Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B3070
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO PROCESSUAL
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: SJ200510200030707
Data do Acordão: 10/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6724/04
Data: 03/03/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa pela Relação baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.
3. O cônjuge que pretende fazer valer em juízo o direito de reintegração do património conjugal da sua titularidade, com fundamento no seu descaminho pelo outro por via de doações, é que tem o ónus de prova dos factos negativos e positivos integrantes da concernente causa de pedir.
4. O princípio da aquisição processual justifica que o cumprimento do referido ónus de prova seja conseguido por via de meios de prova oferecidos pela parte contrária.
5. Por ser plena a força probatória da confissão, do acordo das partes e dos documentos pertinentes, o exame crítico das provas a que se refere o n.º 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil pouco mais envolve do que a operação do juiz ou do colectivo de juízes de considerar, na sentença ou no acórdão, os factos cobertos por aqueles meios de prova.
6. Não infringe o regime das presunções judiciais a referência da Relação aos artigos 349º e 251º do Código Civil para justificar a utilização das regras da experiência no juízo de prova que empreendeu no recurso da decisão da matéria de facto.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"A" e B intentaram, no dia 15 de Setembro de 1994, depois do arresto dos bens abaixo indicados, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra C, D, E, F e G, H e I, J, Ldª, K, L, M e N, O - Sociedade Técnica de Trabalho Temporário Ldª e P - Sociedade Técnica de Serviços Lda, pedindo a declaração da nulidade de contratos de compra e venda de imóveis celebrados em 27 de Janeiro de 1984, 11 de Dezembro de 1986, 3 de Julho de 1989, 29 de Maio de 1989, 27 de Novembro de 1990, 6 de Setembro de 1991, 23 de Março de 1992, 26 de Maio de 1992 e 14 de Dezembro de 1992, e de um veículo automóvel em 24 de Março de 1993, e as compras e vendas de imóveis e a construção de imóveis nos referidos prédios, o cancelamento dos registos e a restituição de todos esses bens ao património conjugal comum de A e E ou o valor equivalente, actualizado mediante correcção monetária, até integral liquidação.
Fundamentaram a sua pretensão na paternidade de E em relação à autora B, no casamento dele com a autora A, na doação na constância do casamento, antes da separação de facto do casal, dos referidos bens ou do dinheiro respectivo, às rés C e D, com quem mantinha relacionamento sexual, à custa do património comum daquele casal.

Em contestação, o réu E invocou a nulidade do processado, o erro na forma de processo e a caducidade do direito invocado pelas autoras, e acrescentou que os bens em causa foram adquiridos pelas rés C e D com o seu próprio dinheiro, e negou o relacionamento sexual com a segunda e que há mais de vinte anos não se relaciona intimamente com a primeira, limitando-se a prestar alimento à filha de ambos.
A ré C invocou o erro na forma do processo, a caducidade do direito, a contradição de pedidos e que o relacionamento com o réu E terminou há mais de vinte anos, e negou a doação de bens. A ré D invocou a nulidade do processado, o erro na forma de processo, a caducidade do direito e a obscuridade dos pedidos e negou o seu relacionamento sexual com o referido réu e a doação por este de bens.
Os réus F, G, H, I, por um lado, e J, Ldª, K e L afirmaram desconhecer a situação invocada pelas autoras e serem partes ilegítimas por falta de interesse em contradizer, e os últimos também a caducidade do direito.
Finalmente, O, Ldª e P, Ldª invocaram a sua ilegitimidade para a acção, alegando que nada têm a ver com o alegado pelas autoras, por serem pessoas distintas dos seus sócios.
As autoras responderam no sentido da improcedência das excepções, reafirmaram o alegado na petição inicial, requereram a intervenção principal de Q e Y sob o fundamento de eles haverem adquirido à ré C o prédio um dos prédios, a qual foi admitida.
"Q" e Y, em contestação, invocaram a prescrição do direito afirmado pelas autoras e referiram desconhecer a situação por elas invocada e, no despacho saneador, foram julgadas improcedentes todas as mencionadas excepções e, realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 9 de Janeiro de 2004, por via da qual todos os réus foram absolvidos do pedido.

Apelaram as autoras e a Relação, por acórdão proferido no dia 3 de Março de 2005, alterou a decisão da matéria de facto proferida no tribunal de 1ª instância e revogou a sentença na parte em que os réus E, C e D foram absolvidos do pedido na sequência de anulação das liberalidades em dinheiro e outros bens feitas às duas últimas pelo primeiro e em que aquelas foram condenadas a reintegrar o património comum do doador pelo valor a apurar em execução de sentença.

Interpuseram C, D e E recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- embora reconhecendo que actuava em risco e com um mínimo de fundamento, o acórdão extravasou da certeza mínima na apreciação da prova para conceptualisar o percurso financeiro das recorrentes;
- aceitou sem reservas dos depoimentos das testemunhas que citou o que era desfavorável aos recorrentes, apesar de muitos desses factos provirem de testemunhas hostis e de uma que ao tempo dos factos tinha quatro ou cinco anos de idade, e desvalorizou os depoimentos de algumas testemunhas dos recorrentes;
- às recorridas cabia provar os factos constitutivos do direito traduzido nos pedidos que formularam, pelo que o acórdão violou o artigo 342º, nº 1, do Código Civil ao fazer impender sobre as recorrentes C e D o ónus de prova da sua capacidade financeira para custearem os negócios jurídicos que celebraram;
- a fundamentação de facto do acórdão está viciada do ponto de vista substancial e processual, porque a matéria de facto foi alterada através do depoimento das testemunhas e acaba por reconduzir a fundamentação aos artigos 349º e 351º do Código Civil, pelo que violou os nºs 2 e 3 do artigo 659º e o nº 2 do artigo 713º do Código de Processo Civil;

- só pode ser havido como desconhecido, para efeito de aplicação de presunção legal ou judicial, o facto que se não mostre contrariado pela prova constante dos autos, e as testemunhas não se pronunciaram sobre a proveniência do dinheiro para aquisição pelas recorrentes C e D das quotas societárias;
- sem qualquer sustentáculo probatório ou raciocínio lógico, o acórdão recorrido entendeu que na aquisição daquelas cotas foi usado o empurrão do recorrente E, operando presunções judiciais em violação dos artigos 349º e 351º do Código Civil;
- deve o acórdão ser revogado, confirmada a sentença proferida na 1ª instância e absolvidos os recorrentes do pedido.

Responderam as recorridas, em síntese de alegação:
- o que a Relação deu por provado resulta da prova produzida, tendo-se limitado a exercer a faculdade conferida pelo princípio da aquisição processual constante no artigo 515º do Código de Processo Civil;
- no recurso de revista não pode ser apreciada ou alterada a decisão da matéria de facto proferida pela Relação;
- a Relação não violou os critérios legais sobre a repartição do ónus de prova invocados pelos recorrentes.

II
É a seguinte a matéria de facto declarada provada no acórdão recorrido:
1. A autora A casou, no dia 6 de Setembro de 1959 , com o réu E, e recebeu bens por herança de seus pais, que integraram o património do casal, e a autora B, nascida no dia 6 de Setembro de 1960, é filha de ambos.
2. No dia Em 17 de Agosto de 1974 nasceu a ré R, filha da ré C e do réu E.
3. A ré D casou em 7 de Julho de 1984 com S, casamento que foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 16 de Dezembro de 1988, proferida pelo Tribunal Judicial de Ponte de Sor, transitada em julgado.
4. O lote de terreno para construção urbana com a área de 341 m2, situado na Avenida Marginal, Ponte de Sor, com o valor venal de 68.200$00, encontra-se inscrito, sob o nº 7668, a favor da ré C, por compra pela quantia de 560.000$00 aos réus F e G, pela escritura lavrada em 27 de Janeiro de 1984 no Cartório Notarial de Avis, no qual foi construída uma moradia composta de rés-do-chão e primeiro andar, na qual a ré C e a filha passaram a residir.
5. Por escritura de 11 de Dezembro de 1986, lavrada no Cartório Notarial de Ponte de Sor, pelo preço de 2.000.000$00, a ré C declarou comprar aos réus H e I e estes venderem-lhe o rés-do-chão direito, destinado a comércio, do prédio urbano situado na Rua Alexandre Herculano, em Ponte de Sor, aquisição essa registada na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor a favor dela.
6. Por escritura de 3 de Julho de 1989, lavrada no Cartório Notarial de Vila Real de Santo António, pelo preço de 2.000.000$00 a ré C declarou comprar à ré J, Ldª, e os representantes desta vender-lhe um lote de terreno destinado a construção urbana, com a área de 450 m2, designado por lote A-99, sito no ... Monte Fino, freguesia de Monte Gordo, concelho de Vila Real de Santo António, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António a favor dela por via da apresentação nº 06/100789.
7. Por escritura de 29 de Maio de 1989, lavrada no Cartório Notarial de Fronteira, pelo preço de 60.000$00, o réu E declarou comprar aos réus K e L e estes vender-lhe a nua propriedade de um lote de terreno para construção urbana com a área de 315 m2, sito na estrada de Alter, freguesia de Chancelaria, concelho de Alter do Chão, e, pelo preço de 120.000$, a ré D declarou comprar aos mesmos réus e estes vender-lhe o usufruto vitalício sobre o referido lote de terreno, no qual foi construída uma moradia em que a última passou a residir, sendo que tais aquisições estão inscritas na Conservatória do Registo Predial de Alter do Chão a favor de um e de outra por via das apresentações nºs 06/110789 e 07/110789.
8. Por escritura de 27 de Dezembro de 1990, lavrada no Cartório Notarial de Reguengos de Monsaraz, foi declarada constituída a sociedade O - Sociedade Técnica de Trabalho Temporário Ldª, com sede na Rua Maria Lamas, nº 3, rés-do-chão direito, Laranjeiro, Almada, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Almada sob o nº 7514/940817, com o capital social, integralmente realizado de 500.000$00, sendo sócios a ré D, com a quota de 2600.000$00, o réu E, com a quota de 120.000$00, e o réu M, com a quota de 120.000$.
9. Por escritura de 29 de Maio de 1989, lavrada no Cartório Notarial de Fronteira, foi declarada constituída a sociedade P - Sociedade Técnica de Serviços Ldª, com sede na Rua Maria Lamas, nº3, rés-do-chão direito, Laranjeiro, Almada, com o capital social de 1.200.000$00, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Almada sob o nº 05434/890714, sendo seus sócios o réu E, com a quota de 700.000$00'', o réu M, com a quota de 300.000$00, e a ré D, com a quota de 200 000$00.
10. Por escritura de 29 de Janeiro de 1991, lavrada no 2º Cartório Notarial de Almada, representantes da ré P Ldª declararam comprar a ... - Sociedade de Construções e Empreitadas Ldª, e esta vender-lhe, por 5.100.000$00, a fracção predial autónoma designada pela letra E, correspondente ao 2º andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua José Afonso, nº 3-A e 3-B, freguesia do Laranjeiro, concelho de Almada, aquisição inscrita a favor da primeira na 2ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o nº 04/910215.
11. A fracção predial mencionada sob 10 foi adquirida por recurso a um financiamento concedido pelo Crédito Predial Português SA para aquisição e apetrechamento das ditas instalações, financiamento este, concedido em 23 de Janeiro de 1991, com carácter intercalar, titulado por livrança subscrita pela referida sociedade e com aval dos sócios, e posteriormente convertido de curto em médio prazo - crédito ao investimento - por contrato celebrado em 15 de Março de 1991, sob garantia de hipoteca sobre aquela fracção.
12. Por escritura de 6 de Setembro de 1991, lavrada no 2º Cartório Notarial de Almada, foi declarado alterado o pacto social de P Ldª no sentido de transferir a sua sede para a Rua José Afonso, nº 3, 2º esquerdo, Laranjeiro, Almada, e aumentado o seu capital social para 2.000.000$00, totalmente realizado, ficando o réu E com uma quota de 1.100.000$00, o réu M com uma quota de 300.000$00 e a ré D com uma quota de 600.000$00.
13. No dia 9 de Abril de 1992, a autora A propôs contra o réu E acção de divórcio litigioso, com fundamento na violação reiterada e culposa dos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, que correu termos na 3ª Secção do 2º Juízo do Tribunal de Família de Lisboa.
14. Por escritura de 23 de Março de 1992, lavrada no 2º Cartório Notarial de Almada, foi declarada a divisão e cessão de quotas da sociedade P, Ldª, tendo sido feita a divisão da quota de 300.000$00 do sócio M em duas quotas de 150.000$00 cada, as quais declarou ceder cada uma delas, pelo respectivo valor nominal, a cada um dos outros dois sócios - o réu E e a ré D.
15. For escritura de 14 de Dezembro de 1992, lavrada no 2º Cartório Notarial de Almada, foi declarado o aumento de capital e alteração do pacto social da P, Ldª, com elevação do capital social para 6.000.000$00, cujo reforço de 2.000.000$00 foi declarado subscrito pelas sócias D e C, em partes iguais, em reforço das respectivas quotas, passando o capital social, totalmente realizado, a ser constituído por uma quota de 1.500.000$00 do sócio E, por uma quota da ré D de 2.200.000$00 e por uma quota de 2.300.000$00 da ré C.
16. A ré D depositou, em 8 de Outubro de 1994, numa conta do réu E, 2.000.000$00, e, dois dias depois, 40.000$00.
17. Por escritura de 10 de Setembro de 1996, lavrada no 2º Cartório Notarial de Lisboa, a ré C declarou vender aos chamados Q e Y, e estes comprar-lhe, por 3.500.000$00, já recebidos, a fracção autónoma designada pela letra A, a que corresponde o rés-do-chão direito, destinado a comércio, do prédio sito na Rua Alexandre Herculano, nº 26, Ponte de Sor, aquisição inscrita na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor a favor dos adquirentes, por via da apresentação nº 08/301096
18. Por escritura de 26 de Maio de 1997, lavrada no 2º Cartório Notarial de Almada, foi declarado o aumento de capital e a alteração do pacto social da P, Ldª, com a elevação do capital social para 4000.000$00, reforçando-o em mais 2.000.000$00, já realizado, tendo o sócio E subscrito mais 250.000$00, a sócia D mais 450.000$00 e a nova sócia admitida, a ré C, uma quota de 1.300.000$00, passando o capital social, totalmente realizado, a ser constituído por uma quota de 1.500.000$00 do réu E, por uma quota de 1.200.000$00 da ré D e por uma quota de 1.300.000$00 da ré C.
19. No registo automóvel relativo ao veículo automóvel marca Volkswagen, matrícula UH consta, antes de 24 de Março de 1993, a aquisição por E, e, nessa data, a sua aquisição por C, e em 5 de Setembro de 1994 o respectivo arresto e, em 28 de Setembro de 1994, a sua aquisição por P Ldª.
20. À data em que foram celebrados os negócios jurídicos acima especificados, o casamento entre a autora A e o réu E não estava dissolvido por divórcio, nem estavam separados judicialmente de pessoas e bens ou de facto.
21. Nas declarações de modelo 1 do imposto complementar, secção A, a ré C, contribuinte nº 16042954, declarou os seguintes rendimentos: do ano de 1964, 493.428$00; do ano de 1978, 168.527$00; do ano de 1981, 369.620$00; do ano de 1982, 326.637$00; do ano de 1980 253.387$00; do ano de 1983, 443 372$, não tendo apresentado rendimentos do ano de 1979.
22.Nas declarações de modelo 1 de Imposto Complementar, Secção A, e de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, a ré D, contribuinte nº 158452259, declarou os seguintes rendimentos: do ano de 1986, 353.078$00; do ano 1987, 500.001$00; do ano de 1989, 1.201.582$00; do ano de 1990, 1.924.440$00 e do ano de 1991, 1. 604.200$00.
23. O réu E não foi administrador da T - Sociedade Industrial de Produtos Alimentares SARL, e manteve relações de sexo e vivência extraconjugais, primeiro com a ré C e posteriormente com a ré D.
24. Em 1972, a ré C era operária não especializada, trabalhava em regime sazonal durante o período em que durava a campanha do tomate, na empresa T, Ldª, da qual o réu E era sócio e gerente e da qual foi, posteriormente, liquidatário judicial e, antes do nascimento da filha, veio viver para o 4º andar, letra D, do lote 58-59, no Espargal, Paço D’Arcos, Oeiras, e, em 1975 e 1976 viveu numa quinta em Mafra, pertencente ao réu E e cônjuge, A, e a partir de 1977 trabalhou na T, Ldª como empregada de escritório e, a partir de então, viveu em Chanca, numa casa arrendada pela referida sociedade.
25. A ré D, em 1983, então com dezassete anos de idade, iniciou a sua vida profissional na T, Ldª em regime de trabalho sazonal e, em 1987, passou a exercer naquela sociedade as funções qualificadas de chefe de turno de laboratório, frequentando cursos especiais de técnicas de laboratório em organismos idóneos.
26. Em 1971, a ré C, com a idade de vinte anos, começou a trabalhar em regime sazonal para a T - Sociedade Industrial de Produtos Alimentares Ldª, com sede em Chanca e, após ter deixado Porte de Sor, passou a fazer tapetes de Arraiolos, que vendia com facilidade, e, em 1977, regressou ao Alentejo e foi contratada com carácter permanente pela T Ldª para desempenhar funções nos serviços administrativos, chegando mais tarde a ser responsável por tal área, e prestava serviços a terceiros na área da contabilidade.
27. Quando a ré C regressou ao Alentejo, o réu E proporcionou-lhe condições para a sua admissão na sociedade T, Ldª e para que lhe fosse atribuída a casa, arrendada por aquela sociedade.

28. Em Setembro de 1991, a ré C rescindiu o contrato de trabalho que tinha com a T, SA, esta em situação económica difícil, obtendo uma indemnização de 1.600.000$00, e explorou duas lojas de pronto a vestir em Ponte de Sor.
29. Quando a sua filha veio estudar para Lisboa, a ré C mudou-se para a casa arrendada sita na Rua Aristides de Sousa Mendes, nº 11, 5º esquerdo, em Lisboa, pondo à venda a moradia e a loja de Ponte de Sor, e passou a trabalhar para a sociedade P - Sociedade Técnica de Serviços Lda.
30. A ré D, na sua declaração de imposto sobre o valor acrescentado, reportada ao ano de 1991, revela vencimentos ilíquidos de 3.679.000$00, e responsabilizou-se pessoalmente por avales em financiamentos a P, Lda no montante de 25.000.000$00.
31. O réu E, que trabalhou entre 1971 e 1990 para a T, Ldª na qualidade de director fabril, conhece as rés C e D desde há vários anos, sendo que com a primeira tal conhecimento data de há mais de vinte, altura em que teve um envolvimento pessoal com a mesma, da qual nasceu, em 1974, uma filha, para cujo sustento ele contribuía.
32. As rés C e D foram empregadas da T, Ldª, primeiro com carácter esporádico, e depois ingressando no seu quadro permanente, e a primeira ascendeu, após alguns anos, à função de responsável administrativa e contabilista, ambas conhecendo hábitos de vida regrada e de trabalho.
33. A ré D, destacada para trabalhar no laboratório da fábrica, cujo trabalho tinha exigências especiais, foi seleccionada para frequentar cursos de formação em organismos idóneos oficiais, que a habilitaram para vir mais tarde a ocupar o lugar de chefe de turno do laboratório.
34. Fruto das suas actividades profissionais e dos negócios que desenvolvia, o réu E sempre obteve largos proventos, que lhe permitiram adquirir inúmeros bens, mormente imóveis, que ingressaram no património do casal, e bem assim ocorrer às variadas solicitações das autoras - sua mulher e filha comum - e, no que toca à filha que teve com a ré C, jamais deixou de lhe prestar alimentos compatíveis.
35. Logo que teve conhecimento das recomendações do médico que assistia a sua filha, de que os problemas alérgicos de que esta vinha sofrendo, com tendência a agravarem-se, poderiam ser minorados com a prática continuada da natação, o réu E chamou a si o contributo para a construção de uma piscina no terreno anexo à moradia adquirida e construída no prédio inscrito em nome da ré C, que vivia em Chança.
36. O réu E e a autora A adquiriram diverso património, com o usufruto para os mesmos e a nua propriedade para a filha B e o casal adquiriu diversos bens imobiliários, e sempre foi ele o verdadeiro motor da vida económica da família.
37. O réu E, para além do bem estar e conforto que vem proporcionando às autoras, merecem referência múltiplos presentes e jóias de elevado valor e o cuidado especial dedicado à formação profissional da filha do casal, a quem proporcionou não só uma licenciatura, mas também pós-graduações no país e no estrangeiro.
38. No lote de terreno sito da Avenida Marginal de Ponte de Sor, o réu E suportou quase inteiramente os encargos da construção de uma boa moradia, composta de rés-do-chão e primeiro andar, quatro quartos, salão, sala com lareira, terraço, jardim, piscina e garagem, moradia onde a ré Isilda passou a residir.
39. A ré D começou como trabalhadora sazonal, fazendo também serviços de limpeza, e réu E suportou as despesas do divórcio dela, e, na loja mencionada sob 17, ele fez grandes benfeitorizações à sua custa.
40. A aquisição ou reforço das cotas nas sociedades
O - Sociedade Técnica de Trabalho Temporário Ldª e
P - Sociedade Técnica de Serviços Ldª por parte da ré D foi-o em grande parte com a ajuda de dinheiro do réu E, tal como quanto à cota da ré Isilda na segunda das referidas sociedades.
41. O réu E agiu por espírito de liberalidade para com a ré Isilda e à conta do património familiar, suportando os encargos já referidos em montantes não apurados.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se deve ou não manter-se o conteúdo do acórdão recorrido no sentido da declaração da nulidade das liberalidades em dinheiro operadas por E a favor de C e de D e da restituição ao património do casal constituído pelo primeiro e B do valor a liquidar em execução de sentença.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e das recorridas, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- lei adjectiva aplicável na acção e nos recursos;
- pode ou não, no recurso de revista, sindicar-se a decisão da matéria de facto proferida pela Relação?
- infringiu ou não o acórdão recorrido o normativo sobre a distribuição do ónus da prova?
- infringiu ou não o acórdão recorrido o respectivo regime legal de fundamentação?
- infringiu ou não o acórdão recorrido o regime legal das presunções judiciais?
- ocorre ou não fundamento legal para a alteração da decisão de direito proferida pela Relação?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Tendo em conta a sucessão de leis processuais durante a pendência da causa, comecemos pela determinação da lei adjectiva aplicável na acção e nos recursos.
Considerando que a acção foi intentada no dia 15 de Setembro de 1994, são-lhe aplicáveis as normas processuais anteriores às do Código de Processo Civil Revisto, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigo 16º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Tendo em conta que a sentença foi proferida no tribunal de 1ª instância no dia 9 de Janeiro de 2004, aos recursos são aplicáveis as pertinentes normas do Código de Processo Civil Revisto (artigo 25º, nº 1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

2.
Atentemos agora em saber se, neste recurso, pode ou não sindicar-se a decisão da matéria de facto proferida pela Relação
As recorrentes impugnaram no recurso de apelação a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância envolvida, além do mais, na resposta aos quesitos segundo e terceiro, décimo-quinto e décimo-sexto, décimo-oitavo, vigésimo-quarto e vigésimo-quinto.
A Relação, reapreciando a prova testemunhal produzida naquele tribunal, alterou a decisão da matéria de facto, designadamente as respostas aos referidos quesitos, nos termos enunciados sob II 38 a 41.
As recorrentes discordam da referida decisão da Relação, afirmando, além do mais, que ela extravasou da certeza mínima na apreciação da prova para conceptualisar o seu percurso financeiro, ter aceitado sem reserva o que lhes era desfavorável dos depoimentos de pessoas que lhes eram hostis, uma delas ao tempo dos factos com quatro ou cinco anos de idade, e haver desvalorizado os depoimentos de algumas testemunhas que oferecera.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOTJ99).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, no recurso de revista, pode o Supremo Tribunal de Justiça apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou de origem externa.
Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.
Como no caso vertente ocorre essa situação, não pode sindicar-se neste recurso, por falta de competência funcional para o efeito, a decisão da matéria de facto proferida pela Relação.

3.
Vejamos agora se no acórdão recorrido foi ou não infringido o normativo de direito material sobre a distribuição do ónus de prova.
Os recorrentes alegaram que o acórdão recorrido infringiu o disposto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil ao fazer impender sobre as recorrentes C e D o ónus de prova da sua capacidade financeira para custearem os negócios jurídicos que celebraram.
A distribuição do ónus da prova no caso vertente entre as partes deve, naturalmente, ser perspectivada à luz do nº 1 do artigo 342º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar um direito deve fazer a prova dos respectivos factos constitutivos.
A referida regra só se inverte nos casos de presunção legal, dispensa ou liberação do ónus de prova, convenção válida nesse sentido ou norma de lei que o determine (artigo 344º, nº 1, do Código Civil).
Ora, no âmbito do caso vertente, não existe qualquer dos referidos motivos justificativos da inversão do aludido ónus de prova.

O direito substantivo que as recorridas pretenderam fazer valer na acção foi o que lhe garantia a reintegração do património conjugal de uma delas e do próprio recorrente E, dito afectado por via de doações feitas por ele às recorrentes C e D, através de declaração da nulidade de vários negócios jurídicos ou do pagamento do valor correspondente.
Assim, tal como foi alegado pelos recorrentes, era às recorridas que incumbia provar os factos constitutivos do direito substantivo que invocaram em juízo no confronto, além do mais, dos recorrentes.
Todavia, de harmonia com o princípio da aquisição processual, expressa a lei que o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, salvo quando a lei declare a irrelevância da alegação de algum facto que não seja feita por certo interessado (artigo 515º do Código de Processo Civil).
Ao alterar a decisão da matéria de facto proferida no tribunal de 1ª instância, nos termos que constam de II 38 a 43, a Relação limitou-se, de harmonia com o referido princípio da aquisição processual, a reapreciar a prova testemunhal produzida naquele tribunal em conjugação com aquela que levou a considerar assentes os factos mencionados sob II 1 a 42.
Face à referida reapreciação probatória pela Relação, as recorridas cumpriram o ónus de prova também em relação aos factos mencionados sob II 38 a 41, pelo que não tem apoio legal a conclusão formulada pelas recorrentes no sentido de que no acórdão recorrido foi infringido o disposto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil.

4.
Atentemos agora sobre se o acórdão recorrido infringiu ou não o respectivo regime legal de fundamentação.
Alegaram os recorrentes estar a fundamentação de facto viciada sob o ponto de vista substancial e processual por virtude de a matéria de facto ter sido alterada através do depoimento das testemunhas e acabar por ser reconduzida aos artigos 349º e 351º do Código Civil, e que, por isso, violou os nºs 2 e 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil.
O acórdão da Relação deve principiar pelo relatório no qual devem ser sucintamente enunciadas as questões a decidir no recurso, a que se seguem os fundamentos, e, depois destes, a decisão, sem prejuízo da observância, na parte aplicável, além do mais, do disposto no artigo 659º do Código de Processo Civil (artigo 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Na referida fundamentação devem ser discriminados os factos considerados provados, indicando-se as pertinentes normas jurídicas, interpretando-as e aplicando-as (artigos 659º, nº 2, e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Na referida fundamentação, a Relação deverá tomar em consideração não só os factos decorrentes da decisão da matéria de facto operada no tribunal recorrido por via de resposta a quesitos como também os factos admitidos por acordo, provados por documentos
ou por confissão reduzida a escrito, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpra conhecer (artigos 659º, nº 2, e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O exame crítico das provas a que se reporta o nº 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil não tem o sentido que a mesma expressão tem no n.º 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil, porque nesta última situação, e não naquela, está implicada a própria decisão da matéria de facto.
Como é plena a força probatória da confissão, do acordo das partes e dos documentos com esse relevo, o exame crítico das provas a que se refere o n.º 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil envolve praticamente apenas a operação do colectivo de juízes da Relação de registo e de tomada em consideração dos factos cobertos por aqueles meios de prova.
Ora, no caso vertente, não foi suscitada à Relação a omissão da tomada em consideração pelo tribunal de 1ª instância de qualquer facto provado por algum dos mencionados meios de prova plena, nem no recurso de revista é suscitada idêntica omissão em relação à Relação.
Acresce que os artigos 659º, nºs 2 e 3, e 713º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil, não se reportam à decisão da matéria de facto, certo que se referem à elaboração do acórdão na sequência da prévia decisão da matéria de facto.
Consequentemente, não tem qualquer apoio legal a alegação dos recorrentes no sentido de a fundamentação de facto do acórdão estar afectada de algum vício e, por isso, violar o disposto no artigo 659º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil.

5.
Vejamos agora se no acórdão recorrido foi ou não infringido o regime legal das presunções judiciais.
Os recorrentes alegaram que a Relação fez operar presunções judiciais em manifesta violação do disposto nos artigos 349º e 351º do Código Civil.
Sabe-se que as presunções judiciais são as ilações que o julgador extrai de factos conhecidos para firmar factos desconhecidos (artigo 349º do Código Civil).
Não estão tipificadas na lei, são operadas pelo julgador em cada caso concreto, trata-se de situações em que, num quadro de conexão entre factos, uns provados e outros não provados, a existência dos primeiros, com considerável grau de probabilidade, segundo a experiência comum, faz admitir a existência dos últimos.
São admitidas nos casos e nos termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º do Código Civil).
Afirmou a Relação, por um lado, que, passando em revista, com a minúcia possível, todos os depoimentos prestados na audiência, gravados e transcritos graficamente, chegou a uma decisão de facto diversa da proferida no tribunal de 1ª instância, dando por provados os factos mencionados sob II 38 a 41.
E, por outro, que nos pontos em que os depoimentos das testemunhas das recorridas entravam em litígio com os das testemunhas oferecidas pelos recorrentes, em obediência ao princípio da experiência comum em situações similares, dera preferência aos primeiros.

E, finalmente, que o recurso ao mecanismo dos artigos 349º e 351º do Código Civil se justificava nos casos em que uma prova directa e imediata não exista.
Resulta deste quadro que a Relação operou a alteração da decisão da matéria de facto proferida no tribunal de 1ª instância por via da reapreciação da prova testemunhal, certo que nada expressou em relação à prova de algum facto desconhecido por via da inferência de algum facto provado.
Por isso, a referência da Relação aos artigos 349º e 351º do Código Civil apenas visou justificar a utilização no juízo de prova que empreendeu das regras da experiência que também justificam a aplicação daqueles normativos.
Assim, ao invés do que os recorrentes afirmaram, a Relação não infringiu o disposto nos artigos 349º e 351º do Código Civil, ou seja, o regime legal das presunções judiciais ou de facto.

6.
Atentemos agora se ocorre ou não fundamento legal para a alteração da decisão de direito proferida pela Relação.
No recurso, os recorrentes limitaram-se a impugnar a decisão da matéria de facto, ou seja, não puseram em causa a decisão de direito proferida pela Relação com base nos factos que ela considerou provados.
Tendo em conta o quadro de facto declarado assente pela Relação, as normas jurídicas em que o enquadrou e a decisão de direito a que chegou, não existe fundamento que justifique a sua alteração nesta sede de recurso.

7.
Vejamos finalmente a síntese da solução para o caso decorrente dos factos e da lei.
Por falta de competência funcional para o efeito, não pode, no recurso de revista, sindicar-se a decisão da matéria de facto proferida pela Relação.
O acórdão recorrido não infringiu as normas relativas à distribuição do ónus da prova, nem as concernentes à sua fundamentação, nem as atinentes às presunções judiciais.
Ademais, não ocorre fundamento legal para a alteração da decisão de direito proferida pela Relação.
Improcede, por isso, o recurso, pelo que os recorrentes, vencidos, são responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 20 de Outubro de 2005.
Salvador da Costa,
Ferreira de Sousa,
Armindo Luís.