Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A4599
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Nº do Documento: SJ200302110045996
Data do Acordão: 02/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1646/02
Data: 06/20/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A, S.A." e "B, Lda.", instauraram a presente acção ordinária contra a ré "C, Lda.", pedindo:
- a declaração de que a primeira autora é titular dos direitos de autor sobre os sacos térmicos identificados na petição e para cuja utilização a segunda autora está autorizada;
- a condenação da ré a abster-se de fabricar e comercializar os sacos térmicos em questão;
- e ainda a indemnizar as autoras pelos danos sofridos em consequência da usurpação das obras protegidas destas, assim como pela concorrência desleal que está a praticar em relação àquelas, em montante a liquidar em execução de sentença.
Alegaram, em resumo, que os sacos referidos, criados e fabricados para a primeira e comercializados em Portugal pela segunda, foram concebidos por determinado "designer", sob encomenda da primeira autora, e têm um "design" extremamente original, protegido como criação intelectual da mesma, nos termos dos arts 1º e 2º, nº 1, al. i) do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos, o que a ré viola, ao fabricar e vender sacos com o mesmo aspecto, sem ter solicitado e obtido a respectiva autorização, para além de que o comportamento da ré também configura concorrência desleal.
A ré contestou, defendendo a falta de originalidade dos referidos sacos térmicos e ainda que os seus começaram a ser fabricados e comercializados antes dos sacos das autoras.
Houve réplica.
Após o despacho saneador, a especificação e o questionário, o processo prosseguiu seus termos.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, onde se entendeu que os factos assentes, à luz dos arts 11º e 12º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, atribuem à primeira autora a permissão e salvaguarda dos direitos autorais e que a conduta da ré envolve manifesta concorrência desleal, pelo que condenou a ré nas pedidas abstenção e indemnização.
Apelou a ré e a Relação de Lisboa, embora decidindo que as autoras não têm direitos autorais sobre os sacos térmicos, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida, com fundamento na concorrência desleal.
A ré recorreu de revista e as autoras fizeram-no também, mas em recurso subordinado.

A ré conclui, em resumo:
1 - A actuação da ré, sendo claramente um acto de concorrência efectivo, não é violador das normas e usos honestos da actividade.
2 - Qualquer das instâncias deu um relevo despropositado ao facto das empresas comercializarem sacos térmicos idênticos e menosprezaram a circunstância da ré e da autora o fazerem com sinais distintivos diferentes e sem qualquer hipótese de confusão.
3 - A ninguém está vedado produzir produtos idênticos aos dos concorrentes no mercado, a menos que esses produtos estejam protegidos por direitos que conferem exclusividade, ou que, pela identidade dos mesmos, se gere a confusão entre esses produtos e os dos concorrentes, por forma a que estes últimos (os concorrentes) se possam confundir.
4 - A notoriedade que a marca das autoras detém implica que ninguém, querendo adquirir um saco "Camping Gaz" compre um "Frigobag".
5 - Através da prova produzida, é patente a diferença denominativa e gráfica com que os concorrentes distinguem as suas marcas/denominações.
6 - A condenação imposta à ré não tem correspondência com a causa de pedir que as autoras alegaram como facto constitutivo dos seus direitos.
7 - Além de falecer matéria de facto suficiente para sustentação da condenação que foi mantida no Acórdão recorrido.
8 - O problema da confusão entre operadores nunca foi causa de pedir.
9 - Termina por pedir a revogação do Acórdão impugnado e a improcedência da acção.

As autoras contra-alegaram em defesa do julgado, no âmbito da matéria da concorrência desleal.
Por sua vez, no recurso subordinado, as autoras concluem pela revogação do Acórdão recorrido na parte respeitante aos direitos de autor sobre os sacos térmicos, com a manutenção do decidido em 1ª instância, que reconheceu os direitos de autor sub judice, por entenderem que a Relação apreciou e interpretou incorrectamente as questões relativas ao reconhecimento do direito de autor sobre os ditos sacos, bem como à oportunidade da ré de impugnação dos registos do direito de autor e à eficácia dos respectivos registos, devidamente comprovados nos autos.
Não houve contra-alegações da ré.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

A 1ª instância considerou provados os factos seguintes:
1 - A autora "A, S.A.", controla 51% do capital social da segunda autora "B, Lda."
2 - A autora "A, S.A.", é mundialmente conhecida e muito prestigiada como fabricante de pequenos fogões a gás e fogareiros, grelhas e material para campismo, incluindo geleiras, frigoríficos, termos, tendas de campismo e outros produtos destinados a campismo.
3 - Tais produtos são concebidos pela "A, S.A.", através do seu departamento de pesquisa, sito na sua fábrica principal, em França.
4 - Sendo depois comercializados, em França, por esta, e, nos restantes países, através das suas filiais.
5 - Em Portugal é a "B, Lda.", quem divulga e comercializa os produtos fabricados pela primeira autora.
6 - No ano de 1993, a primeira autora iniciou a comercialização de uma nova linha de sacos térmicos, "Camping Gaz", fabricados em tecido de nylon e isolados em polietileno reciclável, que denominou "Cool in Colors".
7 - Esta nova linha incluía sacos térmicos de vários volumes, a saber: 2 litros, 15 litros, 20 litros e 25 litros.
8 - A comercialização e divulgação destes sacos térmicos, pela segunda autora, iniciou-se em Maio de 1993.
9 - No ano de 1994, a ré iniciou o fabrico e venda, no mercado português, de sacos térmicos exactamente iguais aos sacos térmicos da autora.
10 - Em consequência do comportamento da ré, as autoras deixaram de vender, no mercado português, sacos de valor não apurado.
Foram ainda formulados os quesitos 7º e 8º, com a seguinte redacção:
7º - Os referidos sacos térmicos foram concebidos, por encomenda da primeira autora, ao "designer" D, que trabalhou para aquela sociedade francesa?
8º- Tal "designer" executou os primeiros desenhos dos sacos térmicos de 20 e 25 litros, em Janeiro de 1992, e os sacos de 11 e 15 litros, em Janeiro de 1993?
Mas estes dois quesitos mereceram resposta de "não provado ".

A Relação introduziu a seguinte correcção na matéria de facto provada:
"Apesar de na resposta dada ao quesito 9º se ter afirmado uma total igualdade entre os sacos das autoras e os da ré, impõe-se restringir um pouco esta igualdade, considerando a alegação feita no art. 34º da petição inicial, nos termos da qual os dizeres "Cool in Colors" e "Camping Gaz", constantes dos primeiros, foram substituídos, paralelamente, nos segundos, pelos dizeres "Summer the Sun" e "Frigobag" colocados nos mesmos locais ".

Vejamos agora o mérito dos recursos.
1. Recurso subordinado das autoras:
Começaremos pela análise do recurso subordinado, em virtude do seu conhecimento se revelar prioritário, relativamente a matéria da revista principal, interposta pela ré.
A sentença da 1ª instância considerou que a autora "A, S.A.", era titular de direitos autorais sobre os ajuizados sacos térmicos, com um duplo fundamento:
- por ter feito prova documental do registo a seu favor, da obra de "design" consistente nos sacos térmicos intitulados "Color in Colors ", constante das certidões de fls 152 /169, embora tal registo não fosse necessário, à luz dos arts. 11º e 12º do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos.
- pela simples razão de ter iniciado, em 1993, a comercialização da nova linha desses sacos "Camping Gaz", apesar de não ter demonstrado quem foi o seu criador, já que a ré não fez prova de que detinha direitos morais sobre os mesmos sacos ou de que tivesse iniciado o fabrico e a comercialização dos seus respectivos sacos antes das autoras;
Pelo contrário, a Relação decidiu que as autoras não gozam de direitos autorais, quanto aos factos aqui em discussão.
E com razão.
O art. 1º do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos (diploma a que correspondem todos os demais preceitos legais que doravante forem citados sem outra menção) considera obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas e que nesse mesmo Código são protegidas.
Estas criações intelectuais podem compreender obras de design que constituam criação artística, independentemente da protecção que possam merecer através dos mecanismos da propriedade industrial - art. 2º, nº1, al. j).
Por sua vez, o art. 9º estatui:
1 - O direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais.
2 - No exercício dos direitos de carácter patrimonial, o autor tem o direito exclusivo de dispor da sua obra e de fruí-la e utilizá-la, ou autorizar a sua fruição ou utilização por terceiro, total ou parcialmente.
3 - Independentemente dos direitos patrimoniais, e mesmo depois da transmissão ou extinção destes, o autor goza de direitos morais sobre a sua obra, designadamente o direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuidade ou integridade.
Salvo disposição expressa em contrário, a protecção de uma obra traduz-se na concessão ao seu criador intelectual, de um direito (o direito de autor), cujo conteúdo abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de carácter pessoal - art. 11º.
O direito de autor é protegido independentemente de registo, depósito ou qualquer outra formalidade, nos termos do art. 12º do mesmo Código.
Trata-se da concretização do art. 5º da Convenção de Berna, onde se estabelece que o gozo e o exercício do direito não estão subordinados a qualquer formalidade.
Esta é uma das maiores forças do direito de autor, mesmo em confronto com outras modalidades de direitos intelectuais.
Como escreve Oliveira Ascensão (Direito de Autor e Direitos Conexos, 1992, pág. 112), dado que "o direito de autor resulta do simples facto da criação, logo que acontecida esta, mesmo desconhecida de toda a gente, a titularidade está assegurada. Pode ser necessária uma prova, até para determinar a data da criação; mas essa data não depende de uma formalidade propositadamente estabelecida para o efeito, como a resultante dum registo".
Assim e salvo disposição em contrário, a criação da obra atribui ao seu criador intelectual os respectivos direitos de autor.
Mas sendo o criador subsidiado ou financiado por um terceiro, este pode adquirir, por convenção escrita com aquele, poderes compreendidos no direito de autor que, em princípio, caberiam àquele - art. 13º.
Sendo a obra feita por encomenda ou por conta de outrem, quer em cumprimento de dever funcional, quer por contrato de trabalho, a titularidade do direito de autor define-se em função do que tiver sido acordado - art. 14º, nº1.
Com efeito, se a obra foi realizada por encomenda, o direito de autor pertence ao seu criador intelectual, a não ser que tenha sido estabelecida convenção em sentido contrário.
Se a obra foi feita por conta de outrem, há que distinguir duas situações:
- na falta de convenção em contrário, é de presumir que o direito de autor cabe ao criador intelectual - art. 14º, nº2;
- se o nome do criador não for mencionado na obra, nem figurar no local destinado para o efeito, segundo o uso universal, é de presumir que o direito de autor fica a pertencer à entidade por conta de quem a obra é feita art. 14º, nº3.
Pois bem.
A presente acção foi instaurada em 9-1-96 e respeita a factos que lhe são anteriores.
Na petição inicial, as autoras alegaram que os discutidos sacos térmicos foram executados pelo designer D, por encomenda da "A, S.A.".
Todavia, as autoras não lograram provar tais factos em que fundamentavam a invocada aquisição de direitos autorais por parte da "A, S.A.", como se verifica pelas respostas negativas que foram dadas aos quesitos 7º e 8º.
É certo que, após a organização do questionário e antes da realização do julgamento, vieram juntar aos autos as certidões de fls. 152/159, emitidas pela Direcção Geral de Serviços de Licenciamento da Inspecção Geral das Actividades Culturais, comprovativas de que lá se encontram registadas, desde 14-6-96, a favor da primeira autora, as obras de design intituladas "Cool in Colors 11 litres ", "Cool in Colors 15 litres", "Cool in Colors 20 litres " e "Cool in Colors 25 litres".
Só que, como a acção não se baseia na presunção derivada do registo e como tais registos são posteriores à propositura desta causa e aos factos nela invocados, sem que tivesse havido alteração da causa de pedir, as autoras não podem retirar deles qualquer proveito, no âmbito e para efeito da presente acção.
Por outro lado, cumpre salientar que a prioridade na comercialização de um determinado produto, não dá lugar, só por si, à aquisição originária de direitos de autor.
De outro modo, poder-se-ia chegar ao absurdo de reconhecer direitos de autor ao comerciante mais lesto e expedito, sobre os do próprio criador intelectual, que seja menos rápido a exteriorizar a sua criação.
Daí que não possa ser reconhecido às autoras o exercício de direitos patrimoniais, no âmbito de um direito de autor de que a primeira autora fosse titular, quanto aos factos aqui alegados.
Por isso, o recurso subordinado terá de improceder.

2. Revista da ré:
Também aqui o recurso está votado ao insucesso.
Atenta a data da propositura da acção, em 9-1-96, e o período temporal a que os factos apurados se reportam, são aqui aplicáveis quer o Código da Propriedade Industrial de 1940 (aprovado pelo decreto nº 30779, de 28-8-40), quer o Código da Propriedade Industrial de 1995 (aprovado pelo dec-lei 16/95, de 24 de Janeiro), que entrou em vigor em 1-6-95.
Tanto o art. 1º do Código da Propriedade Industrial de 1940, como o art. 1º do Código da Propriedade Industrial de 1995 conferem à propriedade industrial a função de garantir a lealdade da concorrência, através da atribuição de direitos privativos e, também, pela repressão da concorrência desleal.
Na petição inicial, as autoras invocaram, como causa de pedir, quer a titularidade do direito de autor sobre os sacos, quer a concorrência desleal por parte da ré.
A concorrência desleal foi invocada como uma protecção suplementar e autónoma, relativamente aos pretensos direitos autorais das autoras.
Por isso é infundada a afirmação da ré de que a condenação que lhe foi imposta não tem correspondência com a causa de pedir aduzida pelas autoras como facto constitutivo do seus direitos.
A concorrência desleal tanto pode ser apreciada no plano da tutela criminal, como no plano da tutela civil.
As condutas de concorrência desleal tipificadas no art. 212º do C.P.I. de 1940 e no art. 260º do C.P.I. de 1995 podem ter lugar independentemente da existência de direitos autorais.
A concorrência só pode ser apreciada em concreto, pois o que interessa saber é se a actividade de um agente económico atinge ou não a actividade do outro, através da disputa da mesma clientela.
Para se poder falar de concorrência é essencial que sejam idênticas ou afins as actividades económicas prosseguidas por dois ou mais agentes económicos.
Desde a petição inicial que as autoras se vêm insurgindo contra o facto da ré ter passado a comercializar sacos térmicos idênticos aos comercializados por aquelas, com reflexo na diminuição da clientela das mesmas autoras.
Constitui concorrência desleal qualquer acto de concorrência contrário aos usos honestos da actividade comercial ou industrial.
Concretamente, cabem na concorrência desleal todos os actos que sejam susceptíveis, por qualquer meio, de estabelecer confusão com o estabelecimento, os produtos ou a actividade industrial e comercial de um concorrente.
A concorrência desleal não resulta apenas da possibilidade de confusão entre os próprios concorrentes, mas também da eventualidade dos consumidores, por via da confusão, tomarem um produto de um concorrente por outro, havendo assim um desvio da clientela, contrário aos usos honestos do comércio.
Ora, a comercialização dos sacos da ré é susceptível de criar confusão com os sacos idênticos que a autora já anteriormente comercializava e que apresentavam o mesmo formato e combinação de cores.
As pequenas diferenças existentes entre os sacos das autoras e da ré, traduzidas apenas nos diferentes dizeres (escritos em língua inglesa) constantes de uns e de outros, colocados nos mesmos locais, não bastam para assegurar a diferenciação capaz de obstar a que sejam confundidos pelo consumidor médio, como já se observa no Acórdão recorrido.
É que há risco de confusão quando um consumidor médio puder ser induzido em erro e levado a tomar um produto pelo outro, se não tiver ambos os produtos na sua presença, como acontece no caso sub juditio.
O interesse jurídico protegido com a repressão da concorrência desleal consiste "no direito de cada empresário à lealdade de concorrência, com o correspondente dever de abstenção por parte dos concorrentes da prática de actos susceptíveis de prejudicar a obtenção do resultado económico considerado legítimo, de acordo com o mecanismo da livre concorrência" (Jorge Patrício Paúl, Concorrência Desleal, pág. 222).
Consequentemente, justifica-se a condenação da ré a abster-se de fabricar e comercializar os sacos térmicos em questão, bem como a indemnizar as autoras pelos danos sofridos pela concorrência desleal, a liquidar em execução de sentença.

Termos em que negam quer a revista principal, quer a revista subordinada.
Custas de cada um dos recursos, pelos respectivos recorrentes.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2003
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce de Leão