

O acórdão fixou, a título de dano não patrimonial, o valor de € 50.000,00 para cada um dos Autores (BB e AA), mas a Ré Seguradora considera exagerado, reclamando o montante de € 20.000,00.

Os danos não patrimoniais, arbitrados com apelo à equidade, devem ser dignamente compensados.

Importa realçar, para o efeito, que a morte do EE pôs termo ao um projecto de vida em comum da Autora BB e que o menor FF crescerá órfão de pai, como bem se salientou no acórdão recorrido- “Nestes termos, na situação presente este Tribunal da Relação de Lisboa não pode deixar de considerar a circunstância do A. AA crescer sem nunca conhecer o pai, o que seguramente marcará para sempre a sua vida, bem como o facto da A. BB ter sido abruptamente impedida, de forma definitiva, de realizar um projeto de vida que havia encetado há pouca mais de dois anos, tudo sucedendo em razão de conduta culposa da condutora do veículo seguro pela Recorrente Seguradora”.

O valor estimado no acórdão recorrido está dentro dos padrões jurisprudenciais, devendo manter-se.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar procedente a revista dos Autores e improcedente a revista da Ré, e revogando, em parte, o acórdão recorrido:

- Condenar a Ré a pagar ao Autor AA, a título de dano patrimonial futuro, o montante de € 100.000,00, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a prolação deste acórdão.

- Condenar a Ré a pagar à Autora BB, a título de dano patrimonial futuro, o montante de € 180.000,00, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a prolação deste acórdão.

- Confirmar o acórdão recorrido quanto à demais indemnização, arbitrada a título de danos não patrimoniais.


2)


Condenar a Ré pelas custas das revistas.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Outubro de 2023.


Jorge Arcanjo (Relator)

Maria João Tomé

António Magalhães