Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P1037
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: ESCUTA TELEFÓNICA
RECURSO INTERLOCUTÓRIO
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO À CAUSA
DECISÃO QUE PONHA TERMO AO PROCESSO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONSTITUCIONALIDADE
DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
TRANSCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ200604060010375
Data do Acordão: 04/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: UNANIMIDADE
Sumário : I – Do despacho (preliminar ao acórdão final do tribunal colectivo) que apreciou a questão prévia (alegada “nulidade” das escutas telefónicas) suscitada pelo arguido no decurso da audiência, foi interposto imediato recurso intercalar que, recebido, foi mandado subir com o que viesse a ser interposto do acórdão final.
II – A Relação, ao pronunciar-se sobre tal recurso interlocutório, não pôs termo à causa, que, pelo contrário, prosseguiu para conhecimento do recurso oposto ao acórdão condenatório.
III – Tal decisão - uma vez que, apesar de proferida em recurso, não pôs termo à causa - é ordinariamente irrecorrível para o STJ (art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP).
IV – Esta interpretação do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, é pacífica no Supremo e conforma-se com as regras e princípios constitucionais (TC 26-01-05, acórdão 44/05).
V – Não sendo admissível recurso «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções” (art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP), não há razões substanciais - ou sequer, processuais - para que se adopte um regime diverso de recorribilidade em função da circunstância de, por razões de “conexão” (“de processos” - art. 25.º), terem sido conhecidos simultaneamente os crimes “concorrentes” (de cada “processo conexo”).
VI – A “referência aos suportes técnicos” (exigida pelo art. 412.º, n.º 4) precede e condiciona a transcrição oficial, não se impondo ao tribunal recorrido que transcreva toda a prova gravada, facultando-a depois às “partes” para que estas “dêem cumprimento do referido ónus”. O recorrente é que, de entre a prova gravada, há-de, na motivação do recurso, especificar as provas “que impõem decisão diversa da recorrida” e, relativamente às “provas que tenham sido gravadas”, especificá-las “por referência aos respectivos suportes técnicos”, para que, depois, possa haver lugar, nessa parte, à correspondente “transcrição oficial”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. o despacho recorrido - Arguido/recorrente: AA (1)


1.1. Em 30Jun05, no decurso da 1.ª sessão da audiência de julgamento, AA arguiu, em requerimento ditado para a acta, a nulidade da prova contra si obtida mediante escutas telefónicas (fls. 2635 a 2642, maxime 2636/2637, 14.º volume).

1.2. Porém, o tribunal colectivo (2), no dia 04Jul05 (cfr. acta de fls. 2687 a 2704, mais concretamente fls. 2691 a 2702), indeferiu a arguição.


2. o Recurso interlocutório

2.1. Insatisfeito, o arguido interpôs imediato recurso (fls. 2703), que motivou de fls. 2823 a 2841 (15.º volume):

A inobservância dos requisitos do art° 188.1 CPP gera nulidade, nos termos do art. 189° CPP, nulidade esta que determina a proibição de utilização da prova obtida em juízo. Trata-se de nulidade invocável a todo o tempo, e não apenas até ao encerramento do debate instrutório como pretende o tribunal "a quo". A lei processual penal, no art° 188º CPP, consignou que os resultados das intercepções telefónicas, para serem valorados como meio de prova, deveriam ser transcritos em auto, restrito apenas às conversações consideradas relevantes pelo JIC. Não constando da transcrição das escutas telefónicas que a JIC tenha procedido à escolha de todo o material probatório transcrito e resultante dessas escutas, existe nulidade insanável, devendo todo o material concernente ao Arguido AA ser considerado nulo e de nenhum valor. Também ocorreu violação do disposto no art° 188.1 CPP na medida em que os autos de intercepção e gravação não foram de imediato lavrados e levados ao conhecimento da JIC, de modo a esta poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de novo auto da mesma espécie, sobre a manutenção ou alteração da decisão que ordenou as escutas. No sentido da inconstitucionalidade do art° 188.1 CPP, quando interpretado em termos de não impor que o auto de intercepção e gravação de conversações e gravações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz de modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos ou de alguns deles, já se pronunciou o acórdão ACTC7648, www.dgsi.pt, n° TCB1997 0521974072. Devem pois as escutas referidas concernentes ao recorrente AA ser julgadas nulas e de nenhum efeito por constituírem método proibido de prova, nos termos e para os efeitos do art° 126.3 CPP, com todas as consequências de lei, julgando-se igualmente nulo e de nenhum efeito todo o processado após a realização das mesmas, incluindo a prisão preventiva decretada ao recorrente AA, ao abrigo das mesmas.


2. O ACÓRDÃO FINAL

Em 07Jul05, no acórdão final, o tribunal colectivo do 2.º Juízo de Mafra (3) condenou AA a) como co-autor material de um crime de roubo qualificado («prisão de 3 a 15 anos de prisão») (4), na pena de 7 anos de prisão; b) como co-autor material de um crime de roubo qualificado (5) , na pena de 9 anos de prisão; c) como co-autor material de um crime de receptação («prisão até 5 anos») (6), na pena de 1 ano de prisão; d) como co-autor material de um crime de receptação (7), na pena de 14 meses de prisão; e) como co-autor material de um crime de roubo qualificado tentado (8), na pena de 3 anos de prisão; f) como co-autor material de um crime de roubo qualificado (9), na pena de 6 anos de prisão; g) como co-autor material de um crime de roubo qualificado (10), na pena de 7 anos de prisão; h) como co-autor material de um crime de receptação (11), na pena de 15 meses de prisão; i) como co-autor material de um crime de receptação (12) na pena de 1 (um) ano de prisão; j) como autor material de um crime de detenção de arma proibida (13), na pena de 7 sete) meses de prisão; l) como autor material de um crime de detenção de arma proibida («prisão de 2 a 5 anos de prisão») (14), na pena de 3 anos de prisão; m) como autor material de um crime de tráfico de menor gravidade («prisão de 1 a 5 anos»), na pena de 18 meses de prisão; n) e, em cúmulo jurídico, na pena única de 18 (dezoito) anos de prisão.


3. O RECURSO, PARA A RELAÇÃO, DO ACÓRDÃO FINAL

Também inconformado com a condenação final, o arguido recorreu em 19Jul05 à Relação, pedindo a absolvição «porque nenhuma prova foi produzida em juízo que permita concluir pela condenação do recorrente pelos crimes pelos quais ele foi condenado».


3. O ACÓRDÃO DA RELAÇÃO

3.1. A Relação de Lisboa (15), em 05Dez05, negou provimento ao recurso intercalar:

Uma vez que foi interposto recurso em momento anterior à decisão final, cuja apreciação, em função do regime de subida atribuído, foi deferida para apreciação conjunta com os que viessem a ser interpostos da decisão que pôs termo à causa, haverá que por ele começar, quer por uma razão de ordem, quer ainda para prevenir a hipótese da eventual solução que lhe possa ser conferida prejudicar a apreciação dos demais. A título interlocutório, suscitou o arguido AA um recurso em que invoca a nulidade das intercepções telefónicas relativas ao "alvo 24102" e, genericamente, a todas as escutas onde interviesse, por alegada violação do disposto no art° 188°, do CPP, uma vez que no entendimento do recorrente ocorreu uma falta de controlo jurisdicional das escutas, caracterizada pela selecção do material que foi considerado com interesse feito por entidade terceira, que não o juiz e, por outro lado, os autos de intercepção e gravação não foram de imediato lavrados e levados ao conhecimento do juiz de instrução. Vejamos. Com alguma frequência se reconduz a infracção às regras do art. 188° do CPP, ao ritualismo aí preconizado, a meio proibido de prova, mas sem razão. Num plano doutrinário, o meio proibido de prova é uma prescrição de um limite à descoberta da verdade, uma barreira colocada à determinação dos factos que constituem o objecto do processo, por razões múltiplas, consagradas nos art.s 126°, n° 3, do CPP, 32°, n° 8, e 34°, n° 4, da CRP, onde se não inclui a inobservância do ritualismo enunciado no art° 188°, do CPP. E não nos cruzamos com um meio proibido de prova, porque se a escuta foi autorizada por um juiz, reconhecendo-se a sua urgência na realização, revelando-se grande interesse à descoberta da verdade, por o crime de catálogo, pela sua gravidade e modo de execução, reclamar aquele meio probatório, deixando indefesa a sociedade se dele se não lançasse mão, ainda assim se acautela, com tal preterição, aquele núcleo, aquele mínimo do direito fundamental do arguido em não ver devassada a sua palavra falada, que fica intocado, situando-se a compressão de tal direito num limiar mínimo. As infracções às regras relativas a tais meios de prova, configuram meras prescrições ordenativas de produção de prova, no dizer do Figueiredo Dias, Processo Penal, 446. Em Ämelung, citado in "Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal", pág. 84, de Costa Andrade, vemos que "o vício não é tão grave que haja de impor o recuo do interesse pelo esclarecimento do facto"; do que se trata é de disciplinar, tão-somente, os procedimentos e modos como a prova deve ser legalmente adquirida; são normas instrumentais, procedimentais. Em nosso ver, não se justifica o regime draconiano da nulidade absoluta, insanável, mais adequado à inobservância dos vícios de mais gravidade, na total acepção da palavra, havendo que distinguir, na cominação estabelecida no art. 189° do CPP, que fala genericamente em nulidade para a infracção às regras prescritas nos art.s 187° e 188° do CPP, entre pressupostos substanciais de admissão das escutas, com previsão no art. 187° do CPP e condições processuais de sua aquisição, enunciadas no predito art. 188° do CPP, para o efeito de assinalar ao vício que atinja os primeiros nulidade absoluta; à infracção às segundas o de nulidade relativa, sanável, sujeita à invocação até ao momento temporal previsto no art. 120°, n° 3, al. c), do CPP, dependente de arguição do interessado na sua observância. A jurisprudência do STJ, pensamos que maioritária, não descortinando a preterição das regras do art. 188° do CPP no âmbito das nulidades insupríveis, confina-as às nulidades relativas, sanáveis (...). Aplicando-se-lhe o regime das nulidades sanáveis, deriva dele que a sua arguição apenas pode ter lugar, "tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito", nos termos do art. 120°, n° 3, al. c), do CPP. Ora, como bem resulta dos autos, o recorrente não arguiu, atempadamente, qualquer irregularidade nas escutas efectuadas. Assim sendo, e porque, a terem existido quaisquer vícios nas escutas telefónicas efectuadas ao recorrente, conducentes à nulidade dos respectivos actos, esses encontram-se sanados, por não terem sido oportunamente arguidos, haverá de ser negado provimento ao recurso.

3.2. E, quanto ao mérito do recurso principal, recusou-se, no tocante aos factos, a (re)apreciar os assentes pelo tribunal colectivo (senão – no quadro do texto da decisão recorrida - nos estritos limites consentidos pelo art. 410.2 do CPP) e, no tocante ao direito, apenas - favoravelmente ao recorrente – o absolveu, de entre os crimes por que vinha condenado, do de detenção de arma proibida (punhal), reduzindo a respectiva pena única, nessa simples decorrência, para 17 anos e 11 meses de prisão.

Apreciação da matéria de facto (ónus imposto pelo art° 412°, n.os 3 e 4, do CPP). No caso em apreço, este tribunal poderia conhecer de facto, em conformidade com o preceituado no art. 428°, do CPP, uma vez que houve documentação da prova produzida, oralmente, na audiência em lª instância. Sucede, porém, que, em conformidade com o disposto na al. b), do art. 431°, do CPP, e sem prejuízo do disposto no art. 410°, do mesmo Código, a decisão sobre a matéria de facto só pode ser modificada, havendo documentação da prova, se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412°, n° 3. Com efeito, estabelece este normativo que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar, além do mais, "as provas que impõem decisão diversa da recorrida " [alínea b)], devendo tal especificação fazer-se "por referência aos suportes técnicos ", em conformidade com o preceituado no n° 4, do mesmo art° 412°. Discutindo o acerto da factualidade dada como provada no acórdão recorrido não deram os recorrentes cumprimento a tal ónus, sendo certo que, em parte alguma das respectivas motivações e muito menos nas conclusões, especificaram, por referência aos suportes técnicos, as provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa da impugnada, isto é, não indicando a localização (início e termo) da gravação dos depoimentos através dos quais fundamentam a sua discordância relativamente aos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados. E, assim sendo, o incumprimento daquele ónus acarreta a impossibilidade de o tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, ex vi al. b), do art° 431°, do CPP (...), a significar que esta Relação não deve nem pode sindicar a decisão de facto impugnada, o que equivale por dizer que os poderes de cognição se encontram circunscritos, no caso, à matéria de direito, sem prejuízo da ocorrência dos vícios do art° 412°, n° 2, do CPP. E não se diga que o entendimento por nós perfilhado viola a Lei Fundamental. Na verdade, decidiu o Tribunal Constitucional no Ac. n° 140/2004, de 10-03-04, in DR, II Série, de 17-04-04, "não julgar inconstitucional a norma do artigo 412°, n°s 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências ". Impõe-se, nesta parte, a rejeição do recurso.


4. O RECURSO PARA O SUPREMO

4.1. Ainda inconformado, o arguido (16) recorreu ao Supremo, em 23Dez05, reeditando, com um novo fundamento, o pedido – anteriormente efectuado no recurso intercalar - de declaração de nulidade «das escutas telefónicas efectuadas nas circunstâncias do autos por violação do art. 187.1 CPP»:

O recorrente mantém tudo o que invocou no seu recurso para a Relação de Lisboa e constante das suas conclusões a), b), c), d), e), f) e g), as quais o recorrente ora dá por reproduzidas para todos os efeitos de lei. Acresce que o estabelecimento de um sistema de catálogo no regime das escutas telefónicas tem ínsita a necessidade de que, antes de se poder ordenar a realização de uma escuta telefónica, existam nos autos elementos que tornem verosímil a prática de um concreto crime incluído nesse elenco, não bastando a mera invocação da suspeita da sua prática por qualquer órgão de polícia criminal, sob pena de esvaziamento da garantia que um tal sistema de catálogo pretende instituir. Tais elementos, embora não precisem de ter a consistência necessária para a dedução de acusação ou para a imposição das medidas de coacção mais graves, devem permitir "configurar uma séria e concreta hipótese criminosa" cuja verosimilhança só pode assentar em meios de prova identificáveis e utilizáveis no processo. Esta séria e concreta hipótese criminosa não pode assentar em fontes anónimas ou meros informadores policiais. "Não é legalmente admissível ordenar a realização de uma escuta telefónica sem que primeiro tenham sido realizadas diligências de prova, de natureza diversa das intercepções, que permitam asseverar o necessário grau de verosimilhança da suspeita" (...). Ao serem ordenadas as escutas telefónicas constantes dos autos, e posteriormente validadas as mesmas, ocorreu violação do princípio da subsidiariedade das escutas telefónicas. São, portanto, nulas as escutas telefónicas efectuadas nas circunstâncias do autos por violação do art. 187.1 CPP.

4.2. Além disso, insurgiu-se contra a não apreciação, pela Relação, do seu recurso sobre matéria de facto:

«Entende a Relação de Lisboa que os recorrentes não deram cumprimento ao ónus imposto pelo art. 412°/3-4 CPP, especificando, além do mais "as provas que impõem decisão diversa da recorrida [alínea b)], devendo tal especificação fazer-se por referência aos suportes técnicos em conformidade com o preceituado no art. 412°/4 CPP, pelo que tal incumprimento acarreta a impossibilidade de o tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre matéria de facto (...). Sucede porém que as declarações das testemunhas, que o tribunal "a quo" interpretou de forma grosseiramente errónea, constituem matéria de facto, razão pela qual de acordo com a jurisprudência do assento n° 2/03, de 16-01-03, segundo a qual "sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n°s 3 e 4 do art° 412° do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal" (DR I-A, n° 25 de 30¬01-03). Ora de acordo com essa douta jurisprudência, caberia ex officio ao tribunal recorrido (...), proceder às necessárias transcrições, e enviar cópias das mesmas aos mandatários das partes para que estes possam, então, dar cumprimento ao referido ónus. Nem o tribunal de Mafra procedeu (como era seu dever) à transcrição das gravações, nem enviou cópia das mesmas aos mandatários, pelo que o não cumprimento do referido ónus não lhes é imputável»

4.3. Depois, suscitando, no recurso principal para o Supremo, questões não suscitadas no recurso para a Relação, censurou-a por não ter procedido «a qualquer juízo crítico quanto à proporcionalidade das penas parcelares provindas do tribunal de Mafra» (17) «e impugnou a sua quádrupla condenação por «receptação»:

Veio o recorrente condenado por quatro crimes de receptação, cujas penas tribunal ora recorrido manteve. Entende o recorrente que com a prova constante dos autos, nunca poderia ter sido condenado por nenhum crime de receptação, muito menos por quatro. Na verdade, a receptação é o crime que consiste na aquisição ou recebimento, a qualquer título, de coisa que, atendendo à qualidade ou condição de quem a oferece ou ao montante do preço proposto, e porque não se assegurou previamente da sua legítima proveniência, faz razoavelmente supor que provém de facto ilícito típico contra o património (...). Receptador é aquele que adquire produtos do crime, conhecendo ou sendo razoável exigir que conhecesse, no momento da aquisição, a sua origem criminosa (op. cit., pág. 351). "O conteúdo do ilícito da receptação, exclusivamente dolosa, prevista no n° 1 do art° 231º do CP, reside na perpetração de uma situação patrimonial anti-jurídica, aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior, ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação dela com a coisa, tendo o receptador a certeza de que o bem provém de facto ilícito típico. Também o nº 2 desse preceito contém um tipo doloso sendo, porém suficiente que o agente represente, ao menos a título de dolo eventual, a aquisição ou o recebimento da coisa e os factores que a tornam, em concreto, suspeita, tendo, pois, de representar, pelo menos, pelo menos, a possibilidade de a coisa provir de facto ilícito típico contra o património e conformando-se com tal representação" (...). Resumindo, na visão do tribunal de Mafra, as receptações do recorrente traduzem-se no facto de ele se fazer transportar em carros que sabe ser furtados para com isso se dedicar à prática de outros ilícitos (assaltos à mão armada). Foi esta visão que o tribunal recorrido manteve e fez sua. Ora, manifesto é que nunca poderia o tipo do art. 231º CP encontrar-se preenchido, objectiva ou subjectivamente. Admitindo, sem conceder, que o recorrente sabia serem os veículos automóveis propriedade de outrem, forçoso é concluir que o tipo preenchido não é nem o furto (dado inexistir intenção apropriativa, não tendo ficado provado que o recorrente pensasse em guardar para si os carros furtados), nem a receptação, pelos motivos atrás aduzidos. A utilização em assaltos de viaturas automóveis furtadas que mais tarde são encontradas abandonadas preenche outrossim o tipo do art° 208º/1 CP, furto de uso, o qual consiste na utilização de automóvel ou outro veículo motorizado sem autorização de quem de direito. Não se encontram preenchidos, pois, os requisitos de cuja aplicação a lei faz depender a aplicação do art. 231° CP, impondo-se a absolvição do recorrente quanto a estes crimes ou, quanto muito, a sua condenação por quatro crimes de furto de uso de automóvel (p. p. art. 208°/1 CP).

4.4. E, enfim, arguiu-a de «nulidade por omissão de pronúncia»:

«De todas as questões suscitadas pelo recorrente, a Relação de Lisboa só tratou específica e autonomamente de três: das escutas telefónicas, do tráfico de pequena gravidade e da detenção de arma proibida. O acórdão da Relação de Lisboa não se pronunciou sobre as seguintes matérias versadas nas conclusões: "dd) Não obstante tal facto, e ainda a inexistência de fotogramas inequívocos do recorrente que o coloquem no interior das viaturas em causa, ao condená-lo pela prática de 04 crimes de receptação (e, portanto, ao considerar preenchidos os respectivos elementos do tipo de ilícito), o tribunal "a quo" violou grosseiramente a Constituição, pois condenou o recorrente sem direito a contraditório e apenas com base nos relatos das vigilâncias (feitas em que circunstâncias?) da PJ (art° 32°/5 CRP); ee) Um relatório de um OPC não tem um valor probatório autónomo, designadamente de auto de notícia, e facto é que tal valor probatório lhe foi conferido pelo tribunal "a quo" ao condenar o recorrente na ausência de depoimento policial e de fotogramas inequívocos que o coloquem no interior das viaturas em apreço" Também o acórdão da Relação de Lisboa não se pronunciou sobre os elementos do tipo de roubo e, designadamente, sobre a intenção apropriativa que constitui seu tipo subjectivo, sendo que o facto de o arguido ter em seu poder objectos provenientes de um assalto com violência não significa de per si que ele tenha tido participação nesse assalto (roubo) - cfr. conclusões i), l) s) e v). Ou seja: no desenvolvimento que deu ao tratamento do recurso, o tribunal recorrido - concluindo pela aplicação de uma pena - não se pronunciou sobre todas as questões suscitadas pelo recorrente e, designadamente, não se pronunciou sobre todas as questões jurídicas por ele levantadas. Assim sendo, o acórdão ora recorrido é nulo nos termos do art. 379.1.c CPP, por não se ter pronunciado sobre questão que devia apreciar»


5. A primeira Questão prévia

5.1. Do despacho – preliminar ao acórdão final do tribunal colectivo – que apreciou a questão prévia suscitada pelo arguido no decurso da audiência de discussão e julgamento, foi interposto imediato recurso intercalar, que, recebido, foi mandado subir com o que viesse a ser interposto do acórdão final.

5.2. Esse recurso versou, pois, questões procedentes da decisão intercalar que, em plena audiência de discussão, negara a alegada «nulidade» das intercepções telefónicas.

5.3. Ora, a Relação, ao pronunciar-se sobre tal recurso interlocutório, não pôs termo à causa, que, pelo contrário, prosseguiu para conhecimento do recurso oposto ao acórdão condenatório.

5.4. Daí que tal decisão da Relação – uma vez que, apesar de proferida em recurso, não pôs termo à causa – fosse (e seja) ordinariamente irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça (art. 400.1.c do CPP).

5.5. A interpretação ora acabada de fazer do art. 400.1.c do CPP – pacífica no Supremo – conforma-se (como já o reconheceu o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 44/2005 de 26Jan05) com as regras e os princípios constitucionais:

«Importa agora apreciar a conformidade constitucional (o recorrente indica como norma violada a do artigo 32º, nº 1 da CRP) da disposição do CPP que o STJ invocou ao considerar irrecorrível o acórdão da Relação que nessa sequência processual era impugnado. Diz a norma em causa: Artigo 400º (Decisões que não admitem recurso) 1.Não é admissível recurso: c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa. Trata-se de disposição introduzida pela reforma do processo penal consubstanciada na Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, que se traduziu, neste caso concreto, na alteração do regime pregresso, no qual se recorria para o STJ das decisões interlocutórias que devessem subir com os acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo (...). Neste caso, porque a questão da nulidade das intercepções telefónicas era objecto de um recurso interlocutório, interposto de um despacho que antecedeu o de pronúncia, mas que subiu só com o recurso da decisão final (a decisão da 1ª instância), o STJ entendeu, quando confrontado com o recurso do acórdão da Relação, que este aresto, ao decidir essa questão respeitante às escutas, o fizera apreciando recurso (interlocutório) que, por si só, não punha termo à causa, considerando o STJ o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães irrecorrível, nessa parte, por aplicação da acima transcrita alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP. Embora não esteja aqui em causa discutir o regime de subida que foi fixado, em devido tempo no culminar da fase instrutória, ao recurso interposto relativamente à nulidade das escutas (disse-se, então, em 17/2/2002, no despacho que fixou esse regime a fls. 789 do vol. IV que o recurso: “[subiria] a final, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo”), não deixará de se sublinhar – porque isso facilita a compreensão do problema que acabou por se colocar neste processo – que o STJ, entretanto, no âmbito de um recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, proferido (fora do contexto do presente processo) em 21/10/2004, pelo pleno das Secções Criminais (ao abrigo do artigo 437º, nº 2 do CPP, por contradição entre acórdãos das relações), fixou jurisprudência no sentido da subida imediata dos recursos “da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público” (formulação decisória constante do Acórdão nº 7/2004, publicado no Diário da República – I Série-A, de 2/12/2004, páginas 6950/6955). (...) Na decisão aqui recorrida (está em causa o excerto do acórdão do STJ constante de fls. 2129 do vol. X, cujo teor foi anteriormente transcrito) aplicou-se, enquanto fundamento da rejeição do recurso nessa parte, a referida alínea c) do artigo 400º, nº 1 do CPP, remetendo, também, enquanto argumento justificativo adjuvante, para o acórdão do mesmo Supremo Tribunal (e da mesma 5ª Secção) de 8/7/2003, proferido no processo nº 2148/03 – 5ª. (trata-se de Acórdão inédito, mas ao qual tivemos acesso). Ora, lendo este último aresto, vemos que no ponto dois da respectiva fundamentação se refere o seguinte: “Quanto ao recurso interlocutório, é jurisprudência assente a de que não há recurso para o STJ das decisões proferidas pelas relações sobre tais recursos, já que não põem termo à causa (artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP) e, além disso, o Supremo só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas relações. Estas conhecem definitivamente desses recursos em tais hipóteses”. Este entendimento, que constituiu fundamento do acórdão aqui recorrido, significa que a norma em causa foi neste tomada num sentido (não são recorríveis para o STJ os acórdãos das relações que, proferidos em recurso, não ponham termo à causa) que não se afasta do teor literal daquela disposição, ao passo que no acórdão nº 597/2000 [do TC] a mesma norma, enquanto objecto do recurso aí interposto, foi assumida enquanto resultado de uma recomposição interpretativa específica (só não eram recorríveis os acórdãos das relações, proferidos em recurso, que embora pusessem termo ao processo se fundassem em razões de direito adjectivo). (...) Assim sendo, estando em causa na presente situação a norma do artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP, tomada num sentido distinto daquele em que o foi no acórdão nº 597/2000, a fundamentação que funcionou como ratio decidendi neste (arbitrariedade da distinção, como fundamento de irrecorribilidade, entre questões processuais e substantivas) não tem qualquer aplicação aqui. Esse acórdão, enquanto juízo de inconstitucionalidade daquela norma, não funciona nesta hipótese como «precedente» relevante, por não ter decidido a mesma questão. Valem estas considerações, em muitos dos seus aspectos, também relativamente ao Acórdão nº 686/2004 (...). Afastada a relevância neste recurso destes dois aparentes «precedentes» (os Acórdãos nºs. 597/2000 e 686/2004) o problema que se nos coloca – o da conformidade constitucional, face à garantia emergente do artigo 32º, nº 1 da CRP, da subtracção ao recurso para o STJ das decisões das Relações “proferidas em sede de recurso, que não ponham termo à causa” (artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP) – adquire, tal problema, como dizíamos, uma enorme clareza, face aos critérios desde há muito assentes pela jurisprudência deste Tribunal, quanto ao conteúdo da garantia constitucional do direito ao recurso de quem assume a posição de arguido em processo penal, pois não se trata aqui, por um lado, de qualquer distinção arbitrária entre direito substantivo e direito processual (ratio decidendi do acórdão nº 597/2000), nem se configura, por outro lado, qualquer pronunciamento assumido pela primeira vez no processo pelo Tribunal da Relação (fundamento do decidido no acórdão nº 686/2004). Assim sendo, apreciando a questão colocada pelo recorrente neste processo, relativamente ao artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP, importa sublinhar que está em causa, no artigo 32º da CRP, quanto à garantia – consignada expressamente desde a Revisão Constitucional de 1997 – do direito ao recurso, o exercício efectivo (a garantia) de um «duplo grau de jurisdição», e este, como bem sublinha José Manuel Vilalonga [Direito de Recurso em Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Maria Fernanda Palma (coord.), Coimbra, 2004], “não se confunde com duplo grau de recurso. Aquele [o duplo grau de jurisdição] traduz-se na existência de um único recurso; já este [o duplo grau de recurso] implica a consagração de dois recursos, o que se traduz na intervenção de três instâncias decisórias. O direito ao recurso [o direito ao recurso consagrado no artigo 32º, nº 1 da CRP] postula meramente o duplo grau de jurisdição” (pág. 370, nota 7). A jurisprudência deste Tribunal é, como anteriormente se indicou, clara a este respeito. Como exemplo – e trata-se, tão só, de um exemplo entre muitos possíveis – podemos citar o Acórdão nº 49/2003 (Diário da República, II-Série, de 16/4/2003, págs. 5929/5930; v., no mesmo sentido o acórdão nº 390/2004, Diário da República, II-Série, de 7/7/2004, págs. 10215/10221), no qual estava em causa a irrecorribilidade para o STJ de condenações não superiores a 5 anos de prisão (artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPP), aresto esse no qual se disse: “[...] Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do STJ, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará. A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias. Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao STJ, evitando a sua eventual paralisação [...]. Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição [...] já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.” Valem inteiramente estas considerações, a fundamentação que lhes subjaz, para a situação aqui configurada. A questão da nulidade das escutas foi apreciada na primeira instância e, de seguida, em sede de recurso, na segunda instância, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, significando isto um efectivo exercício do direito ao recurso, através de um duplo grau de jurisdição. A circunstância de estarem em causa, segundo refere o recorrente, questões (matéria) de direito, quando os recursos para o STJ visam o reexame de tal matéria (v. artigo 434º do CPP), não confere ao caso presente qualquer especificidade. Com efeito, também as relações conhecem da matéria de direito (v. artigo 428º, nº 1 do CPP), e nada, em sede de garantia constitucional do direito ao recurso em processo penal (e vale aqui tudo o que a este respeito já se disse), obriga a sujeitar à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça todas as questões de direito que se venham a configurar, no decurso de um procedimento criminal. Não tem razão, pois, o recorrente na arguição de inconstitucionalidade relativamente ao disposto no artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP. Decisão. Pelo exposto, decide-se (...), no que respeita ao artigo 400º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida no que a esta norma diz respeito. (...) Rui Manuel Moura Ramos, Maria João Antunes, Maria Helena Brito (...), Carlos Pamplona de Oliveira (...), Artur Maurício»

5.6. Acresce, por outro lado, que o recorrente – a esse propósito - nem sequer impugnou, directamente, a decisão recorrida, pois que não chegou, no seu recurso para o Supremo, a pôr em causa o fundamento, controverso e controvertido, por que a Relação negara provimento ao recurso Porque, a terem existido quaisquer vícios nas escutas telefónicas efectuadas ao recorrente, conducentes à nulidade dos respectivos actos, esses encontram-se sanados, por não terem sido oportunamente arguidos»).

5.7. Além de que, enfim, é manifestamente tardio – porque não invocado perante a Relação e porque os recursos não estão vocacionados para tratar de «questões novas» mas, simplesmente, de questões já suscitadas e debatidas ante o tribunal a quo – o argumento, ora invocado ex novo (e que, aliás, partirá de um incomprovado pressuposto de facto), de que «não é legalmente admissível ordenar a realização de uma escuta telefónica sem que primeiro tenham sido realizadas diligências de prova, de natureza diversa das intercepções, que permitam asseverar o necessário grau de verosimilhança da suspeita».


6. a segunda questão prévia

6.1. «Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções» (art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP).

6.2. No caso, alguns dos «processos conexos» (cfr. art.s 24.º e 25.º do CPP) (18) versam crimes (os de receptação, de tráfico menor de drogas ilícitas e de detenção de arma proibida) individualmente puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos.

6.3. Se julgados isoladamente, não haveria dúvidas de que, a seu respeito, não seria admissível recurso do(s) respectivos acórdão(s) proferido(s), em recurso, pela Relação.

6.4. Ora, não há razões substanciais - ou sequer, processuais - para que se adopte um regime diverso de recorribilidade em função da circunstância de, por razões de «conexão» («de processos» - art. 25.º), terem sido conhecidos simultaneamente os crimes «concorrentes» (de cada «processo conexo»).

6.5. Acresce que, para efeitos de recurso, «é autónoma a parte da decisão que se referir, em caso de concurso de crimes, a cada um dos crimes» (art. 403.º, n.º 2, al. b), do CPP). Por isso, o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP adverte para que tal regime de recorribilidade (no tocante «a cada um dos crimes», ou, mais propriamente, ao «processo conexo» respeitante a cada «crime») se há-de manter «mesmo em caso de concurso de infracções» julgadas «em processos conexos» (ou em «um único processo organizado para todos os crimes determinantes de uma conexão» - art. 29.º, n.º 1, do CPP).

6.6. Aliás, se o art. 400.º, n.º 1, nas suas alíneas e) e f), pretendesse tomar em conta a pena correspondente ao «concurso de crimes», teria aludido a «processos por crime ou concurso de crimes» (e não a «processos por crime, mesmo em caso de concurso»).

6.7. De resto, é nesse sentido que a melhor doutrina (19) se vem pronunciando:

«A expressão “mesmo em caso de concurso de infracções” suscita algumas dificuldades de interpretação. A pena aplicável no concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas aplicadas aos diversos crimes em concurso (art. 77.º do CP). Não parece que o legislador tenha aqui recorrido a um critério assente na pena efectivamente aplicada no concurso e, em abstracto, é impossível determinar qual a pena aplicável aos crimes em concurso antes da determinação da pena aplicada a qualquer deles. Parece que a expressão “mesmo em caso de concurso de infracções” significa aqui que não importa a pena aplicada no concurso, tomando-se em conta a pena abstracta aplicável a cada um dos crimes».

6.8. Daí que tenham de considerar-se definitivas (art. 400.1.e do CPP) – e, por isso, irrecorríveis - as penas parcelares aplicadas ao arguido, nas instâncias, por «tráfico menor» (18 meses de prisão), por «detenção de arma proibida» (3 anos de prisão) e por «receptação» (15 meses + 14 meses +1 ano + 1 ano de prisão).


7. A TERCEIRA QUESTÃO prévia

7.1. «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição» (art. 412.4 do CPP). Para quê? Para que o tribunal recorrido, cabendo-lhe (20) a transcrição das provas gravadas que, segundo recorrente, «impõem decisão diversa da recorrida», a possa, «por referência aos [respectivos] suportes técnicos», realizar. Ora, no caso, a transcrição só não teve lugar porque o recorrente, ao indicar «as provas que impunham decisão diversa da recorrida», omitiu a correspondente referência aos «suportes técnicos», assim a inviabilizando. Pois que, competindo a transcrição ao tribunal recorrido (como, em conflito de jurisprudência, já se assentou), essa referência destinar-se-á exactamente a indicar, à entidade encarregada da transcrição, os passos da gravação a transcrever. E, sem transcrição, a Relação ficaria impedida – como ficou – de «modificar a decisão recorrida» ( 21) «Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância pode ser modificada [pela Relação] se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412.3» (art. 431.b do CPP), e tiver havido lugar à transcrição das provas concretamente especificadas (art. 412.3.b e 4).

7.2. Diversamente do que supõe o recorrente, a «referência aos suportes técnicos» (exigida pelo art. 412.4) precede e condiciona a transcrição oficial. Não se impõe, pois, ao tribunal recorrido que transcreva toda a prova gravada, facultando-a depois às «partes» para que estas, enfim, «dêem cumprimento do referido ónus». O recorrente é que, de entre a prova gravada, há-de, na motivação do recurso, especificar as provas «que impõem decisão diversa da recorrida» e, relativamente às «provas que tenham sido gravadas», especificá-las «por referência aos respectivos suportes técnicos», para que, depois, possa haver lugar, nessa parte, à correspondente «transcrição oficial» (de modo a permitir à Relação, sem necessidade de se socorrer directamente dos suportes técnicos, a apreciação da respectiva impugnação).


8. A quarta e última QUESTÃO prévia

8.1. O recorrente, ao acusar a Relação de omissão de pronúncia, cingiu-se aos momentos do acórdão recorrido que discorreu especificamente sobre as questões que só ele suscitara. Esqueceu, porém, aqueles que, tratando genericamente das questões comuns a mais que um recorrente, apreciou, em conjunto, as demais por ele suscitadas.

8.2. Recorde-se, a propósito, que a decisão recorrida (fls. 2976 a 3043, 16.º volume), quanto à «imodificabilidade da factualidade apurada pela 1.ª instância», partiu do princípio de que «o incumprimento daquele ónus acarreta a impossibilidade de o tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto (…), a significar que esta Relação não pode nem deve sindicar a decisão de facto impugnada, o que equivale a dizer que os poderes de cognição se encontram circunscritos, no caso, à matéria de direito, sem prejuízo da ocorrência dos vícios do art. 412º, nº 2, do CPP» (fls. 3020).

8.3. Não obstante, e sem embargo de a fls. 3020 a 3032 ter denegado os vícios a que alude o art. 410.2 do Código de Processo Penal, «analisou a valoração que da prova foi feita pelo tribunal recorrido» e concluiu - «atentando, com a isenção ou distanciamento exigidos, nos meios de prova que da respectiva fundamentação constam como tendo sido ponderados pelo tribunal “a quo” e, bem assim, nas razões invocadas pelo mesmo tribunal para terem sido relevados pela forma como o foram» - que «a convicção alcançada por este se mostra suficientemente objectivada e motivada, capaz portanto de se impor aos outros» e, ainda, que «a matéria de facto apurada o foi na sequência de uma exaustiva discussão em sede de audiência de julgamento, que se mostra claramente valorada» (fls. 3023).

8.4. De qualquer modo, as questões suscitadas pelo recorrente, sob as alíneas dd) e ee), no seu recurso para a Relação, respeitavam a crimes (de receptação) que – como já se viu, supra, no item 6. – se hão-de considerar definitivamente julgados.

8.5. Donde que não possam as correspondentes questões instrumentais, de facto ou de direito, voltar a discutir-se – ou, sequer, a colocar-se – em recurso.

8.6. E, quanto às questões conexas com os crimes de «roubo» - a apreciar, na devida oportunidade (cfr., infra, item 9.4), mais detidamente – recordar-se-á que a Relação, ao fazer a apreciação conjunta de todos os recursos, «preferenciou um método propiciador da apreciação global dos segmentos que àqueles recursos são comuns, retornando tão-somente à consideração pontual e específica de cada um deles quando a isso nos obrigue a sua peculiaridade temática ou a sua tónica pessoal» (fls. 3020). E, nesse contexto, a Relação, a fls. 3037 a 3040, não deixou de se pronunciar (a propósito da conduta do co-arguido Carlos Dias) sobre o tipo legal de roubo e os respectivos requisitos de punibilidade.


9.DECISÃO intercalar

9.1. Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência para apreciar as questões prévias suscitadas no exame preliminar do relator,

a) Rejeita, por inadmissibilidade (art. 400.1.c do CPP), o recurso oposto pelo cidadão AA ao acórdão da Relação de Lisboa que, em 05Dez05, negou provimento - confirmando (definitivamente, nessa parte) a decisão recorrida - ao respectivo recurso interlocutório de 04Jul05;

b) Rejeita, por inadmissibilidade (art. 400.1.e), o recurso oposto ao acórdão da Relação, no tocante aos «processos conexos» por crimes puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos de prisão (designadamente pelo crime de «receptação» p. p. art. 231.1 do CP); e

c) Rejeita o recurso, por manifesta improcedência (art. 420.1), na parte em que se opôs à decisão recorrida por esta se ter eximido a apreciar a sua impugnação da decisão do tribunal colectivo sobre matéria de facto (art. 412.3), e naquela em que a acusou de «omissão de pronúncia».

9.2. O recorrente pagará as custas deste incidente, com taxa de justiça individual de 4 (quatro) UC e procuradoria, também individual, de 1 (uma) UC.

9.3. E, a título de sanção processual (art. 420.4), pagará a importância de 4 (quatro) UC.

9.4. Oportunamente, os autos voltarão ao relator para preparação do processo com vista à apreciação, em audiência, das questões, de entre as colocadas pelo recurso, ainda subsistentes.


Lisboa, 6 de Abril de 2006

Carmona da Mota - relator
Pereira Madeira
Simas Santos.
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(1) Detido em 31Mai04 (fls. 1874) e preventivamente preso entre 02Jun04 (fls. 452) e 03Jun05 (fls. 2610v) e desde 01Abr06.
(2) Juízes Rui Teixeira, Maria Domingas Simões e Carla Sofia Antunes.
(3) Juízes Rui Teixeira, Maria Domingas Simões e Carla Sofia Antunes.
(4) Roubo na Ourivesaria Cavaca em 24.03.2003.
(5) Roubo na Ourivesaria Cavaca em 27.08.2003.
(6) Receptação do veículo “DX”.
(7) Receptação do veículo Fiat Croma.
(8) Roubo tentado na Ourivesaria Santa Maria.
(9) Roubo na Ourivesaria Marques.
(10) Roubo na Anfesa.
(11) Receptação do veículo Toyota Carina.
(12) Receptação do veículo Volvo.
(13) Um punhal.
(14) Um revólver Amadeo Rossi.
(15) Desembargadores Carlos Benido, Ana Brito, Francisco Caramelo e Vasques Dinis.
(16)Adv. Maria Paula Gouveia Andrade.
(17) «Ao decidir manter as penas parcelares provindas do tribunal de Mafra sem proceder a qualquer juízo crítico quanto à proporcionalidade das mesmas, o tribunal recorrido violou grosseiramente os princípios da culpabilidade (nulla poena sine culpa) - art.s 13º e 40º CP: não há pena sem culpa e a culpa decide da medida da pena (art. 40º/2) e da proporcionalidade (ou da proibição do excesso da restrição da liberdade - art. 18º/2 CRP)». Porém, a Relação não poderá ser acusada, a este respeito, de omissão de pronúncia, uma vez que essa questão lhe não fora colocada. Tanto mais que o recorrente – não pondo em causa a «proporcionalidade das penas parcelares» – se limitara a pedir «a absolvição» (a pretexto de que «nenhuma prova fora produzida em juízo que permitisse concluir pela condenação do recorrente pelos crimes pelos quais fora condenado»).


(18) «Há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido vário) crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca (...)»
(19) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, p. 325.
(20) «Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.os 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida cabe ao tribunal» (Assento 2/2003, DR I-A, 30Jan03).
(21) Senão nos estritos limites do art. 410.2 do CPP e com base, simplesmente, no «texto da decisão recorrida»