Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
799/21.0JAPDL.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO PENAL
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
CULPA
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
INIMPUTABILIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 02/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGAMENTO ANULADO
Sumário :
I -    Defende o recorrente que o acórdão recorrido errou na qualificação jurídica ao integrar os factos na previsão do tipo de crime de homicídio qualificado do art. 132.º do CP, que constitui um tipo de culpa agravado, por a especial perversidade ou censurabilidade da conduta, que justifica a qualificação, não ser compatível com o facto de a sua culpa ser diminuída, por força da anomalia psíquica que afeta a sua capacidade de avaliação e de determinação, em virtude de ter agido «com imputabilidade diminuída».

II -   A figura da «imputabilidade diminuída» não se encontra, enquanto tal, prevista no CP, cujo art. 20.º, n.º 2, em vez disso, estabelece que pode ser declarada a inimputabilidade do arguido nas situações e condições especificadas neste preceito.

III - O CP de 1982-1995 deu nova configuração normativa à tradicional «imputabilidade diminuída» (art. 20.º, n.º 2), ao adotar uma solução flexível que confere ao julgador a possibilidade de optar por uma de duas hipóteses: pela declaração de inimputabilidade com as respetivas consequências (aplicação de uma medida de segurança) ou pela não declaração de inimputabilidade (com aplicação de uma pena).

IV - A pena aplicável ao agente de um crime com «imputabilidade diminuída», não declarado inimputável, não tem de necessariamente ser atenuada. À «imputabilidade diminuída» não corresponde uma diminuição da culpa; pelas qualidades desvaliosas de personalidade projetadas, documentadas e reveladas no facto pode justificar um juízo de censura (culpa) agravada e a agravação da pena; uma conceção da imputabilidade diminuída fundada na diminuição da culpa não tem correspondência na lei penal vigente

V -  Concluir pela «imputabilidade diminuída», que, em substância, corresponde a «imputabilidade duvidosa», não significa considerar que o arguido é imputável; tal como não significa concluir pela equiparação à inimputabilidade.

VI - A declaração de inimputabilidade ou não imputabilidade dependerá sempre de uma decisão judicial, e não clínica, quando se mostrem verificados os respetivos pressupostos legais (art. 20.º, n.º 2, do CP): (a) que o agente padeça de anomalia psíquica grave não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado; e (b) que, por força da anomalia psíquica grave, a capacidade do agente para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com ela se encontre sensivelmente diminuída, no momento da prática do facto.

VII - Identificada a “anomalia psíquica” (esquizofrenia paranoide) de que o arguido é portador no momento da prática do facto e que constitui o substrato “biológico” ou “biopsicológico” em que se funda o juízo de imputabilidade ou inimputabilidade, cabe ao juiz apreciar e decidir se o arguido é imputável ou inimputável (elemento normativo), daí extraindo as consequências legalmente devidas, sob pena de, não o fazendo, omitir pronúncia sobre questão que tem o dever de apreciar, que constitui motivo de nulidade da sentença, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

VIII - Limitando-se o acórdão recorrido a afirmar que o arguido “atuou com a sua imputabilidade diminuída”, reproduzindo, sem mais, a conclusão da perícia psiquiátrica, permanece a dúvida sobre a imputabilidade, que o tribunal deve esclarecer, com a cooperação do perito, com base na perícia, em eventuais esclarecimentos complementares ou nova perícia, nos demais elementos de prova e nas circunstâncias relativas às condições pessoais (sobretudo de saúde) e relativas ao facto e à personalidade do arguido.

IX - Mantendo-se a conclusão de que o arguido, embora portador de uma anomalia psíquica, é imputável, será também necessária perícia que auxilie o julgador com os elementos imprescindíveis para que possa concluir pela aplicação ou não aplicação do regime previsto no art. 104.º, n.º 1, do CP (internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena).

X -  Em consequência, é declarada a nulidade o acórdão recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, e n.º 2, do CPP, por omissão de pronúncia quanto à questão da imputabilidade do arguido, devendo, realizadas que sejam as diligências necessárias, ser proferido novo acórdão que conheça e decida sobre esta questão, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art 20.º do CP, com as necessárias consequências legais.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório

1. Por acórdão de 6 de março de 2022, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Cível e Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi decidido:

“Condenar o arguido AA:

- pela autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs.1, al. a) e 2, al. a) do Código Penal, sobre a sua esposa BB, na pena especialmente atenuada (em razão da sua imputabilidade diminuída) de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- pela autoria material e na forma tentada de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs.1 e 2, al. a), 23.º, n.º.1, 72.º, n.º.1, 73.º, nºs.1 e 2, 131.º, 132.º, n.ºs.1 e 2, al. b), todos do Código Penal, sobre a sua esposa BB, na pena especialmente atenuada (em razão da sua imputabilidade diminuída) de 6 (seis) anos de prisão;

- fixar a pena única (especialmente atenuada) ao arguido (numa moldura abstrata que vais dos 6 aos 8 anos e 6 meses de prisão) em 7 (sete) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

Condenar o arguido AA a pagar à ofendia BB, a título da reparação a que se reporta o artº.82º-A do Código de Processo Penal, o montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros); (…)”

2.  Discordando da qualificação jurídica dos factos provados quanto ao crime de homicídio tentado, da pena aplicada pela prática deste crime e da pena única, por ter agido com “imputabilidade diminuída”, recorre o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça apresentando motivação em que conclui nos seguintes termos (transcrição):

«1 – Objeto e delimitação do Recurso

O presente recurso tem como objeto a matéria de Direito – respeitantes à subsunção jurídica dos factos provados e à pena única aplicada – do acórdão condenatório proferido.

2 – O Recorrente foi condenado nas penas parcelares de dois anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica agravada e de seis anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada,

3 – E, em cúmulo das penas parcelares acima determinadas, na pena única de sete anos e quatro meses de prisão.

4 – Ressalvado o respeito devido, não nos parece que assim devesse ter sido.

Vejamos.

5 – Da errada qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado na forma tentada

O Tribunal “a quo” integrou os factos descritos em 1.6 da matéria de facto provada no crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art.º 131.º e n.º 1 e al. b) do n.º 2 do art.º 132.º, ambos do C.P.

6 – Sucede que em 2. da matéria de facto deu igualmente como provado que o Recorrente agiu com imputabilidade diminuída,

7 – Diminuição da capacidade de avaliação essa que haverá de refletir um menor grau de culpa e, por isso, afasta o juízo de especial censurabilidade ou perversidade exigido pelos exemplos previstos no n.º 2 do art.º 132.º do C.P.

8 – Entender que a especial censurabilidade e a imputabilidade diminuída podem coexistir no mesmo caso constitui uma verdadeira incoerência.

9 – Deve, assim, a conduta do Recorrente descrita em 1.6 da matéria de facto considerada provada ser reconduzida ao tipo legal base do crime de homicídio.

10 – A moldura relevante para a determinação da pena a aplicar ao crime de homicídio, na forma tentada, do caso concreto situa-se entre o mínimo de um mês e o máximo de sete anos, um mês e dez dias de prisão.

11 – Ponderando todas circunstâncias que militam a favor e contra o Recorrente (art.º 71.º do C.P.), uma pena situada perto do meio da moldura penal aplicável ao crime de homicídio, na forma tentada, ainda realizará, de forma suficiente, as finalidades da punição, considerando-se adequada ao caso concreto e à medida da culpa a aplicação de pena nunca superior a três anos e seis meses de prisão,

12 – Reputando-se também adequada à ilicitude global do facto e as exigências de prevenção a aplicação de pena única nunca superior a quatro anos e seis meses de prisão.

13 – Ao decidir como decidiu o Tribunal “a quo” fez erradas interpretação e aplicação das normas ínsitas no arts. 20.º, 131.º e 132.º, todos do C.P.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser o acórdão recorrido substituído por outro que opere à desqualificação jurídica do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e, em consequência aplique ao Recorrente pena única nunca superior a quatro anos e seis meses de prisão, por ser de Direito e de elementar JUSTIÇA!»

3. Responde o Senhor Procurador da República no tribunal recorrido, no sentido da improcedência do recurso, dizendo, em conclusões (transcrição):

«1. Entendemos que o recorrente não tem razão, pois o acórdão impugnado não merece qualquer censura, não enferma de omissões, nulidades ou vícios.

A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artigo 127.º do Código do Processo Penal.

2. O acórdão refere claramente os meios de prova que serviram para o tribunal formar a sua convicção, garantindo que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não omitindo a fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do recorrente, não constituindo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum.

3. O recorrente limita-se a expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal, e tendo, como se verificou, este formado a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formulou o recorrente.

4. O mesmo ocorre quanto alega quanto à qualificação dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, em concreto,

5. Apesar da imputabilidade diminuída do arguido decorrente da “Esquizofrenia Paranoide desde há 9 anos e tem, como comorbilidade, uma dependência de substâncias Ilícitas desde os 16 anos de idade”, defendemos que a pena aplicada é justa e adequada à luz dos princípios da culpa e da muito forte necessidade de prevenção geral, pois só uma concepção ancestral, repudiada hodiernamente, poderá aceitar que a agressão que apenas não foi letal, devido à intervenção do seu filho, sem qualquer motivo, à mulher com quem vive, mãe dos seus filhos, se revela mais digno de tolerância e de aceitação, face ao provado Esquizofrenia Paranoide (que apenas lhe atenua a capacidade de dominar a vontade e a consciência, sobretudo, quando nem a presença do filho comum constituiu qualquer freio à agressão iniciada, sendo o grau de afetação da vontade e consciência reduzido, qualquer ataque violento e não letal por razões alheias a sua vontade (ou outro físico) contra um cônjuge de uma vida, mercê de uma Esquizofrenia Paranoide, é revelador de características especiais de carácter do agente particularmente desvaliosas, pois assume o objeto do seu “afeto” como uma coisa.

6. Por outro lado a intensidade do dolo, deve-se anotar que o arguido atuou com uma intenção determinada e enérgica de matar a sua mulher BB na zona da cabeça, da garganta e do coração com uma navalha com diversos golpes, a qual empunhou sem que a ofendida se tivesse apercebido de tal ato, o arguido AA agiu com o propósito de lhe tirar a vida, bem sabendo que o instrumento que utilizou para o efeito, contra as zonas que atingiu no corpo da vítima, era idóneo para alcançar órgãos vitais e a produzir a morte de BB, o que diretamente quis e aceitou;

7. Como refere o douto acórdão: “Sendo o homicídio um crime de resultado e não tendo este sido logrado por força de circunstância não dependente do arguido e depois de ter ele executado atos integradores do que vem apontado no artº.22º, nº.2, al.a) do CP…Estamos, pois, na situação a que se reporta o nº.1 deste mesmo preceito…tentativa punível.

Está demonstrado que o arguido…de forma querida e sabendo que cometia crime, ainda que com a capacidade de crítica diminuída como o atesta a perícia a que foi sujeito…decidiu tirar a vida a BB, pessoa com quem estava casado e com quem tinha vida em comum, e para isso, no lar em que tinham o seu centro de vida e seria reduto de segurança, desferiu no corpo dela uma miríade de facadas, com um canivete que tirou do bolso sem que aquela o tivesse percebido e com isso sem possibilidade de se poder defender dele e desse instrumento…atingindo-a em partes do corpo que albergam órgãos vitais que só não atingiu, apesar de o tentar, porque nisso foi interrompido pelo filho que veio em socorro da mãe…coisa que, naturalmente, se reveste de especial censurabilidade.”

8. Cometeu, assim o arguido em autoria material e na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 22.º, nºs. 1 e 2, al. a), 23.º, n.º 1, 72.º, n.º 1, 73.º, nºs.1 e 2, 131.º, 132.º, nºs.1 e 2, al. b), todos do Código Penal.

9. Por fim, não é despiciendo recordar o ainda elevado número de vítimas mortais em resultado de violência doméstica, e, com ele, as fortes exigências de prevenção geral que urge acautelar.

10. A 1.ª instância arredou a atenuação especial da pena, entendendo «que a diminuição da culpa do arguido por força da sua imputabilidade diminuída não é de molde, não tem intensidade suficiente para que se atenue especialmente a sua pena, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal», especto não especificamente impugnado no recurso.

11. Na verdade, quando o recorrente alude a que o tribunal «não teve em consideração essa atenuação especial da responsabilidade do recorrente» (conclusão n.º 10, fá-lo no quadro da ponderação imposta pela alínea b) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, sem nunca aludir à diminuição acentuada da culpa, para efeitos da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º do Código Penal.

12. Mas sempre será de destacar que o estado psíquico que afetava o recorrente no momento da prática do facto (“Esquizofrenia Paranoide”) não seria adequado, na compreensão conjugada com os restantes factos provados, a conformar uma imagem global do facto especialmente atenuada.

13. Assim, ao contrário do que defende o recorrente, perante os factos provados temos de concluir que o comportamento do arguido preenche os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de violência doméstica e do crime de homicídio qualificado tentado.

14. Tal como se demonstrou, o recorrente atuou com a sua imputabilidade diminuída, assim as molduras relevantes para a determinação das penas passam a ser, por força do que decorre do artigo 73.º do Código Penal, para o crime de violência doméstica agravada a de 1 mês a 3 anos e 4 meses de prisão e para o crime de homicídio qualificado na forma tentado a de 1 mês a 11 anos 1 mês e 10 dias de prisão.

15. O Ministério Público entende que a pena de 7 anos e 4 meses efetiva se mostra justa e adequada, em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto Acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial. Devendo ter em conta que a anomalia psíquica do recorrente caracteriza, ainda, uma prognose de reincidência que a prevenção especial deve acautelar, ainda que na sua forma mais modesta e mais redutora da segurança individual ou neutralização, a qual, porém, deve atuar dentro dos limites da estrita necessidade, subordinada ao princípio da proporcionalidade e da consequente proibição de excesso

16. O tribunal a quo teve perante si o arguido e a ofendida, viu-o, ouviu-os, olhou-os, apercebeu-se, portanto, de muitos pormenores (atitude, postura) que só a imediação permite, e concluiu, em seu soberano critério, que o relato de determinados factos merece credibilidade, daí terem resultado provados.

17. A apreciação da prova é a pedra de toque que revela a qualidade de quem julga; fazer ressaltar a verdade material é tarefa árdua, complexa e exigente, que alia a experiência de vida, ao bom senso e às regras da lógica e experiência comum.

18. Concluindo, devem improcederem, assim, a totalidade da pretensão do recorrente quanto à matéria de facto.

19. Quanto à medida da pena o Ministério Público como já se referiu nenhuma censura merece a determinação das medidas das penas, sendo as penas parciais, e a pena única, aplicada ao arguido ora recorrente adequadas à sua culpa, à sua conduta anterior e posterior aos factos, às exigências de prevenção geral e especial e não pecam por excesso, bem como são acertadas face às condições pessoais e potencial de inserção social do arguido.

20.  Em concreto, a medida da pena do concurso de crimes, tal como vem sendo unanimemente afirmado pela jurisprudência e doutrina, é determinada, tal como nas penas parcelares, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, a que acresce, como decorre do nº 1, do art.º 77, do Código Penal, um critério específico– “a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente”.

21. Por outro lado, caso em apreço nunca seria possível suspender a execução a pena de prisão por se não verificarem os respetivos pressupostos, pois no caso vertente, são particularmente elevadas as exigências de prevenção geral, uma vez que, estes tipos de crime, assume relevantes proporções, com graves consequências nas vítimas.

22. Por outro lado, a factualidade sob colação revela-se particularmente censurável, visto que a conduta do arguido denotou total, absoluto e reiterado desrespeito pelas normas penais vigentes, bem como os crimes em causa se revestem de incisiva gravidade e é profundamente atentatório dos bens jurídicos fundamentais de índole pessoal.

23. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente.

Concluindo, deve improceder, assim, nesta parte a pretensão do recorrente.»

4. Foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da procedência parcial do recurso, nos seguintes termos (transcrição):

«(…)

5 – Objecto do recurso é, pois, (…) tão só a qualificação do crime de homicídio, na forma tentada, cometido pelo recorrente contra a pessoa da sua mulher, pretendendo aquele que o facto de ter resultado provado que agiu com imputabilidade diminuída, a correlativa diminuição da capacidade de avaliação haverá de refletir um menor grau de culpa e, por isso, afastar o juízo de especial censurabilidade ou perversidade exigido pelos exemplos previstos no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

Defendendo, nestes termos, que a conduta descrita em 1.6 da matéria de facto considerada provada deverá ser reconduzida ao tipo legal base do crime de homicídio, questiona o recorrente, consequentemente, o quantum da pena de prisão imposta, pugnando pela aplicação de pena parcelar não superior a 3 anos e 6 meses de prisão a cominar a prática do crime de homicídio, simples, na forma tentada, e pena única não superior a 4 anos e 6 meses de prisão.

Considere-se, antes de mais, a argumentação aduzida pelo recorrente na motivação do recurso:

‘O Tribunal “a quo” integrou os factos descritos em 1.6 da matéria de facto provada no crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131.º e n.º 1 e al. b) do n.º 2 do art. 132.º, ambos do C.P.

Sucede que em 2. da matéria de facto provada deu igualmente e que, em síntese, o Recorrente tem um diagnóstico de Esquizofrenia Paranoide desde há 9 anos e tem, como comorbilidade, uma dependência de substâncias ilícitas desde os 16 anos de idade e que, na data dos factos, atuou sob influência de substâncias psicoativas que interferiram com a sua capacidade de avaliação, diminuindo a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação.

Como é sabido, a chamada imputabilidade diminuída pressupõe e exige a existência de uma anomalia ou alteração psíquica que afete o agente e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação,

Diminuição da capacidade de avaliação essa que haverá de refletir um menor grau de culpa.

Por outro lado, a qualificação do homicídio assenta num juízo de especial censurabilidade ou perversidade sobre a conduta do agente, constituindo os exemplos previstos no n.º 2 do art. 132.º do C.P. indícios dessa culpa agravada.

A verificação de um desses exemplos-padrão indicia a especial censurabilidade ou perversidade da conduta praticada, todavia, esse indício pode ser afastado mediante a verificação de outras circunstâncias que o nulifiquem.

Uma dessas circunstâncias impedem a comprovação dessa culpa agravada é precisamente a imputabilidade diminuída do agente.

Sobre esta questão sustenta Elisabete Amarelo Monteiro que “a imputabilidade diminuída terá de ser considerada como uma circunstância impeditiva da verificação da cláusula geral prevista no n.º 1 do artigo 132.º, quebrando-se assim o efeito de indício inerente à verificação de uma das circunstâncias do n.º 2 de tal preceito legal” – in Crime de Homicídio Qualificado e Imputabilidade Diminuída, Coimbra Editora, 1.ª edição Março 2012, págs. 155 e ss.

Mais entende a referida Autora que, se a culpa do agente é diminuída por força da anomalia psíquica que afeta a sua capacidade de valoração e de determinação, então, por princípio, seria impossível fazer coincidir a sua conduta com a especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo artigo 132.º do C.P.

Entender que ambas poderiam coexistir no mesmo caso (especial censurabilidade e imputabilidade diminuída) seria uma verdadeira incoerência!

Se assim é, como cremos que deverá ser, deve então a factualidade descrita em 1.6 da matéria de facto considerada provada ser reconduzida ao tipo legal base do crime de homicídio.

Em igual sentido se têm pronunciado diversos arestos deste douto Tribunal, designadamente, os Acórdãos de 18.10.2006 (processo n.º 06P2679), de 18.02.2009 (processo n.º 08P3775), de 06.01.2010 (processo n.º 238/08.2JAAVR.C1.S1), de 27.05.2010 (processo n.º 6/09.4JAGRD.C1.S1) e de 21.06.2012 (processo n.º 525/11.2PBFAR.S1).

Tendo-se considerado verificada circunstância conformadora do exemplo previsto na alínea b) do n.º 2 do art. 132.º do C.P., deveria ter sido arredada a qualificação da tentativa de homicídio, enquadrando-se a conduta do Recorrente, ao invés, na moldura penal abstrata do tipo fundamental de homicídio, na forma tentada.

Uma vez definida a subsunção típica, haveria então o Tribunal “a quo” proceder à valoração de eventuais atenuantes para efeitos da medida da pena, não deixando de ponderar, como bem fez, a imputabilidade diminuída do Recorrente, porquanto o facto desta “ter determinado a «desqualificação» do homicídio não impede, com efeito, a sua ponderação para efeitos de determinação da medida da pena e até mesmo para efeitos da atenuação especial da pena, sempre que seja adequada a diminuir por forma acentuada a culpa do agente (artigo 72.º, n.º 1, do CP)” – Ac. do STJ de 21.06.2012, processo n.º 525/11.2PBFAR.S1.

Na esteira do que fica dito, ao crime de homicídio na forma tentada corresponde a moldura penal abstrata entre um ano, sete meses e seis dias e dez anos e oito meses de prisão.

Considerando-se provada a afetação psicológica do Recorrente em razão da doença de que padece, exponenciada pela sua dependência aditiva, que importa uma diminuição da culpa e, consequentemente, uma atenuação especial da pena nos termos do disposto no n.º 1 do art. 72.º do C.P., a moldura penal relevante para a determinação da pena concreta fixa-se entre o mínimo de um mês e o máximo de sete anos, um mês e dez dias de prisão.

Ponderando todas circunstâncias que militam a favor e contra o Recorrente (art. 71.º do C.P.), cremos que uma pena situada perto do meio da moldura penal aplicável ainda realizará, de forma suficiente, as finalidades da punição, considerando-se adequada ao caso concreto e à medida da culpa a aplicação de pena nunca superior a três anos e seis meses de prisão.

Alterada a pena parcelar importaria redefinir a pena unitária a aplicar ao concurso, nos termos do disposto nos n.os 1 e 2 do art. 77.º do C.P.

Sopesando a ilicitude global do facto e as exigências de prevenção requeridas, a aplicação ao Recorrente de uma pena situada acima do meio e abaixo dos três quartos da moldura penal abstrata aplicável ao concurso (mínimo de três anos e seis meses e máximo de seis anos) ainda realizará, de forma suficiente, as finalidades da punição, considerando-se adequada ao caso concreto e à medida da culpa do arguido a aplicação de pena única nunca superior a quatro anos e seis meses de prisão.’

É múltipla a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, aliás citada pelo recorrente, que aponta no sentido por ele propugnado quanto à não qualificação do crime de homicídio, quando ao agente se reconheça uma situação de imputabilidade diminuída.

Refere-se no acórdão de 18.02.2009, deste S.T.J., proferido no processo n.º 08P3775 “(…) o homicídio qualificado pressupõe um tipo especial de culpa e sendo culpa a “censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito” (Teresa Serra, ibidem), então não parece possível, sob pena de grave contradição, que o agente do homicídio qualificado possa agir com uma imputabilidade substancialmente diminuída, designadamente por virtude de doença do foro psiquiátrico. Efectivamente, constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, avaliar a sua ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação (art.º 20.º, n.º 1, do CP, a contrario), a diminuição sensível dessa capacidade de avaliação ou de determinação por causa de uma determinada anomalia psíquica pode não fazer cair o agente no campo da inimputabilidade (conforme se decidiu no acórdão recorrido, entendendo que não se verificavam os pressupostos do n.º 2 do art. 20º), mas impede, seguramente, a formulação de um juízo de especial censura acerca da culpa do agente. Dito de outra forma: a especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do facto, pelo que, só deste modo a culpa poderá ser tida por especialmente censurável; ou seja: este tipo de crime não pode ser cometido num estado de imputabilidade diminuída, pois, neste caso, a culpa não excede o grau da mera censurabilidade. Neste sentido, decidiu o STJ no ac. de 18-10-2006 – proc. 2679/06.” Considere-se, ainda, o acórdão de 21.06.2012, deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 525/11.2PBFAR.S1, da 5ª Secção:

(…) A chamada imputabilidade diminuída pressupõe e exige a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato bio-psicológico) que afecte o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo). Os pressupostos biológicos da imputabilidade diminuída são os mesmos que o artigo 20.º do CP prevê para a inimputabilidade. A diferença reside no efeito psicológico ou normativo: a capacidade de compreensão da acção não resulta excluída em consequência da perturbação psíquica, mas, antes, notavelmente diminuída.

Se a imputabilidade diminuída significa uma diminuição da capacidade de o agente avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ela há-de, em princípio, reflectir um menor grau de culpa (uma culpa diminuída). Como adverte Jescheck, «não parece justo que sujeitos cuja capacidade de compreensão ou de acção resulta fortemente diminuída por perturbações psíquicas sejam tratados como plenamente sãos». No mesmo sentido, Eduardo Correia salienta que «se certos momentos internos podem excluir a liberdade de determinação, e, portanto, a legitimidade do juízo de censura e de culpa, resultará daí necessariamente que esses momentos, quando não excluem a legitimidade de tal juízo, podem e devem servir para graduar o seu conteúdo e gravidade», ou seja, «se tem de atribuir-se a um certo grau de anomalia mental uma função limite da culpa, enquanto ela exclui a liberdade do agente, e, portanto, a possibilidade de o censurar, seria contraditório não tomar em conta, para justamente graduar aquela censura, os outros graus de anomalia que, sem excluírem a liberdade do sujeito, todavia a diminuem mais ou menos». A qualificação do homicídio, na construção do artigo 132.º do CP, assenta num juízo de especial censurabilidade ou perversidade sobre a conduta do agente, constituindo os exemplos-padrão descritos no n.º 2 do artigo indício dessa culpa agravada. A comprovação, no facto, de circunstâncias que preenchem um dos exemplos-padrão tem um efeito de indício da especial censurabilidade ou perversidade, efeito de indício esse que, todavia, pode ser afastado mediante a verificação de outras circunstâncias que o anulem, quer dizer, que constituam contra-prova bastante do efeito de indício ligado à afirmação de uma das circunstâncias do n.º 2 do artigo 132.º. Sobre a questão de a imputabilidade diminuída consubstanciar, ou não, uma dessas circunstâncias que obstam à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do homicídio, debruça-se Elisabete Amarelo Monteiro (in Crime de Homicídio Qualificado e Imputabilidade Diminuída, Coimbra Editora, 1.ª edição Março 2012), para afirmar ser manifesto «que a imputabilidade diminuída terá de ser considerada como uma circunstância impeditiva da verificação da cláusula geral prevista no n.º 1 do artigo 132.º, quebrando-se assim o efeito de indício inerente à verificação de uma das circunstâncias do n.º 2 de tal preceito legal». Considera a Autora que este terá de ser o efeito natural e previsível da imputabilidade diminuída sobre a qualificação de um crime de homicídio, uma vez que, por princípio, aquela implica uma diminuição da culpa do agente. E seria uma verdadeira incoerência qualificar o homicídio não obstante a imputabilidade diminuída. Se a culpa do agente é diminuída por força da anomalia psíquica que afecta a sua capacidade de valoração e de determinação, então, por princípio, seria impossível fazer coincidir a sua conduta com a especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo artigo 132.º Na mesma linha, em vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça é sustentada a desqualificação do homicídio em consequência da imputabilidade diminuída reconhecendo-se, em suma, que, uma vez que o homicídio qualificado pressupõe um tipo especial agravado de culpa e constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, o agente avaliar a sua ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação, a diminuição sensível dessa capacidade de avaliação ou de determinação por causa de uma determinada anomalia psíquica impede a formulação de um juízo de especial censura acerca da culpa do agente. (…)

No mesmo sentido, se apresentam os acórdãos, igualmente do S.T.J., de 18.10.2006, 06.01.2010 e 27.05.2010.

Parece, pois, dever concluir-se assistir razão ao recorrente quando reclama que a factualidade descrita em 1.6 da matéria de facto considerada provada na decisão recorrida, na consideração dos factos provados em 2, seja reconduzida ao tipo legal base do crime de homicídio, do artigo 131.º do Código Penal.

Consequência desta compreensão é a alteração da moldura penal abstracta a considerar na punição do crime de homicídio, na forma tentada, em causa, a qual passará a balizar-se pelos limites mínimo de 1 ano, 7 meses e 6 dias de prisão e máximo de 10 anos e 8 meses de prisão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º, 22.º, 23.º, n.º 1 e n.º 2, e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal.

E sendo de admitir, como se refere no citado acórdão de 21.06.2012, que (…) o facto de a imputabilidade diminuída ter determinado a “desqualificação” do homicídio não impede, com efeito, a sua ponderação para efeitos de determinação da medida da pena e até mesmo para efeitos da atenuação especial da pena, sempre que seja adequada a diminuir por forma acentuada a culpa do agente (artigo 72.º, n.º 1, do CP), no pressuposto de o recurso à imputabilidade diminuída na integração dos factos no tipo base de homicídio, na forma tentada, se ter realizado no plano da subsunção típica e não no da valoração das atenuantes, para efeitos da medida da pena, já que (…) como se escreveu no acórdão deste Tribunal de 27/05/2010 (processo n.º 6/09.4JAGRD.C1.S1), e, aqui, se retoma:

«Esse plano, o da determinação da medida concreta da pena, é o que se abre depois de a subsunção dos factos estar definida. E nele devem ser tidas em conta todas as circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a determinação da pena.

«Consequentemente, não é correcto afirmar-se que a diminuição de imputabilidade não pode ser considerada na medida da pena concreta, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração, pois esse princípio vale apenas no plano da determinação da pena concreta (cf. art. 72.º, n.º 3, do CP).

«A imputabilidade diminuída deve, pois, na determinação da pena, entrar, conjuntamente com todas as demais circunstâncias, na ponderação global a que se refere o n.º 2 do art. 71.º do CP, ou inclusivamente na avaliação do circunstancialismo que fundamenta a atenuação especial da pena, nos termos do art. 72.º do CP.» (Em sentido contrário, porém, o acórdão de 18.02.2009 – processo 08P3775, citado), então haverá lugar à atenuação especial da pena em razão da imputabilidade diminuída do agente.

Atenuação especial que também foi aplicada pelo Tribunal a quo, ainda que na compreensão de outra ser a qualificação jurídica dos factos, pois, como se viu, teve-os por integrantes de um crime de homicídio qualificado, na sua forma tentada.

Deverá ter-se, então, em consideração a moldura penal abstracta de 1 mês a 7 anos, 1 mês e 10 dias de prisão. Mas nem assim colherá a pretensão do recorrente em ver tão acentuadamente reduzida a pena a aplicar pelo crime de homicídio, na forma tentada, em que reivindica pena de prisão nunca superior a 3 anos e 6 meses. Na compreensão dos factores relevantes para a determinação da medida da pena, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, nos termos do disposto nos artigos 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º do Código Penal, é inquestionável que nada de particularmente favorável ao recorrente resultou demonstrado. Tendo embora prestado declarações em julgamento, refugiou-se o arguido/recorrente na falta de lembrança dos factos, nada tendo esclarecido sobre a essencialidade da materialidade em julgamento.

No que respeita à sua personalidade e condições socioeconómicas, e como se assinala na decisão recorrida, é pessoa integrada familiar e socialmente…Contudo, a falta de integração laboral, sabendo nós que isso não se deve a vontade sua, mas à sua invalidez, não deixa de pôr a nu a sua fragilidade e pouca consistência em se conduzir numa vida longe dos tóxicos a que recorre por falta de ocupação…sendo pessoa com uma conotação negativa associada ao universo das drogas.

E o que se contrapõe é a inquestionável gravidade dos factos praticados pelo recorrente, sendo o tipo dos crimes em causa, em razão do bem jurídico que defendem, causa de grande alarme social e elevada nocividade para sentimento de segurança da população, que deve ser acautelado, como se expõe no acórdão recorrido.

O recorrente agiu de forma dolosa, na sua modalidade mais intensa, dolo directo.

Revelou um grau elevado de energia criminosa (agarrou a vítima, sua mulher, pelo pescoço, atirou-a ao chão, colocou-se em cima dela, pegou numa navalha que retirou do bolso, com a qual desferiu vários golpes na zona da cabeça, pescoço, peito e axila esquerda, junto ao coração, de BB, enquanto gritava que a iria matar;

O arguido AA só não atingiu o coração ou cortou artérias e veias existentes na zona do pescoço da ofendida BB, provocando-lhe a morte, porquanto o filho de ambos, CC, ouviu os gritos da mãe e acorreu em socorro da mesma, afastando o arguido de cima da ofendida;

Em consequência da atuação do arguido, BB sofreu dores fortes nas zonas atingidas e uma ferida cortante na têmpora esquerda, escoriações na região do pescoço no sentido ântero-posterior na região submentoniana com 3,05 cm, uma ferida linear superficial na face direita do pescoço no seu terço médio com 4 cm de comprimento transversal a esta região do pescoço, uma ferida punctiforme na região torácica junto à fulecra esternal à esquerda, uma ferida corto-perfurante na região intraclavicular esquerda junto ao externo e uma ferida corto-perfurante de 4 cm na região axilar esquerda ao nível da linha axilar média com trajeto profundo com aproximadamente 7 cm subpeitoral com orientação anterior para posterior e inferior para medial, lesões que demandaram 12 dias para cura com afetação da capacidade para o trabalho geral em 2 dias e para o trabalho profissional em 10 dias, cfr. factos provados 1.6.

Assim se compreende que o Tribunal a quo tenha considerado:

A ilicitude, tendo em conta os contornos da atuação do arguido, é significativa…pois, ressentido e imbuído de um espírito malino, não hesitou em surpreender a esposa, pelas costas e com o instrumento da agressão escondido na algibeira.

Não foi beneplácito ao escolher as partes do corpo que pretendia atingir…selecionando as mais sensíveis…junto ao coração, no pescoço e na cabeça…atuando, assim, como se disse com dolo.

Os antecedentes criminais do arguido…não tendo natureza idêntica aos destes ilícitos…deixam-nos nota clara da propensão do arguido para a delinquência”, ainda de acordo com decisão recorrida. Ora, como se escreveu no citado acórdão de 21.06.2012, “(…) nos crimes de homicídio, ainda que se quedem pela fase da tentativa, as exigências de prevenção geral positiva são sempre especialmente intensas, porque a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro – a vida – é, em geral, fortemente repudiada pela comunidade. Quando o crime ocorre no contexto de uma relação conjugal, as exigências de prevenção geral são, ainda, acrescidas, em virtude da consciencialização comunitária dos fenómenos de violência de género, particularmente de violência doméstica, e da ressonância fortemente negativa que adquiriram. Por isso, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito.”, o que se configura de inteira aplicação na situação vertente.

Sendo de admitir, pelo que antecede, a alteração da qualificação jurídica dos factos provados relativos ao crime de homicídio, tentado, e a consequente revisão da pena aplicada por tal infracção penal, é, porém, de entender que a mesma deverá fixar-se francamente acima do ponto médio da penalidade abstractamente aplicável, não inferior a 5 anos e 6 meses de prisão, ainda consentida pela culpa do agente, e claramente conforme aos critérios legais definidos nos artigos 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º, do Código Penal.

O que terá naturalmente reflexo, com a devida adequação, no respeito das regras do artigo 77.º do Código Penal, na medida da pena única a aplicar ao recorrente.

6 – Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de dever ser julgado parcialmente procedente, nos sobreditos termos, o recurso interposto pelo arguido AA.»

5. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido não apresentou resposta.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

7. O acórdão recorrido encontra-se fundamento nos seguintes termos:

7.1. Factos provados

«A - Factos provados.

AA - Da prova produzida resultou assente a seguinte factualidade (naturalmente dela se expurgando a repetida, a conclusiva e de direito):

Da acusação:

1. O arguido AA foi diagnosticado há cerca de 9 anos com Esquizofrenia Paranoide e desde os 16 anos de idade que consome substâncias estupefacientes, com uma abstinência de cerca de quatro anos após tratamento, mas com a retoma, no ano de 2021, do consumo de “drogas sintéticas”; (…)

1.5.

A ofendida BB e o arguido AA casaram entre si no dia ... de janeiro de 1996, partilhando a residência sita na Avenida ..., ..., juntamente com os seus filhos DD e CC;

O arguido AA sempre foi muito ciumento, dizendo constantemente à ofendida BB que esta o andava a enganar, mantendo relações amorosas com outros homens, o que gerava discussões frequentes entre ambos, chegando o arguido a agredir a ofendida fisicamente (apenas com empurrões) há alguns anos atrás;

Durante o ano de 2021, as agressões verbais do arguido contra a ofendida sofreram um agravamento, passando a chamar-lhe com uma frequência de duas a três vezes por mês “puta, nojenta, cabra, andas-me a enganar com outros homens” e dizia que a iria matar;

Em todas as situações acima descritas AA agiu de forma livre deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram socialmente desvaliosas e criminalmente puníveis;

As agressões verbais perpetradas pelo arguido sobre a ofendida BB visaram não apenas violar a sua liberdade e a sua honra, mas também humilhá-la perante o arguido e seus filhos;

Com a sua atuação AA faz com que a ofendida BB sinta medo dele, receie a sua presença, fique indecisa quanto aos comportamentos a tomar em cada momento, as suas manifestações espontâneas inibidas, tudo para não lhe despertar um acesso de mau humor com as respetivas consequências;

Mais se provou:

Que as condutas do arguido sobre a ofendida acima faladas ocorriam no interior da casa onde habitam;

1.6.

No dia 27 de setembro de 2021, pelas 5h00, quando acordou, o arguido AA começou a dizer à ofendida BB “não me toques nojenta, não me toques” e quando questionado do porquê da sua atitude pela ofendida respondeu-lhe “tu sabes o que fizeste, nojenta, porca”, provocando receio na ofendida porquanto a mesma verificou que o arguido não se encontrava no seu estado normal, uma vez que o mesmo continuou a dizer que a ofendida tinha amantes dentro de casa e a insistir com ela para lhe dizer quem era o amante;

Quando a BB se levantou e se dirigiu à cozinha, AA foi atrás da mesma acusando-a, aos gritos, de ter um amante em casa, situação que se estendeu até por volta das 7h00;

De repente AA foi à gaveta da cozinha buscar uma faca que encostou ao seu pescoço dizendo que se iria matar;

A ofendida pediu-lhe que não o fizesse, logrou tirar-lhe a faca da mão e guardá-la na respetiva gaveta, e, quando tentou fugir para fora de casa, o arguido agarrou-a pelo pescoço, atirou-a ao chão, colocou-se em cima dela, pegou numa navalha que retirou do bolso, com a qual desferiu vários golpes na zona da cabeça, pescoço, peito e axila esquerda, junto ao coração, de BB, enquanto gritava que a iria matar;

O arguido AA só não atingiu o coração ou cortou artérias e veias existentes na zona do pescoço da ofendida BB, provocando-lhe a morte, porquanto o filho de ambos, CC, ouviu os gritos da mãe e acorreu em socorro da mesma, afastando o arguido de cima da ofendida;

Em consequência da atuação do arguido AA, BB sofreu dores fortes nas zonas atingidas e uma ferida cortante na têmpora esquerda, escoriações na região do pescoço no sentido ântero-posterior na região submentoniana com 3,05 cm, uma ferida linear superficial na face direita do pescoço no seu terço médio com 4 cm de comprimento transversal a esta região do pescoço, uma ferida punctiforme na região torácica junto à fulecra esternal à esquerda, uma ferida corto-perfurante na região intraclavicular esquerda junto ao externo e uma ferida corto-perfurante de 4 cm na região axilar esquerda ao nível da linha axilar média com trajeto profundo com aproximadamente 7 cm subpeitoral com orientação anterior para posterior e inferior para medial, lesões que demandaram 12 dias para cura com afetação da capacidade para o trabalho geral em 2 dias e para o trabalho profissional em 10 dias;

Tais golpes seriam idóneos a provocar a morte de BB, caso tivessem atingido as artérias e veias existentes na zona do pescoço ou o coração, uma vez que se situam muito próximo dos locais alcançados pelo arguido;

Quando agrediu BB na zona da cabeça, da garganta e do coração com uma navalha com diversos golpes, a qual empunhou sem que a ofendida se tivesse apercebido de tal ato, o arguido AA agiu com o propósito de lhe tirar a vida, bem sabendo que o instrumento que utilizou para o efeito, contra as zonas que atingiu no corpo da vítima, era idóneo para alcançar órgãos vitais e a produzir a morte de BB, o que diretamente quis e aceitou;

Situação que acabou por não ocorrer porque o arguido foi impedido pelo filho CC de desferir novos golpes no corpo da ofendida, a qual foi conduzida posteriormente ao hospital onde foi intervencionada, circunstâncias que lhe salvaram a vida contra a vontade do arguido;

Nas circunstâncias acima referidas o arguido AA agiu de modo livre, deliberado e consciente, querendo com a sua atuação tirar a vida à ofendida BB, sabendo que a mesma era sua esposa, utilizando para tanto um meio que sabia impedir que ela se pudesse defender e apenas para extravasar a sua agressividade sem se importar se com isso lhe tirava a vida;

O arguido AA agiu sabendo que a sua conduta era socialmente desvaliosa e criminalmente punível;

2.

À data dos factos acima descritos (todos de 1. a 1.6.) o arguido AA estava diagnosticado com esquizofrenia paranoide, tendo estado internado na Casa de Saúde ... por três vezes, e encontrava-se medicado com Risperidona 2 mg ao pequeno almoço e 1 mg ao deitar, bromazepan 3 mg 1 ao pequeno almoço, 1 ao jantar e 1 ao deitar, olanzapina 10 mg ao deitar, xeplion 100 mg 1 injeção no dia 18 de cada mês, faz ainda metadona 130 mg/dia;

2.1.

Realizada perícia psiquiátrica ao arguido AA, a perita psiquiatra concluiu:

. que o arguido tem um diagnóstico de Esquizofrenia Paranoide desde há 9 anos e tem, como comorbilidade, uma dependência de substâncias Ilícitas desde os 16 anos de idade;

. à data dos factos o arguido teria feito consumo de substâncias ilícitas, nomeadamente “droga sintética”, substância esta que, no entanto, não foi detetada na análise efetuada ao mesmo na data dos factos por não ser detetável;

. na data dos factos o arguido AA estaria sobre influência de substâncias psicoativas que interferiram com a sua capacidade de avaliação dos factos, diminuindo a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação, devendo ser considerado que agiu com uma imputabilidade diminuída;

. tendo em conta o historial de consumos, de comportamentos agressivos e a patologia grave de que padece, existe uma forte possibilidade de que se se mantiverem consumos regulares de substâncias psicoativas, atos como os acima descritos se voltem a repetir;

Extrai-se do relatório social do arguido e do seu CRC:

3.

3.1.

AA, à data dos factos, vivia com o seu agregado constituído, o qual era composto pelo próprio, reformado por invalidez, com 46 anos de idade, pela esposa, BB, de 47 anos, e pelos dois filhos do casal, DD e CC, de 26 e 21 anos, respetivamente. Este núcleo familiar reside em habitação de familiares (herdeiros), dispondo de razoáveis condições de habitabilidade. AA iniciou as atividades escolares em idade normal, tendo concluindo o 6º ano de escolaridade, abandonando o sistema de ensino aos 16 anos de idade. Nessa altura, iniciou atividade laboral como ajudante de pedreiro, realizando trabalhos pontuais, sem qualquer vínculo contratual. O agregado constituído de AA era beneficiário do rendimento social de inserção, sendo a esposa do arguido a responsável pela gestão do quotidiano familiar. Entretanto, perante o diagnóstico de esquizofrenia do arguido, resultou na atribuição da reforma por invalidez desde há cerca de 9 anos, cuja quantia mensal é de €464,00. No decorrer do matrimónio vivenciaram períodos conturbados e de grande tensão emocional no seio familiar, aliados à problemática aditiva do arguido e do filho DD. AA iniciou o consumo de substâncias de estupefacientes em idade adulta, inicialmente de canabinoides e heroína, e recentemente o consumo de substâncias sintéticas. AA realizou várias tentativas de tratamento tanto na Clínica ..., como em contexto privado. O arguido encontra-se há alguns anos integrado no programa de tratamento opiáceo com cloridrato de metadona, na Associação ..., no qual se mantém. Ao nível do acompanhamento psicológico, AA não era uma figura assídua, apresentando uma postura resistente. Em abril de 2009, AA foi internado na Casa de Saúde ... - Unidade de Psiquiatria devido a episódio de descompensação, onde permaneceu cerca de 3 meses (período em que registaram dois episódios de fuga), mantendo desde então acompanhamento psiquiátrico regular, por lhe ter sido diagnosticado esquizofrenia. Decorrente do seu percurso desajustado em seio familiar, o arguido no passado dia 12.3.2021, por intermédio da Autoridade de Saúde ..., foi internado compulsivamente, resultante de alterações do comportamento com risco para a integridade física de terceiros, nos serviços de Unidade de Agudos - Psiquiatria, tendo o mesmo obtido alta clínica, no dia 30.3.2021. De acordo com informação veiculada pelos serviços de psiquiatria do Hospital ..., AA teve consulta de psiquiatria no passado dia 28.6.2021, na qual foi prescrita medicação (Bromazepam - 3mg; Risperidona - 2mg; Olanzapina - 10mg), paralelamente, mantendo-se com a toma injetável (Xeplion), com a periocidade mensal. Perante a emergência dos presentes autos, AA encontra-se preso preventivamente desde o dia 27.9.2021. Segundo informação veiculada pelos Serviços de Acompanhamento da Execução da Pena do Estabelecimento Prisional ..., o arguido mantém-se integrado no programa de substituição/metadona, não tendo ainda sido submetido a testes de despiste toxicológico internos. O arguido não regista de infrações disciplinares e recebe visitas do filho CC. O arguido é o segundo elemento de uma fratria de seis. O progenitor era agente da Polícia de Segurança Pública, e a mãe doméstica, atualmente com 71 anos de idade. O seu desenvolvimento psicossocial desenrolou-se num ambiente familiar desestruturado resultante de maus tratos infligidos pelo progenitor à mãe e à fratria. O arguido regista contactos com o sistema formal de justiça desde os 25 anos de idade, vindo a ser condenado em vários processos, pela prática de crimes contra a propriedade, e nesse âmbito foi acompanhado pela DGRS em razão das medidas comunitárias, de substituição de multa por trabalho a favor da comunidade a que foi condenado, tendo a sua execução sido envolta em anomalias desencadeadas pela sua problemática aditiva. Segundo informação veiculada pela Policia de Segurança Pública, no período da medida probatória, o condenado encontra-se indiciado pelo NPP 97...8/2021, Comportamentos Inadequados, em 2021.3.06 participação por alucinações; NUIPC 000387/21.1... e NUIPC 000389/21...., pela prática do crime de perigo comum - posse de arma proibida, por factos datados de 2021.6.6; NUIPC 000329/21...., indiciado pelo crime contra a integridade física, em 2021.5.16; NUIPC 000139/21...., indiciado pelo crime de Ofensa à integridade física voluntária simples, por factos datados de 2021.3.12; NUIPC 000141/21...., indiciado pelo crime de condução sem habilitação legal, por factos datados em 2021.3.12; NUIPC 000799/21.... e NUIPC 000441/21...., indiciado pela prática do crime contra a vida, em 2021.9.27 e 2021.6.6, respetivamente; NUIPC 000118/21...., pela prática do crime contra a integridade física (crime de Violência doméstica contra cônjuge ou análogos), por factos praticados em 2021.3.06. No que toca aos factos aqui em causa…o arguido diz deles não se recordar em razão de terem ocorrido na altura em que estava sob efeito do consumo de substâncias sintéticas, substância que, pelas suas características nem sempre é detetável nos testes de despiste. AA padece de esquizofrenia paranoide que associado à problemática aditiva e ao consumo de substâncias sintéticas ocorre episódios de descompensação e alucinações. Paralelamente, AA desvaloriza a doença que padece (esquizofrenia), assumindo que é cumpridor da terapêutica prescrita. AA de 46 anos de idade, reformado por invalidez, residia com o seu agregado constituído. Com contacto com o mundo da toxicodependência desde o início da idade adulta, nunca se conseguiu projetar adequadamente nas várias dimensões da sua vida, estando associado à adoção de conduta criminal a partir dos 25 anos. Apesar de integrado no programa terapêutico no âmbito da problemática aditiva (programa de tratamento opiáceo com cloridrato de metadona), o consumo paralelo de substâncias sintéticas associado à medicação prescrita da doença que padece (esquizofrenia paranoide) é promotor de instabilidade do comportamento dele, com forte impacto quer no seio familiar, quer para a integridade física do outro, pelo que, o arguido necessita de um elevado controle externo;

3.2.

O arguido já foi condenado:

• por sentença de 28.3.2000, relativamente a factos de 27.3.2000, consubstanciadores do crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa;

• por sentença de 10.7.2000, relativamente a factos de 7.7.2000, consubstanciadores do crime de condução sem habilitação legal, em pena de prisão substituída por multa;

• por sentença de 18.11.2004, relativamente a factos de 23.12.2002, consubstanciadores dos crimes de resistência e coação sobre funcionário e injúria qualificada, em pena de prisão suspensa;

• por sentença de 1.6.2005, relativamente a factos de 8.1.2005, consubstanciadores do crime de condução sem habilitação legal, em pena de prisão substituída por multa;

• por sentença de 17.5.2008, relativamente a factos de 6.4.2006, consubstanciadores do crime de furto qualificado, em pena de prisão suspensa;

• por sentença de 5.2.2016, relativamente a factos de 4.2.2016, consubstanciadores do crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa; e

• por sentença de 10.11.2020, relativamente a factos de 22.5.2019, consubstanciadores do crime de ofensa à integridade física qualificada, em pena de prisão suspensa.»

7.2. Da fundamentação da decisão em matéria de facto extrai-se que:

«O arguido (…) confirmou a sua doença, designadamente o seu aparecimento e data do seu diagnóstico, avançando ainda os tratamentos que fez, nomeadamente a medicação que tomava e, doutra banda, avançou nos seus consumos de droga sintética, esporádicos, e da sua integração no programa de metadona. Na altura dos factos andava muito perturbado…por conta dos consumos de sintética que vinha preconizando, coisa que o levou a um limbo do qual memória alguma tem. Assim…não se recorda de nenhum dos episódios aqui em causa… (…) não se recorda (…) do que se diz ter ele feito à mulher (…).

BB, esposa do arguido, confirmou (…) a doença psiquiátrica de que o seu marido padece e a forma como ele lida com ela…tal como abordou a toxicodependência dele e dos consumos que fazia, avançando que o seu comportamento era condicionado por tais consumos. (…) A partir de 2021 os consumos dele exacerbaram-se e com isso as ofensas que vêm avançadas na acusação e nesses exatos termos…reagindo ela afastando-se da habitação, onde por regra aconteciam, por causa do medo que tinha do marido. No dia 27 de setembro de 2021…(…), o arguido começou a chamar-lhe nojenta, que não lhe tocasse, que sabia ela muito bem porque agia ele daquela maneira, voltando à estória de sempre dos amantes. A certa altura, (…) foi à cozinha onde pegou numa faca que retirou de uma gaveta. Encostou a faca ao pescoço dizendo que se iria matar…coisa a que ela o dissuadiu acabando por lhe tirar a faca das mãos e guardá-la na gaveta de onde ela tinha saído. Nessa sequência, por medo, pois o arguido continuava com a conversa e estava muito agitado, dirigiu-se para a porta da rua para abandonar a residência, prática que sempre adotava em circunstâncias idênticas, altura em que foi puxada pelo arguido, que a agarrou pelo pescoço, a tombou no solo, “montou-se” sobre ela e, com um canivete que tirou do bolso, esfaqueou-a nos termos da acusação. Os golpes que o arguido lhe desferia eram ritmados e sem sinais de parar…e só findaram porque o filho de ambos, o CC, que dorme na sala que existe no rés-do-chão, foi em seu auxílio e afastou o arguido…forçando-o a parar a agressão. Ficou com tanto medo que viu a sua vida por um fio…se o filho não a tivesse acudido teria sido morta naquele dia. (…)

. o que temos provado nos pontos ii.; A.; AA.; 1., 2. e 2.1., sai cristalino (…) ainda dos documentos de fls.92, 103 e 104, 129 a 131, 319 a 322, sendo que estes atestam a versão daquelas no que toca à vida do arguido, (…) doenças e diagnóstico delas no que toca à sua natureza e (…) no que toca às decorrências da doença psiquiátrica para a capacidade de se determinar, que vêm apontadas na perícia, que não foi posta em causa e nem os factos e suas circunstâncias têm a capacidade de inquinar. (…) todas as testemunhas ouvidas, no que toca ao estado psicológico do arguido contemporâneo aos factos, lhe apontam desajuste comportamental, euforia e agressividade que, sem outra explicação, assenta na decorrência da sua doença e do consumo de tóxicos que vinha preconizando, conforme atestado sem rebuço na perícia a que foi sujeito e que o tem como sendo, naquela ocasião, portador de uma imputabilidade diminuída, que se aceita; (…)

 (…) Os consumos de tóxicos, confessados pelo arguido, que lhe provocavam alterações ao nível psicológico e com enfatização do seu humor, exacerbando-o e tornando-o eufórico, irritadiço, desconfiado e agressivo, (…) constituem o lastro da sua atuação. Não restam, assim, dúvidas que o arguido ao longo dos anos foi dirigindo à sua esposa, com especial ênfase, a partir do início de 2021, expressões que a apoucavam, ofendiam e humilhavam, para lá de a violentar fisicamente ao menos com empurrões com que a ia brindando…coisa que pretendia e logrou…usando a casa de morada de família como campo ideal a concretizá-lo. O método era sempre o mesmo que assentava numa fixação de adultério que apenas tinha arrimo na sua cabeça… mas era o mote para tudo que de mal preconizava na esposa…até ao dia em que, porque acicatado pelos efeitos dos consumos que fazia, decidiu-se a tirar a vida à mulher e, pondo em prática tal ideia, esfaqueou-a, visando partes do corpo dela sensíveis, pois alojam órgãos vitais…agressões que apenas parou por ter sido afastado pelo filho CC que acudiu à mãe. Naturalmente, tal como resulta da perícia a que foi sujeito, o arguido atuou com um grau diminuído quanto à crítica que, face a tais comportamentos, está assacada ao homem normal, mas isso não faz com que o mesmo não tivesse o alcance de que atuava com esse propósito de morte sobe a esposa e por essa razão a atacou com um canivete que a vítima não sabia que o mesmo portava, à falsa fé, pois ela estava de costas para ele a dirigir-se para a porta de casa para se ausentar dali face à atitude que o arguido vinha manifestando. (…)»

7.3. Fundamentação de direito:

«B - O direito. (…)

Quanto à violência doméstica:

O tipo legal do crime de violência doméstica (art.º 152.º do CP) dispõe:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou

b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.

Assim…tendo em conta o que se provou e consta acima dos pontos ii.; A.; AA.; 1.5. e 1.6 dos factos provados, não restam dúvidas que o arguido preencheu por uma vez, na pessoa da sua esposa BB, os elementos típicos do ilícito do art.º 152.º, n.ºs.1, al. b), 2, al. a) e 4 do CP…pois, sabendo que era sua esposa a foi apoucando, humilhando e ofendido fisicamente ao longo da sua relação conjugal, na casa de morada de família, com especial ênfase ao longo do ano de 2021…sabendo que atuava contra lei e que cometia crime, tudo fazendo de forma livre e consciente…ainda que esta, diminuída.

Cometeu, pois, o arguido, o crime de violência doméstica, agravado, p.p. pelo art.º 152.º, nºs.1, al. a) e 2, al. a) do CP.

Quanto ao homicídio tentado:

Dispõe o art.º 131.º do CP que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.

Preceitua por sua vez o n.º 1 do art.º 14º do mesmo código que “age como dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar”.

Diz-nos ainda a lei – art.º 132.º, n.º 1 do CP - que se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos…acrescentando o n.º 2 deste mesmo preceito, na sua al. b), que se o lesado for cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação é circunstância suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade.

Sendo o homicídio um crime de resultado e não tendo este sido logrado por força de circunstância não dependente do arguido e depois de ter ele executado atos integradores do que vem apontado no art.º 22.º, n.º 2, al. a) do CP. Estamos, pois, na situação a que se reporta o nº.1 deste mesmo preceito…tentativa punível.

Está demonstrado que o arguido…de forma querida e sabendo que cometia crime, ainda que com a capacidade de crítica diminuída como o atesta a perícia a que foi sujeito…decidiu tirar a vida a BB, pessoa com quem estava casado e com quem tinha vida em comum, e para isso, no lar em que tinham o seu centro de vida e seria reduto de segurança, desferiu no corpo dela uma miríade de facadas, com um canivete que tirou do bolso sem que aquela o tivesse percebido e com isso sem possibilidade de se poder defender dele e desse instrumento…atingindo-a em partes do corpo que albergam órgãos vitais que só não atingiu, apesar de o tentar, porque nisso foi interrompido pelo filho que veio em socorro da mãe…coisa que, naturalmente, se reveste de especial censurabilidade.

Cometeu, assim o arguido…em autoria material e na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artºs. 22.º, nºs.1 e 2, al. a), 23.º, n.º 1, 72.º, n.º 1, 73.º, nºs.1 e 2, 131.º, 132.º, nºs.1 e 2, al. b), todos do CP. (…)

Não se apuraram causas de exclusão da ilicitude nem da culpa, ainda que esta esteja atenuada em razão da imputabilidade diminuída declarada na perícia.»

BB - Determinação da medida da pena:

O crime de violência doméstica, agravado, cometido pelo arguido é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos e o de homicídio qualificado na forma tentado, com pena de prisão de 2 anos 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses.

Aqui volvidos não podemos olvidar que o arguido, tal como se demonstrou, atuou com a sua imputabilidade diminuída, pois efetivamente, por força da sua afetação psicológica em razão da doença de que padece enfatizada pela sua dependência de tóxicos que consumia, realidade que importa uma diminuição na sua culpa que convoca, para o caso, a aplicação do instituto da atenuação especial da pena a que se reporta o art.º 72.º, n.º 1 do CP.

Assim…as molduras relevantes para a determinação das penas passam a ser, por força do que decorre do art.º 73.º do CP, para o crime de violência doméstica agravada a de 1 mês a 3 anos e 4 meses de prisão…e para o crime de homicídio qualificado na forma tentado a de 1 mês a 11 anos 1 mês e 10 dias de prisão.

A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente e das exigências da prevenção, tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido (art.º 71.º do CP). Sendo que, em caso algum, a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.º 40.º, nº. 2, do CP) sendo que esta, como já se mencionou estava sensivelmente diminuída o que redundou no abaixamento das molduras abstratas.

Os factos são graves. Este tipo de crimes, em razão do bem jurídico que defende, é causa de grande alarme social e elevada nocividade para sentimento de segurança da população, que deve ser acautelado.

Agiu de forma dolosa.

A ilicitude, tendo em conta os contornos da atuação do arguido, é significativa…pois, ressentido e imbuído de um espírito malino, não hesitou em surpreender a esposa, pelas costas e com o instrumento da agressão escondido na algibeira.

Não foi beneplácito ao escolher as partes do corpo que pretendia atingir…selecionando as mais sensíveis…junto ao coração, no pescoço e na cabeça…atuando, assim, como se disse com dolo.

Os antecedentes criminais do arguido…não tendo natureza idêntica aos destes ilícitos…deixam-nos nota clara da propensão do arguido para a delinquência.

No que respeita à sua personalidade e condições socioeconómicas, importa salientar que é pessoa integrada familiar e socialmente…Contudo, a falta de integração laboral, sabendo nós que isso não se deve a vontade sua, mas à sua invalidez, não deixa de pôr a nu a sua fragilidade e pouca consistência em se conduzir numa vida longe dos tóxicos a que recorre por falta de ocupação…sendo pessoa com uma conotação negativa associada ao universo das drogas.

Assim, afiguram-se como adequadas:

. para o crime de violência doméstica agravado a pena especialmente atenuada de 2 anos e 6 meses de prisão; e

. para o crime de homicídio qualificado na forma tentada a pena especialmente atenuada de 6 anos de prisão.

Em cúmulo jurídico, pegando nas razões de facto e de direito acabadas de expor e para as quais se remete sem as repetir aqui, para se evitarem tautologias, a pena única de 7 anos e 4 meses de prisão (numa moldura abstrata que vais dos 6 aos 8 anos e 6 meses de prisão).»

Âmbito e objeto do recurso

8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos. Visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, da competência deste tribunal (artigo 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, segundo o qual se pode recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, que não vêm invocados.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017).

9. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir:

(a) Quanto ao crime de homicídio na forma tentada: se os factos por que o arguido vem condenado preenchem o tipo de crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º. n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal ou se, pela circunstância de o arguido ter agido com imputabilidade diminuída, preenchem apenas o tipo de crime de homicídio simples, da previsão do artigo 131.º do Código Penal (conclusões 5 a 9);

(b) Se, em consequência, a pena aplicada deve ser reduzida para medida que o arguido indica como não devendo ser superior a 3 anos e 6 meses de prisão (conclusões 10 e 11); e

(c) Se a pena única deve ser reduzida para medida não superior a quatro anos de prisão (conclusão 12).

10. Defende o recorrente, em síntese, que o acórdão recorrido errou na qualificação jurídica ao integrar os factos na previsão do tipo de crime de homicídio qualificado do artigo 132.º do Código Penal, que constitui um tipo de culpa agravado, por a especial perversidade ou censurabilidade da conduta do agente, que justifica a qualificação, não ser compatível com o facto de a sua culpa ser diminuída por força da anomalia psíquica que afeta a sua capacidade de valoração e de determinação, como resulta do ponto 2 da matéria de facto provada do qual consta que “agiu com imputabilidade diminuída”. Esta “diminuição da capacidade de avaliação haverá de reflectir um menor grau de culpa” e, por isso, “afasta o juízo de especial censurabilidade ou perversidade exigido pelos exemplos previstos no n.º 2 do art.º 132.º do C.P.”, pois que “entender que a especial censurabilidade e a imputabilidade diminuída podem coexistir no mesmo caso constitui uma verdadeira incoerência”, diz o recorrente.

11. Face à alegação de que a diminuição da culpa se impõe pela circunstância de o arguido ter agido “com uma imputabilidade diminuída”, importa precisar, de acordo com os factos provados, incluindo o teor do relatório social, que (supra, 7):

(1) “à data dos factos” o arguido “estava diagnosticado com esquizofrenia paranoide”, “encontrava-se medicado” e tinha “como comorbilidade, uma dependência de substâncias Ilícitas desde os 16 anos de idade;

(2) O arguido “encontra-se há alguns anos integrado no programa de tratamento opiáceo com cloridrato de metadona, (…) no qual se mantém;

(3) “Ao nível do acompanhamento psicológico, (…) não era uma figura assídua, apresentando uma postura resistente”;

(4) Foi internado, em abril de 2009, numa unidade de psiquiatria, durante 3 meses, “devido a episódio de descompensação”, “mantendo desde então acompanhamento psiquiátrico regular”;

(5) Foi internado compulsivamente no dia 12.3.2021 numa unidade de psiquiatria, em resultado “de alterações do comportamento com risco para a integridade física de terceiros”, “tendo o mesmo obtido alta clínica, no dia 30.3.2021”;

(6) Teve uma consulta médica no dia 28.6.2021, em que lhe foi prescrita medicação para tratamento da esquizofrenia, com toma injetável de periodicidade mensal;

(7) A associação da esquizofrenia paranoide, de que o arguido padece e “desvaloriza”, à “problemática aditiva e ao consumo de substâncias sintéticas” gera “episódios de descompensação e alucinações”;

(8) O arguido “diz não se recordar” dos factos que praticou “em razão de terem ocorrido na altura em que estava sob efeito do consumo de substâncias sintéticas, substância que, pelas suas características nem sempre é detetável nos testes de despiste”;

(9) “Apesar de integrado no programa terapêutico no âmbito da problemática aditiva (…), o consumo paralelo de substâncias sintéticas associado à medicação prescrita da doença que padece (esquizofrenia paranoide) é promotor de instabilidade do comportamento” do arguido, “com forte impacto quer no seio familiar, quer para a integridade física do outro, pelo que, necessita de um elevado controle externo”;

(10) Realizada perícia psiquiátrica, a perita psiquiatra concluiu:

- Que o arguido “tem um diagnóstico de Esquizofrenia Paranoide” e “tem, como comorbilidade, uma dependência de substâncias ilícitas desde os 16 anos”;

- Que o arguido, na data dos factos, “teria feito consumo de substâncias ilícitas”, nomeadamente “droga sintética “, não detetada nem detetável;

- Que, nessa data, “estaria sobre [“sob”, melhor dito] influência de substâncias psicoativas que interferiram com a sua capacidade de avaliação dos factos, diminuindo a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação, devendo ser considerado que agiu com uma imputabilidade diminuída”.

- Que, “tendo em conta o historial de consumos, de comportamentos agressivos e a patologia grave de que padece, existe uma forte possibilidade de que se se mantiverem consumos regulares de substâncias psicoativas, atos como os acima descritos se voltem a repetir”.

Embora relacionada com um facto dubitativo, condicional (“estaria sob influência de substâncias psicoativas que interferiram com a sua capacidade de avaliação dos factos, diminuindo a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação”), parece poder extrair-se que a conclusão sobre a imputabilidade diminuída, no momento da prática dos factos, se encontra formulada por associação à esquizofrenia e que, da conjugação da continuação dos consumos de substâncias psicoativas com a patologia de que o arguido padece, se identifica forte risco de repetição da prática de idênticos atos criminosos.

Da “imputabilidade diminuída” e da determinação da pena

12. Dispõe o artigo 20.º do Código Penal (CP):

«Artigo 20.º (Inimputabilidade em razão de anomalia psíquica)

1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.

3 - A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.

4 - A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.”

13. Incluída no capítulo do Código Penal referente aos «pressupostos da punição» do facto, a inimputabilidade constitui, «mais do que uma causa de exclusão, verdadeiramente um obstáculo à determinação» ou «à comprovação da culpa»[1].

Não se devendo estabelecer a distinção entre imputabilidade e inimputabilidade sobre «a fronteira hipotética que separaria ações livres e ações não livres», pois que «no psiquicamente enfermo ou anómalo há um ‘princípio pessoal’ que permanece intocado ou não é ao menos destruído pela anomalia mental» e não se tratando «de uma supressão da liberdade e da consequente responsabilidade geral do inimputável», que «continua a ser uma pessoa e portanto a deter a ‘capacidade’ de fundamentar os factos por si próprio e de responder por eles»[2], o substrato biopsicológico da inimputabilidade (a anomalia psíquica), que “nada tem a ver com a liberdade da vontade”, “aliado a um certo efeito sobre a personalidade do agente, destrói as conexões reais e objetivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente, a tal ponto que o seu ato pode ser (causalmente) ‘explicado’, mas não pode ser compreendido como ‘facto de uma pessoa’».

Nesta compreensibilidade do facto se traduz o processo de determinação do denominado ‘elemento normativo’ da inimputabilidade, isto é, da capacidade do agente de “avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação” (artigo 20.º, n.º 1) [3].

14. Como é unanimemente reconhecido, a figura da «imputabilidade diminuída» não se encontra, enquanto tal, prevista no Código Penal, cujo artigo 20.º, n.º 2, em vez disso, estabelece que pode ser declarada a inimputabilidade do arguido nas situações e condições especificadas neste preceito (supra).

O artigo 20.º, n.º 2, do CP teve origem no artigo 18.º do Projeto do Código Penal (1963), que reproduzia o pensamento de Eduardo Correia, autor do Projeto, e visava contemplar uma «inimputabilidade jurídica», a qual teria lugar apenas «quando o imputável diminuído é efetivamente perigoso, em virtude da tendência que o arrasta para o crime»[4]. Pretendia-se estabelecer um regime diferenciado, baseado na perigosidade, uma “resposta taylor made” (feita à medida)[5], ressalvando-se a situação de “portadores de psicopatias leves e neuroses”, que são imputáveis, mas que, em virtude da anomalia psíquica, “se não compadecem com o regime dos estabelecimentos prisionais”, devendo ser internados em estabelecimentos destinados e inimputáveis[6].

Desta forma se dava nova configuração normativa à tradicional «imputabilidade diminuída», afastando-se uma “terceira via” – uma “semi-imputabilidade”[7], entre a inimputabilidade e a imputabilidade, impondo, como consequência, uma cláusula geral de atenuação da pena –, substituída por uma solução que passou a conferir ao julgador a possibilidade de optar por uma de duas hipóteses:

(1) A declaração de inimputabilidade (uma «ficção jurídico-penal», como lhe chamam alguns autores[8]) com as respetivas consequências (aplicação de uma medida de segurança, nos termos gerais: o agente do crime é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie – artigo 91.º, n.º 1, do CP); ou

(2) A não declaração de inimputabilidade, sendo, nos termos gerais, avaliada a culpa do agente, com a resultante graduação da pena, que não corresponderá, automaticamente, à atenuação da pena. Seguindo a síntese de Maia Gonçalves: «Se o agente não for declarado inimputável, por ainda ter capacidade para avaliar a ilicitude do facto e para se determinar de acordo com essa avaliação, não sensivelmente diminuída, mas em todo o caso de algum modo diminuída, não diz o Código se essa imputabilidade diminuída deve ou não obrigatoriamente conduzir a uma pena atenuada. E parece que o não deverá, devendo cada caso aqui ser apreciado dentro das determinantes gerais dos fins e da medida da pena.»[9].

Desta conclusão – que se extrai por recurso necessário aos elementos histórico e sistemático de interpretação da lei, que, como é sabido, confere expressão normativa ao pensamento de Eduardo Correia e Figueiredo Dias (a que seguidamente se faz referência) – resulta que a não declaração de inimputabilidade oferece ao juiz a possibilidade de, com flexibilidade, atender aos critérios gerais de culpa e de prevenção na decisão sobre a determinação da medida da pena (artigo 71.º do CP), podendo optar por uma pena atenuada, agravada ou, sendo caso disso, por uma pena especialmente atenuada (artigo 72.º do CP), ou, ainda, verificados os respetivos pressupostos, pela aplicação de uma pena relativamente indeterminada sempre que a avaliação conjunta dos factos praticados e da personalidade do agente revelar uma acentuada inclinação para o crime, que no momento da condenação ainda persista (artigo 83.º do CP).

Do pensamento de Eduardo Correia e Figueiredo Dias, refletido no Código Penal, colhem-se, nomeadamente, os seguintes elementos essenciais:

14.1. Partindo de uma “conceção ético-jurídica da culpa” e fazendo apelo a uma “culpa referida à personalidade do agente”, “que se traduz na omissão do cumprimento do dever de orientar a formação ou preparação da personalidade de modo a torná-la apta a respeitar valores jurídico-criminais”, ensinava Eduardo Correia: “onde por um lado a dificuldade de preparação é maior”, “em face de uma forte inclinação” ou “tendência para o crime”, “parecendo, portanto, ser menor a culpa do agente e menos severa a reação criminal que lhe há de corresponder, aí mesmo a intensidade do dever, e por isso a culpa pela sua violação, será mais grave, exigindo-se uma censura maior e uma maior pena. Nisto reside a justificação da mais pesada punição do imputável diminuído perigoso”, pois que “o pensamento da imputabilidade diminuída como uma circunstância atenuante da pena afastaria da punição normal justamente todos os indivíduos com uma natureza propriamente criminosa. Seria a paralisia de uma enérgica reação criminal onde ela se mostra mais precisa”[10].

No mesmo sentido, e por idênticas razões, embora com bases não coincidentes, notando a “contradição” que implicaria reduzir o problema à medida da pena, concluía Figueiredo Dias pela rejeição da ideia de que “todo o imputável diminuído tem menor culpa e deve, portanto, ver a sua pena obrigatoriamente atenuada”. Pelo contrário, “muitos imputáveis diminuídos não devem ver a sua pena atenuada em função da sua menor capacidade”, mas tirando daí a consequência de que “também o problema da imputabilidade diminuída aponta para um conceito de culpa como algo diferente da mera capacidade individual de o agente se deixar motivar pela norma”[11]. “(…) culpa jurídico-penal é, segundo o seu conteúdo material, o ter de responder pela personalidade que fundamenta um ilícito típico”[12]. Defendendo que a censurabilidade da culpa se não liga a um “poder de agir de outra maneira”, “mas sim a um dever de responder às exigências éticas que se fazem à personalidade do agente”, continua Figueiredo Dias[13]: “Quando, pois, o autor de um ato ilícito não responde a tais exigências, ele atualiza no facto uma personalidade jurídico-penalmente desvaliosa e, nesse sentido, uma personalidade censurável. É esta personalidade censurável, atualizada no facto praticado, que fundamenta o juízo de culpa”. Justificando, assim, no fundamental, o tratamento a dar à imputabilidade diminuída: “não se trata aqui de uma «diminuição» da imputabilidade. Do que se trata é, antes, verdadeiramente de casos de imputabilidade «duvidosa», no particular sentido de que neles se comprova a existência efetiva de uma anomalia psíquica – geralmente leve, v.g. uma psicopatia ou uma neurose –, mas sem que se tornem claras as consequências que daí devem fazer-se derivar relativamente ao elemento adicional exigido; casos em que é pouco clara, ou simplesmente parcial, a possibilidade que ao juiz se oferece de «compreensão» da personalidade do agente”.

14.2. Assim se justifica que o legislador “ofereça ao juiz uma norma flexível que lhe permita considerar nestas hipóteses o delinquente imputável ou inimputável” e que se passem a considerar “de verdadeira inimputabilidade a generalidade das hipóteses tradicionalmente consideradas de imputabilidade diminuída” – aqui se incluindo as “doenças mentais” ou “psicoses em sentido estrito”, como a esquizofrenia[14]. Porém, embora o legislador, ao oferecer um critério flexível, não tenha ainda tão longe[15], se, por um lado, se procede, por esta via, ao alargamento dos casos de inimputabilidade, importa notar que[16] a declaração de inimputabilidade não abrange todo o campo da dita imputabilidade diminuída, mas só aquela que é proveniente de “anomalia psíquica grave, permanente e indomável”, cujos efeitos o agente não domina sem que por isso possa ser censurado.

14.3. No caso de o juiz concluir pela não inimputabilidade, a lei não diz que a pena deva ser atenuada, pois pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Afirma Figueiredo Dias[17]: “se a personalidade do agente, que fundamenta um certo facto, se oferece à compreensão do juiz, e este o considera imputável, as qualidades anómalas do seu carácter, quando ético-juridicamente relevantes, entram no substrato do juízo de culpa e por elas tem o agente que responder. (…) em muitas personalidades psicopáticas se exteriorizam qualidades do carácter que relevam, ou relevam também, do ponto de vista ético-jurídico, que fazem parte da total personalidade ética que fundamenta o facto e que, nessa medida, devem ser valoradas como culpa do agente e conduzem (enquanto particularmente desvaliosas) à sua agravação. Investigar quais são essas qualidades e quando elas estão ausentes ou presentes é uma tarefa imprescindível. (…) sempre que as qualidades de carácter do imputável diminuído, para além da perigosidade naturalística que porventura contenham, sejam traduzíveis em termos ético-jurídicos e acentuem a desconformação entre a personalidade do agente e a suposta pela ordem jurídica, elas agravam a sua culpa e por conseguinte também a sua pena”. O que sucederá, pois, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto “se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g., em casos como os da brutalidade ou crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos”[18].

14.4. Sintetizando o seu pensamento, que conforma o Código Penal, formula atualmente a sua posição[19], nos seguintes termos: “Na linha de uma culpa concebida como ‘poder de agir de outra maneira’, como capacidade individual de motivação de acordo com a norma, a solução seria simples e óbvia: à diminuição daquela capacidade haveria de corresponder necessariamente uma diminuição da culpa e por conseguinte uma obrigatória atenuação da pena. Desde sempre se viu, porém, que deste modo se caía em uma aporia insuportável em perspetiva político-criminal. Pois muitas das vezes a anomalia psíquica que onera o agente e torna a sua capacidade de compreensão e de iniciativa sensivelmente diminuída faz precisamente com que o agente seja especialmente perigoso para a comunidade e exija, por isso, em nome da legítima proteção desta, uma reação criminal mais forte e em regra mais longa”. “Não é este, porém, o problema da imputabilidade diminuída. Como hoje se vai reconhecendo já, não se trata aqui de uma “diminuição” da imputabilidade na aceção de um seu grau menor. Ou sequer de uma diminuição da “capacidade de controlo” e consequente capacidade de inibição: toda esta forma de suscitar o problema é ainda filha de uma conceção de culpa como capacidade individual de motivação pela norma. Do que se trata é antes, verdadeiramente, de casos de imputabilidade duvidosa, no particular sentido de que neles se comprova a existência de uma anomalia psíquica, mas sem que se tornem claras as consequências que daí devem fazer-se derivar relativamente ao elemento normativo-compreensivo exigido; casos pois em que é duvidosa ou pouco clara a compreensibilidade das conexões objetivas de sentido que ligam o facto à pessoa”. Se o agente for considerado imputável, “então as qualidades pessoais do seu carácter entram no objeto do juízo de culpa e por elas tem o agente de responder. Se essas qualidades forem especialmente desvaliosas elas fundamentarão uma gravação da culpa e um (eventual) aumento da pena; se, pelo contrário, elas fizerem com que o facto se revele mais digno de tolerância e aceitação jurídico-penal, poderá justificar-se uma atenuação da culpa e uma diminuição da pena”.

14.5. No direito português, que opta por um sistema monista de reações criminais, diferentemente do que sucede em sistemas que nos são próximos, que adotam sistemas dualistas, ao delinquente a quem é aplicada uma pena não se aplica, cumulativamente uma medida de segurança, para responder às necessidades de prevenção. Recorrendo ao pensamento de Eduardo Correia, “supera-se a ‘aparente irredutível antinomia do direito criminal’ porque se faz apelo a uma culpa referida à personalidade do delinquente, a uma culpa que se traduz na omissão permanente, por parte do criminoso, do cumprimento do dever de orientar a formação ou preparação da personalidade de modo a torná-la apta a respeitar os valores jurídico-criminais”. Culpa que, nos casos de inimputabilidade diminuída “significa, concretamente, uma culpa do agente por não ter tratado o seu modo de ser de maneira a modelá-lo de harmonia com o tipo de personalidade que os valores jurídico-criminais de um certo sistema pressupõem”. Nestes casos, acompanhando Maria João Antunes[20], dir-se-á que, quanto maior é a tendência para o crime, e, portanto, menor a sua culpa referida ao facto, maior será a culpa pela não formação da personalidade, porque mais censurável a omissão do dever de a tratar, e, consequentemente, maior a punição – o que significa que a pena aplicada, por comparação com a do delinquente ‘plenamente’ imputável, não tem de ser necessariamente atenuada, podendo ser mesmo agravada, “com o que são satisfeitas as exigências de prevenção especial, muito embora sem a elas ser feito apelo direto”.

15. O que vem de se expor, com a inevitável convocação de doutrina que, projetada no texto da lei[21], possibilita uma devida apreensão da ratio e do sentido do n.º 2 do artigo 20.º do CP, permite, pois, firmar a conclusão de que a pena aplicável ao agente de um crime com «imputabilidade diminuída», não declarado inimputável, não tem de necessariamente ser atenuada. À «imputabilidade diminuída» não corresponde necessariamente uma diminuição da culpa; pode, como se viu, justificar a agravação da pena, nos termos gerais (artigo 71.º do CP), ou mesmo, verificados os respetivos pressupostos, a aplicação de uma pena relativamente indeterminada, pelas qualidades pessoais desvaliosas e censuráveis de personalidade projetadas, documentadas e reveladas no facto ilícito típico.

Como se tem afirmado em jurisprudência reiterada, uma conceção da imputabilidade diminuída fundada na diminuição da culpa não tem correspondência na lei penal vigente [por todos, o acórdão de 19.06.2019, Proc. 291/17.8JAAVR.P1.S1 (Manuel Augusto de Matos) e jurisprudência nele citada].

Da não pronúncia e da dúvida sobre a imputabilidade ou inimputabilidade

16. Concluir pela «imputabilidade diminuída», que, em substância, se traduz em «imputabilidade duvidosa», não significa, como se viu, considerar automaticamente que o arguido é imputável. Tal como não significa concluir pela equiparação automática à inimputabilidade.

A declaração de inimputabilidade ou não imputabilidade dependerá sempre de uma decisão judicial, e não clínica, quando se mostrem verificados os respetivos pressupostos legais (artigo 20.º, n.º 2, do CP): (a) que o agente padeça de anomalia psíquica grave não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado; e (b) que, por força da anomalia psíquica grave, a capacidade do agente para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com ela se encontre sensivelmente diminuída, no momento da prática do facto (incluindo-se aqui os estados psicóticos residuais da linha da esquizofrenia e a dependência de substâncias durante uma síndrome de abstinência)[22].

O artigo 20.º, n.º 2, do CP oferece, pois, ao julgador “uma norma flexível” (supra, 14-15) “que lhe permite, em casos graves e não acidentais” – como nas “psicoses endógenas” (incluindo a esquizofrenia; de notar que, de acordo com a ciência médica, “são as síndromes esquizomorfas que mais frequentemente levam à presença de pressupostos médico-legais de inimputabilidade, se existir relação entre os sintomas psicóticos e os atos ilícitos praticados”[23]) –, “considerar o agente imputável ou inimputável consoante a compreensão das conexões objetivas de sentido do facto como facto do agente se revele ou não ainda possível relativamente ao essencial do facto.”

A opção entre imputabilidade e inimputabilidade “será lograda quando se decide sobre se o agente pode ou não ‘ser censurado’ por não dominar (‘falta de controlo’) os efeitos da anomalia psíquica. E ainda em função de um outro elemento, a saber, o de o juiz considerar que para a socialização do agente será preferível que este cumpra uma pena ou antes, eventualmente, uma medida de segurança. É neste preciso contexto que deve interpretar-se o disposto no art. 20.º-3”[24].

17. Identificada a “anomalia psíquica” de que o arguido é portador no momento da prática do facto e que constitui o substrato “biológico” ou “biopsicológico” em que se funda o juízo de imputabilidade ou inimputabilidade, isto é, a verificação da não existência ou da existência de obstáculo à comprovação da culpa, cabe, pois, ao juiz apreciar e decidir se o arguido é imputável ou inimputável, daí extraindo as consequências legalmente devidas. Sob pena de, não o fazendo, omitir pronúncia sobre questão que tem o dever de apreciar, que constitui motivo de nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP [como se decidiu no acórdão de 23.03.2017, Proc. 826/14.8PVLSB.L1 (Helena Moniz), que aqui se acompanha].

O juízo de imputabilidade ou inimputabilidade «não se baseia apenas num substrato biopsicológico, mas também num elemento normativo, pelo que “[é] ainda e sempre necessário determinar se aquela anomalia é uma tal que torne impossível o juízo judicial de compreensão, de apreensão da conexão objectiva de sentido entre a pessoa e o seu facto; que o torne impossível ou, ao menos, altamente duvidoso” (Figueiredo Dias, ob. cit, 21/ § 27, p. 573). E continuando a seguir o mesmo autor “naquela compreensibilidade se traduz o elemento normativo que acresce à base biopsicológica (...). Com o que fica afastado o principal óbice que ainda hoje se suscita a uma estreita e frutuosa colaboração do perito com o juiz. À luz do paradigma emergente nas ciências do homem, a distinção entre modos de actuação “compreensíveis segundo o sentido” e modos de actuação só “causalmente explicáveis” é cientificamente aceitável e dominável pelos peritos. Por isso deve esperar-se destes um auxílio decisivo para o juiz também quanto à comprovação do elemento normativo: aqui, porém, a última palavra pertencerá sempre ao juiz e a sua capacidade de crítica material será irrestrita, nesta parte e medida continuando a caber-lhe com justeza o cognome de peritus peritorum” (idem, p. 573-4)» (do mesmo acórdão).

“O que o perito e o juiz têm, pois, de fazer – e não no sentido de ‘repartição de tarefas’ que presidia à conceção puramente normativa da inimputabilidade, em que ao perito competia pronunciar-se sobre o substrato puramente biopsicológico e ao juiz sobre o efeito normativo, mas no de uma ‘tarefa cooperativa’ em que a última palavra pertence sempre ao juiz – é tentar uma espécie de racionalização retrospetiva de um processo psiquicamente anómalo. Se a tentativa é lograda o agente deve, apesar da anomalia psíquica de que eventualmente sofra, da sua origem e da sua gravidade, ser considerado imputável. Se a tentativa falhar o agente deve ser considerado inimputável”[25].

18. Relembrando os factos provados (supra, 7.1) e a fundamentação da decisão em matéria de facto e em matéria de direito (supra, 7.2 e 7.3), o acórdão recorrido limita-se a afirmar que “tal como se demonstrou” – o que remete para o relatório da perícia psiquiátrica realizada [supra, 11 (10) e demais elementos referidos neste ponto], bem como para a fundamentação da decisão em matéria de facto – o arguido “atuou com a sua imputabilidade diminuída” – o que exprime o estado da pessoa e não a relação da «anomalia psíquica» com o facto –, reproduzindo, sem mais, a conclusão da perícia.

Esta conclusão, que, no que agora releva, se limita, no essencial, a identificar a «anomalia psíquica» do arguido (esquizofrenia paranoide, que, como se referiu, pode constituir pressuposto de inimputabilidade) e a mencionar hipotéticas influências de substâncias psicoativas na sua capacidade de avaliação dos factos e de determinação de acordo com essa avaliação, não se pronuncia, do ponto de vista médico, sobre os demais pressupostos legais da declaração de inimputabilidade (artigo 20.º, n.º 2, supra, 22). Sendo que tal pronúncia, no mencionado “processo de racionalização retrospetiva” (supra, 17), era essencial para que o tribunal pudesse fundamentar uma decisão sobre a imputabilidade ou inimputabilidade, com base nessa perícia, com o valor e nos termos do artigo 163.º do CPP, em eventuais esclarecimentos complementares ou nova perícia (artigo 158.º do CPP), nos demais elementos de prova e nas circunstâncias relativas às condições pessoais (sobretudo de saúde – supra, 11) e relativas ao facto e à personalidade do arguido, considerando, em particular, o comportamento anterior e posterior ao facto, a ocorrência de episódios de descompensação e alucinações, a circunstância de o arguido referir não se recordar de ter praticado os factos,  a preparação ou não para manter uma conduta lícita (atendendo, particularmente, aos riscos assinalados de repetição de factos ilícitos da mesma natureza que possam ser dirigidos contra o cônjuge). Pronuncia-se a perícia, ela própria, sobre uma valoração que, a final, é matéria (de direito) da competência do juiz, traduzindo-se tal pronúncia na expressão de uma dúvida («imputabilidade duvidosa») sobre a imputabilidade («diminuída»), não resolvida no acórdão recorrido.

19. Finalmente, mantendo-se a conclusão de que o arguido, embora portador de uma anomalia psíquica, é imputável, será também necessária perícia que auxilie o julgador com os elementos imprescindíveis para que possa concluir se a reclusão do arguido em estabelecimentos prisionais comuns é ou não prejudicial para o recorrente, tendo em conta, designadamente, o seu estado de saúde, com anteriores internamentos em unidades psiquiátricas (supra, 11), ou se a sua reclusão naqueles estabelecimentos perturbará seriamente o regime de funcionamento destes, assim permitindo que o julgador possa decidir pela aplicação ou não aplicação do regime previsto no artigo 104.º, n.º 1, do CP (internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena). O que não foi apreciado no acórdão recorrido, apesar do provado quanto à saúde do arguido, comportamento aditivo e necessidades de tratamento.

20. Em conclusão, impõe-se declarar a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à questão da imputabilidade do arguido, nos termos do artigo 20.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal, com as consequências legalmente impostas, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, e n.º 2 do CPP.

Ficando, assim, prejudicado o conhecimento das questões apresentadas no recurso interposto pelo arguido (supra, 9).

III. Decisão

21. Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça (3.ª Secção) decide:

Declarar nulo o acórdão recorrido, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, e n.º 2, do Código de Processo Penal, por omissão de pronúncia quanto à questão da imputabilidade do arguido, devendo, realizadas que sejam as diligências necessárias, ser proferido novo acórdão que conheça e decida sobre esta questão, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º do Código Penal, com as necessárias consequências legais.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de fevereiro de 2023

José Luís Lopes da Mota (relator)

Paulo Ferreira da Cunha

Maria Teresa Féria de Almeida

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[1] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, GestLegal, 2019, p. 666-667. Cfr. também Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª ed. Católica Editora, p. 179, Miguez Garcia/ Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial, Almedina, 2014, p. 154, Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª ed. Coimbra Editora, 2104, p. 469.
[2] Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, Coimbra Editora, 3.ª ed., 1995, p. 188.
[3] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, GestLegal, 2019, p. 666-679.
[4] Cfr. “Nota informativa sobre o Projecto da Parte Geral do Código Penal de 1963”, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 127, Coimbra, p. 71, e Actas da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, Lisboa, 1979, p. 164.
[5] Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Lisboa, Universidade Católica, 3.ª ed. p. 181, citando as Actas da Comissão Revisora e salientando a ideia de:
[6] Id. ibid.
[7] Assim, Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, I, Verbo, 1987, p. 196.
[8] Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Questões fundamentais, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2014, p. 91, seguindo Cavaleiro de Ferreira, loc. cit.).
[9] Código Penal Português Anotado e Comentado, 15.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 113. Cfr. Rita Alexandre do Rosário, A «Imputabilidade Diminuída» no Direito Penal Português, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2019, p. 51.
[10] Direito Criminal I, cit., pp. 358-359.
[11] Liberdade, Culpa, Direito Penal, Coimbra Editora, e Posfácio da Segunda Edição (1981), 3.ª ed., 1995, p. 72-73 e 233ss.
[12] Id. ibid., Posfácio da segunda edição, Culpa e Personalidade, p. 260-261.
[13] Loc. cit. p. 175-176, 197-198
[14] Na categorização de Eduardo Correia, seguindo Mezger e Barahona Fernandes, em Direito Criminal I, cit. p. 337-339
[15] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, GestLegal, 2019, cit., p. 686.
[16] De acordo com o pensamento de Eduardo Correia (loc. cit. p. 356), e como expressamente reconhece Figueiredo Dias (Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 77. Ainda loc. cit. (13).
[17] Loc. cit., que se vem seguindo, p. 197-200
[18] Jornadas…, loc. cit., Liberdade…, cit. p. 199, e Posfácio… cit. p. 271.
[19] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., 2019, cit., p. 683-684.
[20] O Internamento de Imputáveis em Estabelecimentos Destinados a Inimputáveis, Coimbra Editora, 1993. p. 31-35.
[21] Refletindo “um pensamento original de Eduardo Correia” (como afirma Figueiredo Dias, in Jornadas, loc. cit.)
[22] Fernando Vieira/Ana Sofia Cabral/António João Latas, in Manual de Psiquiatria Forense, Fernando Vieira et alii, Pactor, 2017, p. 154.
[23] Id. ibid., p. 153.
[24] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo 1, 3.ª ed., GestLegal, 2019, 21/§§31 e 51, p. 674 e 686.
[25] Id. ibid. p. 679.