Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
877/21.6PCLSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
PRAZO
EXTEMPORANEIDADE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 04/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :

I. Os mecanismos dos impedimentos, recusas e escusas têm em vista garantir a imparcialidade do juiz. Os impedimentos consistem nos fundamentos objetivos previstos nos arts. 39.º e 40.º, do C.P.P., e, por sua vez, as recusas e escusas têm por base os motivos não típicos que no caso concreto integram a cláusula geral consagrada no art. 43.º n.º 1, obstando à intervenção de um juiz no processo quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

II. Nos termos do art. 44.º, do C.P.P., quer o requerimento de recusa quer o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório. Só o poderão ser posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.

III. Ora, na situação concreta, o constata-se que, pese embora as razões invocadas pelo requerente, o pedido de recusa relativamente aos Senhores Desembargadores… é extemporâneo, uma vez que foi efetuado depois da Conferência do recurso no Tribunal da Relação de Lisboa.

IV. Saliente-se também que os motivos alegados pelo requerente, nomeadamente, que está ainda a decorrer o prazo para arguir nulidades do acórdão proferido em 20/02/2024, são irrelevantes, para o caso, pelo que o prazo legal foi inequivocamente ultrapassado.

V. Além do mais, o requerimento de recusa não serve para suprir pretensas ou eventuais irregularidades cometidas em atos processuais e, como se escreveu num acórdão recente deste Tribunal, a apresentação do pedido de recusa não deve servir também para o entorpecimento da normal tramitação de um processo, que a lei pretende prevenir com a estipulação do mencionado limite temporal para a sua dedução.

VI. Nestes termos, acorda-se em rejeitar, por extemporaneidade, o pedido de recusa formulado relativamente aos Senhores Juízes Desembargadores.

Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 877/21.6PCLSB.L1-A.S1

(Recusa de ...)

Acordam, em Conferência, no 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. O arguido AA, com os sinais dos autos, veio, em .../.../2024, deduzir, nos termos do art. 43.º e ss., do C.P.P., incidente de recusa de juiz no processo contra o Senhor Desembargador e as Senhoras Desembargadoras da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, BB, CC e DD, com os seguintes fundamentos que passamos a transcrever:

A) Da tempestividade da dedução do incidente

1. Nos termos do art.º 44.º, do CPP e para o que no caso releva, o requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da conferência nos recursos, só o sendo posteriormente, até à sentença, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência.

2. Os presentes autos estão na fase do recurso e já foi proferido acórdão, porém, há que atentar que a razão de ser da norma em causa, é obstar à prática de atos inúteis, porquanto, em regra, após a decisão, esgota-se o poder jurisdicional do Tribunal.

3. No caso concreto, o poder jurisdicional não se mostra ainda totalmente esgotado, porquanto se encontra em curso o prazo para arguição de nulidades do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em .../.../2024 e que se considera notificado em .../.../2024.

4. Ora, tendo em conta que o Acórdão proferido, na parte criminal, não é suscetível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, será, necessariamente, o coletivo de Juízes cuja recusa se suscita que irá conhecer e decidir as nulidades que se irão invocar em requerimento subsequente, o que justifica a dedução do presente incidente, tanto mais que, a decisão que vier a recair sobre a arguição de nulidades, passará a fazer parte integrante do acórdão.

5. Acresce que, a decisão que vier a recair sobre a arguição de nulidades, pode influir e alterar a decisão do mérito da causa, pelo que a recusa ora suscitada ainda é adequada a evitar o risco de parcialidade.

6. Finalmente, refere-se o comportamento que se entende que suscita dúvidas fundadas sobre a imparcialidade dos Exmos. Senhores Juízes Desembargadores cuja recusa se invoca, apenas se revelou no acórdão proferido em .../.../2024.

B) Dos fundamentos da recusa

7. O aqui Invocante, inconformado com o acórdão condenatório proferido em .../.../2023, pelo Juízo Central Criminal de Lisboa – ..., interpôs o competente recurso, que teve como objeto (i) Impugnação da matéria de facto; (ii) Qualificação jurídica; (iii) Pedido de indemnização civil (Assistente EE); (iv) dosimetria da pena e sua execução (doc.1).

8. O recurso foi distribuído e autuado em .../.../2024 (doc.2), estando os autos processados 5 volumes com 1307 folhas e 3 Apensos (doc.3).

9. Os autos foram com vista ao Digno Procurador-Geral Adjunto, em .../.../2024 mas, uma vez que o Invocante tinha requerido a realização de audiência, nos termos do art.º 411.º, n.º 5, do CPP, não foi aposto visto, nem emitido parecer, conforme art.º 416.º, n.º 2, do CPP, ficando a posição do Digno MP relegada para a audiência (doc.4).

10. Contudo, por despacho de .../.../2024, o Exmo. Senhor Desembargador Relator, indefere a realização da audiência e, imediatamente, ordena a inscrição do processo em tabela, para a conferência de .../.../2024, ou seja, à distância de escassos 15 dias (doc.5), notando-se que os presentes não têm natureza urgente.

11. Refira-se, ainda, que ao ser ordenada a remessa dos autos à conferência, ficou o Digno Procurador-Geral Adjunto privado de apor visto ou emitir parecer.

12. Realizada a conferência, o recurso foi julgado improcedente, in totum.

13. Como não cabe no incidente de recusa, nem a impugnação de decisões, nem a apreciação da validade dos atos processuais praticados pelos Senhores Juízes Desembargadores alvo desse incidente e nem a correção de determinados procedimentos adotados no processo, abstemo-nos aqui de pronúncia sobre o indeferimento da realização da audiência e a extraordinária celeridade na decisão do recurso.

14. Como se extrai do douto Acórdão TRL, de 20/02/2018, proferido no âmbito do Proc. 166/18.3YRLSB, da 5ª Secção:

“(…) O incidente de recusa de juiz (no qual não cabem discordâncias jurídicas quanto a decisões de juízes, as quais devem ser impugnadas pelos meios próprios) visa assegurar as regras de independência e imparcialidade, que são inerentes ao direito de acesso aos Tribunais, constituindo uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa e mesmo do princípio do juiz natural.

Pretende-se assegurar a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados, pois que os Tribunais administram a Justiça em “nome do povo”.

A imparcialidade deve ser apreciada de acordo com um teste subjectivo e um teste objectivo, visando o primeiro apurar se o juiz deu mostra de interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa, e o segundo determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade.

Ao aplicar o teste subjectivo, a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção. (…)”

15. No caso concreto, entendemos ter sido demonstrada a existência de um preconceito sobre o mérito da causa, porquanto se extrai do que ficou, e do que não ficou plasmado no acórdão proferido em 20/02/2024, um comportamento que suscita dúvidas fundadas sobre a imparcialidade dos Exmos. Senhores Juízes Desembargadores que o decidiram.

16. Com efeito, como acima se referiu, o Invocante, além do mais, impugnou parte da matéria de facto decidida na primeira instância, no entanto, no relatório do acórdão agora proferido pelo Tribunal da Relação, foram suprimidas as conclusões do recurso enunciadas sob as letras C) a Y), sendo que, nas conclusões C), H) e J), constam as especificações a que alude o art.º 412.º, n.º 2, al. b) e n.º 4, do CPP, no que respeita às provas gravadas em vídeo (filmagens) e nas conclusões E), K) e M), constam as especificações a que alude o art.º 412.º, n.º 2, al. b) e n.º 4, no que respeita às provas gravadas em áudio (doc.6).

17. Ora, entendemos que a supressão das referidas conclusões no relatório não se tratou de mero lapso, mas antes de um comportamento objetivo, que suscita fundadas dúvidas sobre a imparcialidade do Coletivo, porquanto, na fundamentação e para justificar a não apreciação do recurso da matéria de facto, se refere, expressamente, que:

“(…) Mas, como vimos, o recorrente comprometeu à partida tal possibilidade, ao escusar-se a indicar as aludidas passagens.

Mas ainda que o tivesse feito e pelo teor do seu recurso relativamente à matéria de facto, este estaria votado ao insucesso, pois que do mesmo resulta, com nitidez, que a verdadeira pretensão subjacente é a de uma repetição do correspondente julgamento, em segunda instância e de preferência sobre batuta mais conveniente. (…)” (doc.6)

18. Tendo em conta que é manifesto que o Invocante, não só não se escusou a indicar as passagens, nos termos que o art.º 412.º, do CPP impõe, como o fez, de forma clara e taxativa, temos de concluir que o comportamento dos Exmos. Senhores Juízes Desembargadores, ao suprimirem as conclusões respetivas do relatório e ao afirmarem que o teor das mesmas (na dimensão da indicação das especificações a que alude o art.º 412.º, n.º 2, al. b) e n.º 4, do CPP) não constava do recurso, não foi imparcial e revelou um preconceito sobre o mérito da causa, ao utilizar um subterfúgio de abstração de uma parte desse recurso para o desconsiderar e assim obstar ao exercício pleno direito do Invocante ao recurso.

19. O Invocante não pretende uma repetição do julgamento em segunda instância, mas tão só, que o recurso que interpôs seja apreciado, na íntegra, sobre batuta de total independência, objetividade e imparcialidade, como é de Lei e é seu direito.

NESTES TERMOS

e nos mais e melhores de direito, que V. Excelências, Colendos Juízes Conselheiros doutamente suprirão, para que não existam quaisquer entraves ao exercício da boa e sã administração da Justiça, suscetíveis de ferir a imagem de imparcialidade que importa salvaguardar, por daí poder decorrer um risco de existir motivo sério, grave e adequado a gerar desconfiança sobre a Justiça, deve o presente incidente de recusa ser julgado procedente, com todas as legais consequências.

2. O (as) magistrado (as) visado (as) pronunciaram-se, ao abrigo do disposto no art. 45.º n.º 3, do C.P.P., no sentido de, em síntese, inexistirem razões para o deferimento do incidente em causa, dado terem pautado a sua conduta no estrito cumprimento da lei.

3. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Como é conhecido, os mecanismos dos impedimentos, recusas e escusas têm em vista garantir a imparcialidade do juiz. Os impedimentos consistem nos fundamentos objetivos previstos nos arts. 39.º e 40.º, do C.P.P., e, por sua vez, as recusas e escusas têm por base os motivos não típicos que no caso concreto integram a cláusula geral consagrada no art. 43.º n.º 1, obstando à intervenção de um juiz no processo quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Nos termos do art. 44.º, do C.P.P., o requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório. Só o poderão ser posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.

Ora, no caso em análise, constata-se que, pese embora as razões invocadas pelo requerente, o presente pedido de recusa é extemporâneo, uma vez que foi efetuado depois da Conferência do recurso no Tribunal da Relação de Lisboa.

Os motivos alegados pelo requerente, nomeadamente que está ainda a decorrer o prazo para arguir nulidades do acórdão proferido em 20/02/2024, são irrelevantes, para o caso, pelo que o prazo legal foi inequivocamente ultrapassado.

Saliente-se, a propósito, que, como anotam Mário Meireles e Paulo Pinto de Albuquerque1, até ao início da conferência nos recursos, o interessado pode invocar todos os factos ocorridos ou por si conhecidos desde a sentença recorrida, não sendo inconstitucional o art. 44.º na interpretação segundo a qual o pedido de recusa de juiz se deve formular até ao início da conferência ou da audiência mesmo quando os factos geradores de suspeita só cheguem ao conhecimento do invocante após a prolação do acórdão do qual se seguiu a nulidade e antes da sua apreciação e decisão em conferência (acórdão do TC n.º 143/2004).

2. Em todo o caso, sempre se dirá também que, ainda que fosse tempestivo, o pedido de recusa estaria condenado ao insucesso, pois as razões invocadas não constituem motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos magistrados em causa.

Sejamos claros e objetivos.

O ora requerente, foi condenado por acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa -J15, pela prática de 2 crimes de ofensas à integridade física qualificadas na pena única, em resultado do cúmulo jurídico efetuado, de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão, decisão que foi confirmada, integralmente, por acórdão da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/02/2024, em que intervieram os magistrados agora objeto de recusa.

Tal acórdão, que ainda não transitou em julgado, não é, porém, suscetível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, como, alias, o requerente reconhece no seu requerimento (Cfr. arts. 400.º n.º 1 f) e 432.º n.º 1 b), do C.P.P.).

Ora, o requerimento de recusa não serve para suprir pretensas ou eventuais irregularidades cometidas em atos processuais e, como se escreveu num acórdão recente deste Tribunal2, a apresentação do pedido de recusa não deve servir também para o entorpecimento da normal tramitação de um processo, que a lei pretende prevenir com a estipulação do mencionado limite temporal para a sua dedução.

III. Decisão

Em face do exposto, rejeita-se, por extemporaneidade, o pedido de recusa formulado relativamente ao Senhor Juiz Desembargador Manuel Alexandre Teixeira Advínculo Sequeira e às Senhoras Juízas Desembargadoras Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro e Ana Cláudia Nogueira para continuarem a intervir nos autos de recurso n.º 877/21.6PCLSB.L1, da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

Custas do incidente a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 3 de abril de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta)

________________________




1. In Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume I, 5.º edição atualizada, UCP Editora, pg. 157.

2. Acórdão de 8/11/2023, cujo relator é o Senhor Conselheiro João Rato, no Proc. n.º 121/08.1TELSB.L1.S1-F e disponível em www.dgsi.pt.