Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4845/12.0TBSTB.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE VIGILÂNCIA
OBRIGAÇÃO DE MEIOS
INCUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR / CONTRATOS EM ESPECIAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 798.º, 799.º, N.º 2, 1154.º- A, 1156.º, 1157.º E SS..
D.L. N.º 35/04, DE 21-2 (CUJA ÚLTIMA ALTERAÇÃO FOI INTRODUZIDA PELO D.L. N.º 114/11, DE 30-11, E QUE ENTRETANTO FOI REVOGADO E SUBSTITUÍDO PELA LEI N.º 34/13, DE 16-5): - ARTIGO 2.º, N.º 1, AL. A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 3-3-2016, DE 3-6-2014, DE 15-12-2011 E DE 15-11-2012, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Salvo convenção diversa, o contrato de prestação de serviços de vigilância implica para a prestadora dos serviços o cumprimento de uma obrigação de meios que se traduz na realização das operações instrumentais necessárias a proteger o objecto do contrato.

2. À parte que formula o pedido de indemnização fundado no incumprimento do contrato de prestação de serviços de vigilância incumbe o ónus da prova desse incumprimento (art. 799º, nº 2, do CC).

3. Tendo sido acordada a prestação de serviços de vigilância relativamente a materiais para execução de cofragens depositados ao longo de uma auto-estrada em construção, numa extensão de 3 kms, com utilização de um único vigilante, durante o período nocturno, fins-de-semana e feriados, e provando-se que o vigilante efectuava rondas pelos diversos locais onde os materiais estavam depositados, não pode considerar-se demonstrado o incumprimento da obrigação (de meios) assumida pela empresa de serviços de vigilância.

4. O facto de ter sido furtado por terceiros diversos material de cofragem de grandes dimensões não permite concluir, por si, que tal se deveu ao incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação de vigilância.

Decisão Texto Integral:

I – AA - Soc. de Construções Unipessoal, Lda, interpôs contra BB - Comp. de Segurança Privada, Ldª, e CC - Comp. de Seguros, SA, agora denominada Comp. de Seguros DD, SA, acção declarativa pedindo a sua condenação no pagamento solidário da quantia de € 159.546,54 e juros de mora contados desde 1-8-12.

Alegou que foi contratada para executar uma obra de grandes dimensões na A-12 e que para execução dessa obra necessitou de alugar material de cofragem a outra empresa. Como o volume dos materiais alugados era elevadíssimo, contratou a 1ª R. para assegurar a vigilância desses materiais. Mas quando a A. começou a proceder à devolução dos materiais alugados verificou que tinha sido furtado material no valor total de € 159.546,54.

A 1ª R. tinha a responsabilidade civil transferida para a R. Seguradora, razão por que ambas são solidárias no pagamento do material furtado.

A 1ª R. apresentou contestação dizendo que o material referido pela A. ficava depositado no chão, ao ar livre pela extensão de 4,5 km e que o vigilante efectuava rondas contínuas nos diversos locais que mediavam entre 1 h 30 e 2 h, tendo a A. conhecimento de ser essa a forma de a R. prestar os seus serviços. Os seus vigilantes foram cuidadosos e diligentes no exercício das suas funções, negando qualquer responsabilidade pelo sucedido.

Contestou a R. Seguradora, impugnando toda a matéria alegada pela A., com excepção da existência do contrato de seguro.

Foi proferida sentença que absolveu a R. Seguradora e condenou a R. BB a pagar à A. a quantia total de € 159.546,54, apurando-se em liquidação de sentença qual a parte já paga pela A. à EE Portugal - Cofragens, Ldª, e qual o valor que ainda está em dívida à mesma, sendo a R. imediatamente responsável pelo pagamento dos montantes já liquidados e ficando obrigada a entregar à A. o valor dos pagamentos futuros mediante apresentação por esta do respectivo comprovativo.

A R. BB apelou, mas a Relação confirmou a sentença.

A mesma R. interpôs recurso de revista o qual foi admitido em via excepcional, suscitando-se as seguintes questões:

a) Determinação da parte sobre quem recai o ónus da prova do incumprimento da obrigação de vigilância, como obrigação de meios e não como obrigação de resultado;

b) Aferição da existência de incumprimento dessa obrigação por parte da 1ª R. e da elisão da presunção de culpa.

Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. A A. é uma sociedade comercial cujo objecto é a construção de edifícios preparação de locais de construção, construção de estradas e pistas de aeroportos, construções de vias férreas, construções de pontes e túneis construções de redes (doc. nº 1 junto com a p.i.).

2. Entre a A. e FF Sociedade de Construções, SA, foi celebrado o acordo que constitui o doc. nº 2 junto com a p.i., tendo por objecto a construção da A-12, Auto-estrada Setúbal/Montijo Sul, lanço nó da A-2/A-12 Setúbal (EN-10) ligação ao Alto da Guerra.

3. Por a obra referida em 2. dever ser realizada numa auto-estrada, os materiais necessários à sua execução ficavam armazenados nas bermas onde os trabalhos estavam, a cada momento, a ser realizados.

4. Para a execução da obra, e dadas as suas grandes dimensões, a A. necessitou de proceder ao aluguer de inúmeros materiais de cofragem à empresa EE Portugal Cofragem, Ldª, material que estava armazenado no Alto da Guerra/Setúbal (A-12).

5. Entre a A. e R. foi celebrado o acordo que constitui o doc. nº 7 junto com a p.i., denominado “contrato de prestação de serviços de vigilância”.

6. Tal acordo tinha o seguinte conteúdo:

“1º OBJECTO

BB comprometem-se a prestar ao Cliente (ora A.) os serviços de vigilância e controlo de acessos às suas instalações, de acordo com o horário no Anexo 1.

Sempre que se verifiquem alterações aos horários de serviços ou número de vigilantes inicialmente acordado no Anexo 1, deverá o mesmo ser substituído e assinado de acordo com as alterações acordadas, inclusive as de preços.

O preço total a pagar mensalmente pelo Cliente é de € 4.400,00+IVA.

2º DURAÇÃO

Este contrato é válido pelo período de 3 meses, com início a 13-1-11, às 20h00, renovando-se automaticamente por igual período se não for rescindido por qualquer das partes.

A rescisão poderá ocorrer desde que cumprido um aviso prévio de trinta dias, em carta registada com aviso de recepção.

(…)

7º RESPONSABILIDADE

A responsabilidade civil de EE perante o cliente está assegurada pela apólice de seguros que vigorar à data da prática dos factos que a implique, devendo BB comunicar ao cliente quaisquer alterações à mesma (actualmente apólice nº 20… Companhia de Seguros CC).

O seguro deve cobrir designadamente a indemnização por danos corporais e materiais, resultantes de negligência e pela destruição ou descaminho de objectos ou equipamentos das instalações da obra de Alto de Guerra/Setúbal por parte dos funcionários e vigilantes de BB”.

(…)

9º De acordo com o Anexo 1 ao presente contrato de prestação de serviços de vigilância, o local de serviço seria no Alto da Guerra/Setúbal.

10º O horário era o seguinte:

- 1 vigilante de serviço das 20h00 às 7h00, todos os dias da semana, durante 3 meses;

- 1 vigilante de serviço 24 horas aos fins de semana e feriados, durante 3 meses.

7. O acordo mencionado em 5. e 6. tinha como objectivo a vigilância dos materiais referidos em 3.

8. O material de cofragem acima referido ficava depositado no chão ao ar livre, ao longo dos vários locais onde a A. estava a executar pontes e viadutos na obra mencionada, ao longo de cerca de 3 Kms medidos em linha recta.

9. Os materiais encontravam-se sempre junto aos locais onde estavam a ser realizados os trabalhos por estarem a ser utilizados pelos trabalhadores ou por estarem a aguardar transporte depois da sua utilização, sendo a sua falta facilmente detectada pela A. antes da sua montagem e utilização.

10. Os mencionados materiais além de, na sua maioria, serem pesados, são, no seu geral, de grande volumetria, sendo difícil o seu transporte, sendo necessária a ajuda de mais do que um homem e de um meio de transporte para se proceder à remoção de grande parte dos mesmos.

11. Durante o horário de expediente não havia necessidade de proceder à vigilância do mencionado material, pois a quantidade de funcionários e engenheiros que se encontravam a laborar para a A. era mais que suficiente para salvaguardar o não desaparecimento de materiais de cofragem.

12. Todos os funcionários da obra estavam identificados, sendo difícil que pessoas estranhas à obra entrem na mesma em horários de expediente.

13. Para efectuar o seu trabalho o vigilante da R. fazia rondas aos diversos locais.

14. Em meados de Março de 2011 quando a A. começou a proceder à entrega do material de cofragem que tinha alugado à EE deparou-se com a falta de muito desse material, por ter sido furtado.

15. Foram, assim, furtados os seguintes bens:

16. O material referido tem o valor total de € 159.546,54.

17. Após ter procedido ao apuramento de todo o material desaparecido, a A. entrou em contacto com a 1ª R. com vista a inteirar-se do que teria ocorrido, não tendo obtido resposta.

18. Logo que a A. e a EE Portugal tiveram conhecimento da quantidade de material desaparecido, esta peticionou à A. o pagamento do valor desses materiais.

19. Por não ter possibilidades financeiras de pagar à empresa EE, de uma só vez, o material referido, a A. fez com aquela um acordo de pagamento em prestações que incluía o pagamento de juros, tendo já pago, pelo menos, algumas das prestações acordadas.

20. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 50… a 1ª R. transferiu para a CC – Comp. de Seguros, actualmente Comp. de Seguros DD, SA, a responsabilidade civil extracontratual por danos corporais e materiais causados a terceiros decorrentes da exploração da sua actividade.


III – Decidindo:

1. Está em causa a apreciação do pedido de indemnização sustentado na responsabilidade civil imputada à 1ª R. em consequência do incumprimento de um contrato de prestação de serviços de vigilância celebrado com a A. que tinha por objecto imediato materiais de cofragem que esta utilizava na construção de estruturas de um lanço de Auto-estrada e que, pelas suas características e finalidades, ficavam depositados nas bermas correspondentes aos locais onde as obras eram realizadas.

Tal contrato de prestação de serviços de vigilância foi celebrado pelo período de 3 meses, sendo limitado aos dias úteis, entre as 20 h e as 7 h, e aos fins-de-semana e feriados.

A matéria de facto apurada, incluindo o contrato escrito, é parca relativamente à especificação do modo como em concreto seria exercida a vigilância. Para além do facto de se prever o objecto e a zona onde o material estava depositado, está apurado que este estava disperso por diversos locais da auto-estrada em construção, numa distância de cerca de 3 Kms, em linha recta, assumindo a 1ª R. o compromisso de aplicar apenas um vigilante que efectuaria rondas pelos diversos locais.


2. O exercício da actividade de segurança e de vigilância privada encontrava-se regulada na ocasião pelo Dec. Lei nº 35/04, de 21-2 (cuja última alteração foi introduzida pelo Dec. Lei nº 114/11, de 30-11, e que entretanto foi revogado e substituído pela Lei nº 34/13, de 16-5).

De acordo com aquele regime jurídico, tal actividade podia (tal como ainda pode) envolver, além do mais, a protecção de bens móveis (art. 2º, nº 1, al. a)) e era condicionado pela existência de alvará por parte da empresa prestadora dos serviços.

Na falta de melhor discriminação contratualizada, o conteúdo obrigacional deve ser extraído da aplicação do regime legal que decorre dos arts. 1154º a 1156º do CC, sobre o contrato de prestação de serviços que, por seu lado, remetem subsidiariamente para o regime jurídico do contrato de mandato (arts. 1157º e segs. do CC).

Sem embargo das obrigações acessórias naturalmente inerentes ao desempenho diligente da actividade, competia à empresa a execução dos actos instrumentais da obrigação de vigilância (rondas, tendo em vista dissuadir actuações de terceiros prejudiciais aos interesses da A.).

No entanto, a matéria de facto apurada não permite extrair as conclusões que as instâncias atingiram, sendo insuficiente para se afirmar o incumprimento contratual assacado à 1ª R. Incumprimento este que, em termos de alegação por parte da A. contou praticamente apenas com a afirmação da existência de furto do material que identificou, sem qualquer alusão ao modo como foi exercida ou deveria ter sido exercida a actividade de vigilância e a sua repercussão no modo como se consumou o furto do material.


3. No âmbito dos contratos de prestação de serviços, a não ser que a prestadora assuma uma efectiva obrigação de resultado, vincula-se apenas a aplicar na sua execução os meios necessários a atingir o resultado procurado.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça a distinção tem sido essencialmente focada em acções de responsabilidade civil contratual por actos médicos ou pelo exercício do patrocínio judiciário, onde tem assumido relevo a delimitação das obrigações de meios sempre que o devedor não se comprometa com um determinado resultado.

Assim ocorre nos contratos de prestação de serviços de vigilância comum, a não ser que as partes estabeleçam convenção diversa, de modo que, sendo o objectivo final deste tipo de contratos a protecção de bens, cumpre à empresa contratada aplicar na sua execução os meios humanos e/ou materiais acordados, actuando com diligência, tendo em vista garantir a efectiva protecção dos interesses da contraparte.

No caso sub judice, a determinação da natureza e amplitude da obrigação assumida pela 1ª R. não implicava simplesmente uma indefinida actuação de “vigilância” traduzida em rondas regulares, antes uma actuação pró-activa no sentido de diligentemente e tendo em conta os meios adstritos ao cumprimento do contrato proteger os bens em causa e evitar qualquer forma de desvio.

Deste modo, para que se considerasse efectivamente cumprida a obrigação assumida, exigia-se da parte da prestadora dos serviços a prática dos actos com um elevado nível de profissionalismo e de diligência que precisamente justificaram a sua contratação e os correspondentes honorários.

Tais exigências devem ser interpretadas, sem dúvida, de modo rigoroso. Mas, apesar disso, não é permitido concluir que todo e qualquer desvio ou furto de materiais a que respeitava o contrato tenha por significado a existência do correspectivo incumprimento contratual. Assim seria se acaso estivéssemos perante uma obrigação de resultado situada num plano diverso daquele que se mostra configurado e que não vai além da obrigação de meios nos termos referidos.


4. Este é o eixo fundamental da presente acção e que nos leva a divergir da solução que foi declarada pelas instâncias, tendo em conta o que se dispõe nos arts. 342º, nº 1, e 799º, nº 2, do CC, sobre a repartição do ónus da prova relativamente aos diversos elementos de facto relevantes para a apreciação da pretensão deduzida pela A.

Atenta a regra geral do art. 342º, nº 1, do CC, é sobre a A., que invoca o direito de indemnização sustentado no incumprimento da obrigação contratual (art. 798º), que recai o ónus da prova dos respectivos factos constitutivos.

Da conjugação dos elementos normativos de que depende o reconhecimento do direito de indemnização, o ónus da prova do incumprimento ou do incumprimento defeituoso, como pressupostos do direito de indemnização, recai sobre aquele que invoca esse direito.

Nas obrigações de meios, como é o caso, “não bastará a prova da não obtenção do resultado previsto com a prestação, para se considerar provado o não cumprimento” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 2ª ed., pág. 97), de modo que, numa situação como a dos autos, seria ainda necessário provar que não se realizaram os actos em que normalmente se traduziria uma actividade de vigilância e de protecção diligente. Solução expressamente assumida no Ac. do STJ, de 3-6-14, no âmbito de uma acção relacionada com o patrocínio forense e nos Acs. do STJ, de 15-12-11 e de 15-11-12 (este relatado pelo ora relator) sobre responsabilidade médica, todos em www.dgsi.pt.

No mesmo sentido aponta Carneiro da Frada quando conclui que “nas obrigações de meios é deste modo ao credor que compete fazer a prova da falta de emprego dos meios devidos ou de que o devedor não adoptou a diligência devida. A presunção de culpa tende então a confinar-se à mera censurabilidade subjectiva do devedor. Por outras palavras, a violação da obrigação carece de ser positivamente demonstrada pelo credor lesado, uma exigência que se traduz normalmente, em termos práticos, na demonstração da ilicitude da conduta do devedor”. E mais adiante acrescenta que tais exigências significam que “o credor lesado pode ter de despender então um especial esforço para individualizar e provar as bases concretas da sua pretensão”. (Sobre a responsabilidade das concessionárias em acidentes ocorridos em auto-estradas, na ROA, ano 65º, vol. II).

No mesmo sentido Ribeiro de Faria quando assevera que “ao credor incumbe provar a ilicitude e ao devedor que ela não procede de culpa sua”, para depois especificar que “se a obrigação é apenas de proceder com a diligência exigível, o credor terá de provar que não teve lugar um procedimento nessas condições e não apenas que um dado resultado se não produziu” (Direito das Obrigações, vol. II, pág. 405).

Outrossim, Ricardo Lucas Ribeiro, segundo o qual “o credor terá de provar a ilicitude, isto é, que o devedor violou um dever objectivo de cuidado que no caso sobre ele juridicamente impendia”, bem como o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano (Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado, pág. 130).

A regra sobre a distribuição do ónus da prova apenas cede relativamente à demonstração da culpa: atento o disposto no nº 2 do art. 799º, demonstrado o incumprimento obrigacional (in casu, o incumprimento da obrigação de meios), recai sobre o devedor (a prestadora dos serviços) o ónus da prova de que o incumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua.

Ora, a matéria de facto alegada e, com mais firmeza ainda, a matéria de facto apurada não permite que se considere ter havido incumprimento da obrigação de vigilância, ou seja, da obrigação de meios que concretamente deveriam ter sido adstritos à vigilância dos bens.


5. Como já se disse, a A. foi parca na sustentação da sua pretensão, pois praticamente limitou-se a alegar – o que se provou – que o funcionário da R. tinha de fazer rondas a todas as frentes onde o material se encontrava (art. 16º da petição) e, depois, muito laconicamente, que “os vigilantes que se encontravam a prestar serviços não foram devidamente diligentes e cuidadosos” (art. 46º), sem a menor discriminação do modo de actuação ou referência a qualquer actuação ou incidente revelador do incumprimento da obrigação de vigilância.

Acresce que a leitura dos factos apurados não permite sequer concluir, com o grau de segurança exigível, que os furtos do material tenham sido consumados durante o período em que a R. estava vinculada ao exercício da vigilância, ou seja, entre as 20 h às 7 h nos dias úteis e durante os períodos de fim-de-semana e de feriados.

A este respeito provou-se apenas – o que é manifestamente insuficiente – que durante o horário de expediente não havia necessidade de proceder à vigilância do material de cofragem, uma vez que a quantidade de funcionários e de engenheiros que se encontravam a laborar era suficiente para impedir o seu desaparecimento e que, além disso, todos os funcionários da obra estavam identificados, sendo difícil a pessoas estranhas à obra entrarem na mesma em horários de expediente.

Esses factos revelam as circunstâncias em que a A. operava na execução da empreitada, mas não permitem confirmar o período em que os furtos ocorreram, designadamente não suportam a afirmação de que ocorreram necessariamente durante o período nocturno ou nos fins-de-semana ou feriados em que a vigilância por parte da R. era exercida.

Tal conclusão apenas poderia ser atingida por via do eventual recurso a alguma presunção judicial sustentada em regras da experiência conjugadas com as referidas circunstâncias. Ainda assim, esta constitui uma tarefa das instâncias, não cumprindo a este Supremo Tribunal, em situações como esta, suprir por essa via as lacunas respeitantes aos factos necessários à procedência da acção.

Além disso, ainda que se admitisse uma diversa perspectiva dos poderes de um Tribunal de revista, os factos instrumentais que se apuraram a tal respeito seriam insuficientes para suprir a lacuna que se revela ao nível dos factos essenciais, sendo vedado imputar subjectivamente à R. o incumprimento causal e presumivelmente culposo do dever de vigilância que assumira perante a A.


6. Mas não é este o único nem o principal aspecto que impede a afirmação da situação de incumprimento e do nexo de causalidade entre o incumprimento e os prejuízos na esfera da A.

O material de cofragem não se encontrava depositado apenas num local ou em locais fechados (v.g. estaleiro ou estaleiros), mas ao ar livre, nas bermas da via em que estavam a ser construídas as estruturas a que se destinava. Disseminado numa distância de cerca de 3 kms em linha recta, torna-se manifestamente temerária a afirmação do aludido incumprimento da obrigação de vigilância (que como se disse traduz uma obrigação de meios) pelo simples facto de ter sido notada pela A. a falta de diversas peças.

Afinal o contrato previa apenas a utilização de um único vigilante, o que, atenta a extensão da área abrangida, a dispersão dos materiais e o facto de a vigilância ser efectuada, nos dias úteis, em período nocturno, não permite assacar à R. falha relevante no cumprimento das tarefas instrumentais em que se decompunha a sua obrigação de modo a sustentar a afirmação de que contribuiu para a consumação dos furtos.

Pode até concluir-se que, atentas as circunstâncias que rodeavam o contrato, mais concretamente a extensão da área em que o material se encontrava depositado, o facto de a vigilância ser exercida em período nocturno, nos dias úteis, e o facto de ter sido acordada a utilização de um único vigilante, a efectivação de rondas regulares pelos diversos locais, como aquelas que foram feitas por cada um dos vigilantes que prestou serviços em representação da R., revela com suficiência o cumprimento da obrigação de meios que foi assumida pela R.

Trata-se, assim, de uma situação bem diversa da que foi apreciada pelo Ac. do STJ, de 3-3-16 (www.dgsi.pt), em que os objectos sujeitos a vigilância foram furtados de um local (estaleiro das obras) que se encontrava vedado e em cuja portaria se encontrava o vigilante, excepto nos momentos em que deveria fazer a ronda por outros pontos da obra.

Como defende Almeida Costa, nas “obrigações de meios em que o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de um determinado resultado”, o devedor pode ficar exonerado na hipótese de o cumprimento requerer uma diligência maior do que a prometida (Obrigações, pág. 758).

Não se ignora que, atentas as características e a quantidade dos materiais que foram furtados, o seu desaparecimento não foi o mero resultado de uma entrada fortuita de alguém num determinado espaço, exigindo a intervenção de meios humanos e materiais (a mobilização de algumas das peças exigia a intervenção de mais do que uma pessoa e de veículos para transporte).

Mas, sendo este um dado objectivo, não podemos olvidar também os períodos de tempo em que a vigilância deveria ter sido exercida (noite e fins-de-semana e feriados), nem o facto de apenas ter sido destacado um único vigilante. Não tendo este o dom da ubiquidade, nem tendo sido prevista no contrato a utilização de outros meios auxiliares que permitissem a efectivação da vigilância por outros meios que alertassem o vigilante ou a R. para a intrusão de estranhos ou para o desvio de algum material, revela-se precipitada uma conclusão que assaque à R. a responsabilidade por aquilo que se verificou, só porque foi constatado o furto do material dentro do período de 3 meses a que o contrato respeitava.

Afinal, a vigilância era exercida em campo aberto, numa extensão que dificultava a detecção de alguma circunstância estranha pelo único vigilante, e envolvia material disperso por vários locais, de modo que a demonstração da efectivação das rondas regulares, para além de se revelar, em concreto, a forma mais ajustada de executar a obrigação instrumental de meios, contraria a afirmação de uma situação de falta de cumprimento diligente de algum dever de vigilância causal dos eventos.

Podemos pois acrescentar que, além de não estar demonstrado o incumprimento da obrigação de meios assumida pela R., também não é possível afirmar a existência de um nexo de causalidade adequada entre o modo como foi feita a vigilância (através de rondas regulares) e o furto do material em circunstâncias e em dias que se desconhecem por completo.


6. Não deixaremos ainda de focar um outro aspecto que, numa determinada perspectiva, poderia colocar em crise a negação da responsabilidade da R.

Depois de ter sido confrontada com a reclamação sobre o furto de diverso material pesado e de grandes dimensões, a R. não deu qualquer explicação à A. sobre o sucedido.

Este é um comportamento sem dúvida censurável, contrariando a natureza e objectivo do contrato que foi outorgado e o facto de certos deveres acessórios de conduta persistirem para além do período de duração do contrato. A inércia da R. em face do que lhe fora relatado pela A. revela um comportamento inadmissível e que contradiz o que seria expectável de uma empresa que se dedica à actividade de vigilância.

Todavia, tal reacção situa-se a jusante dos acontecimentos, sendo imprestável para qualificar a anterior actuação, de forma a legitimar a afirmação do incumprimento da obrigação de meios que fora assumida pela R.

Para além de os autos revelarem que o conflito entre as partes também decorre da falta de pagamento, por parte da A., do preço que foi acordado no contrato, mostra-se decisivo que o cumprimento das obrigações (de meios) assumidas pela A. relativamente ao furto de material (evento) seja avaliado em função do modo como efectivamente foi executado o serviço de vigilância, sendo irrelevante a atitude da R. depois de ter sido confrontada com a consumação do furto do material e dos correspondentes prejuízos na esfera jurídica da A.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido e absolvendo a R. do pedido.

Custas da revista e nas instâncias a cargo da A.

Notifique.

Lisboa, 2-6-16


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo