Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4688-B/2000.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LETRA EM BRANCO
AVAL
RELAÇÕES IMEDIATAS
EXCEPÇÃO DO PREENCHIMENTO ABUSIVO
ONUS PROBATÓRIO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. Em execução fundada em título de crédito, invocado pelo exequente como modo de demonstração da respectiva relação cambiária, literal e abstracta, que constitui verdadeira causa de pedir da acção executiva – e mostrando-se respeitados os pressupostos e condições de que a respectiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo, - não carece o exequente de alegar complementarmente, no requerimento executivo, os factos atinentes à relação causal ou subjacente à emissão daquele título cambiário, sendo, porém, lícito ao executado/ embargante opor ao exequente/embargado excepções fundadas nesta relação, desde que nos situemos no plano das relações imediatas.

2.Sendo a execução instaurada pelo beneficiário de letra subscrita e avalizada em branco, e tendo a avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, tal como o sacador, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título, cabendo-lhe, porém, o ónus da prova dos factos constitutivos dessa excepção.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.AA deduziu embargos de executado no âmbito da execução para pagamento de quantia certa que lhe era movida pela exequente U...... M.... , Publicidade, Lda, com fundamento na qualidade de avalista da letra dada à execução, no montante de 249.166.180$00.
Os embargos foram liminarmente admitidos, contestando-os a embargada, vindo, após audiência final, a serem julgados improcedentes.
Inconformada, a embargante apelou, tendo a Relação determinado a anulação do processado na 1ª instância, a fim de que as partes pudessem ser convidadas a aperfeiçoar os articulados apresentados, completando-se e densificando-se a matéria de facto tida por relevante para a apreciação dos embargos deduzidos.
Proferido despacho nesse sentido, nos termos do art. 508º, nº3, do CPC, foram apresentados pelos litigantes novos articulados - petição de embargos e contestação destes; procedeu-se ulteriormente a repetição da audiência, no termo da qual foi proferida sentença a julgar os embargos improcedentes por não provados.

2. Novamente inconformada, a executada/embargante apelou, tendo, todavia, a Relação negado provimento ao recurso – sendo deste acórdão que vem interposta a presente revista, que a recorrente encerra com as seguintes conclusões:

O Acórdão recorrido deve ser revogado devendo, em consequência, ser proferida decisão que, julgando procedentes por provados do Embargos de Executado, seja a Embargante absolvida da execução e pelos seguintes motivos:
1. Na sua petição de Embargos à execução invocou a Recorrente, na sua qualidade de avalista de uma letra, que estávamos no domínio das relações imediatas e como tal era-lhe lícito invocar perante a Exequente a excepção da inexistência da obrigação subjacente entre ambos;
2. E baseando-se o chamado pacto de preenchimento da letra na existência de facturação vencida e não paga, havia que provar o valor da facturação, data de vencimentos e as demais condições de pagamento;
3. Este entendimento veio a ser sufragado por Acórdão da Relação de Lisboa proferido nestes autos, o que levou a que fosse elaborada nova p. i. e nova contestação com a invocação de factos concretos relativos à referida facturação que, por isso mesmo, foram seleccionados na nova Base Instrutória dando origem aos novos artigos 5 a 13;
4. Entendeu-se nesse douto Acórdão que caberia à exequente Embargada, porque constitutivos do reclamado direito elencar as quantias, os cálculos concretos com o respectivo suporte documental ou conta corrente reportados à alegada facturação cujo saldo determinou o preenchimento da letra;
5. Discutida a causa, a resposta dada pelo Tribunal foi " não provado";
6. O Acórdão ora recorrido esqueceu este aspecto fundamental para a decisão, isto é, de que a
Embargada não fizera prova dos factos constitutivos do seu direito, ónus que lhe competia;
7. Perante essa ausência de prova e estando-se no domínio das relações imediatas, o preenchimento da letra é abusivo porque a quantia nele aposta não está provada e não é determinável em nenhum dos seus pressupostos;
8. Por isso, contrariamente ao decidido, a Embargante infirmou o preenchimento regular da letra e provou o preenchimento abusivo quanto ao valor incorporado no titulo,
9. Acresce que o título dado á execução não incorpora uma obrigação certa, liquida e por isso exigível, requisitos da obrigação exequenda, deste modo havendo fundamento para a oposição à execução nos termos do artº.s 816 do CPC actual, anterior art.ºs 815;
10. Ao não ter assim decidido, houve violação ou, pelo menos errada interpretação designadamente dos seguintes preceitos legais: artigos l.9,10.2 e 17.2 da L. U. L. Liv.; artigos 02 e 816 (anterior 815 ) do Cód. Proc. Civ. e art.s 342 do Cód. Civ.
3. As instâncias fizeram assentar a decisão do litígio na seguinte matéria de facto:

1- a exequente é portadora da letra constante de fls. 9 da execução, a qual foi subscrita pela embargante e demais executados sem que lhe tenha sido aposta a data de emissão, vencimento e importância;
2- a embargante assinou a carta constante de fls. 10, dos autos de
execução, com os seguintes dizeres:
«À Universal Média Portugal, à Att. Exma. Srª Dª. BB.
Esta letra destina-se em princípio a caucionar o valo da dívida à V/ empresa, Universal M...., P......Lda., relativamente a facturação vencida e não paga após 90 dias contados a partir do último dia do mês a que disserem respeito e respectivos juros à taxa de 12% contados após os 55 dias iniciais de crédito e estabelecidos nas facturas.
Deste modo autorizamos desde já antecipadamente a Universal Media Publicidade Lda. a preenchê-la e a apresentá-la à cobrança do Banco Internacional do Funchal S.A., Departamento de Benfica, número da conta 000000000, em caso de não pagamento do débito aceitante.
Com os melho rescumprimentos, subscrevemo-nos comelevada estima e consideração.
Atentamente.
Alfragide, 96/Agosto/28»;
3- a embargante apôs a sua assinatura nos documentos juntos aos autos
de execução a fls. 9 e 10 a pedido do co-executado CC;
4- a embargante desconhecia quaisquer acordos entre a primeira executada e a exequente;
5- desde altura não concretamente apurada entre finais de 1995 e
inícios de 1996 que o executado proibiu a embargante de frequentar
as instalações da executada sociedade e desde então a embargante
nada mais soube dos negócios da mesma;
6- a embargante deixou de exercer qualquer tarefa ou função na
sociedade primeira executada desde data não concretamente apurada mas que se situa entre finais de 1995 e início de 1996;

7- a embargante encontra-se divorciada do co-executado CC
por sentença transitada em julgado em 17 de Fevereiro de 1997, que
dissolveu o seu casamento;
8- a data de emissão, de vencimento e a respectiva importância foram
apostas no documento de fls. 9 dos autos principais pela exequente,
que procedeu ao respectivo preenchimento.
C

4.No presente litígio, é inquestionável que a responsabilidade patrimonial imputada à ora embargante assenta na qualidade de avalista da letra dada à execução , a qual foi por ela subscrita em branco e ulteriormente preenchida pela entidade exequente, que no título figura como sacador.
O tema da exequibilidade dos títulos de crédito pode encarar-se segundo duas perspectivas jurídicas bem diferenciadas – que importa analisar liminarmente para remover quaisquer equívocos . Assim:

A) Em primeiro lugar, podem os mesmos surgir na execução como verdadeiros e próprios títulos de crédito, sendo invocados pelo exequente como modo de demonstração da respectiva relação cambiária, literal e abstracta, que constitui verdadeira causa de pedir da acção executiva – sendo, para tal, obviamente necessário que se mostrem integralmente respeitados todos os pressupostos e condições de que a
respectiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo.
Nesta situação, o título executivo é uma peculiar categoria de documentos particulares, regidos por uma disciplina específica, decorrente da sua especial segurança formal e fiabilidade, e a «causa petendi » da acção executiva é a relação creditória neles incorporada, com as suas características próprias, em larga medida decorrentes da literalidade e abstracção das obrigações cartulares por eles documentadas.

B) Em segundo lugar, podem valer os títulos de crédito que não obedeçam integralmente aos requisitos impostos pela respectiva LU como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que os factos constitutivos desta resultem do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo, revelando plenamente a verdadeira «causa petendi» da execução e propiciando ao executado efectiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório : como é evidente, esta perspectiva funcionará nos casos em que a declaração de vontade consubstanciada no título de crédito não puder valer como declaração cartular válida e eficaz, não beneficiando, consequentemente, das características da literalidade e abstracção– o que naturalmente implica para o exequente o ónus de invocar e demonstrar os factos constitutivos da relação fundamental que constitui a verdadeira causa de pedir da execução.

Neste caso, o documento assinado pelo devedor constitui quirógrafo de uma obrigação causal cujos elementos constitutivos essenciais têm de ser adquiridos, em complemento do título executivo, por iniciativa tempestiva e processualmente adequada do próprio exequente, sendo alegados no requerimento executivo sempre que não resultem do próprio título ; é, aliás, neste tipo de situações que ressalta, com maior evidência, a diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo e de causa de pedir da acção executiva , sendo o primeiro integrado por um documento particular, assinado pelo devedor, que - embora não contenha um expresso e directo reconhecimento da dívida exequenda - indicia a existência de uma relação obrigacional que o vincula no confronto do exequente ; e a segunda consubstanciada pela própria relação obrigacional que, não resultando, em termos auto-suficientes, daquele título, é introduzida no processo através de um verdadeiro articulado, complementar do documento em que execução se funda.

Ora, na situação dos autos – sendo manifestamente válida, no plano cambiário, a figura da letra assinada em branco, como claramente refere o acórdão recorrido, - a letra avalizada surge como verdadeiro e próprio título cambiário, documentando a própria relação cartular, literal e abstracta , que constitui o fundamento da execução instaurada – e não obviamente como mero quirógrafo da relação causal subjacente, porventura existente entre as partes, cujos factos constitutivos carecessem de ser alegados complementarmente pelo exequente no requerimento executivo.
Isto não inibe obviamente o executado de, nos embargos que deduza, - e desde que nos situemos naturalmente no plano das relações imediatas, - opor ao exequente as excepções de direito material que possua - entre as quais se situa a excepção dita de preenchimento abusivo do título assinado em branco - fundadas na dita relação subjacente, cabendo-lhe naturalmente, por se tratar de factos impeditivos ou extintivos, o respectivo ónus de alegação e prova.

Implicam estas considerações preliminares que a sorte da presente revista depende da solução a dar a estas duas questões:

- a invocação da excepção de preenchimento abusivo ocorreu ainda no âmbito das relações imediatas entre sacador da letra e avalista?

- cumpriu a embargante o ónus probatório que sobre si recaía , no que respeita aos factos consubstanciadores da dita excepção?

Entendemos que a resposta à primeira questão deve ser positiva, pelo facto de estar assente que a avalista / embargante assinou a carta que incorpora o pacto de preenchimento da letra – e da qual resulta a substância e natureza do negócio subjacente à respectiva emissão (pagamento de facturação vencida e não tempestivamente liquidada, decorrente de relações comerciais entre as sociedades exequente e 1ª executada) : ou seja, a avalista figura como parte no dito pacto de preenchimento – pelo que, como se afirma, por exemplo, nos Acs. deste Supremo de 12/2/09 (P. 07B4616) e de 11/2/10 (P. 1213-A/2001.L1.S1), sendo a execução instaurada pelo beneficiário do título subscrito e avalizado em branco e tendo o avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, tal como o subscritor, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título.

Só que – como flui de jurisprudência uniforme e reiterada – cabe naturalmente ao embargante o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos da excepção que invoca : como se afirma, por exemplo, no acórdão deste Supremo de 20/5/2010 (P. 11683/06-8TBOER.A.L.1):

Por se tratar de excepção de direito material, o preenchimento abusivo deve ser alegado e provado pelo oponente (embargante) a quem cumpre demonstrar que o montante foi inscrito ao arrepio do acordado.
Para o exequente basta a não demonstração pelo demandado de que o pacto de preenchimento foi incumprido, que o título ainda não se encontra em circulação, valendo-lhe, no mais, os critérios de incorporação, literalidade, autonomia e abstracção.

Ora, perante a matéria de facto fixada pelas instâncias, é manifesto que a embargante não logrou demonstrar que, sendo o título efectivamente incompleto no momento originário, o portador violou o acordo através do qual as partes ajustaram os termos em que deveria concretizar-se e definir-se a obrigação cambiária, desde logo a fixação do seu montante : cabia-lhe, na verdade, o ónus probatório sobre a matéria de facto que alegou na petição de embargos aperfeiçoada, na sequência da procedência do primeiro recurso, - e que não cumpriu, face à resposta negativa a todos os pontos da base instrutória, consubstanciados nos factos 5 e seguintes.

E não pode obviamente extrair-se, como bem refere o acórdão recorrido, qualquer vinculatividade no processo quanto às regras de repartição do ónus da prova entre as partes no momento da definitiva composição do litígio ao entendimento que, porventura, poderá ter estado subjacente ou implícito ao acórdão da Relação de 6/2/07 - cujo objecto se esgotou naturalmente no decretamento da anulação do julgamento primeiramente realizado, a fim de que a matéria de facto alegada pelas partes pudesse ser esclarecida e ampliada – tendo obviamente o Tribunal, na fase do julgamento definitivo da causa, de aplicar as regras sobre a repartição do ónus probatório entre os litigantes que considere adequadas.

5. Nestes termos e pelo fundamento apontado improcede a presente revista.
Custas pela recorrente, sem que tal determine preclusão do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 23 de Setembro de 2010

Lopes do Rego (Relator)
Barreto Nunes
Orlando Afonso