Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
Descritores: | UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA JULGAMENTO AMPLIADO TÍTULO DE CRÉDITO LIVRANÇA DIREITO DE REGRESSO AVAL AVALISTA CO-AVALISTAS RELAÇÃO CAMBIÁRIA OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA | ||
Data do Acordão: | 06/05/2012 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Referência de Publicação: | DR, I SÉRIE, Nº 137, 17 DE JULHO DE 2012, P. 3796. -ANOTAÇÃO AO ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 7/2012 DE 5.6.2012, RE. 2493 /0, PUBLICADO NA REVISTA " CADERNOS DE DIREITO PRIVADOM Nº 40 (OUT./DEZ. 2012) P. 41-67 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Decisão: | UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Sumário : | Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Pleno das Secções Cíveis deste Supremo Tribunal de Justiça:
I - AA e BB
demandaram
CC e DD e EE e FF pedindo a condenação dos primeiros e dos segundos Réus no pagamento, uns e outros, da quantia de € 43.904,61, com juros de mora desde a citação. Alegaram que, em 17 de Abril de 1989, a sociedade GG-Malhas, Ld.ª, subscreveu, a favor do Banco ..., S.A., uma livrança no montante de PTE 48.000.000$00 (€ 239.422,99), com vencimento em 16 de Outubro de 1995, em cujo verso foi aposto o aval por cada um dos Autores e dos Réus. Por não ter sido paga a livrança na data do seu vencimento, o credor interpôs contra todos os avalistas a acção executiva, no âmbito da qual os ora Autores, na sua qualidade de avalistas, procederam ao pagamento da quantia global de € 117.601,65, envolvendo a quantia exequenda e custas judiciais, montante que, actualizado de acordo com o coeficiente de desvalorização da moeda de 1,12, representaria na data da instauração da presente acção o valor de € 131.713,85. Pretendem através da presente acção exercer o direito de regresso relativamente aos primeiros e aos segundos Réus.
Os Réus EE e FF foram citados por éditos e não contestaram, ainda que posteriormente tenham constituído mandatário judicial. Os Réus CC e DD contestaram e, para além da excepção de prescrição, alegaram que não existe direito de regresso entre avalistas do mesmo avalizado. Invocaram ainda que, em 4 de Fevereiro de 1992, já depois da prestação do aval, a quota de que o Réu CC era titular no capital social da sociedade subscritora da livrança foi cedida ao Autor AA e ao Réu EE, tendo ficado clausulado na escritura pública de divisão e de cessão de quota que os cessionários assumiam “toda a situação económica da sociedade, designadamente quaisquer compromissos sociais, créditos e débitos, mesmo que vencidos e não pagos”, renunciando, assim, ao eventual exercício do direito de regresso contra os Réus contestantes.
Na réplica os Autores contrapuseram que a aludida cláusula inserida na escritura pública não se referia especificamente à livrança a que estes autos se reportam, não interferindo, por isso, no direito de regresso que pretendem exercer.
No despacho saneador, para além de ter sido julgada improcedente a excepção de prescrição, foi julgada improcedente a acção, considerando-se que o direito de regresso entre avalistas do mesmo avalizado dependia de convenção extra-cartular, a qual nem sequer teria sido alegada.
Apelaram os Autores, mas a sentença foi confirmada pela Relação com idênticos fundamentos.
Os Autores interpuseram recurso de revista concluindo essencialmente que:
Não houve contra-alegações.
Considerando a divergência jurisprudencial neste Supremo Tribunal de Justiça relativamente ao regime jurídico do direito de regresso entre avalistas do mesmo avalizado, por proposta do ora Relator, foi determinado pelo Exm.º Presidente o julgamento ampliado da revista, nos termos dos arts. 732.º-A e 732.º-B do CPC.
Ao abrigo do disposto no art. 732.º-B, nº 1, do CPC, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer sobre a referida questão, formulando a seguinte conclusão: “No caso de pluralidade de avales prestados por honra do mesmo interveniente cambiário, o avalista que pagou apenas extracambiariamente pode accionar o seu direito de regresso contra os demais avalistas”.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
II – Decidindo: 1. Delimitação do objecto do recurso: Os Autores e os Réus prestaram aval numa livrança subscrita pela sociedade GG-Malhas, Ld.ª. Não tendo esta efectuado integralmente o pagamento da quantia na mesma inscrita, o credor interpôs acção executiva contra todos os avalistas para cobrança do montante ainda em dívida e juros de mora, pretensão que foi satisfeita unicamente pelos ora Autores. Verificou-se, porém, que, entre a data em que foram prestados os avales e aquela em que foi efectuado o pagamento do remanescente da livrança, o sócio (e avalista) CC cedeu a sua quota no capital social da sociedade subscritora aos outros dois sócios (e também avalistas), entre os quais o ora Autor. Suscitam-se no presente recurso de revista duas questões essenciais: a) Primeira: os avalistas do mesmo avalizado que cumpriram a obrigação cambiária têm direito de regresso em relação aos demais avalistas nos termos previstos para as obrigações solidárias ou tal direito depende de convenção entre eles acordada? b) Segunda: o teor da escritura pública de cessão da quota social de um dos avalistas aos outros avalistas da mesma sociedade consignando que “os cessionários assumirão, a partir desta data, toda a situação económica da sociedade, designadamente quaisquer compromissos sociais, créditos e débitos, mesmo que vencidos e não pagos”, interfere no concreto exercício do direito de regresso?
2. Quanto à divergência jurisprudencial: 2.1. O aval, designadamente quando prestado ao subscritor de uma livrança, constitui um negócio cambiário cujo regime jurídico emerge da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (doravante L. U.), maxime dos seus artigos 30.º a 32.º e 46.º, ex vi art. 78.º. É uniforme o entendimento, extraído quer da jurisprudência deste Supremo Tribunal, quer da generalidade da doutrina, que a L. U. limita-se a regular a responsabilidade do avalista perante os credores cambiários e o exercício do seu direito de reembolso contra o respectivo avalizado ou contra os demais obrigados na cadeia de responsáveis cambiários, nada prevendo quanto ao eventual exercício do direito de regresso entre os diversos avalistas do mesmo avalizado. Daí que tenham surgido duas respostas antagónicas: a) Uma que admite o direito de regresso em termos análogos ao que está previsto no art. 650.º do Código Civil para a pluralidade de fiadores; b) Outra que faz depender a existência e conteúdo desse direito de convenção extracambiária acordada entre os avalistas. Dito de outro modo: pressuposta a ausência de relações cambiárias entre avalistas do mesmo avalizado reguladas pela L. U., admitem uns, como regra, o direito de regresso, sem prejuízo de estipulação em contrário, enquanto para outros a existência e conteúdo desse direito dependem de convenção extracartular.
2.2. A primeira tese encontrou eco no Ac. do STJ, de 16-3-1956, BMJ 55º, pág. 299 (depois de ter sido desenvolvida no Ac. da Rel. de Lisboa, de 22-4-1953, BMJ 43º, pág. 536, relatado por LOPES CARDOSO), tendo sido retomada designadamente nos Acórdãos do STJ, de 7-7-1999, CJSTJ, tomo III, pág. 14, de 24-10-2002 (SILVA SALAZAR, CJSTJ, tomo III, pág. 121, e www.dgsi.pt), de 15-11-2007 (MARIA dos PRAZERES BELEZA, www.dgsi.pt) e de 13-07-2010 (HÉLDER ROQUE, www.dgsi.pt).[1] Na doutrina nacional, essa era a solução defendida por GONÇALVES DIAS, em “Da Letra e da Livrança”, vol. VII, pág. 589. Mais recentemente, foi assumida por ROMANO MARTINEZ, em “Garantias de Cumprimento”, 5ª ed., pág. 123, e por MENEZES LEITÃO, em “Garantias das Obrigações”, 3ª ed., pág. 134, defendendo CASSIANO dos SANTOS, em “Direito Comercial Português”, vol. I, págs. 265 a 267, e CAROLINA CUNHA, em “Letras e Livranças - Paradigmas Actuais e Recompreensão do Regime”, págs. 304 e segs., a aplicabilidade directa das normas dos artigos 524.º e 516.º do Código Civil. A segunda tese aflorou no Ac. do STJ, de 25-7-1978, BMJ 279º/214, e ressurgiu nomeadamente nos Acórdãos do STJ, de 27-10-2009 (AZEVEDO RAMOS, www.dgsi.pt), de 25-03-2010 (PEREIRA da SILVA, com dois votos de vencido, www.dgsi.pt), de 20-5-2010 (ÁLVARO RODRIGUES, www.dgsi.pt) e de 23-11-2010 (FONSECA RAMOS, www.dgsi.pt). É a solução defendida por PAIS de VASCONCELOS em “Pluralidade de avales de um mesmo avalizado e «regresso» do avalista que pagou sobre aqueles que não pagaram”, inserido na obra “Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais”, vol. III, págs. 947 e segs.[2]
2.3. Importa dirimir a divergência jurisprudencial. A pluralidade de avalistas do mesmo obrigado cambiário, quer através da aposição da assinatura de cada um sob a expressão “dou o meu aval a …” ou outra de sentido equivalente, quer mediante aposição das assinaturas de todos sob uma única expressão de aval, constitui uma realidade recorrente, designadamente na actividade das sociedades por quotas de pequena ou de média dimensão quando intervêm como aceitantes de letras ou subscritoras de livranças. A necessidade de acederem ao crédito ou, do lado inverso, as vantagens que para os credores podem decorrer do reforço da garantia patrimonial implicam, com frequência, a intervenção dos sócios (ou mesmo dos respectivos cônjuges) como avalistas da sociedade. Acresce que a prestação de aval constitui uma garantia particularmente relevante. As características da literalidade, da autonomia e da abstracção típicas dos negócios jurídico-cambiários, associadas à regra que decorre da L. U. da solidariedade dos avalistas com os demais responsáveis, reforçam as garantias do credor relativamente à cobrança do seu crédito, ao mesmo tempo que facilitam a circulação do título cambiário. Porém, sendo pacífico o entendimento de que a L. U. não regula as relações internas entre os diversos avalistas do mesmo avalizado, a resposta relativamente ao eventual direito de regresso entre eles deve encontrar-se nos quadros do direito comum. Asserção que se encontra em diversos arestos deste Supremo Tribunal, sendo sustentada, além do mais, no facto de na Consideração n.º 75 do Congresso de Genebra, que preparou a Convenção de Genebra de 1930 sobre a L. U., se ter consignado que “não há entre co-avalistas relações cambiárias, mas somente de direito comum que uma Lei Uniforme sobre Letras não tem que regular”.[3]
2.4. O direito comparado não constitui, por si, elemento decisivo para identificar o regime que emerge do direito comum interno. Porém, tratando-se de questão suscitada em face da falta de regulamentação naquele instrumento de Direito Internacional, não pode negar-se relevo ao modo como a mesma é resolvida em ordenamentos jurídicos congéneres. O entendimento de que entre avalistas do mesmo avalizado não existem relações cambiárias é comum quer nos países, como Portugal, que acolheram no respectivo direito interno a Lei Uniforme, quer naqueles cuja opção passou pela aprovação de legislação própria (v.g., em Espanha, a Lei 9/1985, de 16 de Julho).[4] No ordenamento jurídico italiano, a admissibilidade do direito de regresso encontra previsão expressa no art. 66.º da Lei Cambiária, de 14 de Dezembro de 1933,[5] com referência directa às regras previstas para as obrigações solidárias. Já na França ou na Alemanha, a afirmação e definição de tal direito não decorre de normas expressas, sendo fruto da discussão doutrinal ou jurisprudencial.[6] O mesmo se verifica em Espanha onde predomina a tese segundo a qual, sem prejuízo de convenção, existe direito de regresso entre os diversos avalistas, respondendo internamente em igual proporção, nos termos do art. 1844.º do Código Civil (que regula o direito de regresso entre diversos fiadores), com remissão para as regras do art. 1145.º sobre as obrigações solidárias.[7]
2.5. Relegados para o domínio do direito comum, nada obsta a que, mediante livre convenção, os diversos avalistas regulem os aspectos respeitantes à distribuição interna das respectivas responsabilidades para a eventualidade de apenas algum ou alguns deles vir a satisfazer o pagamento da quantia avalizada, faculdade que tanto pode revelar uma vontade no sentido da repartição igualitária da responsabilidade como a sua distribuição em função da titularidade do capital investido (v.g. quando os avalistas sejam sócios de uma mesma sociedade avalizada) ou até a exclusão de algum ou alguns avalistas, designadamente daquele cuja intervenção tenha sido determinada unicamente por factores de ordem externa. Nestes e noutros casos semelhantes, o regime do direito de regresso pautar-se-á pelo acordo que tiver sido outorgado. Mais difícil é a resposta quando se constata que os avalistas nada convencionaram a respeito do eventual exercício do direito de regresso. Num significativo número de arestos deste Supremo Tribunal de Justiça,[8] advoga-se a admissibilidade do direito de regresso mediante a aplicação do regime que, para a pluralidade de fiadores, está previsto no art. 650.º do Código Civil que, por seu lado, remete para as regras dos artigos 524.º e 516.º.[9] Solução semelhante à que era maioritariamente defendida no âmbito do Código de Seabra.[10] Em doutrina mais recente, é sustentada a aplicação directa dos mencionados artigos 524.º e 516º, sem intermediação das regras da fiança, no pressuposto de que existe uma verdadeira relação de solidariedade entre os diversos avalistas do mesmo avalizado. Segundo CASSIANO SANTOS, em “Direito Comercial Português”, vol. I, págs. 266 e 267, “as obrigações dos co-avalistas são indiscutivelmente solidárias” e, uma vez que “as relações internas entre co-avalistas estão fora do regime especial cambiário, regendo-se, na medida em que emergem de acto de comércio, pelo direito comercial e, na omissão deste, pelo direito civil comum”, “presume-se que os co-avalistas participam, nas relações entre si, em partes iguais da dívida”, nos termos previstos também para a fiança. Mais incisiva é CAROLINA CUNHA, em “Letras e Livranças - Paradigmas Actuais e Recompreensão do Regime”, págs. 309 e 310, para quem importa afastar “o risco de equívocos graves” emergentes da passagem pela norma do art. 650.º do Código Civil, de modo que, “sendo os co-avalistas obrigados solidários”, não existem motivos para “a disciplina das respectivas relações internas se afastar do regime traçado no Código Civil para a solidariedade passiva”. Assevera ainda que “do ponto de vista da construção jurídica, tal não impede que continue a preferir-se a linha recta que conduz do art. 47.º L. U. ao regime das obrigações solidárias plasmados nos artigos 512.º e seguintes do Código Civil” (pág. 307). Remetidos para o direito comum no que concerne às relações internas entre os diversos avalistas, por falta de regulamentação do direito de regresso na L. U., não se descortinam motivos que, por uma ou outra das vias, afastem a aplicabilidade do regime estabelecido para as obrigações solidárias, o que, em regra, se traduzirá na admissibilidade do direito de regresso e na distribuição da responsabilidade de acordo com a presunção que decorre do art. 516.º do Código Civil, sem prejuízo do funcionamento da liberdade contratual que pode levar a que, ao abrigo do disposto no art. 405.º do Código Civil, se estabeleçam acordos quer sobre a existência e condicionalismo do direito de regresso, quer sobre a repartição da responsabilidade. É este o resultado que se extrai do já citado Acórdão deste Supremo Tribunal, de 13-7-2010, onde se concluiu que “o avalista que pagou ao tomador da livrança, em quantia superior à que lhe competia, por força do regime da solidariedade passiva, no âmbito das relações externas, perante o credor, tem direito de reaver dos restantes avalistas, no domínio das relações internas, com base no direito de regresso, a parte que a cada um destes compete, que se presume ser igual para todos, nas relações entre os devedores solidários”. Sustentada também em razões de justiça, esta mesma solução assoma no Acórdão do Tribunal Constitucional, de 24-3-2004, proferido no âmbito do processo nº 643/2003 (www.tribunalconstitucional.pt), em cuja fundamentação se refere que, “sendo vários os co-avalistas, todos eles garantindo o pagamento da dívida, não se explicaria que, a final, só um ou alguns viessem a ter de suportar a totalidade da dívida e que aos outros co-avalistas nenhum pagamento pudesse ser exigido. Razões de justiça relativa sempre militariam na distribuição do encargo entre todos os co-avalistas”. Em suma, na ausência de regulamentação da matéria na L. U. e sem embargo de convenção mediante a qual os avalistas regulem o exercício do direito de regresso,[11] este segue o regime prescrito para as obrigações solidárias.
2.6. Não se desconhecem as características típicas do aval e bem assim as diferenças entre o aval e a fiança, aliás, bem evidenciadas pela jurisprudência e pela doutrina,[12] sobrelevando a literalidade, a autonomia e a abstracção que caracterizam as relações cartulares, por oposição aos negócios jurídicos extracambiários como a fiança. Porém, tais diferenças não podem desviar-nos da percepção dos pontos de contacto que também existem, merecendo destaque o facto de ambas se destinarem a reforçar a garantia dos credores mediante a multiplicação dos patrimónios susceptíveis de serem objecto de execução coerciva. Ora, a aceitação, como regra geral, da existência de direito de regresso entre avalistas não coloca em crise qualquer aspecto específico do aval, deixando intactos todos os motivos que justificaram o tratamento desta garantia pessoal na L.U., maxime o privilégio conferido ao credor cambiário de accionar directa, imediata e solidariamente os avalistas e outros devedores, sem qualquer limitação. Além disso, operando o direito de regresso a posteriori, ou seja, apenas depois de algum dos avalistas ter cumprido a obrigação de forma espontânea ou coerciva, não se observa qualquer inconveniente resultante da posterior distribuição do sacrifício pelos demais avalistas. Pelo contrário, a comparticipação efectiva de todos eles no esforço financeiro que tenha sido exigido apenas de algum ou alguns, além de corresponder à percepção generalizada dos efeitos que derivam da prestação de aval, integra de forma mais coerente e justa a repartição das responsabilidades e secundariza efeitos que podem ser mera decorrência de factores subjectivos ou imponderáveis (v.g. iniciativa do credor cambiário dirigida apenas a algum ou alguns dos avalistas, interesse de algum dos avalistas de assumir o pagamento, citação dos avalistas ou penhora de bens em momentos diferenciados, natureza dos bens de uns ou de outros dos avalistas, maior ou menor facilidade na penhora ou na liquidação de alguns bens, etc.).
2.7. Neste contexto, não se descortinam motivos de ordem racional para que, nos casos em que o pagamento da dívida tenha sido feito apenas à custa de algum ou de alguns dos avalistas, o exercício do direito de regresso contra os demais avalistas fique dependente da alegação e prova da existência de uma convenção que o legitime e que defina o seu conteúdo. Um regime jurídico que em abstracto assim fosse configurado caucionaria resultados que, longe dos padrões de objectividade, poderiam ser pura decorrência de factores aleatórios ou de índole subjectiva, sem qualquer conexão com os motivos que levaram à prestação de aval por uma pluralidade de indivíduos. Alijando, por essa via, um princípio de justiça distributiva, seriam susceptíveis de tutela eventuais estratégias de outros avalistas orientados apenas pelo objectivo de se furtarem ao compromisso assumido. Argumentos que ganham especial relevância em situações, como a dos autos, em que o aval foi prestado por cada um dos sócios (e respectivos cônjuges) de uma sociedade que interveio como subscritora da livrança. Foi decerto a ponderação de riscos desta natureza que levou a que, no âmbito do Código Civil de Seabra, a jurisprudência maioritária tivesse afirmado, como regra, a existência de direito de regresso,[13] opção que não pode deixar de ser considerada, tanto mais que o ordenamento jurídico não foi submetido, neste campo específico, a modificações substanciais que justifiquem uma inversão do resultado. Por outro lado, não se encontrando arreigada nos circuitos empresariais, em que é mais frequente a prestação de avales, a percepção da necessidade de uma convenção destinada a assegurar e a definir a posterior repartição da responsabilidade pelos diversos avalistas, tal exigência acabaria por penalizar o avalista ou avalistas que cumprissem ou fossem compelidos a cumprir a obrigação, mediante a liquidação de bens de mais fácil apreensão (v.g. depósitos bancários, salários), com definitivo e injustificado benefício para os demais. Ora, não nos parece aceitável que, na ausência de uma clara vontade do legislador nesse sentido, por via meramente interpretativa (jurisprudencial ou doutrinal), mediante a mera formulação de juízos de natureza formal, se criem condições para que se concretize um desequilíbrio patrimonial entre sujeitos que ab initio se colocaram no mesmo plano de responsabilidade perante os credores cambiários. Sem dúvida que, como refere PAIS de VASCONCELOS, ob. cit., pág. 971, os avalistas, ao prestarem o aval, “não podem deixar de contar com a possibilidade de virem a ter de o pagar” e que, por outro lado, nas relações externas, a prestação de aval implica a responsabilidade solidária dos avalistas entre si e com outros devedores cambiários. Todavia, sendo claro que este regime de solidariedade encontra justificação em motivos ligados à circulação cambiária, não implica, por si, a exigência de uma convenção extracartular como condição para se assegurar a futura repartição interna da responsabilidade entre os diversos avalistas, a qual, não sendo socialmente tida como obrigatória, se revelaria totalmente inadequada quando aplicada a situações de avales prestados por sócios da mesma sociedade. A não ser que os interessados tenham prevenido um tal resultado, não deve ser negada ao avalista que tenha suportado o pagamento da quantia avalizada (ou que tenha suportado uma parte mais elevada do que aquela que lhe competia) o direito de regresso relativamente aos demais avalistas, considerando mais ajustada uma solução em que se assuma, como regra, a distribuição interna da responsabilidade patrimonial nos termos que vigoram para as obrigações solidárias (artigos 524.º e 516.º do Código Civil), à semelhança do que especificamente está previsto no art. 650.º do Código Civil para a pluralidade de fiadores.
3. Revertendo ao caso concreto: 3.1. Os Réus CC e DD alegaram no art. 18.º da sua contestação que cederam ao Autor AA e ao Réu EE a quota que o primeiro detinha no capital social da subscritora da livrança GG Malhas, Ld.ª, cedência essa efectuada mediante escritura pública, remetendo para o “doc. n.º 1” e fazendo menção no final do articulado à sua junção (“Junta: … um documento”). Os Autores admitiram na réplica esse facto. Todavia, verificou-se que o mencionado documento, cuja junção comprovaria a alegação, não foi junto naquela ocasião, omissão que não foi assinalada oportunamente pela secretaria judicial. Neste contexto, tendo em vista a regularização da situação de desconformidade, foi determinada a notificação dos Réus contestantes para procederem à junção da certidão da mencionada escritura pública, a qual foi apresentada juntamente com o requerimento de fls. 526.
3.2. Estão provados os seguintes factos: 3. Em 4-2-1992, os Réus CC e DD, depois de declararem a divisão em duas da quota que o primeiro detinha na sociedade GG-Malhas, Ld.ª, declararam ceder ao ora Autor AA e ao ora Réu EE as quotas resultantes da referida divisão, deixando exarado na escritura pública, além do mais: “… Que fazem estas cessões com todos os correspondentes direitos e obrigações, expressa renúncia à qualidade de gerente do marido, e por preços iguais aos valores nominais respectivos, que dos cessionários já receberam, ficando, assim, definitiva e totalmente desligados da aludida sociedade. Declararam os segundo e terceiro outorgantes:
3.3. As instâncias negaram aos Autores o reconhecimento do direito de regresso relativamente a todos os Réus com base no postulado assente na necessidade de convenção extracambiária. Tal postulado foi infirmado pela solução uniformizadora que anteriormente se enunciou. Porém, daí não decorre imediatamente a procedência da acção relativamente a todos os Réus, revelando-se necessário operar uma distinção entre os Réus CC e DD, por um lado, e os Réus EE e FF, pelo outro. Com efeito, como o revela a matéria de facto apurada, depois de terem sido prestados os avales e antes de os Autores terem efectuado o pagamento da quantia exequenda emergente da livrança, os Réus CC e DD cederam ao Autor e ao Réu EE a quota de que aquele era titular no capital social da sociedade subscritora da livrança, tendo ficado exarado na respectiva escritura pública que “os cessionários assumirão, a partir desta data, toda a situação económica, designadamente quaisquer compromissos sociais, créditos e débitos, mesmo que vencidos e não pagos”. Não está em causa na presente acção a apreciação dos efeitos dessa convenção perante terceiros, mas tão só ponderar se e em que medida a mesma é susceptível de interferir no concreto exercício do direito de regresso pretendido pelos Autores.[14] Submetida aos normais critérios interpretativos, nos termos dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, torna-se evidente que a referida cláusula traduz a renúncia dos cessionários ao direito de regresso relativamente aos Réus CC e DD, abarcando os efeitos da anterior intervenção destes como avalistas da sociedade que subscrevera a livrança cujo pagamento parcial os Autores efectuaram. Não procede a alegação dos Autores de que na escritura pública de divisão e de cessão de quota não se aludiu expressamente à livrança ora ajuizada. A amplitude da convenção que na mesma foi integrada, o contexto que a envolveu e o facto de nela se afirmar o total desligamento dos outorgantes que cederam a quota relativamente à sociedade não permitem duvidar que foi objectivo de todos os declarantes libertar os cedentes de todas as responsabilidades que anteriormente haviam assumido em função dos interesses da sociedade a que respeitava o negócio jurídico em causa. Deste modo, embora da anterior solução uniformizadora pudesse emergir a responsabilização dos Réus CC e DD, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 524.º e 516.º do Código Civil, na proporção de uma terça parte do que foi pago pelos Autores, o direito de regresso que estes reclamam daqueles Réus encontra-se prejudicado pelo acordo extintivo posteriormente outorgado, dele resultando a improcedência da acção na parte respeitante a tais Réus.
3.4. Diversa é a solução a adoptar quanto aos Réus EE e FF de quem os Autores também pretendem obter o reembolso da outra terça parte do que pagaram na qualidade de avalistas. Resultando a admissibilidade do direito de regresso da solução uniformizadora anteriormente sintetizada, nenhuma convenção foi alegada que perturbe a sua aplicação aos referidos Réus, respondendo, cada um, na proporção de 1/6 do que os Autores despenderam. No entanto, não encontrando fundamento legal a pretendida actualização monetária do quantitativo despendido pelos Autores, em face do disposto no art. 551.º do Código Civil, o direito de regresso relativamente a cada um dos referidos Réus cingir-se-á à proporção de 1/6 da quantia de € 111.601,65 que despenderam por conta da livrança avalizada, ou seja, € 18.600,27, acrescida dos juros de mora, desde a sua citação.
3.5. Em conclusão: será concedido provimento parcial ao recurso de revista, mantendo-se o acórdão recorrido, ainda que com fundamento diverso, na parte respeitante aos Réus CC e DD, sendo revogado no que concerne aos Réus EE e FF que serão condenados nos termos referidos.
III - Face ao exposto, acorda-se no Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça no seguinte: a) Julgar a revista parcialmente procedente e, ainda que com fundamentação diversa, confirmar o acórdão recorrido quanto aos Réus CC e DDe revogá-lo na parte respeitante aos Réus EE e FF, sendo cada um deles condenado no pagamento da quantia de € 18.600,27, acrescida dos juros de mora desde a citação. b) Uniformizar a jurisprudência nos termos seguintes: Custas neste Supremo e nas instâncias a cargo dos Autores AA e BB na proporção de 60% e de cada um dos Réus EE e FF na proporção de 20%. Notifique. Abrantes Geraldes (Relator)
[7] DUQUE DOMINGUEZ (“El aval de la letra de cambio”, publicado em “Documentação Jurídica”, tomo XIII, 1986, “Monográfico dedicado a la Ley Cambiária e del Cheque”, págs. 30 e 31) refere que, “salvo que se haya pactado outra cosa, cada uno de los coavalistas soportará una parte igual de la suma cambiaria”. Solução também apontada por ANGEL ROJO, ob. cit., pág. 599. Depois de referir que “el pago válido y debido de la letra por parte de un coavalista hace nacer en su favor la acción de reintegro frente a los demás coavalistas por «la parte que proporcionalmente les corresponda satisfacer»”, acrescenta que “la relación de los coavalistas entre sí no se rige por la regla de la solidariedad cambiaria, sino por las del derecho común” e que a tais situações se aplica “el régimen común interno de la solidariedad”, sendo que “para determinar la proporción de cada uno de los coavalistas hay que estar atento al eventual pacto interno de distribuición de la obligación y, en su defecto, acudir a la regla subsidiaria de las partes iguales” (pág. 599). No mesmo sentido HENRIQUE GADEA (“Los Títulos-Valor: Letra de Cambio, Cheque y Pagaré” - Madrid, 2007, pág. 75). [8] Considerando apenas aqueles em que a questão foi apreciada em plano semelhante ao que nos encontramos (exercício de direito de regresso por um avalista mediante a instauração de uma acção contra os demais), destacam-se os já citados Acórdãos do STJ, de 24-10-2002 (CJSTJ, tomo III, pág. 121), de 15-11-2007 e de 13-7-2010, estes em www.dgsi.pt. Vencido. a) Pelo expendido em acórdão deste STJ, a 25-03-2010 prolatado, com relato nosso, no Proc.º n.º 482/1999.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt, bem como nos demais arestos deste Tribunal à colação chamados em II. 2. 2. do A.U.J., o argumentário em todos vertido, em abono de solução díspar da que fez vencimento, “brevitatis causa”, nos dispensando, ora, de reproduzir, uniformizaria a jurisprudência nos termos seguintes: O avalista que pague, honrando o aval prestado, apenas extracambiariamente pode demandar os demais avalistas do seu avalizado que não tiverem pago, incumbindo-lhe alegar e provar a relação em que funda a bondade da sua pretensão. * b) “In casu”, não tendo os autores, sequer, alegado qualquer convenção extracambiária em prol da evidenciação da justeza do pedido de condenação dos demais avalistas da subscritora da livrança a que se alude em II. 3. 2. do A.U.J. a custearam uma quota-parte do quantitativo que pagaram, honrando os avales prestados à citada obrigada cambiária, negaria, “in totum”, a revista, confirmando, consequentemente, a decretada absolvição dos réus EE e FF do pedido, os demandantes, tão só, condenando nas custas da revista. Lisboa, 5 de Junho de 2012 Pereira da Silva ------------------ As duas teses em confronto são respeitáveis e cada uma dispõe de bons argumentos. Um ponto tem merecido a concordância: as relações entre os avalistas regem-se pelo direito comum. Já se referiu que a melhor doutrina é a que " sustenta ser o aval uma verdadeira fiança em que foram introduzidas as especialidades próprias da matéria cambiária" (Fernando Olavo, Direito Comercial, Vol. II, 1963, pág. 131); considerando-se que aval e fiança exercem uma função de garantia, sustentou-se também que " não pode enquadrar-se o aval na fiança: a acessoriedade não esgota a sua natureza jurídica (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, 1975, pág. 209). Reconhecendo-se a função de garantia do aval e da fiança e que as diferenças advêm da função do aval no âmbito do regime cambiário, a determinar, por exemplo, o direito de regresso contra os signatários anteriores ao avalizado ou a estabelecer que a obrigação do avalista se mantém, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma (artigo 32.º da L.U.L.L.), aceita-se que, no âmbito do direito comum que disciplina as relações entre os coavalistas, o aval seja tratado como uma efetiva fiança. Tal a consequência, a nosso ver, do reconhecimento de que " a diferença entre estas duas figuras não é pois substancial ou essencial, mas simplesmente quantitativa e derivada da necessidade de acautelar a essencial função de crédito que ao aval é atribuída" (Fernando Olavo, loc. cit.). Assim também já assinalava Gonsalves Dias referindo que " quando se diz que o aval não é uma fiança, é só para acentuar que o avalista não pode invocar as exceções do avalizado contra o portador. O caso, aliás, é idêntico ao da coemissão, coaceite e coendosso em que também não pode negar-se ao coobrigado, que paga, uma ação de reembolso pro quota" (Da Letra e da Livrança, Vol. VII, 2.ª parte, pág.589). Por esta via justificar-se-á então que as relações internas entre os coavalistas sejam tratadas como as relações entre fiadores (artigo 650.º do Código Civil).
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