Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A580
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA
IRS
LEI INTERPRETATIVA
Nº do Documento: SJ20070322005806
Data do Acordão: 03/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :
I. Os créditos relativos a imposto sobre o rendimento das pessoas singulares gozam de privilégios mobiliário e imobiliário gerais.
II. Estes créditos, quando em concorrência com créditos garantidos por hipoteca incidente sobre o imóvel penhorado, devem, em reclamação de créditos, ser graduados nos termos do art. 749º do Cód Civil, a seguir aos créditos hipotecários.
A alteração introduzida pelo Dec.-Lei nº 38/2003 de 8/3 no art. 751º do Cód. Civil tem natureza interpretativa
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Por apenso à acção executiva que o Banco AA, S. A. – Sociedade Aberta ( AA ) move no 4º Juízo Cível de Lisboa, contra BB e mulher CC, veio o exequente reclamar, nos termos do art. 865º do Cód. de Proc. Civil, o crédito de 11.149.159$00 referente a capital e juros provenientes da concessão pelo reclamante de um crédito hipotecário que descreve e que os executados não pagaram, nos termos contratuais, tendo em conta que na apensa execução foi penhorado o prédio sobre que incide a hipoteca.
Posteriormente, veio o Magistrado do Ministério Público reclamar aqui um crédito do Estado referente a Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) referente aos anos de 1993 e de 1997, mas apenas inscrito para cobrança no ano de 1998 e no valor de 357.009$00, acrescido dos juros respectivos desde 11-98.
Posteriormente, veio o mesmo exequente reclamar novo crédito de € 661,26 acrescidos de juros vincendos sobre o capital de € 514,14, garantido por penhora posterior incidente sobre o mesmo prédio.
Estes créditos sobre admitidos e graduados, colocando o crédito do Estado em primeiro lugar, a que se seguiu o crédito hipotecário, o crédito exequendo na apensa execução e, por último, o outro crédito reclamado pelo exequente de capital de € 514,14 referido.
Desta sentença apelou o reclamante AA, tendo a Relação julgado improcedente o recurso.
Mais uma vez inconformado, veio o reclamante interpor a presente revista em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
- O art. 111º do Cód. do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares está ferido de inconstitucionalidade por violação do disposto no art. 2º da Constituição;
- De acordo com a orientação consagrada em jurisprudência do TC e dos Tribunais comuns o privilégio imobiliário cede perante hipoteca registada;
- Assim, sendo, o crédito do recorrente reclamado nestes autos, deve ser graduado em primeiro lugar;
- A douta decisão agravada não deu cumprimento ao disposto no art. 659º nº 2 do CPC e viola o art. 2º da CRP.
O Ministério Público contra-alegou defendendo a revogação do decidido, por ter feito interpretação de norma julgada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional.
Corridos os vistos, urge apreciar e decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões do recorrente se vê que o mesmo, para conhecer neste recurso, levanta apenas a questão seguinte:
Na presente graduação de créditos, o privilégio creditório imobiliário concedido ao Estado pelo art. 111º do Cód. do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), deve ceder perante o crédito hipotecário do reclamante ?

Mas antes de mais, há que ver a matéria de facto apurada que na falta de impugnação da mesma ou da necessidade de a alterar oficiosamente, damos por reproduzida a especificação que o acórdão recorrido fez da mesma, ao abrigo do disposto no art. 713º, nº 6.

Vejamos agora a questão acima colocada como objecto deste recurso.
Tal como bem opinou o ilustre Magistrado do Ministério Público junto da Relação, tem o recurso de proceder, revogando-se o acórdão recorrido por o mesmo ter feito uma interpretação do art. 111º do CIRS que o Tribunal Constitucional já declarara inconstitucional com força obrigatória geral, tal como resulta do art. 282º da Constituição da República.
Com efeito, está aqui em causa saber, havendo em graduação de créditos apensa a uma execução, a concorrência de um crédito do Estado referente a IRS com um crédito de um banco com garantia hipotecária sobre o imóvel aqui penhorado, qual é a ordem de graduação relativa entre estes dois tipos de créditos.
Este Supremo tem tratado abundantemente a questão semelhante da prioridade de graduação entre os créditos hipotecários ou penhoratícios em face dos créditos da Segurança Social ou dos créditos laborais, sendo a jurisprudência quase unânime no sentido da prioridade dos créditos hipotecários ou penhoratícios sobre os créditos da Segurança Social ou de natureza laboral – cfr. acs. de 4-05-2006, na revista nº 332/06 – 2ª secção, de 4-05-2006, na revista nº 1408/05 e de 25-10-2005,na revista nº 1251/04.
Já no tocante ao confronto dos créditos do Estado provenientes do IRS em face dos créditos hipotecários já não encontramos na jurisprudência deste Supremo Tribunal decisões sobre o assunto.
Porém, o Supremo Tribunal Administrativo já tratou diversas vezes desta problemática, sempre, tanto quanto conseguimos saber, de forma unânime, no sentido da prevalência dos créditos hipotecários sobre os créditos do Estado provenientes de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares – cfr. acs. de 7-07-2004, proferido no processo nº 0337/04 e de 29-01-2003, proferido no proc. nº 01792/02.
Porém, sempre as razões que estão subjacentes às decisões em matéria de créditos da Segurança Social ou dos trabalhadores se aplicam ao caso dos autos.
Mas a questão ficou resolvida com a prolação do acórdão nº 362/2002 do plenário do Tribunal Constitucional de 17/09/2002.
Com efeito, este acórdão declarou inconstitucional a interpretação do art. 104º do CIRS, na versão primitiva do Dec.-Lei nº 442-A/88 de 30/11, e do art. 111º, da sua numeração resultante do Dec.-Lei nº 198/2001, de 3/7, no sentido de que o privilégio naqueles conferido à Fazenda Nacional prefere às hipotecas, nos termos do Cód. Civil.
Pensamos que a decisão do Tribunal Constitucional era já desnecessária, para a interpretação correcta das normas em questão.
Assim, diremos sinteticamente que o citado art. 111º - e antes dele o mencionado art. 104º - do CIRS estabelece um privilégio creditório mobiliário geral e imobiliário, igualmente, geral, a favor da Fazenda Nacional por créditos referentes ao pagamento daquele imposto.
O art. 686º, nº 1 do Cód. Civil estipula que a hipoteca confere ao credor que dela goze o direito de ser pago pelo valor da coisa hipotecada pertencente ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Por seu lado, o art.735º do Cód. Civil, na versão anterior ao dec.-lei nº 38/2003 de 8/03, estipulava que os privilégios imobiliários eram sempre especiais.
Nesta sequência, nas normas deste código que estabeleciam a prioridade entre os vários tipos de garantias das obrigações – hipoteca, privilégios creditórios, consignação de rendimentos, direito de retenção, etc. -, constantes dos seus artigos 745º e segs., não foi considerado directamente o caso de concorrência entre privilégios creditórios imobiliários gerais – que as normas avulsas vieram a criar após a entrada em vigor do citado código – e os créditos garantidos por hipoteca, consignação de rendimentos, direito de retenção ou de outro direito real de garantia.
Levantou-se assim a questão de aplicar a regra do art. 749º do mesmo código que previa a concorrência de privilégios gerais – que no entendimento do legislador de então eram apenas os mobiliários -, ou aplicar a regra do art. 751º do mesmo diploma legal que tratava de concorrência de privilégios imobiliários - que no pensamento do ali legislador eram apenas especiais – com créditos garantidos com hipoteca ou consignação de rendimentos ou direito de retenção.
Tal como dissemos já, a jurisprudência deste Supremo inclinou-se para a aplicação ao caso dos privilégios creditórios imobiliários gerais decorrentes das normas que regulam a cobrança das contribuições para Segurança Social ou os créditos laborais em concorrência com créditos garantidos por hipoteca ou garantia semelhante, da norma do art. 749º citado, ou seja, dando prioridade aos créditos hipotecários, ou beneficiando de garantia análoga.
Como argumento usado para o efeito, constava sobretudo a natureza dos privilégios creditórios imobiliários gerais que dada a sua generalidade, não eram direitos reais de garantia -, por não incidirem sobre coisas corpóreas, certas e determinadas, e nem serem verdadeiros direitos subjectivos, mas tão somente preferências gerais anómalas, e, por isso, mais semelhantes aos privilégios mobiliários gerais previstos no Cód. Civil.
Além disso, ainda se apontava o argumento de que o regime do art. 751º citado era inaplicável ao privilégio imobiliário geral, por este não incidir sobre bens determinados e pelo facto de os privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando da vigência do actual Código Civil. Ora se não compreendia que dada a delicadeza da questão, se se pretendesse integrar os novos privilégios imobiliários gerais no regime do art. 751º referido, não procedesse o legislador à alteração radical do regime do mesmo art. 751º, deixando subsistir dúvidas susceptíveis de provocar grave insegurança no comércio jurídico e concorrendo para defraudar legítimas expectativas dos credores hipotecários, por ele criadas.
Por outro lado, a regra do art. 686º mencionado confere prioridade aos créditos garantidos por hipoteca, salvo a existência de privilégio especial, o que não é o caso do privilégio conferido pelos art. 111º mencionado.
Além destes argumentos ainda há um outro que nos parece mais decisivo.
O Dec.-Lei nº 38/2003 de 8/03 que veio reformular a acção executiva, alterou a redacção dos arts. 733º, nº 3 , 749º, nº 2º e 751º do Cód. Civil.
No primeiro dispositivo alterado veio apenas precisar que os privilégios imobiliários que são sempre especiais, são os previstos no mesmo código.
Por outro lado, a alteração do art. 749º, nº 2, consistiu em introduzir aquele novo número que prevê que os limites ao objecto e à oponibilidade do privilégio geral ao exequente e à massa falida e os casos da sua ininvocabilidade ou extinção na execução ou em razão da declaração da falência, sejam estatuídos nas leis de processo que os estabelecem.
A inserção do normativo do n.º 2 deste artigo visa uma harmonização com o que se estabelece no artigo 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência e no artigo 865º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Por último, e sobretudo, a alteração do art. 751º cingiu-se à inserção da expressão especiais logo a seguir à expressão privilégios imobiliários, em jeito de qualificação jurídica.
Trata-se de modificação meramente interpretativa do regime anterior. Tem, porém, a virtualidade de reforçar o entendimento acima apontado, que já vem de longe, no sentido da inaplicação do regime deste artigo aos privilégios imobiliários gerais, certo que o regime que, face à sua natureza, se lhe adapta é o que consta do n.º 1 do artigo 749º do Código Civil.
Desta forma tem de proceder o fundamento do recurso.

Pelo exposto, concede-se a revista peticionada e, por isso, se altera o acórdão recorrido no sentido de que a ordem de graduação dos créditos ali reconhecidos passará a ser a seguinte:
1ª O créditos do recorrente que goza de hipoteca;
2º, O crédito reclamado pelo Ministério Público;
3º O crédito exequendo;
4º O restante crédito reclamado pelo recorrente a fls. 191.
As custas da graduação ficam a cargo dos executados que sairão precípuas, tal como determinou a 1ª instância.
As custas dos recursos não serão cobradas por delas estar isento o Ministério Público que saiu vencido e a quem caberia o pagamento - art. 2º, nº 1 al. a) do Cód. das Custas Judiciais, na redacção anterior à reforma introduzida pelo Dec.-Lei nº 324/2003, aqui aplicável, nos termos do art.14º deste último decreto-lei.

Lisboa, 22-03-2007

João Camilo ( Relator )
Azevedo Ramos
Silva Salazar.