Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | RODRIGUES DA COSTA | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS CRIME CONTINUADO MENOR COITO ANAL MEDIDA CONCRETA DA PENA BEM JURÍDICO PROTEGIDO FINS DAS PENAS PREVENÇÃO GERAL PREVENÇÃO ESPECIAL CULPA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL JUÍZO DE PROGNOSE | ||
Nº do Documento: | SJ200801170039855 | ||
Data do Acordão: | 01/17/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário : | I - Dentro da moldura penal abstracta correspondente ao crime de abuso sexual de crianças, praticado na forma continuada, pelo qual foi o arguido condenado, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 2, do CP (actualmente, após as alterações introduzidas pela Lei 59/2007, de 04-09, art. 171.º, n.º 2), ou seja, pena de 3 a 10 anos de prisão, tendo em consideração: - a conduta do recorrente, que consistiu na prática de coito anal com menor, então com 13 anos de idade, vencendo a resistência inicial do mesmo, conduta essa reiterada durante todo o período em que este esteve a ajudá-lo em trabalhos agrícolas, ou seja, desde o mês de Junho de 2002 até aos finais de Agosto do mesmo ano; - que o recorrente se aproveitou de um certo ascendente sobre o menor, derivado do facto de estar ligado por laços de amizade e vizinhança com os pais daquele e de estes terem combinado com ele dar ocupação ao menor durante as férias escolares, preenchendo assim os tempos livres e ao mesmo tempo recebendo, em troca, € 5 diários como compensação pela ajuda prestada; - a idade do recorrente, quase à beira dos 60 anos, a ausência de antecedentes criminais e a sua rudimentar cultura (sem quaisquer habilitações literárias); não se mostra exagerada ou desproporcionada a pena aplicada, de 4 anos de prisão. II - No tipo legal de crime em referência, visa-se proteger «a autodeterminação sexual (…) face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento», tratando-se de «um crime de perigo abstracto, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique afastada» (Comentário Conimbricense, págs. 541 e 542). III -As exigências de prevenção geral, traduzindo-se na satisfação das expectativas comunitárias de manutenção e reforço da norma jurídica violada com o comportamento lesivo dos bens jurídicos protegidos, são bastante elevadas neste tipo de crime, que tem ganho avanços preocupantes no seio da nossa sociedade, à semelhança do que acontece noutras do mesmo universo cultural e civilizacional, gerando justificado alarme, como é possível auscultar das múltiplas reacções das pessoas de diversos estratos populacionais. IV -Quanto ao objectivo de ressocialização, ele tem de ser conseguido, tanto quanto possível, subordinadamente às exigências de prevenção geral positiva, visto que a tutela dos bens jurídicos é o objectivo primordial inscrito nas finalidades da punição, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, que, todavia, se não alheia também do objectivo de reinserção social do condenado. Esta reinserção, porém, não pode, de forma alguma, postergar ou pôr em segundo plano as exigências de prevenção geral. Por conseguinte, terá de ser dentro da submoldura traçada pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico e pelo ponto óptimo ou ideal de satisfação dessas exigências, limitado pela culpa, que têm de actuar todos os factores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, nomeadamente a função de socialização. V - O art. 50.º do CP, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, contempla a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos por uma pena não detentiva, consistente em suspender a execução dessa pena por um período igual ao da duração da pena de prisão aplicada. VI -Este regime, que resulta das alterações introduzidas pela Lei 59/2007, de 04-09, é mais favorável do que o vigente ao tempo da prática do crime e, por isso, é o aplicável, nos termos do art. 2.º, n.º 4, do CP. VII - Ter a pena aplicada sido estabelecida em medida não superior a 5 anos é o primeiro pressuposto (o pressuposto indispensável) para a substituição da pena de prisão, sendo então obrigatório equacionar essa substituição no cumprimento de um poder-dever ou poder vinculado. VIII - Para além deste requisito de ordem formal, é necessário que se verifiquem os requisitos de ordem material (pressuposto material) indicados na 2.ª parte do n.º 1 daquele art. 50.º e que fundamentam um juízo de prognose favorável, ou seja, a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. IX -São sobretudo razões de prevenção especial (e não considerações de culpa) as que lhe estão na base, como, aliás, em toda a operação de escolha de penas alternativas ou penas de substituição, sendo esse o critério geral ou denominador comum que preside a tal operação, não obstante a diversidade de critérios específicos que a lei prevê para cada caso. Esse critério geral vem a traduzir-se na preferência manifestada pelo legislador pela aplicação de uma pena alternativa ou por uma pena de substituição, sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial de Notícias, pág. 331 e Robalo Cordeiro, A Determinação da Pena, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, CEJ, vol. 2.º, pág. 48). X - A culpa intervém na determinação da medida concreta da pena de substituição. XI -A suspensão da execução da pena não satisfaz os fins da punição, no caso em que o arguido, não obstante a ausência de antecedentes criminais, agiu com bastante intensidade dolosa, prolongando a sua actuação no tempo e, ao mesmo tempo, se mostrou insensível aos valores que fundamentam o crescimento saudável de uma personalidade em formação, nomeadamente na área tão delicada da autodeterminação sexual. Por outro lado, agiu com particular insensibilidade em relação à confiança que nele foi depositada pelos pais do menor e até por este, traindo a sua boa-fé e minando o plano construtivo pactuado entre todos para uma ocupação sadia e responsável dos tempos livre do menor, durante as férias de Verão. Este circunstancialismo revela uma personalidade em relação à qual não é possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o recorrente da criminalidade. XII - A suspensão da execução da pena não é de molde a satisfazer o conteúdo mínimo de prevenção geral, que se impõe como limite das considerações de prevenção especial que estão na base do instituto. Assim, impõe-se a pena de prisão efectiva. | ||
Decisão Texto Integral: | I. RELATÓRIO 1. No 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante, no âmbito do processo comum colectivo n.º 17/04.6GCAMT, foi julgado o arguido AA, identificado nos autos, e condenado como autor material de um crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 2 e 30.º, n.º 2 do Código Penal (CP), na pena de 4 (quatro) anos de prisão. 2. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que negou provimento ao recurso e manteve a decisão recorrida. 3. Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso para este Tribunal, pondo em causa a medida da pena, que entende que deve ser reduzida para quantum não superior a três anos e suspensa na sua execução, com sujeição a deveres: não frequentar os locais frequentados habitualmente pelo menor; proibição de dirigir a palavra ao menor em caso de encontro fortuito; obrigação de custear as despesas da conclusão dos seus estudos no ensino secundário – 12.º ano de escolaridade; obrigação de custear as despesas de um curso de formação técnico-profissional do menor, designadamente, de um curso de informática. É que a conduta do arguido ficou-se a dever a doença, “dado que não há ninguém escorreito da cabeça que faça o que ele fez”, sendo que o arguido, por outro lado, goza de estima social. Uma pena como a proposta satisfará melhor as exigências de prevenção geral e dará mais adequada reparação ao mal praticado ao menor, para além de que as exigências de prevenção especial ficarão melhor defendidas, permitindo a cura do arguido e obrigando-o a trabalhar duramente para reparar o mal que causou. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal “a quo”, defendendo a decisão recorrida e o consequente não provimento do recurso. 4. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se sobre os pressupostos do recurso, não vendo obstáculo à prossecução do processo para julgamento. 5. Colhidos os vistos, realizou-se a audiência de julgamento, tendo o Ministério Público defendido que a ilicitude e a culpa são acentuadas, agravadas pela continuação criminosa, pois a pluralidade da factos que integram a continuação não pode deixar de agravar o crime, embora considerado como unidade, e as exigências de prevenção geral são prementes neste tipo de crime, não sendo irrelevantes as de prevenção especial. Assim sustentou a manutenção integral do decidido. A defesa remeteu para as motivações. II. FUNDAMENTAÇÃO 6. Matéria de facto apurada 6.1. Factos dados como provados: 1. No Verão do ano de 2002, o arguido era vizinho do agregado familiar do menor BB nascido em 10 de Fevereiro de 1989; 2. Nessa altura o arguido dedicava-se à exploração de terrenos agrícolas situados junto, ou nas redondezas, da sua habitação, sita no Lugar da Fonte de Cima, freguesia de Real, nesta Comarca; 3. Uma vez que os pais do menor e o arguido estavam ligados por laços de amizade e de vizinhança, combinaram entre eles que no decurso das férias escolares do Verão de 2002, o menor BB iria trabalhar nos terrenos agrícolas que o mesmo arguido agricultava; 4. Deste modo o menor ocuparia os seus tempos livre e receberia, em troca, € 5 diários como compensação pela ajuda prestada; 5. Assim, a partir de data não concretamente apurada, o menor aludido passou a frequentar quase diariamente a casa do arguido; 6. Em data não concretamente apurada mas nunca anterior ao mês de Junho de 2002, e após terem almoçado, o arguido convidou o menor BB para ir dormir uma sesta com ele, no seu quarto e na sua cama; 7. Apesar de inicialmente ter recusado tal convite, mediante a insistência do arguido o menor acabou por aceder ao convite que este lhe dirigiu e foi deitar-se na cama, ao lado do arguido, estando ambos vestidos; 8. Logo de seguida, porém, o arguido esticou o braço e começou a afagar com a sua mão o pénis do menor BB, altura em que este lhe disse para «não lhe fazer mal»; 9. Vencendo a resistência aposta pelo aludido menor, e acto contínuo, o arguido despiu as calças e as cuecas que o BB trajava; 10. De seguida, após despir-se, o arguido massajou o seu pénis até à erecção, colocou-lhe saliva com os dedos e introduziu-o no ânus do menor; 11. Com o pénis introduzido no ânus do menor, o arguido fez movimentos com o corpo de modo a friccioná-lo, até ejacular, o que demorou cerca de cinco minutos; 12. Após esse dia e até ao final do período em que o menor BB consigo trabalhou, e de qualquer modo até data nunca anterior ao final do mês de Agosto de 2002, o arguido, repetiu, por número de vezes não concretamente apurado, e em circunstâncias similares às aludidas, o acto sexual atrás descrito; 13. Tal ocorria, por regra, após o almoço e no quarto da habitação do arguido, tendo no entanto, e por uma única vez, ocorrido no meio de um campo de milho; 14. Sempre que o menor se não mostrava disposto a sujeitar-se às suas intenções libidinosas, oferecia-lhe o arguido € 20, quantia que este, no entanto, nunca aceitou receber; 15. O menor BB sabia que o arguido tinha uma arma de fogo; 16. Porque tinha ouvido o arguido dizer que se «alguém lhe lixasse a vida também lixaria» essa pessoa, o menor BB convenceu-se que o arguido poderia atentar contra a sua integridade física ou contra a sua vida com tal arma, se denunciasse os contactos de natureza sexual que vinham ocorrendo entre ambos; 17. Por tal razão, o menor BB guardou segredo de tais contactos e foi-se submetendo aos mesmos; 18. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de praticar coito anal com menor de 14 anos de idade, sabendo que dessa forma atentava contra a liberdade de auto-determinação sexual do menor BB; 19. O arguido é viúvo, estando reformado por invalidez; 20. Aufere, mensalmente, uma pensão no montante de € 320; 21. Tem quatro filhos, vivendo consigo apenas os dois mais novos, que no entanto têm ocupação profissional certa; 22. Reside em casa própria; 23. Não tem quaisquer habilitações literárias; 24. Goza da estima das pessoas com quem se relaciona socialmente. 6.2. Factos não provados: 1. Para além dos demais que, alegados e investigados foram e que se não levaram à matéria dada por assente, não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa e, designadamente, (i) que os factos aqui em questão ocorreram quase diariamente, até ao final do mês de Agosto de 2002, (ii) que o arguido, para convencer o menor a manter relações sexuais consigo, lhe dizia que o coito anal «não dói nada», e (iii) que o arguido dizia ao menor BB que tinha uma pistola e que se «alguém lhe lixasse a vida que também o lixava a ele» para o intimidar a guardar segredo sobre os contactos sexuais que ambos mantinham.
A medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de reafirmar a validade da norma e a prevalência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização. As circunstâncias referidas no n.º 2 do art. 71.º do CP, actuando no âmbito da moldura penal abstracta sem quaisquer pontos ou limites predefinidos, constituem os itens a que deve atender-se para a fixação concreta da pena, que há-de situar-se dentro da submoldura definida pelas exigências de prevenção geral do caso, cujo limite máximo não pode ultrapassar a medida da culpa e cujo limite mínimo constitui a exigência irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico. Ter a pena aplicada sido estabelecida em medida não superior a cinco anos é o primeiro pressuposto (o pressuposto indispensável) para a substituição da pena de prisão, sendo então obrigatório equacionar essa substituição no cumprimento de um poder/dever ou poder vinculado. É necessário, no entanto, que para além do referido pressuposto, que é um requisito de ordem formal, se verifiquem outros requisitos, estes de ordem material e por isso agrupados habitualmente sob a designação comum de pressuposto material. São eles os que vêm indicados na segunda parte do n.º 1 daquele art. 50.º e que fundamentam um juízo de prognose favorável, ou seja, a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. |