Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | PIRES DA ROSA | ||
| Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO DANOS REPARAÇÃO VEÍCULO EXCESSIVA ONEROSIDADE DA REPARAÇÃO VALOR PATRIMONIAL | ||
| Nº do Documento: | SJ200712040042197 | ||
| Data do Acordão: | 12/04/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Sumário : | 1 - Em matéria da obrigação de indemnização por danos o princípio, a regra, é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente. 2 - Aplicando à situação as regras básicas do ónus da prova, ao Autor cabe a prova do princípio, à Ré cabe a prova da excepção. 3 - Ao autor, que viu o seu automóvel danificado em acidente de viação, cabe a prova do em quanto importa a sua reparação, restaurando in natura o veículo danificado; à Ré seguradora, que acha essa reparação excessivamente onerosa, cabe a prova disso mesmo - que a reparação é não apenas onerosa, mas excessivamente onerosa. 4 - Um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação; o outro não é o valor venal do veículo mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado. 5 - Se a ré seguradora quer beneficiar da excepção não lhe basta «encostar-se» ao valor venal; antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igulamente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas» | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: AA instaurou, em 17 de Março de 2005, contra M... – SEGUROS GERAIS, S.A. no Tribunal Judicial da comarca de Coimbra, onde recebeu o nº844/05, da 2ª secção da Vara de Competência Mista, acção ordinária, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de 32 785,13 euros, com juros legais contados desde a citação até integral pagamento; e a « liquidar o valor do dano vincendo da privação do uso do veículo, à razão diária de 25,00 euros até à entrega do veículo ao autor devidamente reparado », como indemnização pelos danos sofridos no acidente de viação ocorrido no dia 9 de Abril de 2003, pelas 0800 horas, na Rua da Constituição, na cidade de Coimbra, entre os veículos de passageiros ...-...-AQ, conduzido pelo autor, seu proprietário, e ...-...-MG, conduzido por BB, e com contrato de seguro na ré, com a apólice .../0, cuja culpa exclusiva imputa a este condutor. A ré contesta a fls.49, aceitando o contrato de seguro, aceitando a responsabilidade mas impugnando os danos. Foi elaborado ( fls.70 ) o despacho saneador, com condensação dos factos assentes e alinhamento da base instrutória. Efectuado o julgamento, com respostas nos termos do despacho de fls.119, foi proferida em 3 de Novembro de 2005 a sentença de fls.122 a 126 que julg|ou| parcialmente procedente a acção e conden|ou| a ré M... – SEGUROS GERAIS, S.A. a pagar ao autor a quantia de 4402,66 euros, sendo a quantia de 1 952,66 euros acrescida de juros, à taxa anual de 4% desde a citação até efectivo pagamento e a quantia de 2 450,00 euros acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4% desde esta data até efectivo pagamento, absolvendo-a do pedido quanto ao demais. Inconformado, o autor interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de fls.167 a 171, julg|ou| parcialmente procedente a apelação e, em consequência, conden|ou| a ré seguradora a pagar ao autor a quantia de 8 752,71 euros, a que acrescem juros legais de 4 % a contar d a citação, excepto sobre a quantia de 750,00 euros que se contam a partir da data da sentença. É agora a vez de a ré se mostrar inconformada e pedir revista para este Supremo Tribunal. Alegando a fls.187, e restringindo expressamente o seu recurso à « quantia necessária à reparação do veículo », CONCLUI a recorrente M...: a. O Recorrido tinha na sua posse um veículo cujo valor comercial, antes do acidente, não seria superior a 1.200,00 euros, e cuja reparação, após o acidente, ascende a 5.843,50 euros, sem desmontagem, tendo sido atribuído ao salvado um valor de 200,00 euros. b. Ora, no que respeita à obrigação de indemnizar, o princípio geral vem consagrado no art.562° do CCivil, no qual se preceitua que "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento a que obriga a indemnização". c. No entanto, subsidiariamente, permite o arte 566°, n°1 CCivil que a indemnização seja fixada em dinheiro sempre que a reposição natural se mostre excessivamente onerosa para o devedor, sendo que há excessiva onerosidade sempre que exista flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural para o responsável. d. Constata-se, no caso em apreço, que o valor venal do veículo corresponde a 20% do valor da reparação; o mesmo é dizer que o valor da reparação é cinco vezes superior ao valor venal do veículo. e. Ou seja, é por demais evidente o elevado grau de desproporcionalidade entre o valor venal do veículo do Autor e o valor da sua reparação – neste sentido decidiu o Ac. STJ de 28/10/2003, referente ao proc. nº1033/03, in www.dgsi.pt/jstj. f. E também o próprio legislador reconhece a devida justiça à indemnização em dinheiro em detrimento da reconstituição natural quando o valor da reparação seja manifestamente superior ao valor venal do veículo. g. Na verdade, através do Dec.lei nº83/2006, de 3 de Maio, veio definir de forma rigorosa o que é a perda total de um veículo, preceituando que esta existe sempre que se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do avlor do salvado, ultrapassa 100% do valor venal do veículo imediatamente antes do sinistro. h. Acrescentando que o valor da indemnização por perda total é determinado com base no valor venal, deduzido do valor do respectivo salvado, caso este permaneça na posse do proprietário. i. A reconstituição in natura, que tivesse lugar mercê da reparação, seria excessivamente onerosa para a recorrente, na acepção do nº1 do artigo 566º do Código Civil, uma vez que, objectivamente ajuizada, imporia a esta um encargo desmedido e desajustado, excedendo manifestamente os limites postos legalmente a uma legítima indemnização. j. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a Recorrente que, no caso sub judice, não poderá haver restauração natural, sob pena de manifesto enriquecimento do recorrido à custa da recorrente. l. O Acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou erradamente as normas constantes nos arts.483°, 562° e 566° do Código Civil. Não houve contra – alegações. Estão corridos os vistos legais. Cumpre apreciar e decidir. Os FACTOS são o que são e não adianta estar aqui a repti-los. Basta remeter para eles, ao abrigo do disposto no nº6 do art.713º do CPCivil, tal como ficaram assentes no acórdão recorrido, reproduzindo por comodidade aqueles que interessam à questão que constitui objecto do recurso, a da reparação do veículo do autor. Estes: 1) Em consequência do embate, o AQ sofreu estragos. 2) A reparação dos estragos do AQ importa em 5 843,50 euros, reparação que demoraria 20 dias e que o autor não mandou efectuar. 3) O AQ é um Renault Clio de Julho de 1992, a gasolina, com 178000 Kms. 4) O seu valor venal não ultrapassa os 1 200 euros. 5) Os salvados, que estão com o autor, têm o valor de 200 euros. 6) O autor utilizava o veículo nas suas deslocações quotidianas, local de trabalho (em Coimbra), para transportar o seu filho menor à escola, para utilizar nas suas férias e tempos livres, para visitar amigos e familiares, para dele fazer uso e retirar as normais utilidades (9º). 7) Em 8.05.03, a ré colocou à disposição do autor a quantia de 1.200 euros pela perda do veículo. ~~ A questão que nos ocupa, a única questão que nos ocupa, é da reparação do veículo do autor e da alegada excessiva onerosidade da mesma, a conduzir à necessidade da reparação por equivalente postergando a indemnização in natura. Em 9 de Abril de 2003 o autor tinha um velho Renault Clio, de 1992, já com 178 000 ( cento e setenta e oito mil quilómetros ), cujo valor venalnão ultrapassava os 1 200 euros e cujos salvados, que ficaram com o autor, valiam 200 euros. Mas é um veículo cuja reparação é possível. Custa 5 843,50 euros, mas é possível. E era esse o carro que o autor utilizava nas suas deslocações quotidianas para o local de trabalho (em Coimbra), para transportar o seu filho menor à escola, para utilizar nas suas férias e tempos livres, para visitar amigos e familiares, para dele fazer uso e retirar as normais utilidades. A 1ª instância considerou excessivamente onerosa a reparação “face ao valor da viatura” e concluiu que a indemnização a que o autor tinha direito pelos danos no seu automóvel seria a de 1000,00 euros ( 1 200,00 – 200,00 ) e “porque não seria fácil encontrar no mercado um carro por aquele dinheiro e com aquelas características” fixou a indemnização em 1 500,00 euros. O acórdão recorrido não o entendeu assim e fixou a indemnização exactamente no montante necessário à sua reparação. E tem o nosso inteiro aplauso. Como já dissemos em outras decisões ( por exemplo, no proc. nº4047-05, desta mesma secção do STJ, e antes no Ac. RC de 10 de Dezembro de 1998, CJ, T5, págs.40 a 43 ) bosquejando a abundante caminhada doutrinária a este propósito - Antunes Varela, Das obrigações Em Geral, vol. I, 3ª edição, págs.775 e segs, Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 5ª edição, pág.637 e segs, Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. III, 1993, pág.38 – em matéria da obrigação de indemnização por danos o princípio, a regra, é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente. Aplicando à situação as regras básicas do ónus da prova, ao Autor cabe a prova do princípio, à Ré cabe a prova da excepção. Ao autor cabia, aqui, a prova do em quanto importava a reparação, restaurando in natura o veículo danificado – e provou que importava em 5 843,50 euros; à Ré cabia a prova de que tal montante era excessivamente oneroso – não apenas oneroso, ou até mais oneroso, mas excessivamente oneroso - para si própria, que era flagrantemente desproporcionado o custo que ia suportar em relação ao interesse do lesado na reparação. Esta « excessividade » há-de aferir-se, naturalmente, pela diferença entre dois pólos: um deles é o preço da reparação ( no caso, 5 843,50 euros como já se disse ) mas o outro não é o valor venal do veículo, no caso 1 200,00 euros. Porque – passe a expressão, que aliás nos agrada - uma coisa é ter o valor, outra coisa é ter a coisa. Uma coisa é ter 1 200,00 euros, outra coisa é ter um Renault Clio de 1992 - ainda que valendo apenas essa quantia - mas que é nosso, que satisfaz os nossos interesses e as nossas necessidades – caminhando nesta preocupação, veja-se o voto de vencido no AC. STJ de 9 de Maio de 1996, CJSTJ, T2, pág.61. E com 1 200,00 euros compraria o autor um veículo ligeiro do mesmo tipo, adequado a satisfazer as mesmas necessidades e interesses ( sem falarmos já da afectividade que é também um valor que poderia ser considerado, conquanto in casu o não tivesse sido pelo autor )?! Não é facto que a ré, sequer, alegue. A ré coloca-se apenas na posição de quem quisesse vender o veículo e por isso diz que o prejuízo do autor é apenas de 1000,00 euros porque podendo vender o Renault Clio por 1 200,00 antes do acidente agora só tem salvados a valerem 200,00. Mas quem disse que o réu queria vender, se o réu tem um veículo que satisfaz as suas necessidades?! O valor a ter em conta não é, então, o valor venal do veículo mas aquele a que chamaremos o valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado. “Oferecendo” apenas, no seu articulado, o valor venal, a ré não oferece, na verdade, o outro pólo a partir do qual o tribunal pudesse chegar à onerosidade excessiva que é pressuposto da excepção da indemnização em dinheiro, como resulta do disposto no nº1 do art.566º. Porque esta – nº2 do mesmo artigo – tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. Essa, a situação patrimonial, é que seria o segundo pólo a considerar: quanto teria a Ré seguradora de entregar ao Autor, à data da citação da Ré, para que ele, Autor, pudesse repor o seu património no estado que se encontrava antes do acidente ? Não que pusesse o seu património à venda - se assim se pode dizer e parece a ré querer impor - mas que o reintregasse no status quo ante. O problema não é, repetimos, o do valor venal do veículo sinistrado ( como por exemplo se entendeu no Ac. STJ de 20 de Maio de 1995, CJSTJ, T2, pág.97 ) mas seguramente o do seu valor patrimonial, o valor que ele representa efectivamente – tal como estava antes do sinistro – dentro do património do autor ( e não o valor que ele obteria se naquele mesmo estado o vendesse ). Não pode « obrigar-se » alguém a vender, apenas para ficcionar um polo de comparação da excessiva onerosidade. Fica então a regra, uma vez que a Ré não provou a excepção. E a regra é reparar. In natura. Pagando a indemnização necessária à reparação integral do veículo, ainda que mais dispendiosa para a ré. Como bem decidiu a Relação de Coimbra no acórdão recorrido. Se acaso a ré entendia o contrário competir-lhe-ia não se encostar ao preço de venda do veículo, passe o evidente plebeísmo, mas alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, por um determinado preço ( mais baixo do que a reparação ) um outro veículo que lhe satisfizesse de modo idêntico as suas necessidades ... “danificadas”. ~~ D E C I S Ã O Na improcedência do recurso, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido. Custas a cargo da recorrente. Lisboa, 4 de Dezembro de 2007 Pires da Rosa (Relator) Custódio Montes Mota Miranda |