Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4535/04.8TCLRS.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
UNIÃO DE FACTO
MORTE
CADUCIDADE
REGIME APLICÁVEL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 02/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL / DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATO DE ARRENDAMENTO / ACÇÃO DE DESPEJO / UNIÃO DE FACTO
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL: ART. 1110.º;
CRP: 13.º, N.º 2, 36.º, N.º 4;
LEI N.º 2030, DE 22-06-1948: ART. 45.º;
NRAU: ARTS. 26.º, 27.º, 28.º E 57.º
Jurisprudência Nacional:
AC. R.L. DE 13-101965 JUR REL 4,625;
AC. R.P. 09-11-1966, JUR REL 5,877;
AC. R.L. 11-12-84, CJ 1984, TOMO V, PÁG. 165;
AC. R.L. 16-01-1986, CJ, 1986, TOMO I, 91;
AC. R.L. 02-06-1981, CJ, 1981, TOMO III, PÁG. 165;
ASSENTO DO STJ DE 23-04-1987, DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE DE 28-05-1987
Sumário :
I - As normas do n.º 2, 3 e 4 do art. 1110.º do CC têm aplicação às situações de uniões de facto, por força da não violação do princípio da não discriminação dos filhos, contido no art. 36.º, n.º 4, da CRP.

II - Não obstante, a transmissão do arrendamento – ainda que possível em casos de ruptura da união de facto – não se opera automaticamente, estando dependente da verificação dos restantes factores ínsitos no art. 1110.º do CC.

III - O facto de o senhorio, ao longo dos anos e não obstante o arrendatário ter saído do arrendado em 1975, ter sempre recebido as rendas não permite, só por si, concluir que este tinha conhecimento de toda a situação familiar e de que apenas a ré ali vivia desde 1975.

IV - Uma vez que o contrato dos autos foi celebrado em data anterior à vigência do RAU, a aplicação do NRAU – cf. art. 26.º da Lei n.º 6/2006, de 27-02 – está limitada ao capítulo II da referida lei.

V - Não obstante o art. 57.º, n.º 1, al. b), da Lei 6/2006 estatuir que o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado, o facto é que à data da morte do arrendatário (1998) a ré já não vivia com ele há mais de 20 anos, e este não tinha residência no locado.
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

         Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:

         A) Relatório:

Pela 2ª vara de competência mista do Tribunal Judicial da comarca de Loures corre processo comum na forma ordinária em que é A AA, identificado nos autos, e R BB, pedindo aquele que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre a fracção B, correspondente ao r/c esquerdo do n° … da Rua ..., em Odivelas, descrita na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n° ..., devendo a Ré ser condenada a entregar-lhe a mesma, a abster-se de praticar acto que impeça ou diminua a utilização, pelo A, e a pagar-lhe indemnização, a liquidar, correspondente ao rendimento mensal da fracção, a preços de mercado, desde 21.7.1998.

Subsidiariamente, e para o caso de se entender que a Ré tem direito a um novo arrendamento, pede se aplique o regime de duração limitada previsto nos arts.98 e segs do R.A.U., pagando a Ré indemnização, a liquidar, correspondente ao rendimento mensal da fracção, em termos de renda condicionada, desde 21.7.1998 até 20.7.2003, e a preços de mercado desde então até efectiva restituição.

Alega, para tanto e em síntese, que por contrato celebrado em 1.8.1968, CC deu de arrendamento a DD aquela fracção, destinada a habitação, mediante a renda mensal de 750$00, actualizada para € 37,35. Em 28.9.1959 nasceu EE, filha de DD e da Ré, que passou também a residir no locado.

Em 1979, DD contraiu matrimónio com FF, passando a habitar na ..., lote …, … ...., ..., em Lisboa.

A Ré continuou a habitar a fracção dos autos, pagando a renda em nome do dito DD, em nome do qual eram passados os recibos. Pelo menos desde 12.5.1986 que a filha da Ré e do arrendatário, EE, deixou de habitar no locado. DD faleceu, entretanto, em ……..19…, mas a Ré, embora

tenha tido conhecimento do sucedido na mesma data, continuou a pagar a renda através de vale postal, em nome do locatário.

Em Setembro de 2003 o vale postal enviado ao A. para pagamento da renda foi devolvido, existindo necessidade de confirmar a assinatura do locatário para a renovação do mesmo.

Na sequência desse episódio, em 11.10.2003 a Ré comunicou ao A. o óbito do locatário, fornecendo os elementos exigidos nos termos do art. 89 do RA.U. apenas em 28 de Outubro de 2003.

Apesar de instada a entregar o andar no prazo de 180 dias, através de cartas expedidas em 11.11.2003 e 16.2.2004, a Ré não o fez, sendo que nenhum título tem para nele permanecer, seja por transmissão ou constituição de novo arrendamento. Tal circunstância vem causando prejuízo ao A. que se encontra privado, desde 20.7.1998, de auferir um rendimento mensal em conformidade com os valores de mercado das rendas de imóveis naquele local.

Contestou a Ré, impugnando a factualidade constante da p.i. e defendendo, no essencial, que à data da celebração do contrato de arrendamento vivia em união de facto com o referido DD, situação que se manteve até Abril de 1975. Após a separação, em Abril de 1975, DD abandonou a casa de morada de família, aí permanecendo a Ré, com a filha de ambos, até à presente data, comportando-se a mesma Ré como arrendatária do imóvel e assim sendo reconhecida pelos então proprietários e pais do A..

 O senhorio, CC, sabia que DD não morava no locado desde Abril de 1975, e sempre aceitou a renda paga pela Ré, em dinheiro e em seu nome, como sendo a arrendatária do locado. Mais refere que o A. também sabe que os pais reconheciam e tratavam a Ré como verdadeira arrendatária do locado, tendo ainda em vida de sua mãe negociado com a Ré a venda da fracção.

O próprio A. sempre tratou a Ré como inquilina, perante qualquer pessoa, recebendo a renda que esta pagava, pelo que age em abuso de direito ao propor a presente acção. Afirma, ainda, a Ré que não manteve qualquer contacto com DD desde que este saiu do locado, só tendo tomado conhecimento do seu óbito no Verão de 2003 através da filha de ambos.

Conclui pela procedência das excepções invocadas ou pela improcedência da causa, pedindo, em reconvenção, a declaração da validade do contrato de arrendamento por si celebrado com o então senhorio em Abril de 1975 com relação ao andar dos autos. O A. apresentou réplica, pugnando pela improcedência das excepções e do pedido reconvencional.

Em tréplica, a Ré respondeu às excepções opostas ao pedido reconvencional. Tendo o A. falecido na pendência da causa, foram habilitados como seus herdeiros, a fls. 200dos autos, GG, HH, II e JJ.

Foi proferido despacho saneador, admitido o pedido reconvencional, e seleccionada a matéria de facto, com organização de Base Instrutória.

Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, tendo sido proferida sentença nos seguintes termos:

“Julgo a presente acção instaurada pelo falecido Autor AA e que prosseguiu com os sucessores habilitados GG, HH, II e JJ, contra a Ré BB, parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, reconheço o direito de propriedade do falecido Autor AA relativamente à fracção autónoma designada pela letra "…", correspondente ao … esquerdo do prédio sito na Rua ..., n. ° …, Odivelas, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o n. ° ... da freguesia de Odivelas, direito este que se transmitiu aos sucessores habilitados por vocação sucessória e, em consequência, condeno a Ré a reconhecer o direito de propriedade sobre o referido imóvel.

Na parte restante, julgo a acção improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo a Ré dos restantes pedidos principais e pedidos subsidiários formulados.

Julgo a reconvenção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, declaro ter ocorrido a transmissão a favor da Ré BB do direito ao arrendamento sobre o rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Rua ..., n." …, Odivelas, com efeitos reportados a 20-07-1998, data do óbito do arrendatário DD.

Custas da acção e da reconvenção a cargo dos sucessores habilitados do falecido autor/reconvindos e da Ré/reconvinte na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo em relação à Ré do apoio judiciário atribuído (sendo os honorários à Ilustre Patrona nomeada em conformidade com a Tabela em vigor). "

Inconformados, interpuseram recurso os AA. habilitados.

Tendo, entretanto, falecido a A. habilitada GG, foram habilitados como seus herdeiros, a fls. 351/352 dos autos, II, HH JJ. O recurso foi, então, recebido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo.

O Tribunal da Relação acordou em:

Julgar parcialmente procedente a apelação, condenando a Ré, BB, a entregar aos AA. habilitados a fracção identificada, abstendo-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização da mesma por aqueles; e em julgar improcedente a reconvenção deduzida, absolvendo os AA. habilitados do pedido correspondente. Em confirmar, no mais, a sentença recorrida, nomeadamente na parte em que absolveu a Ré do pedido indemnizatório formulado.

Deste acórdão recorre a R BB alegando, em conclusão, o seguinte:

I - CC deu de arrendamento para habitação a DD o … … do prédio sito na Rua ..., n," …, em Odivelas, pelo prazo de 6 meses, com início em 1.08.1968, renovável sucessivamente por iguais períodos, pela renda mensal de Esc. 750$00.

II Nessa fracção passou a habitar o referido DD, a ora recorrente BB, que consigo vivia em união de facto, e a filha de ambos, EE, nascida em 28.09.1959, portanto com 8 anos na data do arrendamento.

III - Em data não apurada, mas após 28.9.1975, o DD abandonou a casa onde morava, aí ficando a residir a ora recorrente e a filha de ambos, menor.

IV - A filha, EE, apenas ali deixou de residir entre 1986/1987.

V - Após o DD ter abandonado a casa onde residia, a renda de casa passou a ser paga pessoalmente pela ora recorrente ao senhorio, numa oficina onde este trabalhava, junto ao ..., tendo este conhecimento de que a ora recorrente ali morava com o arrendatário e com a filha de ambos.

VI - Os factos acima descritos são suficientes para que se possa concluir que o arrendatário DD viveu, juntamente com a ora recorrente e a filha de ambos, na casa arrendada como se de uma família se tratasse, sendo essa a respectiva casa de morada de família durante pelo menos 7 anos, e enquanto a filha era ainda menor.

VII - Também é possível concluir que DD não se opôs a que a ora recorrente e a sua filha menor ficassem a residir na casa por si arrendada, na medida em que não reivindicou esse direito no momento da ruptura da união de facto.

VIII - Entende-se ser este o momento determinante para que se operasse a transmissão do direito ao arrendamento para a ora recorrente.

IX - Pelo menos até 1998, data em que deixou de receber as rendas pessoalmente das mãos da ora recorrente, portanto ao longo de mais de 20 anos, teria de ter tido em algum momento conhecimento daquela ruptura da união de facto, e de que viviam na habitação a ora recorrente e a sua filha.

X - Não merece acolhimento o argumento versado no Acórdão de que se recorre de que o artigo 1110° C.C. não é aplicável á situação em apreço, por a recorrente e o DD não serem casados. O Acórdão do Tribunal Constitucional n." 359/91, de 9.07, reconheceu a aplicação daquele artigo 1110º do C.C. às uniões de facto, nas situações de violação do princípio da não descriminação dos filhos nascidos fora do casamento relativamente aos nascidos dentro dele, contido no artigo 36°nº 4 da Constituição da República Portuguesa.

XI - Não pode afirmar-se, por isso, que o artigo 1110. ° C.C. não é aplicável às uniões de facto.

XII - A filha da ora recorrente era menor quando o seu pai abandonou o lar, e continuou a ser menor quando a Constituição da República Portuguesa entrou em vigor, reconhecendo-lhe o direito a habitar a casa de morada de família com os seus pais e que, após a saída de casa do seu pai, passou a partilhar apenas com a sua mãe.

XIII - Ainda que assim não se entenda, há que atender aos doutos fundamentos da sentença do tribunal de primeira instância, que deu razão à ora recorrente, de acordo com a qual se verificou uma situação de consentimento e aceitação pelo primitivo locador CC, na fruição do locado por parte da ora recorrente, situação que perdurou mesmo após a separação desta e de DD.

XIV - A tal não obsta o facto de não ter resultado provado que CC e KK sabiam que DD e ora recorrente estavam separados, pelo menos desde 28-09-1975, nem que CC tenha dito à ora recorrente que podia ficar descansada, não sendo necessária a celebração de um contrato de arrendamento, em que a mesma assumisse expressamente a posição de arrendatária, uma vez que não resultou provado o contrário, sendo que conforme supra referido incumbia ao falecido Autor, AA e aos seus sucessores habilitados, demonstrar que após a separação de facto da Ré/aqui recorrente, a fruição do arrendado pela mesma tinha oposição do primitivo locador/senhorio.

XV- E é a situação de facto supra descrita considerada provada que se verificava aquando do óbito do primeiro locador CC, que se transmitiu ao falecido Autor AA e posteriormente aos sucessores habilitados deste, aquando da transmissão da posição contratual do locador, sucedendo o mesmo nos direitos e obrigações do falecido locador, seu pai ¬CC - nos termos do disposto no artigo 1057. ° do C.C, passando a existir uma continuidade nas relações contratuais anteriormente estabelecidas pelo primeiro locador.

XVI - Tendo sido aceite pelo primeiro locador o pagamento da retribuição devida pela fruição do locado pela Ré, aqui recorrente, ainda que em nome de DD, facto que se manteve após o óbito de CC, continuando a Ré/recorrente, a efectuar o pagamento por vale postal, desenvolvendo a crença legítima de que a sua posição não estaria em causa, integraria uma situação de abuso de direito na modalidade de "venire contra factum próprio" não se considerar que por morte do primitivo arrendatário DD, falecido….19.., ocorreu a transmissão do direito ao arrendamento para habitação do imóvel em causa, para a Ré/ora recorrente, nos temos do disposto no artigo 57º n.º1 do NRAU, aprovado pela Lei 6/2006, de 27.02.2006, aplicável aos contratos de arrendamento habitacionais existentes à data da entrada em vigor do diploma mencionado, mesmo que celebrados antes da vigência do RAU, por força do consagrado nos artigos 26.0 ns. 1 e 2 e art. 27.° e 28 quanto ao regime transitório aplicável, situação que se encontra prevista, em termos semelhantes no artigo 1106. ° n." 1 alínea b) do C.C-

XVII - Concluindo-se assim que por óbito do arrendatário DD Ocorreu a transmissão para a Ré/aqui recorrente do contrato de arrendamento relativo ao … ... Do prédio sito na Rua ..., n." .., Odivelas, e, por conseguinte pela inexistência de uma situação de detenção ilegítima do locado por parte da Ré/aqui Recorrente.

Não foram apresentadas contra-alegações.


***

Tudo visto,

Cumpre decidir:

B) Os Factos:

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos:

Pela apresentação 1 de 28-07-1967 encontra-se inscrita a aquisição a favor de CC, casado no regime da comunhão geral de bens com KK, da fracção autónoma designada pela letra …, correspondente ao … esquerdo do prédio sito na Rua ..., n. ° …, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o n. ° ... (anterior n. ° ...) da freguesia de Odivelas (cf fotocópias certificadas de fls. 11 a 16 e 238 a 240).

BB, filha de LL e de MM, nasceu em … de … de 19… (cf. fotocópia da cédula pessoal n. ° … do ano de 19…, junta a fls. 21).

Por documento particular junto aos autos em fotocópia a fls. 177, cujo teor dou por integralmente reproduzido, CC deu de arrendamento a DD, casado, o rés-do-chão … do prédio sito na Rua ..., Lote … (actual n.° 30), Odivelas, pelo prazo de 6 meses, com início em 1 de Agosto de 1968, renovável sucessivamente por iguais períodos, destinado a habitação, pela renda mensal de Esc. 750$00, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito. - «A)».

EE, nascida em …-0…-19…, é filha de DD e BB. - «alínea. B)».

DD faleceu em …-0…-19…, no estado civil de casado com FF. - «ai. C)».

Por escritura outorgada em 23-09-2005, no Cartório Notarial do Notário NN, em Lisboa, exarada de fls. 110 a fls. 111 do Livro n. ° …, junta aos autos em fotocópia a fls. 173 a 175, cujo teor dou por integralmente reproduzido, AA declarou, para além do mais que, no dia 5 de Julho de 1995, faleceu CC, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros a sua mulher KK, viúva, e o seu filho AA, outorgante; e que, no dia 23 de Julho de 2000 faleceu KK, tendo-lhe sucedido como único herdeiro, o outorgante, seu filho, AA. - «ai. D)».

AA faleceu em 04 de Outubro de 2005. - «ai. E)».

Em data não concretamente apurada de 1975, mas posterior a 28/09/1975, DD e a Ré separaram-se e DD deixou de habitar no locado, passando a residir com uma outra senhora numa casa sita no ....

Após DD ter deixado de viver no locado a Ré continuou a pagar a renda a CC, em nome de DD. - (resposta aos quesitos 2o e 15o).

EE deixou de habitar no locado, em data não concretamente apurada, compreendida entre 1986 e 1987. - (resposta ao quesito 3o).

Após 20/07/1998 a Ré pagava a renda através de vale postal em nome de DD. - (resposta ao quesito 5o).

Em 11 de Outubro de 2003, na sequência da devolução de um vale postal para pagamento da renda, a Ré informou o falecido Autor do óbito de DD. - (resposta ao quesito 6o).

Por cartas expedidas em 11/11/2003 e 16/02/2004, a primeira das quais a Ré não recebeu, o falecido Autor instou a Ré a abandonar o locado no prazo de 180 dias. - (resposta ao quesito 7o).

Em 01-08-1968, DD encontrava-se separado de facto. - (resposta ao quesito 8o). 15)

E vivia com a Ré, como se de marido e mulher se tratassem. - (resposta ao quesito 9o).

Residindo a Ré com DD no arrendado desde 01-08-1968. - (resposta ao quesito 10°).

Após 1975, a Ré permaneceu no locado, com a filha de ambos. - (resposta ao quesito 12°).

Nele residindo ininterruptamente até à data. - (resposta ao quesito 13°).

CC tinha conhecimento que a Ré residia no locado com a filha e DD. - (resposta ao quesito 14°).

Aquando do pagamento da renda a Ré deslocava-se para o efeito à oficina de CC junto ao ..., em Lisboa. - (resposta ao quesito 16°).

CC aceitou sempre o pagamento das rendas pela Ré. - (resposta ao quesito 17°).

AA deslocou-se com a mãe ao locado, para negociar com a Ré a venda do imóvel. - (resposta ao quesito 21°).

Desde Abril de 1975 a Ré não manteve contacto com DD. - (resposta ao quesito 23°).

Em data não concretamente apurada, compreendida entre os anos de 2000 e 2001, a Ré teve conhecimento do óbito de DD, através da filha de ambos, que confirmou o óbito telefonando para a casa que o seu pai habitava. - (resposta ao quesito 24°).

Desde data não concretamente apurada, a Ré começou a pagar as rendas através de vale postal, em nome de DD. - (resposta ao quesito 25°).

Os recibos da renda eram emitidos em nome de DD. - (resposta ao quesito 26°).

C) O Direito:  

Delimitando o thema decidendum está em causa no presente recurso a questão de saber se o direito ao arrendamento do locado se transmitiu ou não à R BB, ora recorrente, a partir do momento em que DD, já falecido deixou de viver maritalmente com aquela em 1975, sendo certo que nessa data continuou a habitar o arrendado a R e uma filha menor de ambos EE.

O art.1110º do Código Civil (CC), aplicável ao caso vertente, dispunha:

1. Seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por sua morte, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte;

2. Obtido o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, podem os cônjuges acordar em que a posição de arrendatário fique pertencendo a qualquer deles;

3. Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos, a culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio, o facto de ser o arrendamento anterior ou posterior ao casamento, e quaisquer outras razões atendíveis, estando o processo pendente no tribunal de menores, cabe a este a decisão;

4. A transferência do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário, por efeito de acordo ou decisão judicial, deve ser notificada oficiosamente ao senhorio.

As normas dos ns.2, 3 e 4 do artigo que vem de se transcrever prescreviam que, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, o direito ao arrendamento da casa de morada de família podia ser atribuído, por acordo dos cônjuges ou dos ex-cônjuges, ou, na falta deste, por decisão judicial, ao cônjuge ou ex-cônjuge não arrendatário.

Estas normas que tiveram como fonte imediata a disposição contida no art.45º da Lei nº2030 de 22 de Junho de 1948, (Lei do Inquilinato), sempre foram jurisprudencialmente interpretadas em termos de apenas regerem para o caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, e não já para o caso de os cônjuges se encontrarem simplesmente separados de facto ou para as simples uniões de facto (neste sentido Ac. Rel. Lisboa de 13 de Outubro de 1965, in Jur. Rel. 4,625; Ac. Rel. Porto de 9 de Novembro de 1966, in Jur Rel.5,877; Acs. Rel Lisboa de 11 de Dezembro de 1984 e de 16 de Janeiro de 1986 in respectivamente Col. Jur., 1984, tomo 5, pag. 165 e Col. Jur. 1986, tomo 1, pag. 91).

Em oposição ao entendimento uniforme jurisprudencial que vinha sendo firmado, a Relação de Lisboa, por acórdão de 2 de Junho de 1981 (in Colectânea de Jur., 1981, tomo 3, pag. 165), depois de ponderar que “não obstante a incomunicabilidade do arrendamento no matrimónio legitimamente constituído, o senhorio tem de sujeitar-se à transferência do arrendamento para o outro cônjuge, no interesse dos filhos do arrendatário…não poderá opor-se a análoga transferência no interesse dos filhos naturais, seja ela operada por acordo de pais não casados entre si, seja deliberada pelo Tribunal no interesse dos filhos, visto que doutro modo se violaria o princípio constitucional da igualdade (artigos 13ºnº2 e 36ºnº4 da Constituição)”, concluiu no sentido de nada impedir que as normas do art.1110º do CC sejam aplicáveis analogicamente às uniões de facto quando haja filhos menores.

No entanto, a Relação de Lisboa não manteve esta jurisprudência vindo a decidir em acórdão de 4 de Maio de 1984, em termos de inteira oposição ao aresto anteriormente referido.

Este conflito de julgados foi decidido pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987, publicado no Diário da República, I série, de 28 de Maio de 1987, o qual dispõe o seguinte:

“As normas dos ns.2, 3 e 4 do art.1110º do Código Civil não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores”.

Este Assento foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional (Proc.nº36/90) que decidiu:

“Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987, publicado no Diário da República, I série, de 28 de Maio de 1987, por força da violação do princípio da não discriminação dos filhos, contido no art.36ºnº4 da Constituição”

Colocada a questão que o art.1110º do CC tem aplicação às uniões de facto por força da não violação do princípio da não discriminação dos filhos, contido no art.36ºnº4 da Constituição (conforme o acórdão, com força obrigatória geral, do Tribunal Constitucional, anteriormente citado), vejamos se aquele preceito legal tem aplicação ao caso subjudice.

A recorrente viveu em união de facto, na casa dos autos, com DD e uma filha de ambos EE.

Em data não concretamente apurada de 1975, mas posterior a 28 de Setembro, DD e a Ré separaram-se e DD deixou de habitar no locado, passando a residir com uma outra senhora numa casa sita no ....

A EE deixou de habitar no locado, em data não concretamente apurada, compreendida entre 1986 e 1987.

`Se é certo que, há data em que a união de facto se rompeu, (1975), a filha de ambos era ainda menor de 16 anos e nessa conformidade a transmissão do arrendamento para a R sempre se poderia ter operado em virtude dessa menoridade não se pode deixar de considerar que os demais factores exigidos pelo art.1110º do CC não se verificaram.

. Nada nos autos permite concluir pela existência de um qualquer acordo entre os então unidos de facto e muito menos a existência de qualquer decisão judicial que tenha atribuído o arrendamento do locado à R. Também não foi transmitido ao senhorio a transferência do arrendamento para a R BB.

Na verdade, a transmissão do arrendamento, ainda que possível em caso de ruptura da união de facto, não se opera automaticamente. Os demais factores ínsitos no art.1110º do CC devem verificar-se

O arrendamento feito em nome de DD nele permaneceu quer após 1975, data em que aquele deixou de viver com a R, quer após a maioridade da filha de ambos e a sua saída de casa entre 1986 e 1987.

Após DD ter deixado de viver no locado a Ré continuou a pagar a renda a CC, em nome daquele, de onde não se pode concluir pela existência de uma transmissão do arrendamento para a R (que dela poderia ter beneficiado em virtude da existência de uma filha menor), e após 1986/87 a R permaneceu no locado (não estando agora em causa o interesse da filha que já não era menor e que tinha também ela saído do arrendado), continuando a pagar a renda em nome do DD.

Pelo que resulta da factualidade descrita não existiu em tempo algum transferência do arrendamento para a R.

E não se diga que o senhorio contemporizou com esta situação. Não ficou provado que o CC tenha tido conhecimento da separação do DD da R BB e que ele tenha deixado de viver na casa arrendada dos autos

O ónus de tal prova sobre a R recaía e esta não logrou prová-lo. O facto de o senhorio ao longo de todos estes anos sempre ter recebido as rendas não permite, só por si, concluir que este tinha conhecimento da situação familiar da R. Por isso arredada está a existência de abuso do direito

Entende a recorrente que ocorreu a transmissão do direito ao arrendamento para habitação do imóvel em causa, para a R, nos temos do disposto no artigo 57º n.º1 do NRAU, aprovado pela Lei 6/2006, de 27.02.2006, aplicável aos contratos de arrendamento habitacionais existentes à data da entrada em vigor do diploma mencionado, mesmo que celebrados antes da vigência do RAU, por força do consagrado nos arts.26ºns.1 e 2 e 27° e 28º quanto ao regime transitório aplicável.

Sobre a vigência da lei no tempo, em matéria de contrato de arrendamento, tivemos oportunidade de nos pronunciar no processo nº340/98 deste Supremo Tribunal de Justiça

Na verdade as normas transitórias da Lei nº6/2006, de 27 de Fevereiro, não prevêem, em princípio, a aplicação deste diploma legal aos contratos de arrendamento anteriores ao R.A.U. E dizemos em princípio porque a lei prevê casos excepcionais de ampliação da aplicação

Diz o art.26ºnº1 do novo R.A.U. que “os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Decreto-Lei nº321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificações dos números seguintes”.

Acontece, porém, que o contrato em apreço foi celebrado em data anterior à vigência do velho R.A.U. pelo que a aplicação do NRAU está limitada ao capítulo II da Lei nº6/2006 – arts.27º e 28º.

É certo que o art.57ºnº1 b) do NRAU, inserido no capítulo II deste diploma, ex vi dos citados arts.27º e 28º, tem aplicação aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do velho R.A.U., não sendo, porém, subsumível ao caso vertente.

Diz o art.57ºnº1 b) da Lei nº6/2006 que o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado.

Acontece que, no caso em apreço, a R não vivia com o arrendatário à data da sua morte que ocorreu em 1998. E não vivia com este há mais de vinte anos. Ou seja, à data da sua morte o DD não tinha residência no locado e não vivia em união de facto com a R pelo que não é invocável, por esta, a não caducidade do arrendamento nos termos do referido art.57ºnº1 b) do NRAU.

Assim nenhum reparo nos merece o acórdão recorrido.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça, em negar revista, confirmando o douto acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2014

Orlando Afonso (Relator)

Távora Victor

Sérgio Poças