Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3985
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME CONTINUADO
MENOR
COITO ANAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
FINS DAS PENAS
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
JUÍZO DE PROGNOSE
Nº do Documento: SJ200801170039855
Data do Acordão: 01/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Dentro da moldura penal abstracta correspondente ao crime de abuso sexual de crianças, praticado na forma continuada, pelo qual foi o arguido condenado, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 2, do CP (actualmente, após as alterações introduzidas pela Lei 59/2007, de 04-09, art. 171.º, n.º 2), ou seja, pena de 3 a 10 anos de prisão, tendo em consideração:
- a conduta do recorrente, que consistiu na prática de coito anal com menor, então com 13 anos de idade, vencendo a resistência inicial do mesmo, conduta essa reiterada durante todo o período em que este esteve a ajudá-lo em trabalhos agrícolas, ou seja, desde o mês de Junho de 2002 até aos finais de Agosto do mesmo ano;
- que o recorrente se aproveitou de um certo ascendente sobre o menor, derivado do facto de estar ligado por laços de amizade e vizinhança com os pais daquele e de estes terem combinado com ele dar ocupação ao menor durante as férias escolares, preenchendo assim os tempos livres e ao mesmo tempo recebendo, em troca, € 5 diários como compensação pela ajuda prestada;
- a idade do recorrente, quase à beira dos 60 anos, a ausência de antecedentes criminais e a sua rudimentar cultura (sem quaisquer habilitações literárias);
não se mostra exagerada ou desproporcionada a pena aplicada, de 4 anos de prisão.

II - No tipo legal de crime em referência, visa-se proteger «a autodeterminação sexual (…) face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento», tratando-se de «um crime de perigo abstracto, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique afastada» (Comentário Conimbricense, págs. 541 e 542).

III -As exigências de prevenção geral, traduzindo-se na satisfação das expectativas comunitárias de manutenção e reforço da norma jurídica violada com o comportamento lesivo dos bens jurídicos protegidos, são bastante elevadas neste tipo de crime, que tem ganho avanços preocupantes no seio da nossa sociedade, à semelhança do que acontece noutras do mesmo universo cultural e civilizacional, gerando justificado alarme, como é possível auscultar das múltiplas reacções das pessoas de diversos estratos populacionais.

IV -Quanto ao objectivo de ressocialização, ele tem de ser conseguido, tanto quanto possível, subordinadamente às exigências de prevenção geral positiva, visto que a tutela dos bens jurídicos é o objectivo primordial inscrito nas finalidades da punição, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, que, todavia, se não alheia também do objectivo de reinserção social do condenado. Esta reinserção, porém, não pode, de forma alguma, postergar ou pôr em segundo plano as exigências de prevenção geral. Por conseguinte, terá de ser dentro da submoldura traçada pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico e pelo ponto óptimo ou ideal de satisfação dessas exigências, limitado pela culpa, que têm de actuar todos os factores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, nomeadamente a função de socialização.

V - O art. 50.º do CP, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, contempla a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos por uma pena não detentiva, consistente em suspender a execução dessa pena por um período igual ao da duração da pena de prisão aplicada.

VI -Este regime, que resulta das alterações introduzidas pela Lei 59/2007, de 04-09, é mais favorável do que o vigente ao tempo da prática do crime e, por isso, é o aplicável, nos termos do art. 2.º, n.º 4, do CP.

VII - Ter a pena aplicada sido estabelecida em medida não superior a 5 anos é o primeiro pressuposto (o pressuposto indispensável) para a substituição da pena de prisão, sendo então obrigatório equacionar essa substituição no cumprimento de um poder-dever ou poder vinculado.

VIII - Para além deste requisito de ordem formal, é necessário que se verifiquem os requisitos de ordem material (pressuposto material) indicados na 2.ª parte do n.º 1 daquele art. 50.º e que fundamentam um juízo de prognose favorável, ou seja, a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

IX -São sobretudo razões de prevenção especial (e não considerações de culpa) as que lhe estão na base, como, aliás, em toda a operação de escolha de penas alternativas ou penas de substituição, sendo esse o critério geral ou denominador comum que preside a tal operação, não obstante a diversidade de critérios específicos que a lei prevê para cada caso. Esse critério geral vem a traduzir-se na preferência manifestada pelo legislador pela aplicação de uma pena alternativa ou por uma pena de substituição, sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial de Notícias, pág. 331 e Robalo Cordeiro, A Determinação da Pena, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, CEJ, vol. 2.º, pág. 48).

X - A culpa intervém na determinação da medida concreta da pena de substituição.

XI -A suspensão da execução da pena não satisfaz os fins da punição, no caso em que o arguido, não obstante a ausência de antecedentes criminais, agiu com bastante intensidade dolosa, prolongando a sua actuação no tempo e, ao mesmo tempo, se mostrou insensível aos valores que fundamentam o crescimento saudável de uma personalidade em formação, nomeadamente na área tão delicada da autodeterminação sexual. Por outro lado, agiu com particular insensibilidade em relação à confiança que nele foi depositada pelos pais do menor e até por este, traindo a sua boa-fé e minando o plano construtivo pactuado entre todos para uma ocupação sadia e responsável dos tempos livre do menor, durante as férias de Verão. Este circunstancialismo revela uma personalidade em relação à qual não é possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o recorrente da criminalidade.

XII - A suspensão da execução da pena não é de molde a satisfazer o conteúdo mínimo de prevenção geral, que se impõe como limite das considerações de prevenção especial que estão na base do instituto. Assim, impõe-se a pena de prisão efectiva.
Decisão Texto Integral:


I. RELATÓRIO

1. No 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante, no âmbito do processo comum colectivo n.º 17/04.6GCAMT, foi julgado o arguido AA, identificado nos autos, e condenado como autor material de um crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 2 e 30.º, n.º 2 do Código Penal (CP), na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

2. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que negou provimento ao recurso e manteve a decisão recorrida.

3. Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso para este Tribunal, pondo em causa a medida da pena, que entende que deve ser reduzida para quantum não superior a três anos e suspensa na sua execução, com sujeição a deveres: não frequentar os locais frequentados habitualmente pelo menor; proibição de dirigir a palavra ao menor em caso de encontro fortuito; obrigação de custear as despesas da conclusão dos seus estudos no ensino secundário – 12.º ano de escolaridade; obrigação de custear as despesas de um curso de formação técnico-profissional do menor, designadamente, de um curso de informática.
É que a conduta do arguido ficou-se a dever a doença, “dado que não há ninguém escorreito da cabeça que faça o que ele fez”, sendo que o arguido, por outro lado, goza de estima social. Uma pena como a proposta satisfará melhor as exigências de prevenção geral e dará mais adequada reparação ao mal praticado ao menor, para além de que as exigências de prevenção especial ficarão melhor defendidas, permitindo a cura do arguido e obrigando-o a trabalhar duramente para reparar o mal que causou.

Respondeu o Ministério Público junto do tribunal “a quo”, defendendo a decisão recorrida e o consequente não provimento do recurso.

4. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se sobre os pressupostos do recurso, não vendo obstáculo à prossecução do processo para julgamento.

5. Colhidos os vistos, realizou-se a audiência de julgamento, tendo o Ministério Público defendido que a ilicitude e a culpa são acentuadas, agravadas pela continuação criminosa, pois a pluralidade da factos que integram a continuação não pode deixar de agravar o crime, embora considerado como unidade, e as exigências de prevenção geral são prementes neste tipo de crime, não sendo irrelevantes as de prevenção especial. Assim sustentou a manutenção integral do decidido.

A defesa remeteu para as motivações.

II. FUNDAMENTAÇÃO
6. Matéria de facto apurada
6.1. Factos dados como provados:
1. No Verão do ano de 2002, o arguido era vizinho do agregado familiar do menor BB nascido em 10 de Fevereiro de 1989;
2. Nessa altura o arguido dedicava-se à exploração de terrenos agrícolas situados junto, ou nas redondezas, da sua habitação, sita no Lugar da Fonte de Cima, freguesia de Real, nesta Comarca;
3. Uma vez que os pais do menor e o arguido estavam ligados por laços de amizade e de vizinhança, combinaram entre eles que no decurso das férias escolares do Verão de 2002, o menor BB iria trabalhar nos terrenos agrícolas que o mesmo arguido agricultava;
4. Deste modo o menor ocuparia os seus tempos livre e receberia, em troca, € 5 diários como compensação pela ajuda prestada;
5. Assim, a partir de data não concretamente apurada, o menor aludido passou a frequentar quase diariamente a casa do arguido;
6. Em data não concretamente apurada mas nunca anterior ao mês de Junho de 2002, e após terem almoçado, o arguido convidou o menor BB para ir dormir uma sesta com ele, no seu quarto e na sua cama;
7. Apesar de inicialmente ter recusado tal convite, mediante a insistência do arguido o menor acabou por aceder ao convite que este lhe dirigiu e foi deitar-se na cama, ao lado do arguido, estando ambos vestidos;
8. Logo de seguida, porém, o arguido esticou o braço e começou a afagar com a sua mão o pénis do menor BB, altura em que este lhe disse para «não lhe fazer mal»;
9. Vencendo a resistência aposta pelo aludido menor, e acto contínuo, o arguido despiu as calças e as cuecas que o BB trajava;
10. De seguida, após despir-se, o arguido massajou o seu pénis até à erecção, colocou-lhe saliva com os dedos e introduziu-o no ânus do menor;
11. Com o pénis introduzido no ânus do menor, o arguido fez movimentos com o corpo de modo a friccioná-lo, até ejacular, o que demorou cerca de cinco minutos;
12. Após esse dia e até ao final do período em que o menor BB consigo trabalhou, e de qualquer modo até data nunca anterior ao final do mês de Agosto de 2002, o arguido, repetiu, por número de vezes não concretamente apurado, e em circunstâncias similares às aludidas, o acto sexual atrás descrito;
13. Tal ocorria, por regra, após o almoço e no quarto da habitação do arguido, tendo no entanto, e por uma única vez, ocorrido no meio de um campo de milho;
14. Sempre que o menor se não mostrava disposto a sujeitar-se às suas intenções libidinosas, oferecia-lhe o arguido € 20, quantia que este, no entanto, nunca aceitou receber;
15. O menor BB sabia que o arguido tinha uma arma de fogo;
16. Porque tinha ouvido o arguido dizer que se «alguém lhe lixasse a vida também lixaria» essa pessoa, o menor BB convenceu-se que o arguido poderia atentar contra a sua integridade física ou contra a sua vida com tal arma, se denunciasse os contactos de natureza sexual que vinham ocorrendo entre ambos;
17. Por tal razão, o menor BB guardou segredo de tais contactos e foi-se submetendo aos mesmos;
18. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de praticar coito anal com menor de 14 anos de idade, sabendo que dessa forma atentava contra a liberdade de auto-determinação sexual do menor BB;
19. O arguido é viúvo, estando reformado por invalidez;
20. Aufere, mensalmente, uma pensão no montante de € 320;
21. Tem quatro filhos, vivendo consigo apenas os dois mais novos, que no entanto têm ocupação profissional certa;
22. Reside em casa própria;
23. Não tem quaisquer habilitações literárias;
24. Goza da estima das pessoas com quem se relaciona socialmente.

6.2. Factos não provados:
1. Para além dos demais que, alegados e investigados foram e que se não levaram à matéria dada por assente, não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa e, designadamente, (i) que os factos aqui em questão ocorreram quase diariamente, até ao final do mês de Agosto de 2002, (ii) que o arguido, para convencer o menor a manter relações sexuais consigo, lhe dizia que o coito anal «não dói nada», e (iii) que o arguido dizia ao menor BB que tinha uma pistola e que se «alguém lhe lixasse a vida que também o lixava a ele» para o intimidar a guardar segredo sobre os contactos sexuais que ambos mantinham.


7. Questões a decidir:
- A medida da pena e a suspensão da sua execução.

7.1. Ao crime pelo qual o arguido foi condenado (abuso sexual de criança, do art. 172.º, n.º 2 do CP vigente à data dos factos (actualmente, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, art. 171.º, n.º 2) praticado na forma continuada na pessoa do menor BB corresponde a moldura penal abstracta de 3 a 10 anos de prisão (coito anal).
A determinação da medida concreta da pena há-de recortar-se no âmbito das referida moldura penal abstracta, de acordo com os critérios gerais estabelecidos no n.º 1 do art. 71.º - os parâmetros a que deve obedecer toda e qualquer fixação da pena, em atenção às finalidades que lhe são legalmente assinaladas – e os especiais constantes do n.º 2 – grau de ilicitude, modo de execução, gravidade das consequências, intensidade do dolo, fins ou motivos, condições pessoais do agente, conduta anterior e posterior ao facto, etc.
Por conseguinte, a determinação da medida concreta da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, quer a prevenção geral positiva ou de integração (protecção de bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade) – art. 40.º n.º 1 do CP - funcionando a culpa como limite máximo que aquela pena não pode ultrapassar (n.º 2 do mesmo normativo).

A medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de reafirmar a validade da norma e a prevalência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.

As circunstâncias referidas no n.º 2 do art. 71.º do CP, actuando no âmbito da moldura penal abstracta sem quaisquer pontos ou limites predefinidos, constituem os itens a que deve atender-se para a fixação concreta da pena, que há-de situar-se dentro da submoldura definida pelas exigências de prevenção geral do caso, cujo limite máximo não pode ultrapassar a medida da culpa e cujo limite mínimo constitui a exigência irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.
Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.
Como salienta, relativamente à vertente de prevenção geral, o penalista FIGUEIREDO DIAS, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida óptima (…) não tem de coincidir sempre com a medida da culpa – não é dada como um ponto exacto da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais».
E, relativamente ao critério da prevenção especial: «Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir actuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os factores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...).
«A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena». (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244)
No tipo legal de crime em referência, visa-se proteger “a autodeterminação sexual (…) face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento”, tratando-se de “um crime de perigo abstracto, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique afastada”. ( Comentário Conimbricense, pgs. 541 e 542).
Ora, o arguido pretende, como se disse, o abaixamento da pena imposta. Para tanto invoca o grau de culpa, que diz não dever “ser considerado elevado, uma vez que a conduta do arguido se ficou a dever a doença, dado que não há ninguém escorreito da cabeça que faça o que o recorrente fez e, por outro lado, não obstante isso, o arguido goza da estima das pessoas com quem se relaciona socialmente (n.º 24 dos factos provados), o que, do ponto de vista da prevenção geral tem as suas consequências, já que, não obstante a condenação, aquelas, e por arrastamento outras, sempre lhe darão o benefício da dúvida”.
Ora, em primeiro lugar, todo o raciocínio do arguido assenta, fundamentalmente, em especulação. Com efeito, não está provado em parte alguma que o recorrente seja doente e que, por força de um qualquer estado patológico, a sua liberdade de actuação e de determinação de acordo com os padrões sociais e jurídicos vigentes estivesse diminuída, merecendo por isso uma menor censura ético-jurídica pelo seu comportamento. Aliás, o recorrente dá logo a medida do seu pensamento especulativo ao afirmar “que não há ninguém escorreito da cabeça que faça o que o recorrente fez”. Por outras palavras: na perspectiva apontada, só um doente (talvez do foro psíquico) é que pratica actos como os que levaram à condenação do recorrente. O que significaria, em bom rigor, que todos ou praticamente todos os agentes de factos quejandos seriam doentes e actuariam com menor culpa. Este pensamento, como se disse, não tem qualquer sustentáculo, quer na realidade, quer nos autos. O que está dado como provado é que o arguido agiu em plena liberdade, quer do ponto de vista endógeno, quer exógeno: “o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de praticar coito anal com menor de 14 anos de idade ⌠leia-se: de idade inferior a 14 anos⌡, sabendo que dessa forma atentava contra a liberdade de autodeterminação sexual do menor BB” (facto dado como provado sob o n.º 18 no ponto 6.1.).
Por conseguinte a sua culpa, ao contrário do afirmado, foi bastante intensa, o que é traduzido não só nessa passagem da matéria de facto, mas em muitas outras. Lembremo-nos que o recorrente teve de vencer a resistência do menor, que só com relutância aquiesceu ao seu convite e manobras posteriores. Depois, o arguido, vencida a resistência inicial do menor, passou a praticar o acto durante todo o período em que o menor esteve a ajudá-lo nos trabalhos agrícolas, ou seja, desde o mês de Junho de 2002 até aos finais de Agosto do mesmo ano. Por outro lado, o arguido aproveitou-se de um certo ascendente sobre o menor, derivado do facto de estar ligado por laços de amizade e vizinhança com os pais daquele e de estes terem combinado com ele dar ocupação ao menor durante as férias escolares, preenchendo assim os seus tempos livres e ao mesmo tempo recebendo, em troca, € 5,00 diários como compensação pela ajuda prestada. A reiteração da conduta e o ascendente do arguido sobre o menor contribui para um agravamento, muito embora se tenha considerado a continuação criminosa, que apenas impede que a reiteração seja tratada como uma multiplicidade de crimes, mas não já que a pena seja agravada dentro da respectiva moldura penal.
Estas circunstâncias traduzem também uma ilicitude acentuada, sobretudo por força da gravidade da lesão do bem jurídico, da reiteração da conduta, do modo como o arguido procedeu, do grau de violação dos deveres que lhe eram impostos, considerando as suas particulares responsabilidades no caso e das consequências provocadas, deixando marcas no menor, que se não resultam directamente da matéria de facto provada, resultam do relatório pericial elaborado pelo Gabinete de Estudos e Atendimento a Vítimas da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, no qual se refere, por parte do menor, entre o mais, que «os dados da avaliação realizada apontam para a existência de fortes indícios da prática de abuso sexual sobre este menor» e «a manifestação de afectos consonantes com a situação», bem como «o relato de sensações corporais específicas da situação abusiva».
No que se refere à particular concepção veiculada pelo recorrente das exigências de prevenção geral, a partir da estima de que goza no seio das pessoas com quem se relaciona e que essas pessoas e, por arrastamento, outras, “sempre lhe darão o benefício da dúvida”, é melhor nem falar, dada a sua total inconsistência e carácter fictício.
As exigências de prevenção geral, traduzindo-se na satisfação das expectativas comunitárias de manutenção e reforço da norma jurídica violada com o comportamento lesivo dos bens jurídicos protegidos, são bastante elevadas neste tipo de crime, que tem ganho avanços preocupantes no seio da nossa sociedade, à semelhança do que acontece noutras do mesmo universo cultural e civilizacional, gerando justificado alarme, como é possível auscultar através das múltiplas reacções das pessoas e diversos estratos populacionais.
Quanto ao objectivo de ressocialização, ele tem de ser conseguido, tanto quanto possível, subordinadamente às exigências de prevenção geral positiva, visto que a tutela dos bens jurídicos é o objectivo primordial inscrito nas finalidades da punição, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, que, todavia, se não alheia também do objectivo de reinserção social do condenado. Esta reinserção, porém, não pode, de forma alguma, postergar ou pôr em segundo plano as exigências de prevenção geral. Por conseguinte, terá de ser dentro da submoldura traçada pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico e pelo ponto óptimo ou ideal de satisfação dessas exigências, limitado pela culpa, como já referido, que têm de actuar todos os factores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, nomeadamente a função de socialização.
Ora, a moldura penal abstracta correspondente ao tipo de crime em causa, como vimos, tem como mínimo 3 anos de prisão e como máximo, 10 anos de prisão. Tendo a pena aplicada ficado pelos 4 anos de prisão, não se pode dizer exagerada ou desproporcionada. Antes pelo contrário, uma vez que se situa muito perto do mínimo da moldura penal prevista. Pode até dizer-se que tal pena se quedou pela cobertura das exigências mínimas de prevenção geral, o que ficará certamente a dever-se à idade do recorrente, quase à beira dos 60 anos, à ausência de antecedentes criminais e à sua rudimentar cultura (sem quaisquer habilitações literárias) – facto este que – aqui sim – tem projecção no âmbito da culpa em termos gerais (não ao nível do tipo de culpa).
Consequentemente, a decisão recorrida não merece censura neste capítulo da determinação concreta da pena.

7.2. A suspensão da execução da pena.
O art. actual 50.º do CP contempla a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos por uma pena não detentiva, consistente em suspender a execução dessa pena por um período igual ao da duração da pena de prisão aplicada Este regime, que resulta das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, é mais favorável do que o vigente ao tempo da prática do crime e, por isso, é o aplicável nos termos do art. 2.º, n.º 4 do mesmo diploma legal.

Ter a pena aplicada sido estabelecida em medida não superior a cinco anos é o primeiro pressuposto (o pressuposto indispensável) para a substituição da pena de prisão, sendo então obrigatório equacionar essa substituição no cumprimento de um poder/dever ou poder vinculado. É necessário, no entanto, que para além do referido pressuposto, que é um requisito de ordem formal, se verifiquem outros requisitos, estes de ordem material e por isso agrupados habitualmente sob a designação comum de pressuposto material. São eles os que vêm indicados na segunda parte do n.º 1 daquele art. 50.º e que fundamentam um juízo de prognose favorável, ou seja, a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
São sobretudo razões de prevenção especial (e não considerações de culpa) as que lhe estão na base, como, aliás, em toda a operação de escolha de penas alternativas ou penas de substituição, sendo esse o critério geral ou denominador comum que preside a tal operação, não obstante a diversidade de critérios específicos que a lei prevê para cada caso. Esse critério geral vem a traduzir-se na preferência manifestada pelo legislador pela aplicação de uma pena alternativa ou por uma pena de substituição, sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, p. 331 e ROBALO CORDEIRO, “A Determinação da Pena”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, CEJ, vol. 2.º, p. 48).
São, portanto, como dissemos, razões fundamentalmente de prevenção especial e não de culpa (esta intervindo, todavia, na determinação da medida concreta da pena de substituição), que permitem substituir uma pena institucional ou detentiva, por outra não detentiva, isoladamente aplicada ou associada à subordinação de deveres, destinados a reparar o mal do crime e (ou) de regras de conduta, estabelecidas estas com o fim de melhor reinserir socialmente o condenado em ordem ao acatamento dos valores comunitários, cujo respeito, pelo afastamento do condenado da criminalidade (e não pela sua regeneração) se pretende obter. Com este fim, pode ainda submeter-se o condenado a regime de prova, associando-se aspectos da probation anglo-americana ao instituto da suspensão da pena, não tendo o regime de prova actualmente carácter autónomo em relação a esta, visto que integrado no seu regime após a revisão operada pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março.
O acima referido juízo de prognose favorável assenta na análise das circunstâncias do caso em correlação com a personalidade do agente, visando obter em toda a linha possível a socialização em liberdade, em consonância com a finalidade político-criminal do instituto, que é o afastamento do condenado da prática de novos crimes por meio da simples ameaça da pena, eventualmente com sujeição a deveres e regras de conduta, se tal se revelar adequado a tal objectivo e desde que as exigências mínimas de prevenção geral fiquem também satisfeitas com a aplicação da pena de substituição. O sentido destas é, aliás, nesta sede, o de se imporem como limite às exigências de prevenção especial, constituindo então o conteúdo mínimo de prevenção geral de integração de que se não pode prescindir para que não sejam, em último recurso, defraudadas as expectativas comunitárias relativamente à tutela dos bens jurídicos (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 333).
Ora, o arguido, não obstante a ausência de antecedentes criminais, agiu com bastante intensidade dolosa, prolongando a sua actuação no tempo e, ao mesmo tempo, mostrou-se insensível aos valores que fundamentam o crescimento saudável de uma personalidade em formação, nomeadamente na área tão delicada da autodeterminação sexual. Por outro lado, agiu com particular insensibilidade em relação à confiança que nele foi depositada pelos pais do menor e até por este, traindo a sua boa-fé e minando o plano construtivo pactuado entre todos para uma ocupação sadia e responsável dos tempos livres do menor, durante as férias de Verão.
Este circunstancialismo revela uma personalidade em relação à qual não é possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o recorrente da criminalidade, particularmente deste tipo de criminalidade, que tem frequentemente como agentes indivíduos sem antecedentes criminais e até gozando de alguma consideração social.
A acrescer a estas considerações e de forma decisiva, a suspensão da execução da pena não é de molde a satisfazer, por tudo quanto se disse, o conteúdo mínimo de prevenção geral, que se impõe como limite das considerações de prevenção especial que estão na base do instituto.
Assim, a pena de prisão efectiva impõe-se, ao menos, em nome destas últimas exigências.

III. DECISÃO
8. Nestes termos, acordam em audiência na (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando integralmente a decisão recorrida.

9. Custas pelo recorrente com 7 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Janeiro de 2008

Rodrigues da Costa (relator)

Arménio Sottomayor

Souto de Moura

Simas Santos